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Eleições e representação no Rio de Janeiro

RESENHAS

KUSCHNIR, Karina. 2000. Eleições e Representação no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/NuAP-MN-UFRJ. 95 pp.

Fernando Alberto Balbi

Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ

Doutora em Antropologia Social pelo PPGAS-MN-UFRJ, Karina Kuschnir reescreve para esse livro alguns artigos baseados em sua dissertação de mestrado, apresentada na mesma instituição.

O texto se insere no campo da "antropologia da política", e procura analisar as práticas políticas em função das concepções e dos pontos de vista dos próprios atores. A autora centra sua atenção nos vereadores do Rio de Janeiro e busca dar conta das regras e dos valores que dão sentido à sua experiência política a partir da observação das interações que mantêm com seus eleitores, pares, funcionários do Poder Executivo municipal e jornalistas.

Nesses termos, Kuschnir consegue iluminar uma série de relações sutis entre os diversos aspectos da política local do Rio de Janeiro. As chaves dessa análise são duas. Em primeiro lugar, a apreciação de que existe uma "cultura institucional" própria da Câmara Municipal, isto é, valores e pontos de vista compartilhados pelos vereadores no que diz respeito ao seu próprio papel como representantes de seus eleitores, as regras da atividade parlamentar, o prestígio da Câmara Municipal etc. A análise dessa "cultura institucional" permite compreender as formas como os vereadores atuam nos diversos âmbitos de interação em que devem operar. Para isso contribui também a observação de Kuschnir - e esta é a segunda chave de sua análise - de que"o papel social dos vereadores está, em muitos casos, diretamente vinculado à sua capacidade de mediar trocas entre diferentes níveis da sociedade que são também diferentes níveis de cultura, com códigos e valores distintos" (:9). Tal papel é, de fato, sancionado pela "cultura institucional" do Legislativo municipal, que tem como um de seus valores básicos o postulado de que a mediação entre os eleitores e o Executivo é um dos principais deveres do cargo de vereador.

Os quatro primeiros capítulos do livro exploram essas observações para examinar as diferentes facetas da atuação dos vereadores. No capítulo 1, Kuschnir mostra que existe uma marcada correlação entre o tipo de campanha eleitoral desenvolvido pelos candidatos a vereadores e a distribuição de seus votos. Os diversos tipos de discurso de campanha expressam estratégias distintas voltadas a propor a determinados eleitorados certas classes de vínculos. Isso implica um esforço dos candidatos para construir seu pertencimento a um grupo de referência de seus eleitores através da proposição de um tipo específico de intercâmbio voto/mandato. Nesse sentido, a autora distingue entre uma estratégia "comunitária/assistencialista" e outra "ideológica/política". O capítulo 1 culmina com a observação de que o intercâmbio voto/mandato não é senão "um momento dentro de uma cadeia de relações que se processam em torno da atividade política, que não está restrita ao período estritamente eleitoral" (:32).

O capítulo 2 elabora esse ponto, concentrando-se na cotidianidade do mandato legislativo. Seu maior mérito é mostrar a complexidade da perspectiva dos vereadores quanto ao seu papel como mediadores. Assim, os vereadores "assistencialistas" e os "ideológicos" se diferenciam na medida em que os primeiros se dedicam fundamentalmente a criar e reproduzir relações pessoais com os eleitores, proporcionando-lhes bens e serviços, enquanto os segundos tendem a trabalhar em nome de causas representativas de grupos organizados, ocupando-se de facilitar sua participação no "processo político" mais do que lhes oferecer recursos materiais. Todavia, posto que ambos os tipos se encontram imersos em alguma forma de intercâmbio voto/mandato que supõe dívidas para com seus eleitores, "a vereança tem sempre uma vertente de assistência à população" (:45). Mesmo assim, os vereadores - sejam "ideológicos" ou "assistencialistas" - também agem como "mediadores culturais", ponto que é desenvolvido no último capítulo.

O capítulo 3 analisa a complexa dinâmica das relações que os vereadores mantêm entre si. Eles reconhecem sua interdependência como um fato fundamental, conscientes de que "num certo nível de atuação, o voto dado (a favor de um projeto ou proposição) deve significar voto retribuído" (:52). Isso se reflete no valor que concedem ao fato de terem um "bom trânsito" e à capacidade de fazerem acordos. Contudo, o "bom trânsito" se vê afetado pela necessidade de tomarem posição em face do jogo político. Com efeito, é impossível para um vereador ser neutro, posto que "o êxito de seu mandato depende da solidificação de alianças - tarefa que só pode ser conseguida através da troca de votos" (:58), e o voto só serve como instrumento de intercâmbio desde que o vereador faça parte de algum dos grupos que operam na Câmara. Essa tensão entre a necessidade de manter um "bom trânsito" e o imperativo de estabelecer alianças duráveis - que dá conta em certa medida da instabilidade dos blocos de "situação" e "oposição" - constitui um "conflito entre dois tipos de comportamento valorizados e prescritos pelo grupo" (:58) que os vereadores resolvem de maneira quase teatral no plenário, justificando ambos em termos da defesa dos interesses de seus eleitores.

O capítulo 4 examina a forma como os vereadores entendem e enfrentam o desprestígio da instituição. Enquanto mediadores, os vereadores necessitam permanentemente de recursos que somente o Executivo pode proporcionar-lhes. Kuschnir assinala que existe uma assimetria entre Executivo e Legislativo que "não está inscrita nas atribuições dos dois Poderes e sim no processo de trocas promovido no exercício dos mandatos de seus ocupantes" (:68). Essa assimetria habilita os vereadores enquanto mediadores mas implica uma grande instabilidade e conflitos permanentes, sendo ressentida pelos legisladores. Por outro lado, a mídia geralmente oferece uma imagem negativa do Legislativo, desprestigiando-o diante da opinião pública. Os vereadores reagem a essas situações empreendendo coletivamente uma "defesa institucional" da Câmara, com o intuito de reforçar seu prestígio visando incrementar seu potencial de troca tanto com o Executivo como com a população. Um aspecto essencial desse movimento é a tentativa de "elevar o status político do parlamento carioca na estrutura de distribuição de poder e prestígio nacional" (:78), reivindicando a herança cultural e histórica da cidade, sua "capitalidade".

Escrito em colaboração com Gilberto Velho, o capítulo 5 distancia-se do tom etnográfico do restante do livro para situar a figura dos vereadores no marco mais amplo do problema da "multiplicidade e descontinuidade entre domínios e províncias de significado" (:83) que caracteriza as sociedades complexas. Nestas, adquire uma importância capital o "potencial de metamorfose" dos indivíduos, sua capacidade para alterar suas atividades e sua própria apresentação do self de modo a transitar por essas províncias de significado. Esse tipo de trajetória possibilita a alguns indivíduos atuar como mediadores entre categorias sociais, domínios e níveis de cultura. Tal seria o caso dos vereadores e, de modo mais geral, dos políticos, que não apenas interpretam e traduzem as lógicas dos diversos universos sociais com as quais entram em contato como realizam um trabalho de bricolagem, criando novas realidades a partir de seu trânsito por aqueles universos díspares. O político seria, em última instância, um "especialista em mudança de papéis" cuja identidade ilustraria "as características mais gerais de uma sociedade complexa, heterogênea, multifacetada, em permanente processo de construção" (:89).

Nos últimos trinta anos, a antropologia social e/ou cultural tendeu maciçamente a um hermético acúmulo de conceitos cada vez mais obscuros e de utilidade crescentemente duvidosa. Essa febril criatividade teórica parece ter-se transformado em um fim em si mesmo, quiçá como produto das crescentes pressões em favor da diferenciação simbólica requerida pela concorrência intra-acadêmica. Esqueceu-se, dessa forma, que os conceitos carecem de um valor intrínseco e que o aporte de uma análise qualquer à inteligibilidade dos fenômenos sociais não depende tanto de quais são os conceitos usados quanto de como se os usa. O trabalho de Karina Kuschnir tem o imenso mérito de não se ter entregue a essa lamentável tendência contemporânea. Pelo contrário, com uma arquitetura teórica de inspiração tradicional e quantitativamente limitada consegue dar uma contribuição valiosa à análise de uma instituição complexa e de uma posição política pouco compreendida.

Também vale destacar o realismo que caracteriza seu tratamento dos atores. De fato, os vereadores de quem fala Kuschnir parecem "reais": não há aqui estrategas improváveis sem intenção estratégica nem fazedores de discursos capazes de manejar ao mesmo tempo uma dezena de níveis de significação. Essa medida de realismo - que não tem nada a ver com as convenções realistas da etnografia clássica - é uma virtude pouco freqüentada que enriquece o trabalho de Kuschnir. Se cabe lamentar algo a respeito de seu livro é de ela não ter aproveitado a ocasião de reescrever artigos para acrescentar material etnográfico, deixando assim alguns pontos pouco claros onde, todavia, parece evidente que as dúvidas do leitor se devem não à qualidade da análise mas à parcimônia do texto. Trata-se, ademais, de um bom exercício etnográfico - ao que essa resenha não faz justiça - e de um livro particularmente recomendável para leitores interessados na análise das instituições legislativas e dos fenômenos correntemente tratados sob os rótulos de "assistencialismo", "clientelismo" e "corrupção".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2002
  • Data do Fascículo
    Abr 2002
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