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BOLT, Maxim. 2015. Zimbabwe's Migrants and South African Border Farms: The Roots of Impermanence

BOLT, Maxim. . 2015. Zimbabwe's Migrants and South African Border Farms: The Roots of Impermanence . Londres: International African Institute/Cambridge University Press. 246 pp.

Como principal laboratório para aplicação de políticas neoliberais e vanguarda da precarização das relações de trabalho, o continente africano oferece bons pontos de observação das transformações do capitalismo contemporâneo. Não é de hoje que estudos feitos em África ocupam um lugar fundamental tanto nos development studies como no campo da antropologia econômica. Devido às influentes pesquisas desenvolvidas por autores ligados ao Rhodes-Livingstone Institute (posteriormente identificados como “Escola de Manchester”, embora curiosamente alguns de seus principais nomes - como Max Gluckman e Clyde Mitchell - fossem na verdade africanos brancos), a região do Copperbelt ocupa um lugar nobre na história da antropologia, inscrevendo de forma pioneira no mapa da disciplina problemáticas persistentes como modernização, desenvolvimento e urbanização. Como apontou James Ferguson em Expectations of Modernity, em meio século o otimismo ligado à ideia de uma África emergente (que transparece também na produção etnográfica da época) deu lugar a uma sensação generalizada de declínio, com explosão da miséria urbana e desmonte de sistemas de seguridade social até então relativamente bem-sucedidos, epitomados pelos infames Planos de Ajuste Estrutural.

Hoje, uma crescente literatura (identificada por Sherry Ortner como dark anthropology) investiga a vida dos mais pobres sob o neoliberalismo. Em particular, a etnografia africanista contemporânea - sob impacto do trabalho de Keith Hart e Jane Guyer, entre outros - tem mostrado consistentemente como conceitos e pressupostos de teorias econômicas criam pontos cegos na observação e na compreensão de práticas populares, especialmente em contextos de crise. Parte dessa seara, a premiada tese de Maxim BoltBOLT, Maxim. 2015. Zimbabwe's Migrants and South African Border Farms: The Roots of Impermanence. Londres: International African Institute/Cambridge University Press. 246 pp., defendida na London School of Economics em 2011, atualiza de forma potente a herança empiricista da antropologia africanista “britânica”, e é agora lançada como livro.

A etnografia tem como centro um complexo agroindustrial dedicado à exportação de frutas para a Europa, chamado pelo pseudônimo “Grootplaas”. Este e outros complexos agroindustriais similares fazem do Vale do Rio Limpopo (norte sul-africano, fronteira com o Zimbábue) um centro gravitacional que ancora no espaço, ainda que temporária e precariamente, migrantes provenientes de origens diversas. A maioria vem do Zimbábue. Estima-se que, desde 2000, quando estourou a hiperinflação e a crise de abastecimento, cerca de três milhões de zimbabuanos cruzaram a fronteira rumo à África do Sul, movimento que o autor contextualiza em uma longa história de deslocamentos populacionais na África Austral, em parte voluntários, em parte forçados por empresas e governos coloniais (em alguns casos, até tornando ambígua e difícil a separação entre trabalhos e/ou deslocamentos “voluntários” e “forçados”).

A cada ano, várias centenas de migrantes passam por Grootplaas. Todo o argumento do livro parte da ambiguidade de um local de trabalho que é também local de moradia. Entre os diversos modos de habitar a fazenda, aquilo que se compartilha em última instância, o único motivo de fato capaz de trazer àquele lugar todas as pessoas que ali estão, é a necessidade de dinheiro.

Coexistem diversos modos de habitação; há pessoas que usam as fazendas como esconderijo da polícia migratória, em trajetórias indocumentadas que têm como principal destino pretendido a cidade de Johanesburgo; a maioria reside de forma intermitente nos meses em que dura a safra, podendo retornar ou não no ano seguinte (inclusive não há garantia em conseguir vaga, há excesso de demanda de trabalho em relação às vagas disponíveis); e há ainda importante minoria de trabalhadores - também diferenciada internamente - que reside de forma fixa, alguns durante décadas inteiras, embora essa aparente fixidez também seja instável. O autor descreve a arquitetura das casas, dos alojamentos e dormitórios tanto em sua disposição interna quanto em relação aos espaços de trabalho, a área de plantio, um galpão altamente mecanizado onde as frutas são separadas e embaladas, além de mapas e descrição dos caminhos internos ao complexo de Grootplaas e das estradas que levam às cidades. Praticamente todas as 25 fotos e imagens usadas no livro contribuem para essa descrição dos espaços.

Sempre atento à produtividade das interfaces, Maxim Bolt se dedica continuamente a explorar interseções que se articulam em torno do empreendimento. Interseções entre diferentes sistemas de valor (reconhecendo sempre que o processo de valoração é altamente político); entre diferentes formas de mobilidade e de sedentariedade; entre dinâmicas laborais, deslocamentos forçados e movimentos orientados pelo comércio; entre as temporalidades dos trabalhos sazonais e “permanentes”; entre as posições marcadas pelo trabalho na fazenda e clivagens de etnia e de classe.

Num interessante experimento metodológico, sua descrição passa por diferentes grupos cujo contato mútuo por vezes é tênue. Toda a profundidade etnográfica alcançada na pesquisa é sempre mediada por relações de trabalho, deixando em segundo plano marcadores clássicos como filiações étnicas e tribais. A abordagem à diversidade dentro do compound é algo panorâmica e dá ao livro a arquitetura de um mosaico de figuras heterogêneas (algo certamente arriscado para uma etnografia, mas cuja execução, neste caso, é das mais estimulantes). Por exemplo, o primeiro capítulo é dedicado às trajetórias de fazendeiros brancos que habitam a região, com destaque para dois personagens: Koos, o pioneiro fundador de Grootplaas, e seu genro Willem, formado em administração, que hoje gerencia a fazenda como uma empresa que ele pretende modernizar tanto nas técnicas produtivas quanto nas relações de trabalho. Os conflitos e as continuidades entre eles dão fio à narrativa. No resto do livro, os brancos tornam-se figuras distantes, vistos desde as perspectivas de seus empregados.

O próximo capítulo propõe uma antropologia da fronteira na qual a divisão também conecta populações - uma nova unidade é criada a partir da divisão. Aqui o autor traz uma história da ocupação da região, com destaque para as tentativas de controle sobre os deslocamentos e as permanências de populações “nativas” (entendidas pelas autoridades coloniais basicamente como mão de obra). O capítulo seguinte estrutura-se em torno da oposição entre dois modelos de masculinidade, dois modos de sociabilidade entre homens. Os diferentes backgrounds dos trabalhadores, suas vidas no Zimbábue ou em qualquer lugar além de Grootplaas, são pouco explorados (e não poderiam deixar de ser, caso contrário o livro adquiriria feições enciclopédicas) - a diferença trabalhada por Bolt é entre “aspirações de classe”. O trabalho braçal nos campos era encarado com relativa naturalidade por alguns, mas outros, cujas famílias já tiveram mais dinheiro e empregos mais prestigiosos (ou que pretendem ocupá-los, devido a seu alto nível de escolaridade), o experimentavam como um agudo declínio. Diferenças de classe, de escolaridade e de etnia entre os trabalhadores sazonais, e os códigos de amizade entre eles, homens, são explorados a partir de um viés de gênero.

Na sequência, Bolt evidencia como funções diferentes no processo produtivo afetam modos de enraizamento específicos. O contraste principal se dá entre os trabalhadores que habitam de forma não intermitente, residentes de longa data na fazenda, chamados mapermanent, e a massa de trabalhadores sazonais, alojados em habitações coletivas. A cada safra há uma avalanche de gente que chega ali sem elos, como que em exílio, a maioria jovens zimbabuanos, em postos com alta rotatividade. Os mapermanent não têm função precisa, fazem “serviços gerais” (da manutenção do sistema de irrigação à vigilância dos trabalhadores sazonais), sempre disponíveis, sem horário fixo - por isso, a vigilância dos brancos sobre seu tempo e produtividade é flexível. Já os trabalhos sazonais têm um caráter industrial e vigiado. O tempo é cronometrado. Na colheita o pagamento é proporcional à pesagem das frutas, as pessoas trabalham literalmente correndo. Essa atividade é mais identificada como masculina, embora haja várias mulheres, enquanto no setor de embalagem é o contrário - no complexo como um todo, os patrões tentam manter um equilíbrio meio a meio entre homens e mulheres. Ao fim dos expedientes, as noites no tempo da safra são barulhentas, há jogatina, bebedeira, grande circulação de pessoas. Os mapermanent passeiam livremente quando desejam, porém suas próprias casas ficam num espaço mais reservado.

O quadro de funcionários permanentes é basicamente masculino, e Bolt dedica especial atenção aos arranjos que produzem domesticidade na casa deles, o que depende da presença de mulheres - cabe a elas cozinhar o alimento fornecido pelos homens mapermanent. Via de regra, essas mulheres estão de passagem por Grootplaas. É comum a troca de comida e teto por serviços domésticos e sexuais, arranjo chamado mapoto, que no Zimbábue é considerado degradante para a mulher, mas nas fazendas não.

Um contraste entre um modelo racionalizado de gestão das fazendas enquanto negócio (management) e outro modelo dito “paternalista” guia o capítulo seguinte. Para o autor, os dois modelos não apenas coexistem, mas se constituem ativamente enquanto opostos através de conflitos que eclodem em diferentes níveis. A narrativa tem como fio a rivalidade entre dois homens, Marula, supervisor sul-africano de longa residência na fazenda, e Michael, gerente de recursos humanos, formado em administração, zimbabuano. Essa oposição permite desnudar dois modos distintos de ver o agronegócio sul-africano, bem como dois modelos de relações trabalhistas.

A ênfase dada aos mapermanent e aos personagens de Marula e Michael encontra inspiração em trabalhos associados à Escola de Manchester, principalmente o de A. L. Epstein nas minas de cobre do Zâmbia, focado em figuras intermediárias no universo da mineração (interface entre chefes brancos e mão de obra negra). Seguindo essa inspiração, Maxim Bolt explora como relações particulares e eventos refratam processos de maior amplitude.

Nesse sentido, a etnografia transcende seu escopo e aponta alguns parâmetros possíveis de comparação e comensurabilidade. Regiões antes sedentas por mão de obra hoje encontram um excesso de desempregados. Autoridades se perguntam como evitar que essas pessoas permaneçam onde já não são consideradas necessárias. Há algo comparável entre diferentes formas de governo de populações sob realocamentos involuntários? Nas interações entre consciência de classe e condições de displacement? Entre diferentes modalidades de enraizamentos temporários e diferentes lutas pelo direito à permanência? Lembremos de Soweto, grande subúrbio de Johanesburgo que começou como um alojamento de trabalhadores da mineração nos arredores da cidade, que lutaram pelo direito à permanência quando as minas já não precisavam deles. Não é difícil ver paralelos com grandes obras no Brasil, como a construção de Brasília, onde a resistência das vilas operárias levou à criação das primeiras cidades satélites no Distrito Federal. As vidas destes migrantes zimbabuanos - e é politicamente importante reconhecer o quanto, nesse ponto, eles não estão sozinhos - são pautadas por um tipo de insegurança e de precariedade jurídica. Tanto o direito à permanência quanto o direito à circulação dependem de negociações altamente desiguais, o que Bolt mostra numa perspectiva etnográfica, crítica, descritiva, mas nunca miserabilista, sempre atenta aos projetos e às perspectivas das pessoas.

Assim descobrimos, no último capítulo, que ao lado da precarização generalizada das relações de trabalho há uma explosão do comércio autônomo de pequena escala, conectada com os movimentos de populações assalariadas, articulando empregos formais e informais. Diversos negócios (vendas, bares, serviços) florescem tanto dentro de Grootplaas quanto através dos caminhos que levam da fazenda às cidades da região (e no envio de remessas para o Zimbábue sob forma de bens para revenda). Esses negócios não regulados e os empregos assalariados regidos pela lei se viabilizam mutuamente, o trabalho organizado e a atividade informal são complementares, com as inflexões próprias dessa articulação na África do Sul, onde “trabalho formal” costuma coincidir com “trabalhar para os brancos”. Para muita gente, o emprego formal em Grootplaas é menos importante em si do que pelas outras vias que deixa abertas, como a dona de um bar que precisava trabalhar na fazenda para manter seu ponto, negócio bem mais lucrativo do que o salário ganho. Há um jogo interessante entre dependência e autonomia.

As variações em torno dos diferentes modos de transitoriedade e enraizamento são fundamentais para Bolt, em seu projeto de mostrar como o trabalho organiza a vida em tempos de desemprego em massa e incerteza radical. Nas margens do capitalismo global, no qual, contudo, estão plenamente inseridas, as fazendas da fronteira são como ilhas de trabalho formal num mar de informalidade, onde cada um navega como pode.

Referência

  • BOLT, Maxim. 2015. Zimbabwe's Migrants and South African Border Farms: The Roots of Impermanence Londres: International African Institute/Cambridge University Press. 246 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2018
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