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LACERDA, Paula (org.). 2014. Mobilização social na Amazônia: a luta por justiça e por educação. Rio de Janeiro: E-Papers. 366pp.

LACERDA, Paula. 2014. Mobilização social na Amazônia: a luta por justiça e por educação. Rio de Janeiro: E-Papers, 366

"Venham brasileiros de todos os cantos do Brasil! Venham pessoas de todas as partes! Rondônia lhes oferece trabalho, solidariedade e respeito! Tragam seus sonhos, anseios e ilusões! Compartilhem de tudo isso com este povo admirável. Assumam como ele os problemas e as dificuldades naturais de sua trajetória em busca do grande destino do Brasil". O discurso do então governador do território de Rondônia, Jorge Teixeira de Oliveira, era mais do que um convite para o deslocamento de famílias até a Amazônia durante a década de 1970. A propaganda do "vazio demográfico" e, ao mesmo tempo, do "Eldorado" possível para aqueles que o almejassem, a partir da intervenção estatal em um espaço que deveria ser ocupado, é uma das principais formas de representação da Amazônia. O livro Mobilização social na Amazônia: a "luta" por justiça e por educação, organizado por Paula Lacerda, apresenta-nos artigos que convidam a revisitar o passado e também o presente que perpetua esta visão a serviço do Estado, sob diversos olhares, seja por meio das populações nativas, seja por aquelas que ocuparam o território posteriormente, evidenciando trajetórias familiares que se deslocam com "seus sonhos e anseios".

As "ilusões" desse processo de ocupação são hoje apresentadas a partir de diversos prismas. Ao analisar os processos políticos, a organizadora se pauta nos estudos sobre administração pública no Brasil, destacando a relevância do papel dos agentes do Estado como propagadores da idealização do espaço amazônico que, por vezes, não são contabilizados como influentes nesse processo. Ademais, evidencia as dificuldades inerentes à lógica perversa de transformação daquele espaço em quadrados e retângulos forjados em pranchetas do governo. A perspectiva de "Estado" adotada na coletânea pode se aproximar daquela afirmada por Durkheim como um "grupo de funcionários sui generis, em que se elaboram representações que envolvem a coletividade, embora não seja obra da coletividade".

Ao mesmo tempo, a perspectiva de Estado deve ser tomada para além da prancheta dos administradores. Isto é, as ações dos agentes administrativos não estão apenas baseadas nas legislações pertinentes e nos planos definidos, mas no desenrolar cotidiano dos mesmos.

Ao unir estas duas perspectivas, isto é, as ações dos administradores e os planos escritos, aparentemente contraditórias, salta aos olhos uma relação específica estabelecida com os agentes do Estado denominada inaudibilidade das mesmas, o que contempla desde a projeção da ocupação da terra como "Eldorado" até as demandas atuais, pautadas principalmente por um sentido de "justiça".

É relevante pontuar que a coletânea traz a originalidade no tratamento da temática, que não é comumente retratada em trabalhos de Ciências Sociais, ainda mais se levada em conta a miríade de situações analisadas que demandaram mobilização social no espaço amazônico. A compilação de trabalhos surgiu especialmente a partir da inquietação pessoal da organizadora diante da constatação de um maior número de olhares estritamente ambientais, em detrimento dos diversos processos de mobilização em uma área extensa tanto em território quanto em identidades. É inovadora ao utilizar diferentes tipos de materiais para a abordagem desta temática, já que é composta por artigos propostos por cientistas sociais e pelo bispo Dom Erwin Kräutler e também por entrevistas com ativistas diretamente engajados em movimentos sociais na região. Além disso, traz um ensaio fotográfico realizado na quarta maior usina hidroelétrica do mundo, a Tucuruí, denominado "O Lago do Esquecimento", demonstrando que a devastação ambiental está diretamente combinada com a devastação humana. Nesse contexto, também está presente a inaudibilidade, um marco teórico em todos os artigos da coletânea, além da invisibilidade das pessoas nas localidades, onde o progresso é o viés de desenvolvimento da região.

Embora falte visibilidade aos dramas dos impactados pelos mais diversos pesos do progresso, a coletânea se destaca ao demonstrar como acontece a transformação das demandas em chaves de "luta" para aqueles que vivem na Amazônia. Isto faz com que o livro, tal como sinalizou em seu prefácio de forma muito apropriada o professor Antônio Carlos de Souza Lima, seja uma "análise e um documento das situações abordadas", isto é, uma possibilidade de se fazerem ouvir as lideranças e os estudiosos da região.

Assim como a Amazônia não deve ser considerada um "verde vago mundo", um território unívoco por excelência, as caracterizações identitárias são múltiplas, incluindo trabalhadores rurais, mães, quilombolas, sindicatos, entre outras coletividades, atingidos por grandes projetos, colocando em evidência a multiplicidade de grupos e sujeitos sociais.

A coletânea está dividida em três partes, sendo a primeira denominada "Processos de construção de demandas e reivindicação de direitos". Na primeira subdivisão, composta por cinco artigos, são evidenciados processos de mobilização e suas repercussões. O bispo Dom Erwin Kräutler descreve "lutas" que foram acompanhadas por ele de forma a garantir a não violação sistemática de direitos dos trabalhadores nos canaviais, e também dos grupos indígenas na região do médio Xingu, com o relato do cerceamento de sua própria liberdade. Ana Paula Santos Souza mostra a possibilidade de mobilização surgida a partir da união de famílias de agricultores nos projetos de colonização localizados na Transamazônica, lutando pelo que denominam de "lote dos sonhos", com produção diversificada, infraestrutura, crédito e assistência técnica. O artigo de Alfredo Berno de Almeida Wagner, compilado pela organizadora da coletânea a partir do primeiro capítulo da tese do autor, contempla o estabelecimento da Igreja Católica, e suas representações, como mediadora nas situações conflituosas na terra desde a década de 1960. Aurélio Viana Júnior tem como objetivo refletir sobre os efeitos sociais do uso de terras comunitárias na Amazônia Legal, demonstrando que, após 1988, elas não podem ser consideradas como "algo residual", mas protegidas da alienação para uso, inclusive pelas comunidades tradicionais. Jane Beltrão e Andreza Smith, a partir de relatos e experiências, escrevem sobre a formação de um grupo de mulheres que visa contribuir para o enfrentamento do tráfico de pessoas.

A segunda parte, intitulada "Conflitos, territórios e a luta pelo reconhecimento", é formada por três artigos e três entrevistas com ativistas que apresentam casos nos quais a inaudibilidade do Estado está fortemente evidenciada. O primeiro, de autoria de Maristela de Paula Andrade, percorre as situações de conflito entre os interesses da administração pública em relação à Base de Alcântara e os territórios tradicionalmente ocupados que, ao longo do tempo, assumem novos termos identitários, revelando-se como novas possibilidades de instauração de diálogo com o Estado. Katiane Silva, ao tratar de duas unidades de conservação de uso sustentável no Amazonas, percebe como os sujeitos pertencentes a uma mesma família se dividem entre si como "comunitários" e "indígenas". A autora destaca como a pressão do Estado pela formação de uma "comunidade" unívoca culmina em uma "domesticação" dos conflitos sociais e políticos para que seja adequado ao bom funcionamento dos projetos de preservação ambiental. O último artigo da segunda parte do livro trata do caso dos meninos emasculados em Altamira e do massacre de Eldorado dos Carajás, analisados por Paula Lacerda e Jane Beltrão. As autoras demonstram que há uma "luta por justiça" perpetrada pelos familiares das vítimas que ultrapassa os "casos" em si, promovendo a abertura para outras demandas que objetivam superar o ocultamento de outros atos de extremada violência no Pará.

O cerne da análise da terceira parte da coletânea está centrado no tema do etnodesenvolvimento. Ele é abordado por Rosani Fernandes, correlacionando-o à educação e explicitando a necessidade das comunidades indígenas e das comunidades tradicionais de adquirirem conhecimento para dialogar com as esferas públicas sobre gestão de seus próprios territórios, entre outros desafios. O curso de Etnodesenvolvimento, desenvolvido pela Universidade Federal do Pará, no campus de Altamira, é discutido por Assis da Costa Oliveira, que oferece um quadro sobre a teorização do termo, bem como das práticas desenvolvidas no curso. Ainda na chave analítica do etnodesenvolvimento, discentes do referido curso apresentam dois artigos centrados nas dificuldades e nas oportunidades criadas a partir do ingresso na universidade. A última parte se encerra com duas entrevistas dedicadas também ao sentido da demanda pelo curso universitário.

Por fim, a coletânea Mobilização social na Amazônia vem propor uma possível contribuição para o fazer antropológico. Um dos exercícios marcantes da Antropologia foi o de deixarmos de falar por nossos "objetos de pesquisa", em uma relação que era eminentemente vertical e etnocêntrica. Atualmente, lidamos com interlocutores com os quais o diálogo se apresenta cada vez mais encorajado e o "retorno" das pesquisas cada vez mais fecundo e cobrado por eles próprios. Porém, além disso, esta coletânea atesta que não apenas os resultados devem ser tornados visíveis em conjunto, mas o fazer-se ouvir é cada vez mais uma ampliação das práticas dos sujeitos que descobrem a sua audibilidade, não só no texto acadêmico, mas na imagem e na oralidade, marcando a sua posição de autoria e ressonância política.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015
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