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“Pai contra mãe”: quando o outro não é semelhante

“Father against mother”: when the other is not similar

Resumo

Através da ficção de Machado de Assis, buscamos mostrar o quanto permanecem atuais certos comportamentos e formas de subjetividade herdeiros da escravidão. Essa herança está incorporada ao discurso social e na linguagem cotidiana. Ela se transforma segundo as condições atuais, mas não se apaga. O reconhecimento da impossibilidade desse apagamento é uma chance para sua superação. A escrita de Machado transforma-se em ferramenta significativa para a elaboração e prática dos psicanalistas, uma vez que, para a psicanálise, o exercício de sua ética não está dissociado da escuta dos discursos que organizam a subjetividade em seu tempo e lugar.

impossível; inconsciente; outro; discurso; mal-estar

Abstract

Through Machado de Assis’s fiction, we seek to illustrate how certain current behaviors and forms of human subjectivity are the heritage of slavery, which is involved in social discourse and everyday life and transforms itself according to current conditions, but does not disappear. Recognizing the permanence of slavery’s heritage is an opportunity to overcome it. The unconscious remains of these memories are revealed by Machado de Assis and became a valuable tool for psychoanalysts’ practice, since the praxis of its ethics is connected to listening to the discourses that structure subjectivity in time and space.

Impossible; unconscious; other; discontents

Poderemos ensaiar a organização de nossa desordem segundo esquemas sábios e de virtude provada, mas há de restar um mundo de essências mais íntimas que, esse, permanecerá sempre intato, irredutível e desdenhoso das invenções humanas.

Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, p. 188.

A epígrafe acima foi escrita quase na mesma época do texto freudiano O mal-estar na cultura.1 1 FREUD, O mal-estar na cultura. Ambos fazem uma interpretação que aponta o impossível que organiza nossas tentativas civilizatórias. Sérgio Buarque analisou as raízes ibéricas do Brasil visando, a partir do seu reconhecimento, a poder transformá-las, embora ao final nos fizesse a advertência reproduzida acima. Em seu texto, Freud apontava para as três grandes fontes de sofrimento do sujeito: o corpo, a natureza e os outros (os semelhantes); e acrescenta que estes últimos talvez fossem os que nos causassem as maiores dificuldades.

Ao escrever seus romances e contos, Machado de Assis descreveu e analisou finamente essas ordens contraditórias, paradoxais, com as quais ainda hoje nos defrontamos. O conto "Pai contra mãe"2 2 ASSIS, Pai contra mãe, p. 657-667. nos parece um desses momentos exemplares. Um painel preciso de alguns dos impasses mais cruciais de nossa subjetividade moderna.

Vamos tentar delinear nossa contribuição acompanhando algumas questões evidenciadas pelo texto e, simultaneamente, sublinhar os efeitos de leitura que o autor provoca em seu leitor. Efeitos que podem tornar-se significativos para a escuta do psicanalista.

O texto foi editado em 1906, fazendo parte da coletânea Relíquias de casa velha (Machado, nascido em 1839, faleceu dois anos depois dessa publicação, em 1908). Naquela data, comemoravam-se dezoito anos que a escravatura fora oficialmente abolida no Brasil (1888). O conto parece uma "homenagem" ácida a essa "maioridade" inconclusa e uma descrição impactante dos traços de sua permanência na atualidade das relações sociais e nos discursos que perfazem nossa subjetividade.

Logo na abertura do livro, Machado nos faz uma advertência que consideramos interessante reproduzir:

Uma casa tem muitas vezes as suas relíquias, lembranças de um dia ou de outro, da tristeza que passou, da felicidade que se perdeu. Supõe que o dono pense em as arejar e expor para teu e meu desenfado. Nem todas serão interessantes, não raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver cuidado, pode extrair uma dúzia delas que mereçam sair cá fora... Depende da tua impressão, leitor amigo, como dependerá de ti a absolvição da má escolha.3 3 Idem, p. 658.

Assim, vamos às impressões no leitor: o texto impressiona por sua angústia e violência, que vão crescendo à medida que acompanhamos a trajetória e o desespero do personagem Candinho. Somos levados, a contragosto, aos traços que se apresentam ao leitor para sua identificação. Gostaríamos de poder recusá-los, como um prato indigesto, mas paradoxalmente não conseguimos esboçar qualquer protesto. Sobre esses efeitos, por ocasião da jornada intitulada "Dom Casmurro – Cem Anos Inventando um Brasil", realizada em 1999, homenageando esse romance fundamental, tivemos oportunidade de trabalhar questões a respeito da memória e da invenção em Dom Casmurro, em que as memórias produzem uma realidade, recriam a origem no futuro e nos possibilitam analisar o presente. Um pouco mais especificamente sobre os efeitos angustiantes, neste citado encontro de trabalho, o professor de Letras da UFRGS Homero Araújo, ao abordar "A estratégia narrativa de Dom Casmurro" apontou o mal-estar inexplicável, "este abafamento e claustrofobia após a leitura" que o leitor não consegue explicitar totalmente. Os argumentos (as razões dos personagens para seus atos) podem ter índices positivos ou negativos, dependendo de nossa confiança no narrador. Esse narrador que, com sua aparente serenidade e fina ironia, vai inoculando o "veneno da voz na veia da narração", segundo Luís Augusto Fischer.4 4 FISCHER, Contos de Machado, p. 156.

Simultaneamente, em “Pai contra mãe”, somos confrontados por uma narrativa que nos apresenta os fatos, os personagens, sem caricaturar sua psicologia, apenas descrevendo sua mediocridade, sua humanidade. Nenhuma grandeza em Cândido Neves, ou mesmo em sua esposa Clara, ou ainda na tia que incentiva e determina a doação do filho recém-nascido do jovem casal. Tia Mônica, personagem tão fundamental na trama, que sutilmente demonstra o estilo do "bruxo do Cosme Velho" (apelido com o qual Machado ficou conhecido). A tia que abrigou e criou a sobrinha Clara, que consegue sustentar a família com seu trabalho de costureira, vai assumindo papel preponderante na vida do casal. Consegue uma moradia no momento em que são despejados e, com seu discurso da necessidade, vai realizando a ideia de que a "roda dos enjeitados"5 5 Roda dos enjeitados: expressão como ficaram conhecidas as instituições onde os pais deixavam seus filhos para serem criados. Geralmente instituições de caridade mantidas por organizações religiosas. Os bebês eram depositados na porta, onde uma roda permitia o acesso sem que fosse possível enxergar o interior do prédio. "Abandonar o bebê na roda" era doloroso, mas não escandaloso, pois a roda era uma instituição. Existiu também na França. ALENCASTRO, Pai contra mãe: o terror escravagista em um conto de Machado de Assis, p. 1. poderia dar um futuro melhor para o recém-nascido.

Aqui a narrativa já nos permite uma associação com uma questão atual: qual futuro terão os filhos dos Candinhos? As crianças que não têm nome. Porque um dos detalhes que chamam atenção é o fato de o filho do casal, tão festejado, batizado, não ter seu nome citado. Talvez a própria trajetória de Cândido seja uma forma ainda primitiva de ritual de passagem para que a criança pudesse "vingar" (sobreviver) e aí, sim, ser nomeada pelo pai.

Além disso, trata-se de filhos de pais cujos trabalhos estão em plena extinção. Em seu conto, Machado anuncia que vai falar dos ofícios e dos instrumentos que se extinguem conforme sua época. Os instrumentos de marcação e, hoje diríamos, tortura dos escravos foram se extinguindo, assim como a figura do "caçador de escravos fugidos". Conforme Luiz Felipe de Alencastro,6 6 ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 345. esse ofício surge na legislação colonial na esteira do combate e rastreamentos aos quilombos, em 1625, na Bahia. Posteriormente, em 1676, é formalizado "o posto de capitão do mato, encarregado do rastreamento e da captura de escravos fugidos".

Cândido Neves é a versão urbana do capitão do mato, retrato de sua decadência trinta anos antes da abolição (que aconteceu em 1888). No período relatado por Machado (década de 50 do século 19), os escravos alforriados (que conseguiam comprar ou obter sua liberdade) misturavam-se aos nascidos "de ventre livre" (a lei do ventre livre decretou a libertação de todo filho de escrava a partir dessa época), criando uma caótica convivência no cotidiano da cidade. Essa complexa urbanidade e precária civilidade comparecem também em seu apelido: Candinho. Diminutivo que caracteriza o tratamento dos filhos do Rio de Janeiro, capital do Império, ou mesmo da primeira República. Forma de tratamento que se mantém vigente até hoje, mostrando e encobrindo toda a complexidade de uma cordialidade. E evidencia um paradoxo: um sujeito Cândido que, por sua candura, preguiça ou inércia, termina sendo quase um pária, num ofício violento por sua própria natureza. Reproduzimos outro trecho do conto:

Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantém a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via [...].

Cândido Neves – em família, Candinho – cedeu à pobreza quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave este homem, não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade.7 7 ASSIS, cit., p. 660.

Teríamos muitas questões para abordar, dada a complexidade e riqueza da obra machadiana. Porém, vamos salientar apenas dois pontos. Primeiramente, acompanhar o autor na sua afirmação de que os ofícios e as funções se transformam ou se extinguem segundo cada época. Cada momento diferente da trama histórico-discursiva requer o exercício de uma função também diferente. Não somente no que se refere a um ofício, mas, principalmente, no que se refere aos determinantes das funções sobre as quais se ocupa a nossa prática; nesse caso, pai e mãe. Atualmente, quando nos ocupamos dessas figuras discursivas nomeadas de pai e mãe, sabemos que uma análise vai interrogar a amarração simbólica, imaginária e real que sustenta tais referências primordiais na constelação dos significantes de um sujeito. Fazer "actos", "actualizar" a realidade do inconsciente (para relembrar o seminário 11, de Lacan),8 8 LACAN, O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. requer estarmos advertidos desses determinantes recalcados.

Entrelaçado com essa primeira observação, está o segundo ponto de nossa tentativa de estabelecer um diálogo: ele se refere à atualidade do texto; ou, em outras palavras, em quê este autor nos ajuda em nossas vicissitudes na atualidade da clínica? Diversos autores já abordaram essa questão, entre eles, Chemama no livro Elementos lacanianos para uma análise no cotidiano.9 9 CHEMAMA, Elementos lacanianos para uma análise no cotidiano. Nessa direção, um autor pode nos revelar algo do tratamento analítico. Outros autores realizam uma possibilidade de evidenciarmos algo do fantasma ou do desejo. Eu diria que, neste caso específico, há também a aproximação evidente que poderíamos fazer entre uma profissão que termina devido à abolição da escravatura e as diferentes profissões que hoje não têm mais lugar em função das modificações tecnológicas – todos os trabalhos manuais e repetitivos que estão sendo cada vez mais substituídos. Para um psicanalista, outra condição (ordem?) chama a atenção: a relação com o real/impossível com o qual o leitor é levado a se deparar, em que não há conciliação entre as ordens contraditórias. E aí se abre a possibilidade de leitura dos traços que constituem o campo do Outro para nossa subjetividade.

Isto se evidencia pela tensão à qual estamos submetidos quando somos obrigados/levados pelo autor a acompanhar a trajetória de Candinho em busca do pagamento que permitirá sustentar o filho, mesmo à custa do aborto de uma escrava fugida ("há crianças que não vingam"). A lógica dessa situação é implacável e nos deixa em dificuldades para uma crítica moral, pois estamos em outro tempo, outros valores, e até mesmo para uma crítica ética. A escravidão era condenável, os embates já apontavam para seu fim, mas havia uma ordem, um estatuto social que ainda legitimava a condição escrava e essas profissões quase marginais. Em outras palavras, a condição biológica invocada pela escrava para tentar manter sua liberdade é insuficiente para ser escutada pelo seu captor. "Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei sua escrava."10 10 ASSIS, cit., p. 666. Este discurso proferido por Arminda (a escrava fugitiva) não provoca uma identificação que pudesse levar Candinho a não produzir seu ato. Cândido era pai, mas não era escravo. Sua afirmação como pai passava por capturar a escrava fugida. Um escravo não é um semelhante, sua súplica não será escutada no mesmo registro. No máximo, uma acusação: "[...] você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois?"; ou, quando leva o próprio filho e a recompensa de cem mil réis para casa, uma frase apenas serve de autocomplacência: "[...] beijando o filho, entre lágrimas verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto. – Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração".11 11 Idem, p. 667. (O aborto em questão aconteceu quando Cândido realizava a entrega de Arminda a seu proprietário. Devido ao esforço, de tanto lutar, abortara.)

Nota sobre o sintoma atual e seus desdobramentos

Sempre que o sujeito está frente a situações-limite que exigem seu ser, respostas são demandadas imperativamente. Um sujeito responderá a elas, vai lidar com elas segundo sua organização subjetiva, em poucas palavras; da maneira como seu sintoma foi estruturado. Nas estruturas psicóticas, ou nos chamados casos-limite, isso fica mais evidente, pois o desencadeamento de uma crise, circunstancial ou permanente, sempre pode ser associado a um acontecimento em que o sujeito foi chamado a responder simbolicamente e, na falta de suportes dessa ordem, lança mão de recursos reais ou imaginários. Talvez seja mais preciso falar na articulação entre esses dois registros.

Nos casos chamados de neurose, podemos verificar que as respostas são percebidas a partir de seus desdobramentos, conhecidos, ou reconhecidos, pelo sujeito que se interroga sobre eles, como situações de repetição. O sujeito reconhece que algo se repete – notadamente uma situação –, algo já vivido anteriormente, com pequenas diferenças. Essas repetições, no decorrer de uma análise, podem ser descritas como sendo aquelas situações em que o sujeito se reconhece; porque escondem e simultaneamente evidenciam algo que se quer manter oculto. Curiosamente, essas repetições conferem certa identidade. Sintomática, repetitiva, muitas vezes motivo de sofrimento e da busca de uma análise.

Talvez possamos aqui nos remeter às contribuições dos psicanalistas que tentam pensar a situação atual, em que há uma falta de referenciais simbólicos para o sujeito moderno. Ou seja, como o campo/lugar do Outro vem sofrendo modificações importantes. Não vamos nos estender em tema tão longamente trabalhado. Entretanto, algumas observações se fazem necessárias.

Podemos mencionar o declínio das grandes narrativas, dos grandes textos de referência universal. Para citar dois, a Bíblia, como paradigma da religião, e O capital, como texto orientador para o marxismo. Sem falar nas grandes construções narrativas que situaram o homem histórica e culturalmente, vide Ilíada e Odisseia.

Justamente essa falta de referência universal evidencia a condição do homem moderno na ascensão do individualismo e hegemonia da consciência. Na falta dessa ordem que verticalizava as relações, hoje temos uma horizontalidade que hegemonicamente exige relações simétricas, num mundo marcado pela desigualdade.

Roland Chemama nos levou, a partir da interrogação do por que nos servimos dos textos literários (desde Freud), a pensar sobre a função do falo e sua ausência como referente para a atualidade. Essa ausência faz com que o sujeito passe a ter, no mínimo, dificuldades com relação ao Nome do Pai, na medida em que a função do pai real, enquanto portadora do falo e agente da castração, encontra-se fora da gama de recursos a que o sujeito poderia ter acesso.

O que podemos verificar, notadamente a partir da experiência clínica, mas também a partir dos discursos que organizam o laço social (são os mesmos que organizam a subjetividade), é que cada vez mais os recursos são buscados do lado do imaginário e do real para fazer frente a essa falta simbólica. Não é por acaso que as toxicomanias e as depressões são respostas cada vez mais frequentes. Não entraremos no detalhamento desses processos, embora me pareça um pouco limitado citar tóxicos e depressão sem explicitar do que estamos falando. Pelo menos fica o registro da insuficiência, pois aqui estamos nos ocupando de outro tópico, qual seja, a relação do psicanalista com o texto narrativo de ficção.

Também temos que fazer o registro de que essas observações não se pretendem saudosistas. Os psicanalistas, pela própria natureza de sua prática (a prevalência da linguagem), não poderiam colocar-se ao lado da demanda por uma autoridade forte, mítica, que viesse restabelecer a ordem. Ou mesmo juntar-se ao coro dos que lamentam nossos atuais arranjos. Com isso, reafirmamos que esses arranjos subjetivos são sintomáticos, mas não necessariamente patológicos. A psicanálise toma o sintoma como um sinal, não de doença, mas do sujeito.

Afinal, somos efeito de um discurso. Nossa esperança é que o discurso analítico tenha produzido efeitos. Pelo menos aqueles que gostaríamos de reconhecer como nos ajudando a lidar com o real da castração. Soluções mágicas, em maior ou menor grau, todos encontramos, lançamos mão delas em algum momento. Resta saber se elas vão predominar ou não.

Retornando ao ponto de nossa discussão: talvez uma das funções que cumpra o texto literário, este que consideramos como clássico, neste sentido de fundador, canônico, fazendo parte dos cânones de nossa cultura, seja possibilitar uma referência organizadora do Outro. Este que, através dos Nomes do Pai, autoriza nossos enunciados, autoriza nossas formas de desejar. Um texto organizador nos possibilita lidar com as identidades e com as diferenças.

Daí que possamos dizer, fazendo coro com diversos autores, que Machado de Assis também é um dos inventores do Brasil. Seu desprendimento da necessidade de constituir uma identidade permitiu transcender a dicotomia que nos aparece em diversos momentos. Lacan, em "Variantes do tratamento padrão",12 12 LACAN, Variantes do tratamento padrão. faz uma afirmação parecida a respeito de Freud, que conseguiu ultrapassar seu narcisismo, não se deixando fascinar pelo efeito de identidade que tanto impregnou seus pares e os impediu de escutar as histéricas.

Vamos enfatizar esta propriedade do trabalho machadiano de invenção: ele não se propõe a fazer a literatura "empenhada" (com a missão/o empenho de construir uma identidade nacional). Trabalha no tecido da linguagem, provocando no seu leitor o efeito de ter que elaborar a situação paradoxal de uma cultura em que os valores são conflituados e entremeados de uma forma altamente complexa. Os efeitos da escravatura, para ficarmos no conto citado ("Pai contra mãe"), não podem mais ser lidos maniqueísta ou dicotomicamente. Para o bem e para o mal, os personagens de Machado não são caricaturas. Sofrem todos os efeitos do discurso que organiza o laço social com suas contradições. Cândido Neves, ao mesmo tempo em que se considera um tipo meio "caipora" (que não tem sorte na vida), que não conseguia aprender direito um ofício, nem assumir emprego fixo, também gosta de patuscadas (festas), assim como a esposa e sua tia são alegres e festeiras. Ou seja, compõem uma família, com seus afetos e tristezas. Entretanto, como o texto do conto nos demonstra, a relação com os escravos é de outra ordem.

Machado descreve, analisa, mas é o leitor quem tem de suportar a angústia que este real desvelado provoca. É também ele quem assume a responsabilidade pelas consequências ao reconhecer no escrito, ali nomeado, o Outro que nos organiza. Um Outro, depositário da linguagem, do qual fazem parte os restos, essas relíquias esquecidas, recalcadas ou simplesmente rejeitadas por não estarem conformes aos ideais de harmonia e paz que gostaríamos de reafirmar. Nesse movimento de dar voz ao que ficou recalcado, inaudito, é que o texto ficcional de um mestre se torna precioso para os psicanalistas. Entretanto, só poderemos ter alguma chance relativa ao exercício de um desejo se esses restos puderem ser examinados à luz do dia, com todo o peso, a responsabilidade e o mal-estar que provocam.

Referências

  • ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  • ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Pai contra mãe: o terror escravagista em um conto de Machado de Assis. 2002. Disponível em: <http://freud-lacan.com/freud/Champs_specialises/Langues_etrangeres/Portugais/Pai_contra_mae>. Acesso em: 25 jan. 2016.
    » http://freud-lacan.com/freud/Champs_specialises/Langues_etrangeres/Portugais/Pai_contra_mae
  • ASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: ASSIS, Machado de . Obra completa Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, v. 2.
  • CHEMAMA, Roland. Elementos lacanianos para uma análise no cotidiano. Porto Alegre: CMC, 2002.
  • FISCHER, Luís Augusto. Contos de Machado: da ética à estética, parte 3: o narrador do conto. In: SECCHIN, Antônio Carlos et al. (Org.). Machado de Assis: uma revisão. Rio de Janeiro: In-Folio, 1998, p. 147-156.
  • FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura Porto Alegre: L&PM, 2010.
  • HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  • LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979.
  • LACAN, Jacques. Variantes do tratamento padrão. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
  • 1
    FREUD, O mal-estar na cultura.
  • 2
    ASSIS, Pai contra mãe, p. 657-667.
  • 3
    Idem, p. 658.
  • 4
    FISCHER, Contos de Machado, p. 156.
  • 5
    Roda dos enjeitados: expressão como ficaram conhecidas as instituições onde os pais deixavam seus filhos para serem criados. Geralmente instituições de caridade mantidas por organizações religiosas. Os bebês eram depositados na porta, onde uma roda permitia o acesso sem que fosse possível enxergar o interior do prédio. "Abandonar o bebê na roda" era doloroso, mas não escandaloso, pois a roda era uma instituição. Existiu também na França. ALENCASTRO, Pai contra mãe: o terror escravagista em um conto de Machado de Assis, p. 1.
  • 6
    ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 345.
  • 7
    ASSIS, cit., p. 660.
  • 8
    LACAN, O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
  • 9
    CHEMAMA, Elementos lacanianos para uma análise no cotidiano.
  • 10
    ASSIS, cit., p. 666.
  • 11
    Idem, p. 667.
  • 12
    LACAN, Variantes do tratamento padrão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2016

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2016
  • Aceito
    11 Mar 2016
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