Open-access POVINELLI, Elizabeth A. 2023. Geontologias - Um réquiem para o liberalismo tardio. São Paulo: Ubu Editora, 304 p.

POVINELLI, Elizabeth A. . 2023. Geontologias - Um réquiem para o liberalismo tardio. São Paulo: Ubu Editora, 304p.

“Se eles têm parte, que tomem parte. Deixemos que falem! O animal não humano, a pedra, o rio, a praia, o vento e o solo: sejam escutados, que sejam representados e representáveis na governança da terra.” (Elizabeth A. Povinelli)

Publicado originalmente em 2016, nos Estados Unidos, com o título Geontologies - A requiem for late liberalism, o livro, diferente de etnografias mais convencionais, não pretende esmiuçar a cultura de seus interlocutores, mas sim tratar do entrelace entre os diversos modos humanos de ser-no-mundo e as distinções ontológicas culturalmente variáveis, operacionalizadas através dos conceitos de Vida e Não Vida. Tal entrelace evidencia-se na obra através das analíticas ontológicas - métodos de interpretar o mundo - dos povos indígenas do Território Norte da Austrália, e suas relações afetivas com os existentes Não Vivos (fenômenos meteorológicos, formações rochosas, fósseis, ossos, rios, marés, recifes etc). Sempre contrastantes com a ontologia e as relações dos homens brancos colonizadores com esses mesmos existentes.

A convivência da autora americana com os aborígenes do norte australiano e os atritos entre essa população e os interesses das empresas de mineração - principal setor da economia australiana, e que, em favor do lucro, praticam a exploração mineral sem nenhuma preocupação com as consequências ambientais -, foi fundamental tanto para a elaboração teórica desse livro, e outros da autora, quanto na elaboração do Karrabing Indigenous Corporation - grupo composto por indígenas e apoiadores da causa indígena que constroem uma rede de apoio e resistência cultural, através de projetos fílmicos e de economia sustentável.

O primeiro capítulo, “As três figuras da geontologia”, busca introduzir os conceitos que atravessam todo o livro, e situá-los dentro de um panorama da teoria crítica. Para tanto, passa por Michel Foucault, Hannah Arendt, Achille Mbembe, Jacques Derrida, Donna Haraway, Giorgio Agamben, Roberto Esposito, W. E. B. Du Bois, Rosi Braidotti; em uma breve apresentação do conceito de biopoder, de seus rearranjos no correr da história da teoria crítica, e de suas figuras sintomáticas (a mulher histérica, o casal malthusiano, o adulto perverso e a criança masturbadora, o panóptico, e outras). Em sequência, Povinelli reconhece a importância do conceito de biopolítica, porém, defende a insuficiência do mesmo enquanto sistematização conceitual dos arranjos liberais de poder na contemporaneidade. Defesa esta que se sustenta na evidenciação de que o poder não se manifesta apenas nas relações inter-humanos, outrossim nas relações entre humanos e existentes inertes, os Não Vivos (pedras, rochas, fósseis, ossos, fenômenos meteorológicos, corpos d’agua e outros). Para a autora, essa fundamental modalidade do poder no liberalismo tardio, opera diretamente orientada pela ontologia, pelo modo como se concebem e se categorizam os existentes entre Vivos e Não Vivos. Tal ontologia tão atenta aos Não Vivos a autora batiza de geontologia (geos + ontologia). E esse poder tão dependente dos fundamentos metafísicos da geontologia, ela nomeia, portanto, de geontopoder.

Assim como o biopoder tem suas figuras sintomáticas e diagnósticas supracitadas, o conjunto de táticas, discursos e estratégias compreendidas como geontopoder também as têm a saber: o Deserto (o ambiente sem vida, mas que com o emprego técnico correto poderia voltar a tê-la, tem como elemento central o Imaginário do Carbono), o Animista (aquele que não vê valor em operar distinções entre o Vivo e o Não-Vivo, concebendo-os com equivalência ontológica, tem como imagem central o imaginário da Indigeneidade), e o Vírus (aquele que busca subverter os ditares geontológicos, complexificando-os e tirando proveito deles, seu elemento central é o Terrorista). A autora identifica estas três figuras fundamentais como mais visíveis em certos contextos liberais tardios do que em outros, e que “pode ser necessário deslocá-las em prol de outras figuras, outros lugares, na medida em que forem mais aparentes e relevantes para a governança desses espaços” (:41).

Povinelli conclui o primeiro capítulo com uma nota acerca do título do livro, e o que pretende indicar com o seu “réquiem para o liberalismo tardio”, a saber: a inevitabilidade do fim do liberalismo tardio (maneira como o Ocidente branco governa o mercado e as diferenças, através da dicotomização Vivos x Não Vivos e da primazia do humano), seja pela profunda modificação do modo ocidental de existir, ou pela extinção humana. Deste modo, a autora compõe um réquiem “nem desesperançado nem esperançoso. Enfurecido talvez, mas nunca resignado. É factual, mas também calculado para produzir afeto” (:60).

No segundo capítulo, intitulado “As pedras podem morrer? Morte e vida no Imaginário do Carbono”, somos introduzidos a “Duas Mulheres Sentadas” e “Pedra do Homem Velho”. Duas formações rochosas que, embora vivas e sagradas para os povos originários do norte australiano, são alvo de ataques dos “comedores gigantes de terra” (indústria mineradora australiana) interessados em suas riquezas minerais. A partir desse contexto conflituoso entre cuidado e predação, a autora nos conduz em uma reflexão acerca de como o Ocidente tem pensado os impactos de seus processos de produção e de consumo no/do mundo; estes que são marcantes a ponto de firmar, como defendem muitos especialistas, um novo período geológico, o Antropoceno. Ela aponta a existência de um “espaço homólogo que se produz quando conceitos como nascimento, crescimento-reprodução e morte são laminados sobre os conceitos de evento, conatus/affectus e finitude” (:72). Tal “dobradiça” entre os conceitos das ciências naturais e das ciências sociais, é batizada por Povinelli de Imaginário do Carbono. “Uma região latente da cicatriz entre Vida e Não Vida - uma dor que exige que prestemos atenção a uma cicatriz que por muito tempo permaneceu anestesiada e dormente, mas jamais imperceptível” (:73). A laminação fundante do Imaginário do Carbono, e suas variações ofertadas pela teoria crítica são centrais na compreensão do conceito de Vida nas culturas ocidentais e, portanto, para a formulação da resposta à pergunta que intitula o capítulo.

“Os fósseis e os ossos”, “A normatividade dos corpos d’água”, “O nevoeiro do sentido e o demos sem voz”, capítulos 3, 4 e 5, respectivamente, caminham juntos em uma apresentação mais perscrutada da ontologia aborígene e da ligação dela com certo ethos determinante às diversas relações entre os povos originários e os demais existentes (Vivos e Não Vivos). Isto que aqui chamo de ethos caracteriza-se pelo exercício da percepção e do condicionamento da atenção aos sinais e às presenças desses existentes importantes, o que se evidencia pela narração de algumas situações etnográficas que a autora experienciou. É através da multisensorial e atenta experimentação do mundo que os aborígenes do norte australiano interpretam e categorizam o que significam, e o que são, as aparições (guden) e manifestações (guman) dos existentes complexamente entrelaçados. Sendo assim, este ethos, em face de muitos fenômenos naturais constituintes da vida cotidiana indígena, parece convergir para o apontamento heideggeriano sobre a fenomenologia ser “o modo de acesso ao que deve se tornar o tema da ontologia; ela é o método que permite determinar o objeto da ontologia, legitimando-o. A ontologia somente é possível como fenomenologia” (Heidegger, 1960: 35 citado em Zuben 2011). Portanto, o elo entre a fenomenologia e a ontologia possibilita compreender em maior profundidade a relação dos povos originários com seus “Sonhares” (os existentes Não Vivos diretamente conectados à territorialidade e à ancestralidade dos clãs), relação esta que se estabelece através da escuta dedicada e afetuosa dos humanos ao que têm a dizer esse “demos sem voz”; caso contrário, as entidades “dão as costas” aos humanos, transformando-os “em outros modos de existência: osso, múmia, cinza, solo” (:58). O mundo não está acabando, mas sim dando as costas para nós.

Em “O download do sonhar”, sexto capítulo da obra, Povinelli aborda a criação de um projeto do coletivo Karrabing para o armazenamento e o compartilhamento digital de mídias geolocalizadas. Este programa de celular alertaria o usuário quando identificasse a proximidade de um Sonhar, oferecendo algumas informações sobre este existente próximo. Para tanto, aponta a autora, seria necessário criar um arquivo sobre esses existentes sagrados e suas localizações, lidando com as dinâmicas complexas e muitas vezes perversas do semiocapitalismo “(ou capitalismo informacional) - predominância da mecanização tecnológica dos signos imateriais como objetos da produção e apropriação de capital contemporâneas” (:231). Consciente da postura pós-colonial necessária para a elaboração do projeto, Povinelli defende que o acesso ao arquivo deve conter algumas restrições àqueles não pertencentes à comunidade indígena, bem como deve se diferenciar da maneira como operam arquivos convencionais. Deste modo, firmar-se-ia uma posição combativa à lógica do lucro do semiocapitalismo e ao típico exotismo colonial voltado às epistemologias indígenas.

Em sequência, a autora dedica o sétimo capítulo de seu livro, “Geontopoder liberal tardio”, a refletir sobre seu conceito de liberalismo tardio, apresentado aqui como um conceito-período que ganha vulto a partir da década de 1960, em um contexto global de crises de legitimidade dos Estados-nação, avanço de movimentos sociais, lutas anti-imperialistas, animosidades geopolíticas da Guerra Fria e, sobretudo, eclosão da pauta das mudanças climáticas antropogênicas, caracterizando-se pelos discursos, táticas e estratégias que buscam a conservação da governança dos mercados e das diferenças que garantem a “acumulação de valor entre as classes sociais e os grupos dominantes” (:265), mesmo que isto custe o futuro da humanidade.

"Geontologias - Um réquiem para o liberalismo tardio" ecoa os discursos daqueles que nos alertam sobre os riscos de “despersonalizarmos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista” (Krenak 2019: 49). É preciso ouvir as rochas, os mares, os rios, as matas, as montanhas, as nuvens, os ventos. E mais, é preciso estabelecer relações de cuidado e atenção típicas das relações de parentesco, mas que extrapolam os pressupostos clássicos de genealogia e ancestralidade (Haraway 2015). Apenas repensando as dinâmicas de poder que se abatem sobre estes existentes poderemos permanecer existindo neste planeta.

Referências

  • HARAWAY, Donna. 2015. “Anthropocene, Capitalocene, Plantationocene, Chthulucene: Making Kin”. Environmental Humanities, 6:159-165.
  • HEIDEGGER, Martin. 2011 [1960]. “Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer”, citado em Newton Aquiles von Zuben, “Fenomenologia como retorno à ontologia em Martin Heidegger”, Trans/Form/Ação 34 (2).
  • KRENAK, Ailton. 2019. Ideias para adiar o fim do mundo São Paulo. Companhia das Letras.
  • POVINELLI, Elizabeth A . 2023. Geontologias - Um réquiem para o liberalismo tardio São Paulo. Ubu Editora.

Editado por

  • Editora-Chefe:
    María Elvira Díaz Benítez
  • Editor Adjunto:
    John Comeford
  • Editor Associado:
    Luiz Costa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2025
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2024
  • Aceito
    09 Out 2024
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