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Fixar o movimento: representações da música rap em Portugal

RESENHAS

Ruy Llera Blanes

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

FRADIQUE, Teresa. 2003. Fixar o movimento: representações da música rap em Portugal. Lisboa: D. Quixote. 225 pp.

Fixar o movimento, de Teresa Fradique, é o resultado de uma pesquisa realizada no âmbito do Mestrado em Antropologia: Patrimónios e Identidades, do ISCTE. Realizada entre 1994 e 1998, teve como objetivo uma análise aprofundada das representações e discursos construídos à volta da música rap e do "movimento" hip-hop durante aquele período em Portugal.

Prefaciada por Gilberto Velho, esta obra representa não só um passo em frente no que diz respeito à análise de contextos e expressões musicais e culturais urbanas em Portugal ­ e um excelente ponto de comparação para análises de outros contextos musicais e urbanos ­, mas também um desafio aos processos de construção epistemológica das ciências sociais, às suas metodologias e conceitualizações. Reconhecendo a multiplicação de discursos e interpretações publicitados, veiculados pelo fluxo crescente de canais de comunicação e intercâmbio (media), a autora obriga-nos a refletir sobre o papel do antropólogo na construção e partilha de conhecimentos sobre os fenômenos culturais da contemporaneidade (urbana, globalizada). Noutras palavras, reconhecendo que a produção das ciências sociais é em si um discurso, a autora submete essa produção (e a si própria) à produção e circulação cultural, informativa e publicitada que rodeia (descreve, transforma) o objeto de análise numa "polifonia de significados".

Nesse contexto, o estudo da "música" enquanto "cultura", ou seja, inserida em lógicas de ação, produção e significação que lhe transcendem, é particularmente ilustrativo: dada sua dimensão coletiva, pública e performatizada, ela encontra-se cada vez mais sujeita, por um lado, a discursos de identidade e legitimação, e, por outro, a processos globais e industrializados de mercadorização (commodification) e etiquetagem. No entanto, como sugere Teresa Fradique (na linha de Simon Frith), a "música" também é veículo de experiências, construtora de alianças, geratriz de narrativas individuais de desejo e emoção, criadora de espaços sociais, estilos de vida (:19-30)... É nesse entrecruzamento de processos e realidades que a antropologia da música deverá situar-se de forma a poder proporcionar reflexões socialmente relevantes.

Portanto, Fixar o movimento procura não uma análise técnica, musicológica, de um determinado "gênero musical" num contexto geográfico circunscrito ­ o rap em Portugal ­, mas sim uma reflexão sobre os discursos, representações públicas, práticas, consumos e produções que o conformaram num período específico, entre os anos de 1994 e 1998, quando se verificou uma "explosão" musical, cultural e comercial do "rap português" (com a proliferação de edições, acontecimentos e grupos) e, sobretudo, uma explosão de sua visibilidade, exposição midiática e posição como objeto discursivo e publicitado.

Assim sendo, Teresa Fradique procura ­ através de uma multisited ethnography que acompanhava espaços de produção cultural multifocalizados ­ pensar o "movimento" rap e hip-hop por meio de várias problemáticas: os processos por intermédio dos quais o rap foi, no período em questão, legitimado por políticas socioculturais mais vastas que lhe conferiram visibilidade e "hegemonia" momentânea; nesta lógica, os discursos e práticas que foram considerados socialmente pertinentes (ou "consumíveis"); os processos, condições, estratégias e critérios que transformaram o rap num produto cultural de consumo "mercadorizado" e assimilado pelo main stream; o contexto social, cultural, econômico e político português que envolveu esses processos (:31-35).

Portanto, esta abordagem, temporalmente situada, mas territorialmente multifocalizada (embora centrada no contexto português), remete para a dimensão processual, criativa e dinâmica que caracteriza o seu objeto de estudo ­ daí a necessidade de fixar o movimento através das suas várias vertentes e eixos, reconhecendo abertamente o caráter fluido e polifocal da "música" enquanto fenômeno "observável".

Com esta abordagem, a autora opta inicialmente por uma revisão crítica da produção literária e teórica que acompanhou o desenvolvimento da música rap, desde a sua origem no Bronx nova-iorquino até sua expansão globalizada, confrontando aspectos musicais, especificidades técnicas, personagens, práticas e dimensões expressivas, projetos ideológicos e mediatizações com uma produção teórica "cristalizadora", construtora de temas recorrentes, historiografias e análises contextuais (Capítulo 1) ­ narrativas que antecedem e contextualizam o aparecimento do "rap português" inserido numa cultura suburbana portuguesa pós-colonial, marcada por experiências quotidianas (a street...) e opções pessoais negociadas, dinamizadas e "sincretizadas", na qual a cultura hip-hop (e a música rap) aparece como fenômeno diaspórico, pluriterritorializado, interclassista, multiétnico e transnacional (Capítulo 2).

A seguir, a autora percorre os espaços públicos de performance, consumo e produção do rap em Portugal ­ dinâmicas de ação, tempo e espaço que, por um lado, fomentam momentos de visibilidade pública e "polissemias comunicativas" (:89) e, por outro, constituem possibilidades experienciais, reflexividades e representações ­, partilhando com o leitor o seu "diário de bordo" (Capítulo 3). São precisamente essas possibilidades experienciais (trajetos biográficos, vivências, redes de sociabilidade, projetos identitários etc.) que a autora procura retratar, discursos reflexivos, afetivos e de auto-representação que os "atores" partilham e cuja heterogeneidade ajuda a ultrapassar categorias essencialistas freqüentemente associadas à música rap (negritude, africanidade etc.) (Capítulo 4).

Numa "segunda parte" do livro, a autora procede a uma desconstrução dos discursos públicos e políticas socioculturais hegemônicas que enquadraram o "aparecimento" do rap na esfera pública e comercial portuguesa: as retóricas da multiculturalidade, racismo e etnicidade ("minoria étnica") que caracterizaram as agendas e linguagens políticas, assim como um importante setor da produção das ciências sociais (Capítulo 5); os media como veículos de cultura, criadores de padrões de representação cultural, prescritores de realidades (com a "circulação circular da informação", tal como defendia Pierre Bourdieu) através de agendas jornalísticas e processos de newsmaking, produzindo associações superficiais entre rap e criminalidade, violência, raça negra, juventude, subúrbios etc. (Capítulo 6); a indústria musical portuguesa (editoras, músicos, imprensa), encarada como "promotora" de culturas e produtos nacionais e nacionalizados, construtora de "gêneros musicais", partícipe de processos globais e comercializadora de práticas musicais (Capítulo 7).

Para concluir, a análise de um fenômeno musical específico como é o do rap revela-se extremamente pertinente, não apenas pela abordagem compreensiva, interpretativa e contextualizadora de um fenômeno sociocultural ­ um fenômeno que nos é "familiar", reconhecido nos discursos públicos ­, mas também pelo reconhecimento (através de uma capacidade reflexiva notável) de uma contemporaneidade social e cultural nos fenômenos musicais que obriga, como afirma a autora, a uma inversão do processo antropológico clássico (:210): não cabe já ao antropólogo sistematizar e construir representações de lógicas culturais "outras", mas sim aos indivíduos que ele observa, que produzem discursos, definições e manipulações em relação às suas próprias ideologias e práticas, discursos esses que são freqüentemente publicitados, chegando aos ouvidos do antropólogo, e muitas vezes veiculados como mais socialmente pertinentes (pelo seu imediatismo, pela "autoridade" conferida ao músico ou artista enquanto "figura pública") do que os do cientista social.

Nesse contexto, uma obra como Fixar o movimento representa um passo em frente no que diz respeito à (escassa) produção das ciências sociais em Portugal sobre a música (pelo menos no que se refere a publicações até esta data) e os seus contextos, constituindo uma nova e necessária proposta metodológica nesse sentido, e ainda oferecendo um contexto de análise e um conteúdo teórico pertinentes e também necessários, sobretudo no que diz respeito à descrição pormenorizada do "fenômeno rap", à abordagem crítica dos media portugueses e da indústria musical e à descrição dos contextos urbanos que constituíram focos de produção cultural.

Por último, Fixar o movimento implica também o "preencher de uma lacuna" no que diz respeito à produção das ciências sociais sobre o rap e o hip-hop, dando a conhecer um contexto que em termos globais será "periférico", mas que encontra raízes na transnacionalidade, irmanando-se assim em termos de praxis e experiência com a expressividade de outros contextos nacionais, tal como o brasileiro, que a autora tem como referência pertinente: pela carreira desenvolvida por Gabriel o Pensador no seio da indústria musical mundial (:194), pelo enquadramento e discussão conceitual sobre raça, identidade e produção cultural, pela reflexão sobre música e cultura juvenil, tomando como exemplo o "baile funk" carioca...

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2003
  • Data do Fascículo
    Out 2003
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