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PURI, Jyoti. 2016. Sexual state: governance and the struggle over the antisodomy law in India. Durham: Duke University Press. 222 pp.

PURI, Jyoti. . 2016. Sexual state: governance and the struggle over the antisodomy law in India . Durham: Duke University Press. 222 pp.

Em um portal de notícias local redigido em língua inglesa, a página de abertura em 2016 apresentava algumas dezenas de jovens postados à frente do edifício principal da Suprema Corte indiana. Os homens e as mulheres lá presentes sustentavam cartazes simbolicamente tratados em uma centena: 377. O número representava uma figura do Código Penal, a seção 377, onde se lê:

Seção 377: Ofensas não naturais: quem quer que voluntariamente tenha intercurso carnal contra a ordem da natureza com qualquer homem, mulher ou animal deve ser punido com prisão perpétua, ou qualquer outra prescrição prisional por até 10 anos, e estará sujeito à multa. Explicação: Penetração é suficiente para constituir intercurso carnal necessário para a ofensa descrita nesta seção (Código Penal Indiano, capítulo XVI, seção 377: 88INDIA. 1860. The Indian Penal Code - 1860. Delhi: Ministry of Justice/ Legislative. Disponível em Disponível em http://legislative.gov.in/sites/default/files/A1860-45.pdf . Acesso em 05-ago-2020.
http://legislative.gov.in/sites/default/...
; tradução minha).

É sobre esse processo de fazer e desfazer direitos e práticas de regulação legal que trata Sexual States, livro da socióloga Jyoti Puri, atualmente professora da Simmons University e com uma longa trajetória de investigações relativas à Índia pós-colonial. Sexual States foi originalmente publicado em 2016 e desde então tem recebido atenção no debate sobre modos estatais de regulação da sexualidade. Ele é constituído de três partes e seis capítulos que abordam as tramas institucionais para descriminalização da homossexualidade na Índia. Como nota já no primeiro capítulo do livro, o estudo trata da intimidade entre Estado e sexualidade como se faz presente no contexto indiano.

O primeiro capítulo introduz o fenômeno de pesquisa e elenca alguns de seus sujeitos constituintes, bem como apresenta o enquadramento teórico manejado pela autora para pensar efeitos de Estado e tecnologias de governo ao construir sua noção de estados sexuais (sexual states). A perspectiva parte do suposto foucaultiano de estudo das práticas e dos discursos constitutivos de rotinas burocráticas, documentos e procedimentos que buscam regular os modos de vida. O Estado emerge como uma instância afetiva e em processos de avaliação que são relacionais, subjetivos e permitem a “expansão do foco nos impactos do Estado sobre a sexualidade para o questionamento de como essas instâncias de regulação da sexualidade servem ao Estado” (:5PURI, Jyoti. 2016. Sexual state: governance and the struggle over the antisodomy law in India. Durham: Duke University Press. 222 pp.). Acompanhando a perspectiva ensaiada por Timothy Mitchell (1999MITCHEL, Timothy. 1999. “Society, economy and the state-effect”. In: George Steinmetz (ed), State/Culture: state formation after the cultural turn. Ithaca: Cornell University Press.) em sua elaboração dos efeitos de Estado, Puri coloca sob escrutínio como a sexualidade serve de dispositivo que legitima a noção de Estado como uma entidade social natural, racional, unificada, fundamentalmente distinta do que seja a sociedade e, portanto, indispensável à manutenção da ordem social.

É desse enquadramento que também emerge o conceito forjado pela autora e que dá título ao livro, ali definido como essa região de constituição recíproca de efeitos e imagens de naturalidade tanto do Estado quanto da sexualidade. O argumento central é que “o governo da sexualidade sustenta a inevitabilidade do Estado, especialmente quando eles estão em fluxo” (:6PURI, Jyoti. 2016. Sexual state: governance and the struggle over the antisodomy law in India. Durham: Duke University Press. 222 pp.).

O primeiro capítulo segue apresentando os fundamentos do roteiro de estudo da autora. Ancorado em uma perspectiva etnográfica de estudo do Estado, ele considera não apenas a Seção 377 como mecanismo de governo da sexualidade, mas também constrói um amplo registro das instâncias institucionais de disputas legais em torno da homossexualidade no contexto indiano. Puri correlaciona um amplo nexo de leis, discursos, protocolos burocráticos, políticas e dispositivos jurídicos que vislumbram racionalidades sobre a dimensão sexual do trabalho, consentimentos, vulnerabilidades e formas de sujeição, e violência que produzem o Estado como uma instância de legitimidade, como argumentado por Veena Das e Deborah Poole (2004DAS, Veena & POOLE, Deborah. 2004. “State and its margins: comparative ethnographies”. In: DAS, Veena & POOLE, Deborah (eds), Anthropology in the margins of the state. Oxford: School of American Research Press. ).

O capítulo 2 traz à baila uma discussão sobre os espaços institucionais de registro e controle. O capítulo descreve a experiência da autora no Escritório Nacional de Registro de Crimes (NCRB) e sua tentativa de circunscrever a aplicação da Seção 377 nas práticas de punição e encarceramento. Os entraves, as esperas e a ausência marcam a ambivalência com que os operadores burocráticos lidam de forma inconsistente com o processamento de dados relativos ao artigo em particular. Sua análise mostra que “enquanto agências e unidades de Estado podem enumerar todo tipo de coisa, apenas algumas coisas são endossadas como estatísticas (dando, portanto, a noção de significância estatística e significado expandido)” (:33PURI, Jyoti. 2016. Sexual state: governance and the struggle over the antisodomy law in India. Durham: Duke University Press. 222 pp.). Em outros termos, no contexto das aproximações entre Ciência, Estado e sociedade, alguns temas podem ser construídos como problemas sociais valendo-se da estatística.

No capítulo terceiro argumenta-se como a produção da lei é marcada por um processo de formatação discursiva caracterizada, no caso da Seção 377, pela mistura entre excessos e estranheza que são codificados como melhorias e inevitáveis (:55PURI, Jyoti. 2016. Sexual state: governance and the struggle over the antisodomy law in India. Durham: Duke University Press. 222 pp.) e estabelecidos por meio de aproximação com outros crimes sexuais, como o estupro e abuso de menores. Se no artigo relativo ao estupro há a ideia da lei como mecanismo protetivo, na seção 377 há um explícito mecanismo punitivo que estabelece o sexo não reprodutivo como crime nas formas da “sodomia” e da “bestialidade” registrado pela adoção de uma linguagem que não reconhece a possibilidade de consentimento entre parceiros sexuais adultos: “conjunção carnal contra a ordem da natureza”.

“Half Truths”, quarto capítulo da obra, é dedicado à análise das dinâmicas de aplicação da lei no contexto das forças policiais. Enquadrando a polícia simultaneamente como instituição de Estado e como estratégia de governo, a autora explora a administração subjetiva da lei pelas corporações policiais na Índia. Mais que uma leitura dos exercícios de poder, há um investimento em suas descrições que lhe permite pensar como a polícia é um agente institucional na construção de gramáticas estatais de governo da sexualidade. Isto é verificado em suas descrições sobre como agentes policiais fazem uso da seção 377 do Código Penal para relacionar grupos, sexualidade e lei. Dito de outra forma, Puri avalia como policiais se servem e falam sobre a Seção 377 como instrumento de punição de minorias étnicas e religiosas, independente das práticas sexuais que mantenham.

No quinto capítulo é discutido o esforço de contestação da Seção 377. Nele a autora aborda o período entre 2001 e 2006, que levou a Naz Foundation a interpor um mandado na Corte Federal em Délhi e que, posteriormente, conduziu a uma campanha nacional contra a criminalização da homossexualidade. Como organização, a Naz Foundation teve sua origem na década de 1990 em ações vinculadas à saúde sexual, em especial ao HIV e à Aids. Este foi um dos argumentos eleitos pela organização, de modo que no mandado sugeria que seria de interesse do Estado a desaceleração das infecções por HIV partindo da descriminalização das parcerias afetivas e sexuais entre adultos de mesmo sexo e de modo consentido. A estratégia estava assim em enfatizar que a Seção 377 era um instrumento de perseguição a homossexuais, secundarizando seus efeitos sobre outros grupos minoritários. O mandado foi indeferido pela Corte em 2004.

O julgamento em 2004 estabeleceu um debate nacional que levou à segunda fase do processo, tratado no capítulo 6. Esse momento foi marcado por dois eventos centrais: a decisão da Corte Federal em Délhi pela descriminalização, em 2009, e sua posterior recriminalização em 2013 pela Suprema Corte. Conforme argumenta, cada um desses julgamentos representa visões divergentes sobre as relações entre Estado e sexualidade. Em última instância, comparadas desde uma perspectiva de escala e de modos de organização do sistema de justiça e do Estado, a Suprema Corte, comparada à Corte Federal de Délhi, parece enfatizar e proteger o Estado.

Na seção final do livro, a autora retoma as ideias expressas nos capítulos anteriores, e enfatiza que os fenômenos ali descritos a partir da Índia encontram similaridades em outros contextos nacionais. Esses processos implicam que o engajamento com o debate em torno dos estados sexuais “significa uma reanálise dos supostos fundamentais sobre sexualidade como um objeto de governo e, também, uma reorientação para análises aprofundadas das práticas de governança, leis, políticas e discursos” (:163PURI, Jyoti. 2016. Sexual state: governance and the struggle over the antisodomy law in India. Durham: Duke University Press. 222 pp.).

Eventos sucederam a escrita da obra no que se refere à avaliação pública e legal da Seção 377. Pedidos de revisão da decisão de 2013 foram feitos nos anos subsequentes. Em 2017 a Suprema Corte decidiu que “direito à escolha de parceiro” constituía parte intrínseca do direito à privacidade. Em setembro de 2018, decidiu-se pela anulação dos itens da seção 377 que caracterizavam a homossexualidade como crime, permanecendo apenas imputáveis práticas sexuais com menores ou animais.

Um dos méritos de Sexual States é o constante esforço da autora em descrever como práticas de Estado conduzem formas de governar a sexualidade pautadas por inconsistências e seus efeitos. Este aspecto per si já justificaria a leitura da obra por parte do leitor brasileiro. No caso brasileiro, o modo como o debate tem sido pautado pelo Poder Judiciário e não pelo Executivo é ilustrativo e preocupante para pensar as relações entre Estado, governo e sexualidade. Nesse sentido, a obra de Puri pode ser uma forma de aproximar perspectivas que fariam com que se revelassem as proximidades entre Índia e Brasil a despeito de suas várias diferenças.

Referências bibliográficas

  • DAS, Veena & POOLE, Deborah. 2004. “State and its margins: comparative ethnographies”. In: DAS, Veena & POOLE, Deborah (eds), Anthropology in the margins of the state Oxford: School of American Research Press.
  • INDIA. 1860. The Indian Penal Code - 1860. Delhi: Ministry of Justice/ Legislative. Disponível em Disponível em http://legislative.gov.in/sites/default/files/A1860-45.pdf Acesso em 05-ago-2020.
    » http://legislative.gov.in/sites/default/files/A1860-45.pdf
  • MITCHEL, Timothy. 1999. “Society, economy and the state-effect”. In: George Steinmetz (ed), State/Culture: state formation after the cultural turn Ithaca: Cornell University Press.
  • PURI, Jyoti. 2016. Sexual state: governance and the struggle over the antisodomy law in India Durham: Duke University Press. 222 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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