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MACHADO DE ASSIS E A ESCRAVIDÃO: MARCAS DO CATIVEIRO NOS CONTOS “O CASO DA VARA” E “PAI CONTRA MÃE”

MACHADO DE ASSIS AND SLAVERY: SIGNS OF CAPTIVITY IN THE SHORT STORIES “O CASO DA VARA” E “PAI CONTRA MÃE”

Resumo

Este artigo busca compreender a posição de Machado de Assis frente à escravidão, a partir do debate da tese do suposto absenteísmo político do autor em face daquele sistema. A análise dos contos “O caso da vara” (1891) e “Pai contra mãe” (1906) ocupa posição central no processo argumentativo, em especial ao conferir destaque a elementos muito relevantes para a organização do referido debate e, sobretudo, por evidenciar modos por meio dos quais a representação literária da ignomínia da escravidão estabelece perspectivas ficcionais, contrapontos e outras complexidades estruturais que ratificam posicionamentos críticos do escritor (já discerníveis em outros elementos examinados no texto) diante da instituição do cativeiro.

Palavras-chave:
Escravidão; Literatura; Contos machadianos

Abstract

This article seeks to understand Machado de Assis’ position in face of slavery, based on the discussion about his supposed political absenteeism in front of that system. The analysis of the short stories “O caso da vara” (1891) and “Pai contra mãe” (1906) occupies a central position in the argumentative process, in particular by emphasizing the more relevant elements for the organization of this debate and, above all, by highlighting ways in which the literary representation of the ignominy of slavery establishes fictional perspectives, counterpoints and other structural complexities that ratify critical positions of the writer (already discernible in other elements examined in the text) in relation to the institution of captivity.

Keywords:
Slavery; Literature; Machado’s short stories

Ao contar suas histórias, Machado de Assis escreveu e reescreveu a história do Brasil do século XIX.

Sidney ChalhoubCHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras , 2003., Machado de Assis: historiador

Entre o jovem aprendiz de tipógrafo e o experiente autor do Memorial de Aires, há uma vida inteira dedicada à escrita. Antes mesmo de atingir sua fase mais madura, o escritor atuou como folhetinista, comediógrafo, poeta, crítico literário, tradutor e censor do Conservatório Dramático. Essas ocupações perpassaram sua trajetória e foram significativas para sua formação enquanto intelectual atento às inquietações de seu tempo. Suas obras de ficção como romancista, cronista e contista o consagraram escritor de grande prestígio.

Alinhadas a grande parte da literatura produzida nos Oitocentos,1 1 Ver Dicionário da escravidão e liberdade, organizado por Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes (2018, p. 299-304). as obras retrataram, de forma mais ou menos explícita, a escravidão. Duas cenas romanescas são emblemáticas. A primeira aparece em Memórias póstumas de Brás Cubas: ainda pequeno, o ardiloso Brás Cubas senta-se sobre o dorso do escravo Prudêncio e o fustiga. A segunda, em Dom Casmurro: durante uma visita de Escobar a sua casa, Bento Santiago apresenta ao amigo os cativos do local. Ainda que ficcionais, as cenas refazem um dado real da sociedade escravista do século XIX: a presença de escravos domésticos nas grandes propriedades. Cenas marcantes como essas também estão presentes nos contos.

A produção do Machado de Assis contista é vasta. John Gledson (2006GLEDSON, John. O machete e o violoncelo: introdução a uma antologia dos contos. In: ______. Por um novo Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.) afirma que o autor “[...] escreveu cerca de duzentos contos, que abrangem praticamente toda sua vida de escritor, desde 1858, quando contava dezenove anos, até 1907, um ano antes de sua morte” (GLEDSON, 2006GLEDSON, John. O machete e o violoncelo: introdução a uma antologia dos contos. In: ______. Por um novo Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 35). Parte considerável de seus contos foi publicada em jornais e revistas e, depois, a depender da recepção desses textos, foi recolhida em volumes. Há sete coletâneas de contos organizadas pelo próprio autor, entre 1870 e 1906. Ao longo dos anos, diversas antologias foram elaboradas na tentativa de reunir sua “obra completa”.

Na antologia Machado de Assis afrodescendente, o pesquisador Eduardo de Assis Duarte (2007DUARTE, Eduardo de Assis. Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Pallas; Crisálida, 2007.) reúne textos escritos pelo autor que dialogam com o tema em discussão. Poemas, críticas teatrais, crônicas e romances integram a obra. Além dos contos “Virginius” (1864), “Mariana” (1871) e “O espelho” (1882), há no livro dois textos que abordam a questão: “O caso da vara” (1891) e “Pai contra mãe” (1906). A análise desses dois contos, proposta na sequência, é argumento central na discussão de alguns juízos recorrentes acerca dos posicionamentos políticos do escritor.

Em 25 de março de 1884, quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea, a província do Ceará declarava a Abolição da Escravidão. Na obra Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88), Angela Alonso (2015ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.) descreve as agitações das fortes campanhas abolicionistas que contribuíram para que Sátiro Dias, político que presidia a província na época, pudesse sancionar a lei de libertação dos escravos: “O Ceará tornou-se o exemplo a ser emulado. A campanha avançou pelo país, com resultados diferentes. A equação virtuosa aconteceu na presença de três fatores: movimento estruturado e conectado com o da corte, baixa organização política do escravismo local e executivo provincial facilitador.” (ALONSO, 2015ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 89). Esse acontecimento suscitou reações em distintas partes do Brasil.

Na biografia Machado de Assis desconhecido, Raimundo Magalhães Júnior (1957)MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Machado de Assis e a Abolição. In: ______. Machado de Assis desconhecido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957. p. 141-177. dedica um capítulo à discussão da atitude do autor em face da Abolição. Diante do fato ocorrido na província cearense, Machado de Assis foi instado por Ferreira de Araújo, amigo e diretor da Gazeta de Notícias, a manifestar-se e o fez como segue: “O Ceará é uma estrela, é mister que o Brasil seja um sol.” (ASSIS apud MAGALHÃES, 1957MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Machado de Assis e a Abolição. In: ______. Machado de Assis desconhecido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957. p. 141-177. , p. 141). Segundo o biógrafo, o escritor “aplaudiu a Abolição numa província e proclamou a necessidade de ampliá-la para todo o Brasil.” (MAGALHÃES, 1957MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Machado de Assis e a Abolição. In: ______. Machado de Assis desconhecido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957. p. 141-177. , p. 143). Todavia, a mesma declaração foi considerada inexpressiva por Lúcia Miguel-Pereira, como relembra o próprio Magalhães. Para a pesquisadora essas palavras teriam “[...] um ar medroso e destoante de corcunda numa competição atlética” (MIGUEL-PEREIRA apud MAGALHÃES, 1957MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Machado de Assis e a Abolição. In: ______. Machado de Assis desconhecido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957. p. 141-177. , p. 143), o que explicita suas divergências. Magalhães também cita Mário Matos, outro biógrafo com posição contrária à sua:

Machado, metido em meios políticos, não tinha vocação política. Era o espectador imparcial e desinteressado do espetáculo em que foi ator de somenos ou quase nenhuma importância. Guardará sempre, em todos os maiores acontecimentos, que agitaram o país, a mesma posição. Assim será em face da guerra com o Paraguai, em face da propaganda abolicionista e prédica a favor da implantação da República. Depois dos anos da mocidade, o retraimento vai ser ainda maior. Só uma vez se deixou contagiar do entusiasmo sonoro da multidão: a 13 de maio de 1888. Arrastado então no torvelinho, irá surpreendentemente, em carro aberto, às portas da Câmara, ovacionar Nabuco e outros abolicionistas, para depois, pela boca de um de seus personagens negar o fato como se fora deslize. (MATOS apud MAGALHÃES, 1957MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Machado de Assis e a Abolição. In: ______. Machado de Assis desconhecido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957. p. 141-177. , p. 141)

As declarações incisivas de Miguel-Pereira e Matos constroem a imagem de Machado de Assis como um escritor indiferente às questões político-sociais de seu tempo. Elas corroboram a suposta tese do absenteísmo político como meio de definir a postura do escritor. Magalhães apresenta argumentos contrários a essa hipótese. O primeiro deles condiz com a atuação ativa do autor na Gazeta de Notícias. Mais do que redator, Machado desempenhava a função de acionista e era associado ao periódico. O posicionamento político do jornal era, declaradamente, abolicionista. Dessa maneira, o suposto alheamento do autor em relação à Abolição encontraria a primeira incoerência, afinal: “É difícil que qualquer de seus redatores formulasse reversas à campanha abolicionista ou estivesse em divergência com a direção.” (MAGALHÃES, 1957MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Machado de Assis e a Abolição. In: ______. Machado de Assis desconhecido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957. p. 141-177. , p. 143). Há outros meios de colocar a tese à prova.

O fim da passagem de Mário Matos alude a Memorial de Aires. Nele, o ex-diplomata aposentado, de hábitos reclusos, registra em seu diário acontecimentos cotidianos. A data 13 de maio de 1888 impõe uma quebra à monotonia do sexagenário: a Lei Áurea é promulgada e as comemorações invadem as ruas. Um “homem da imprensa” comunica ao aposentado a dimensão da festança e o convida a entrar em um carro rumo ao cortejo no paço da cidade. Aires recusa o convite. Considerando a narrativa, Magalhães lança perguntas pertinentes em relação às observações de Matos: “Machado não se meteu na pele do Conselheiro Aires. Por que havia de atribuir a este, exatamente o que se passou com ele próprio? [...] Por que não reconhecer nesse homem de imprensa o próprio Machado?” (MAGALHÃES, 1957MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Machado de Assis e a Abolição. In: ______. Machado de Assis desconhecido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957. p. 141-177. , p. 145).

Há de se considerar, ainda, um fato não citado por esses três biógrafos e que sugere a participação do escritor nas comemorações da promulgação da lei: Andrea Wanderley, pesquisadora e editora-assistente da Brasiliana Fotográfica identificou recentemente o que seria a presença do escritor em uma fotografia de Antonio Luiz Ferreira, registrada em 1888FERREIRA, Antonio Luiz. Dom João de Orleans e Bragança. Missa campal celebrada em Ação de Graças pela Abolição da Escravatura no Brasil. 17 maio 1888. Disponível em: <Disponível em: http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/1795 > Acesso em: 31 jan. 2020.
http://brasilianafotografica.bn.br/brasi...
, em São Cristóvão (RJ), na celebração de uma missa campal, realizada em Ação de Graças à Abolição.2 2 A localização originária da fotografia é o acervo digital do Instituto Moreira Salles. Lilia Moritz Schwarcz (2017SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras , 2017.), refletindo sobre esse documento e seus possíveis sentidos, assinalava, em sua biografia de Lima Barreto, o fato de a Abolição “ter sido festejada como um novo início”. Nesse sentido, a foto em questão poderia registrar a participação dos envolvidos em um projeto coletivo de produção de uma nova “representação visual do poder”. Assim, a agência do fotógrafo (seu “enquadramento e intenção”) ritualizariam o desejo de um novo tempo:

Afinal, a Abolição foi festejada como um novo início. Símbolos e rituais nada têm de inocentes. Ao contrário, eles fundam modelos, definem direções, difundem significados. Também são bons companheiros em situações de crise e em momentos inaugurais. É isso que explica o crítico literário Edward Said em seu livro Beginnings. O começo, enuncia ele, “é o primeiro passo na produção intencional de sentido”. Foram muitos os festejos, e vários os responsáveis, para que a festa não tivesse falhas e encantasse os olhos. (SCHWARCZ, 2017SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras , 2017., p. 70)

A atuação intelectual tanto de Machado de Assis quanto de Lima Barreto não deixa dúvidas quanto às desilusões posteriores relativas à permanência das práticas de exclusão social a que foram sentenciados os escravizados3 3 As primeiras linhas de “Pai contra mãe” salientam a continuidade dessas práticas de exclusão: “A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições.” (ASSIS, 2008, p. 631). Com sagaz ironia, a narrativa insinua que o fim da instituição do cativeiro não deixa de determinar a manutenção e a sobrevivência de outros cruéis mecanismos e instrumentos que corroboram opressões e sujeições aos quais os escravizados foram historicamente submetidos. , na substituição da instituição da escravidão por aquilo que hoje denominaríamos racismo estrutural. Nada disso invalida o peso simbólico que se observa no registro histórico preservado na imagem em questão. Nada disso permite reforçar a hipótese do alheamento machadiano quanto àquele capítulo de uma história então em processo de escrita.

A participação no debate contra a escravidão é ainda mais ativa nos escritos ficcionais. No volume Machado de Assis: do teatro (textos críticos e escritos diversos), João Roberto Faria (2008ASSIS, Machado de; FARIA, João Roberto (Org.). Machado de Assis: do teatro. Textos críticos e escritos diversos. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. ) revela a importância de Machado de Assis como leitor, espectador e crítico de teatro. A obra reúne textos que podem lançar luzes à questão. Dentre os exemplos, há a crítica à peça Mãe, de José de Alencar, publicada na coluna “Semana Literária”, em 13 de março de 1866. O drama põe em cena a história de Joana, mulata que vive, em segredo, como escrava do próprio filho para evitar os preconceitos que o rapaz sofreria ao descobrir suas raízes. Faria transcreve o comentário do autor: “Se ainda fosse preciso inspirar ao povo horror pela instituição do cativeiro, cremos que a representação do novo drama do sr. J. Alencar faria mais do que todos os discursos que se pudessem proferir no recinto do corpo legislativo.” (ASSIS apud FARIA, 2008ASSIS, Machado de; FARIA, João Roberto (Org.). Machado de Assis: do teatro. Textos críticos e escritos diversos. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. , p. 419).4 4 A transcrição reaparece em “Teatro romântico e escravidão”. Faria (2013) busca compreender em que medida o teatro brasileiro “dos tempos românticos” pôde representar a escravidão. As análises do autor são significativas para que se pense, aqui, a posição crítica de Machado. A crítica é valiosa para objetar à desatenção do autor à causa abolicionista.

Os contos selecionados como núcleo organizador da presente reflexão parecem constituir, por sua vez, intervenções ou comentários ficcionais (com toda a complexidade implicada) ao problema em discussão. Publicado em 01 de fevereiro de 1891 no jornal Gazeta de Notícias e reunido na obra Páginas recolhidas em 1899, o conto “O caso da vara” começa com uma situação-problema: “Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto.” (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. O caso da vara. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 535-540. v. 2., p. 535). O pai do sujeito, descrito como austero, não poderia saber da evasão, pois o devolveria ao seminário imediatamente. O padrinho poderia ajudar. Porém, o homem era um “moleirão sem vontade”. Diante do impasse, o fugitivo decide “apegar-se” com Sinhá Rita, uma viúva e amiga íntima de seu padrinho. Sem demora, corre até a casa dela. O jovem chega ao local ainda apavorado e provoca surpresa na dona da casa:

Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de fora, que estavam sentadas em volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado. Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou às pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse. (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. O caso da vara. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 535-540. v. 2., p. 535-536)

A propriedade de Sinhá Rita abriga “crias” (escravas domésticas de pouca idade), que estão executando trabalhos manuais de costura. Há crias da própria casa e “de fora”, possivelmente mandadas ao local por outras famílias escravistas da vizinhança. A escravidão doméstica ganha os primeiros contornos na narrativa. A disparidade entre os modos de tratamento oferecidos aos presentes reforça esse quadro. Ao seminarista não faltam palavras e gestos amáveis de uma senhora amiga e “patusca”. Aos escravos, sobram discursos severos e ações autoritárias de uma senhora “brava como o diabo”.

Ao tentar distrair Damião, Sinhá pede que o jovem lhe conte anedotas engraçadas. A graça das histórias provoca o riso em uma das crianças, que cessa o artesanato. Sinhá fica irritada e a ameaça: “- Lucrécia, olha a vara!”. As descrições subsequentes são incômodas, pois evidenciam os maus-tratos sofridos pela escrava:

A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos. Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a conversação. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o perdão... Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter chiste. (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. O caso da vara. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 535-540. v. 2., p. 536-537)

A caracterização de Lucrécia pelo narrador assinala sua fragilidade. As marcas do cativeiro estão em seu corpo infantil, deixadas “com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda”. Além disso, a sujeição da pequena é intensa ao ponto de sua tosse voltar-se para dentro. O silenciamento de tantas vozes escravas encontra espaço nesse ponto do enredo. A princípio, Damião parece sensibilizado com a situação da mocinha e, diante da ameaça iminente de Rita, decide apadrinhar a escrava. Enquanto planejava a “benévola ação”, Sinhá Rita recebe a visita de João Carneiro e pede que o íntimo amigo defenda a saída definitiva do afilhado dele da função sacra. A inflexibilidade do pai do ex-seminarista seria, entretanto, obstáculo a esse desejo. Tais considerações revelam dois planos da narrativa: o destino de Damião, após sua fuga do seminário, e a degenerada imagem da escravidão doméstica. Embora interpostos, o segundo plano se sobressai em relação ao primeiro. Em artigo intitulado “Querer, poder, precisar: ‘O caso da vara’”, Alcides Villaça (2005VILLAÇA, Alcides. “Querer, poder, precisar: ‘O caso da vara’”. Teresa: Revista de Literatura Brasileira , São Paulo, n. 6-7, 2005, p. 17-30.) descreveu qual seria a linha de força da história:

[...] remonta o conto à tragédia maior de nossa História, não para acusá-la de forma moral, mas analisá-la estruturalmente numa situação (datada, não arbitrariamente, de “antes de 1850”), numa experiência, que é sempre o plano em que melhor se podem divisar os gestos, as escolhas, os caprichos, os prazeres e as dores que compõem a prática material da dominação. (VILLAÇA, 2005VILLAÇA, Alcides. “Querer, poder, precisar: ‘O caso da vara’”. Teresa: Revista de Literatura Brasileira , São Paulo, n. 6-7, 2005, p. 17-30., p. 19-20, grifos do autor)

“A prática material da dominação” irrompe no texto a partir de uma cena brutal (e típica das situações de cativeiro). Lucrécia não finaliza os bilros do dia. Furiosa, Sinhá Rita procura pela vara, a fim de castigar a escrava. A pequena clama por compaixão, mas seus lamentos são ignorados, sendo chamada de “malandra” e “vadia”. Rita arrasta a negrinha por toda a casa e identifica que o fatídico objeto está próximo à cabeceira da marquesa. Como uma troca de favores, ela pede que Damião traga a vara do açoite para ela. Cruel instante. Damião, que havia jurado apadrinhar a pequena, cede diante de seus interesses particulares. Como não atenderia ao pedido daquela que o ajudaria a sair do seminário? Sinhá Rita instava pela vara. Desse modo: “Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita” (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. O caso da vara. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 535-540. v. 2., p. 539-540).

A ameaça, os maus-tratos e os castigos físicos estão no centro da narrativa. Keila Grinberg (2018GRINBERG, Keila. Castigos físicos e legislação. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos . São Paulo: Companhia das Letras , 2018. p. 144-148.), em “Castigos físicos e legislação” (Dicionário da escravidão e liberdade______. Literatura e escravidão. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 298-306.), faz um comentário que pode ser associado ao conto analisado: “[...] o castigo, assim como o controle sobre as ações dos escravos, fazia parte do cotidiano da escravidão no Brasil. Com ele os senhores propagavam o temor entre seus escravos, na esperança de produzir ‘obediência e sujeição’”. (GRINBERG, 2018GRINBERG, Keila. Castigos físicos e legislação. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos . São Paulo: Companhia das Letras , 2018. p. 144-148., p. 144). De fato, Lucrécia era obediente e submissa a Sinhá Rita. Um mero chiste desencadeou o penoso castigo. Damião, homem livre, compactuou com a injusta agressão.

Diferentemente do conto anterior, “Pai contra mãe” não foi publicado em jornais. Apareceu originalmente em 1906, em Relíquias de casa velha. A representação da escravidão está ainda mais explícita nesse enredo. Na obra escrita por Magalhães (1957)MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Machado de Assis e a Abolição. In: ______. Machado de Assis desconhecido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957. p. 141-177. , o biógrafo refere-se a ele como “um conto escrito após a Abolição, sobre as práticas desumanas dos tempos do cativeiro.” (MAGALHÃES, 1957MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Machado de Assis e a Abolição. In: ______. Machado de Assis desconhecido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957. p. 141-177. , p. 153). Nessa mesma direção, Eduardo de Assis Duarte (2007DUARTE, Eduardo de Assis. Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Pallas; Crisálida, 2007.) enfatiza que “[...] a escravidão é retratada em seu âmago, vista enquanto relação sobretudo agonística em seus diversos aspectos” (DUARTE, 2007DUARTE, Eduardo de Assis. Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Pallas; Crisálida, 2007., p. 270). As perspectivas podem ser confirmadas a partir do primeiro parágrafo do conto:

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha de Flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade, certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras. (ASSIS, 2008______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 631-638. v. 2. , p. 631)

As descrições são precisas e impressionam o leitor. Os ferros postos ao pescoço e ao pé e a terrível máscara de folha de flandres representam as formas de captura e de enclausuramento realizadas contra os escravos. Esses indignos objetos eram utilizados contra os escravos fugidos. Após descrever esses utensílios, o narrador, com a típica ironia machadiana, comenta: “Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada.” (ASSIS, 2008______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 631-638. v. 2. , p. 632). Tamanhas atrocidades cometidas por meio da instituição do cativeiro impedem que se considere qualquer afeição dos escravos àquele regime. Sendo assim, a ironia do narrador apenas reforça a desumanidade do período.

Havia outro artifício que contribuía para a captura dos escravos fugidos: “Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação.” (ASSIS, 2008______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 631-638. v. 2. , p. 632). Esses anúncios interessavam muito aos capitães do mato, sendo veiculados com frequência por variados jornais do século XIX. Diante da ampla variedade de exemplos, cabe a reprodução de um trecho da Gazeta de Notícias, de 11 de abril de 1880. O anúncio detalha aspectos físicos de uma escrava fugida (e grávida); esmiúça feições de um de seus filhos; recupera informações sobre seu paradeiro; e enfatiza a gratificação a quem os encontrasse ou as consequências para aqueles que os escondessem:

Continua fugida a minha escrava Leandra, parda, do norte, idade 26 anos, altura e corpo regular, olhos pardos; fugiu em junho proximo passado, n’sssa [sic] occasião ella estava gravida e consta-me que teve uma filha, a qual está com ella, e no mez de fevereiro desappareceu um outro filho d’ella de nome Luiz, idade 11 annos, cor morena, cabeça grande e chata e muito espevitado na falla, consta-me que está tambem com ella; foram vistos para o lado da Cidade Nova, supponho que anda com livre e nome mudado; assim, quem os trouxer á rua da Prainha, n. 138 loja, se gratifica com 60$, assim como se protesta com o rigor da lei contra quem os acoutar. (Gazeta de Notícias, 11 de abril de 1880CONTINUA FUGIDA A MINHA ESCRAVA... Gazeta de Notícias. 11 abr. 1880. Disponível em: <Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=103730_02&pesq=escrava%20fugida%20gr%C3%A1vida >. Acesso em: 18 nov. 2019.
http://memoria.bn.br/docreader/DocReader...
- Hemeroteca Digital)5 5 Optamos por seguir a ortografia original do anúncio.

Se anúncios como esse eram muito utilizados na época, a atuação de captores, como Cândido Neves, chamado pela família de “Candinho”, era ainda mais decisiva. Tipógrafo, comerciante, caixeiro de um armarinho, empregado da repartição de um cartório e carteiro foram apenas alguns de seus empregos. Entretanto, após apaixonar-se e casar-se com Clara, houve necessidade de fixar-se em algum emprego. Clara era uma moça jovem, órfã de pais e que morava com uma tia, Mônica. Após seu matrimônio com Neves, os três passaram a morar juntos. As dificuldades financeiras da família eram grandes e, por isso, Candinho tornou-se Cândido Neves, o capturador de escravos.

Tendo em vista o aumento de capitães do mato, a dificuldade em encontrar escravos cresceu. Os lucros de Cândido diminuíram. Candinho, Clara e a tia foram morar em um cômodo emprestado e, em meio a essa situação de improviso, nasce o filho do casal. A precariedade da situação financeira não deixa saída para os pais: seria preciso levar o filho à Roda dos Enjeitados.6 6 Em “A roda dos expostos e a criança abandonada na história do Brasil: 1726-1950”, Maria Luiza Marcílio (2016) explica as origens desse mecanismo de abandono comum em confrarias da época: “Sua forma cilíndrica, dividida ao meio por uma divisória, era fixada no muro ou na janela da instituição. No tabuleiro inferior e em sua abertura externa, o expositor abandonava a criancinha que enjeitava.” (MARCÍLIO, 2016, p. 55). O recém-nascido, assim como a mãe, viria a se tornar órfão. O desespero leva o pai da criança a consultar as folhas dos jornais. Um anúncio desperta seu interesse: “Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido.” (ASSIS, 2008______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 631-638. v. 2. , p. 636).

A quantia anima o pai da criança. Ele decide sair pelas ruas da cidade para capturar a escrava descrita no jornal. A “Rua do parto” e a “Rua das ajudas” - nomes muito sugestivos para o contexto da narrativa - são alguns dos locais por onde ele passa. Porém, as andanças não são bem-sucedidas. Cândido teria que abandonar o filho e, ao chegar em casa, “pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe” (ASSIS, 2008______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 631-638. v. 2. , p. 637). As descrições comovem o leitor. Entretanto, ele há de se lembrar que o sucesso de Neves depende da captura de um escravo. Seria concebível sentir pena do capitão? A pena astuta de Machado impõe esse impasse àquele que lê. Ao aproximar-se da rua da Roda, Cândido avista a escrava fugida. Em outro ímpeto, persegue-a, bradando por seu nome: “- Arminda!”. Ao perceber que seria capturada, clama por misericórdia, pois carregava o filho no ventre. Os dois entram em confronto. Pai contra mãe:

Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava, ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoutes, - cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoutes. (ASSIS, 2008______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 631-638. v. 2. , p. 638)

Cândido arrasta Arminda até a casa de seu proprietário. Recebe como gratificação duas notas de cinquenta mil-réis: “No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.” (ASSIS, 2008______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 631-638. v. 2. , p. 638). Com a captura, a Roda não era mais o destino da família. Em sua casa, entre lágrimas, o algoz abençoa a fuga de Arminda, desconsiderando o aborto: “- Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.” (ASSIS, 2008______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 631-638. v. 2. , p. 638). O filho de Arminda não veria a luz do dia, pois a condição escrava da mãe determinou seu destino. No ensaio “Machado de Assis”, escrito por Marli Fantini (2011FANTINI, Marli. Machado de Assis. In: DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2011. p. 143-171. ), a pesquisadora salienta:

[...] ao tematizar a sujeição da raça negra e da mãe escrava, o conto denuncia a reprodução e legitimação desse sistema social cuja iniquidade tem como uma de suas mais perversas consequências, além da escravização de seres humanos, a destruição em larga escala de escravos e sua descendência. (FANTINI, 2011FANTINI, Marli. Machado de Assis. In: DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2011. p. 143-171. , p. 156)

Os detalhes acerca dos instrumentos de captura de negros, o ofício de capitão do mato, a fuga de escravos e a corriqueira publicação de anúncios de escravos fugidos nos jornais são pontos determinantes para a representação das barbáries da escravidão. Nesse conto, em particular, parece estar igualmente em relevo a condição social do homem livre. As dificuldades financeiras de Cândido levam-no a dedicar-se a um ofício nada louvável. O interesse particular em proteger o filho se sobressai em relação à possibilidade de deixar Arminda consumar a fuga. A crueza da escravidão e a condição econômica da personagem principal constituem as linhas de força do texto, como defendeu Alfredo Bosi (2007BOSI, Alfredo. A máscara e a fenda. In: ______. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.), em “A máscara e a fenda”, comparando “Pai contra mãe” e “O caso da vara”:

“O caso da vara” e “Pai contra mãe” dão testemunho tanto da vilania dos protagonistas quanto da lógica que rege os seus atos [...]. Ambos têm em comum a situação do homem livre, mas pobre e dependente, que está um degrau, mas só um degrau acima do escravo. (BOSI, 2007BOSI, Alfredo. A máscara e a fenda. In: ______. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007., p. 120)

Essa aproximação entre as narrativas permite que as condições de Damião e Cândido Neves, enquanto homens livres, sejam discutidas. De um lado, o fajuto seminarista concede a vara a Sinhá Rita em troca de ajuda para livrar-se dos desígnios do pai; de outro, o capitão do mato entrega a escrava fugida ao seu proprietário em troca de gratificações em réis. A dependência do primeiro e a miséria do segundo determinam suas escolhas. Essas atitudes, encenadas pela “necessidade de autopreservação”, definem destinos inglórios para Lucrécia e Arminda. Afinal, o bilro inacabado ao entardecer, o chiste supostamente inapropriado e as consequências da fuga da propriedade escravocrata resultam em momentos de ameaça e violência explícitas para as escravas. Em razão disso, há de se considerar, na lógica dos enredos em questão, que a distância entre o homem livre e o escravo seja maior do que um degrau.

Esses impasses não são aleatórios; pelo contrário, eles advêm dos artifícios literários empregados por um escritor afeito à projeção de um narrador dissimulado e irônico. Esses dois elementos estão a serviço da construção de um sentido importante: a representação da ignomínia da escravidão a partir de termos e expressões-chave que podem delinear um posicionamento crítico do autor ao sistema. E como isso ocorre?

Machado parece adotar um procedimento semelhante nas duas narrativas: a partir das ameaças e dos castigos atribuídos a Lucrécia e do enfrentamento entre Cândido e Arminda, descreve com minúcia (e com boa dose de realidade) a naturalização da violência física no modus operandi da sociedade escravista do século XIX e sua incidência nas relações de opressão vivenciadas pelos negros escravizados. Ao retratar historicamente esse quadro, incrementa os textos com comentários do narrador. Dois exemplos são emblemáticos.

Em “O caso da vara”, explica que Lucrécia tão teve culpa por rir da anedota de Damião e argumenta em favor da pequena: “Ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter chiste.” (ASSIS, 2008ASSIS, Machado de. O caso da vara. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 535-540. v. 2., p. 537). Já em “Pai contra mãe”, debate a suposta afeição do cativo ao regime e satiriza a inverossímil benevolência dos senhores aos negros: “[...] o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói” (ASSIS, 2008______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 631-638. v. 2. , p. 632). A ironia e a dissimulação não encontram melhores exemplos. Com riso amargo, o narrador desaprova e condena a escravidão, impulsionando a mesma atitude no leitor.

A leitura dos contos enseja a formulação de mais um argumento em prol da reavaliação da tese do suposto alheamento de Machado de Assis à causa abolicionista. Em “A Semana” (crônicas publicadas na Gazeta de Notícias entre abril de 1892 a março de 1897), o cronista conta, em 14 de maio de 1893, um episódio curioso. Nele, o narrador-personagem relata sua participação no efusivo evento de 13 de maio de 1888. Em meio às agitações da festa abolicionista, percebe a si mesmo como “o mais encolhido dos caramujos”. A passagem diz muito sobre a postura do escritor fluminense, que não esteve nos palanques da luta abolicionista - como fizeram Joaquim Nabuco e José do Patrocínio na esfera política, para citar dois exemplos. Todavia, em um movimento de dentro para fora - tal qual o caramujo7 7 Duarte (2007), em seu livro Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo, utiliza essa imagem no subtítulo e defende que a leitura dos textos ficcionais de Machado pode tornar mais identificável o posicionamento crítico do autor em face da escravidão. - o homem de letras encontrou nas letras um legítimo caminho discursivo para registrar e condenar, a seu modo, as marcas do cativeiro.

Referências

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  • ASSIS, Machado de. O caso da vara. In: ______. Obra completa em quatro volumes Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 535-540. v. 2.
  • ______. Pai contra mãe. In: ______. Obra completa em quatro volumes Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 631-638. v. 2.
  • ______. “Teatro romântico e escravidão”. Teresa: Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 12-13, 2013, p. 94-111.
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  • CONTINUA FUGIDA A MINHA ESCRAVA... Gazeta de Notícias 11 abr. 1880. Disponível em: <Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=103730_02&pesq=escrava%20fugida%20gr%C3%A1vida >. Acesso em: 18 nov. 2019.
    » http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=103730_02&pesq=escrava%20fugida%20gr%C3%A1vida
  • DUARTE, Eduardo de Assis. Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Pallas; Crisálida, 2007.
  • FANTINI, Marli. Machado de Assis. In: DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2011. p. 143-171.
  • FERREIRA, Antonio Luiz. Dom João de Orleans e Bragança. Missa campal celebrada em Ação de Graças pela Abolição da Escravatura no Brasil 17 maio 1888. Disponível em: <Disponível em: http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/1795 > Acesso em: 31 jan. 2020.
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  • GLEDSON, John. O machete e o violoncelo: introdução a uma antologia dos contos. In: ______. Por um novo Machado de Assis São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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  • MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Machado de Assis e a Abolição. In: ______. Machado de Assis desconhecido Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957. p. 141-177.
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  • SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras , 2017.
  • VILLAÇA, Alcides. “Querer, poder, precisar: ‘O caso da vara’”. Teresa: Revista de Literatura Brasileira , São Paulo, n. 6-7, 2005, p. 17-30.
  • 1
    Ver Dicionário da escravidão e liberdade, organizado por Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes (2018GRINBERG, Keila. Castigos físicos e legislação. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos . São Paulo: Companhia das Letras , 2018. p. 144-148., p. 299-304).
  • 2
    A localização originária da fotografia é o acervo digital do Instituto Moreira Salles.
  • 3
    As primeiras linhas de “Pai contra mãe” salientam a continuidade dessas práticas de exclusão: “A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições.” (ASSIS, 2008, p. 631). Com sagaz ironia, a narrativa insinua que o fim da instituição do cativeiro não deixa de determinar a manutenção e a sobrevivência de outros cruéis mecanismos e instrumentos que corroboram opressões e sujeições aos quais os escravizados foram historicamente submetidos.
  • 4
    A transcrição reaparece em “Teatro romântico e escravidão______. “Teatro romântico e escravidão”. Teresa: Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 12-13, 2013, p. 94-111. ”. Faria (2013) busca compreender em que medida o teatro brasileiro “dos tempos românticos” pôde representar a escravidão. As análises do autor são significativas para que se pense, aqui, a posição crítica de Machado.
  • 5
    Optamos por seguir a ortografia original do anúncio.
  • 6
    Em “A roda dos expostos e a criança abandonada na história do Brasil: 1726-1950”, Maria Luiza Marcílio (2016)MARCÍLIO, Maria Luiza. A roda dos expostos e a criança abandonada na história do Brasil: 1726-1950. In: FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). História social da infância no Brasil. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2016. explica as origens desse mecanismo de abandono comum em confrarias da época: “Sua forma cilíndrica, dividida ao meio por uma divisória, era fixada no muro ou na janela da instituição. No tabuleiro inferior e em sua abertura externa, o expositor abandonava a criancinha que enjeitava.” (MARCÍLIO, 2016MARCÍLIO, Maria Luiza. A roda dos expostos e a criança abandonada na história do Brasil: 1726-1950. In: FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). História social da infância no Brasil. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2016., p. 55).
  • 7
    Duarte (2007)DUARTE, Eduardo de Assis. Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Pallas; Crisálida, 2007., em seu livro Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo, utiliza essa imagem no subtítulo e defende que a leitura dos textos ficcionais de Machado pode tornar mais identificável o posicionamento crítico do autor em face da escravidão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2020
  • Aceito
    05 Abr 2021
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