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Cerâmica arqueológica da Amazônia: vasilhas da Coleção Tapajônica MAE-USP

RESENHAS

Francisco Silva Noelli

Universidade Estadual de Maringá

GOMES, Denise Maria Cavalcante. 2002. Cerâmica arqueológica da Amazônia: vasilhas da Coleção Tapajônica MAE-USP. São Paulo: FAPESP/EDUSP/ Imprensa Oficial de São Paulo. 355 pp.

A análise de coleções arqueológicas é um campo promissor de trabalho arqueológico no Brasil, por dois motivos. O primeiro é a necessidade imperiosa de se conhecer inúmeros acervos acumulados nas instituições, esquecidos há décadas. O segundo é o baixo custo dessa modalidade de pesquisa, especialmente para a iniciação científica, quando os recursos para ir a campo são escassos. Os dois motivos somados contribuem para a preparação de exposições, divulgação acadêmica e abrem espaço para abordagens interdisciplinares envolvendo a antropologia e a história, podendo ainda criar novos pontos de partida para a continuação ou retomada do trabalho em determinadas regiões.

Este é o caso do livro em questão, um estudo bem-sucedido de Denise Gomes sobre as vasilhas e os fragmentos da Coleção Tapajônica do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. A análise da coleção, em paralelo com a pesquisa das fontes históricas e a revisão crítica da bibliografia produzida por arqueólogos desde o século XIX, serviu para buscar "subsídios para a discussão dos principais problemas e abordagens neste livro: a cronologia da área Tapajós-Trombetas e as hipóteses de complexidade social em Santarém" (:71). Além disso, a autora procurou realizar outras incursões sobre a Coleção, especialmente no caso do "acesso privilegiado a um tipo de cultura material, possivelmente associada a funções ideológicas e religiosas" (:16). Com essa perspectiva, Denise Gomes realizou uma análise tecnológica, tipológica, dos estilos decorativos e iconográficos de uma coleção de 8.516 peças adquirida de colecionistas amadores em 1971 pela USP, cuja maior parte foi coletada entre Santarém e o rio Xingu ao longo de vinte anos.

O resultado mais significativo do livro, além da brilhante análise da Coleção, é a mais completa síntese do que se pensou sobre a ocupação do baixo Amazonas por populações ceramistas entre 400 e 1500 antes do presente. A obra inicia com a história da aquisição do acervo e da seqüência das pesquisas arqueológicas realizadas na área Tapajós-Trombetas. Pode-se observar o que fizeram, onde trabalharam e como os pesquisadores construíram a pré-história da região. O segundo capítulo discorre sobre os modelos teóricos de desenvolvimento cultural na amazônia, propiciando uma compreensão objetiva e cabal de todas as idéias, interpretações, perspectivas e debates gerados. Esses dois capítulos convergem para a contextualização da área Tapajós-Trombetas na arqueologia da região amazônica. O grande mérito dessa primeira parte é a maneira como o intenso debate sobre a ocupação humana na Amazônia, muitas vezes publicado de forma emocional, foi apresentado com habilidade e didatismo para informar o leitor, especialmente aquele que desconhece o contexto acadêmico da história dessas pesquisas. Ao mesmo tempo, são expostas reflexões e críticas a respeito dos temas e pontos mais importantes da discussão entre os especialistas, acompanhadas de várias e pertinentes sugestões para futuras investigações.

O terceiro capítulo apresenta a metodologia e os resultados da análise da Coleção, em que a autora identifica os estilos tecnológicos das cerâmicas, classificadas como Santarém, Influência Santarém, Konduri, Influência Konduri, Globular, Barrancóide, estilos não definidos pertencentes à Tradição Inciso e Ponteada e, por fim, exemplares intrusivos. Denise Gomes sugere que se empregue "estilo" em vez de "cultura" Tapajônica e Santarém, em razão da falta de resultados publicados que propiciem a contextualização acurada das evidências. A partir de um rigoroso tratamento estatístico, a Coleção foi analisada sob diversos aspectos, tais como a composição do antiplástico, a classificação das formas, o tratamento de superfície, visando classificar as técnicas decorativas e iconográficas, acompanhados de uma reflexão sobre a função das vasilhas. Para tanto, a autora seguiu a metodologia sugerida por Shepard e por Rye e a "terminologia arqueológica brasileira para a cerâmica", bem como revisou e atualizou os esquemas classificatórios para 37 formas propostas anteriormente.

Com essa classificação, seu tratamento estatístico e uma revisão bibliográfica erudita, a autora elaborou no quarto capítulo uma análise interpretativa das técnicas decorativas e da iconografia, visando compreender o desenvolvimento histórico dos "modos" ("conjunto de atributos com sentido cronológico"), estilos e correlações em relação a aspectos culturais, políticos e de gênero, mas sobretudo no que se refere à hierarquização entre os produtores dessas cerâmicas. É apresentada uma seqüência hipotética da área Tapajós-Trombetas, com a presença de doze "modos decoração" consecutivos, em que se propõe o desenvolvimento cronológico dos estilos decorativos e iconográficos. São fornecidas datações por AMS, que não deram certo, apesar de diversas tentativas, e por TL, que resultaram em nove datas; a ausência de informações contextuais e de amostras de solo, "não permitiram uma avaliação completa sobre a precisão destas datações, consideradas tentativas" (:131).

O capítulo 5 expõe informações históricas sobre o baixo Amazonas no período colonial, tanto para retratar vários aspectos da sociedade tapajó em diferentes momentos quanto para discutir com densidade e pertinácia a questão dos cacicados. Ao mesmo tempo, examina a relação entre as abordagens arqueológica e etno-histórica e faz uma detalhada exposição das fontes históricas conhecidas, além de uma análise das relações culturais na área Tapajós-Trombetas com base nos diferentes estilos cerâmicos. Ainda nesta parte, são discutidas as tendências interpretativas do conteúdo simbólico da cerâmica e seus possíveis nexos com aspectos ideológicos. É aduzida uma curta, mas pertinente, discussão sobre os limites impostos pela ausência de informações contextuais da coleção tapajônica, especialmente a conclusão sobre a existência de uma "grande cultura tapajônica" que, segundo a autora, precisa ser questionada.

O livro encerra com um catálogo de 163 pranchas coloridas, com fotografias de vasilhas e fragmentos de vasilhas e apêndices mais representativos da coleção tapajônica, acompanhadas da ficha técnica descritiva. Digna de nota é a excelente editoração da obra, que, além de muito bem redigida e organizada, é uma das mais belas e bem apresentadas da bibliografia arqueológica sobre o Brasil. Estas qualidades, somadas ao alto nível científico da pesquisa, transformam Cerâmica arqueológica da Amazônia em obra de referência obrigatória para arqueólogos, antropólogos e historiadores e em guia indispensável para iniciantes, inscrevendo Denise Gomes entre os principais especialistas da arqueologia amazônica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2003
  • Data do Fascículo
    Out 2003
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