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Rituais da Mística: Fronteiras borradas entre política e religião

Rituales de la Mística: Fronteras Borradas entre Política y Religión

Rituals of Mystique: Blurred Boundaries between Politics and Religion

Resumo

Este estudo delineia os contornos da mística como categoria e prática social no Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra/MST, explorando as implicações do singular enredamento ensejado entre religião e política. Ele expõe as confluências sociais e políticas que propiciaram essa figuração da mística, junto com excertos etnográficos que esboçam os significados e os usos da categoria no Movimento. A análise fundamenta-se numa interpretação histórico-etnográfica sobre o MST como fenômeno político e o papel que a criação de eventos, entendidos como rituais, nele desempenha. Acompanhar analiticamente as metamorfoses dessa categoria tipicamente religiosa e examinar suas características, conexões de sentido, usos sociais e implicações políticas amplia nosso entendimento de fenômenos congêneres e ilumina a importância política da religião na história brasileira recente.

Palavras-chave:
Mística; Política; Religião; MST; Rituais

Resumen

Este estudio delinea los contornos de la mística como categoría y práctica social en el Movimiento de los Trabajadores Sin-Tierra/MST, explorando las implicancias del singular entramado entre religión y política que en él tienen lugar. El artículo expone las confluencias sociales y políticas que propiciaron esa figuración de la mística, junto con extractos etnográficos que bosquejan los significados y usos de la categoría en el Movimiento. El análisis se basa en una interpretación históricoetnográfica del MST como fenómeno político y del papel que la creación de eventos, entendidos como rituales, juegan en él. Acompañar analíticamente las metamorfosis de esa categoría típicamente religiosa y examinar sus características, conexiones de sentido, usos sociales e implicancias políticas amplia nuestro entendimiento sobre fenómenos congéneres e ilumina la importancia política de la religión en la historia brasilera reciente.

Palabras clave:
Mística; Política; Religión; MST; Rituales

Abstract

This article defines the contours of ‘mystique’ as a category and social practice in the Landless Workers’ Movement (Movimento dos Trabalhados Sem-Terra/MST), exploring the implications of the unique entanglement of religion and politics that it expresses. It reveals the social and political confluences that enabled this particular configuration of ‘mystique’, accompanied by ethnographic vignettes that sketch the meanings and uses of this category within the Movement. The ethnography relies on a historical-ethnographic interpretation of the MST as a political phenomenon, and the role played by rituals in it. By analytically tracing the metamorphoses of this typically religious category, and examining its characteristics, meanings, social uses, and political implications, broadens our understanding of similar phenomena and sheds light on the political importance of religion in recent Brazilian history.

Keywords:
Mystique; Politics; Religion; MST; Rituals

Em linguagem corriqueira e uso adjetivado, a palavra mística sugere algo excêntrico e logo levanta suspeita. Mas além de inumeráveis extravagâncias, ela também nomina conhecimento nutrido pela aspiração e a busca de contato direto com o Absoluto ou Deus. Paradoxal, “mística” descreve experiência ao mesmo tempo furtiva e potente, obscura para a razão e luminosa segundo os que a vivenciam. Tendo o curioso destino de ocupar as fronteiras sociais e o limiar das eras, historicamente ela tem sido um fenômeno das margens e dos que nelas habitam. Mesmo no âmbito religioso de que se origina e em que detém estatuto próprio, ocupa os interstícios institucionais, representa ameaça de ruptura e está sempre sob signo potencial da heresia. Associada aos aspectos mais obscuros e regressivos do que a modernidade chama religião, seu campo semântico a extravasa. Quando às vezes emerge na política, ela denota poderes cuja fonte é difícil definir e aparece travestida sob outro nome, carisma - conceito aquinhoado de certa consideração teórica, mas não menor suspeita. Na política, mística remete ao irracional creditado à religião. Tida como mácula obscurantista no domínio da razão que alegadamente se agrega à noção de interesse, por contraste e oposição a estes dois conceitos centrais à visão moderna da política, sua investigação oferece promissora promessa de esclarecimento do que lhe escapa.

Ao contrário de sagrado, mística é um conceito com pouca fortuna crítica nas ciências sociais e esteve sempre relegada à sua periferia teórica. Sagrado, magia, tabu e inclusive mana e congêneres tornaram-se conceitos analiticamente desenvolvidos e etnograficamente perscrutados, convertendo-se em temas clássicos e formadores do campo teórico das ciências sociais. Mística, ao contrário, permaneceu uma categoria teoricamente ignorada e quase nunca objeto de investigação etnográfica. Procurando avançar a partir das pistas clássicas de Mauss e Weber, este estudo toma a contracorrente dessa tendência. Nas linhas que seguem busco delinear os contornos da mística como categoria e prática sem-terra através de percurso hermenêutico e comparativo com outras figurações que dela se fizeram em sua genealogia putativa. Ciente dos riscos desse caminho, alerto o leitor que não se trata de definir as mutações de um fenômeno essencial, mas de refletir sobre grandes diferenças e algumas ressonâncias significativas na categoria, com inevitável incidência nas práticas que ela ajuda a engendrar. Aplica-se à mística a ressalva feita por Asad com respeito ao conceito de religião: uma definição trans-histórica é inviável (1993:30ASAD, Talal, 1993. Genealogies of Religion. Discipline and Reasons of Power in Christianity and Islam. Baltimore/London: Johns Hopkins University Press.). Diferentes institucionalidades em configurações sociopolíticas diversas, com formas específicas de regulação das relações e validação do conhecimento, constituem outros modos de subjetivação e partições do sensível.

A categoria e o campo de experiências recobertos pela palavra mística apresentam múltiplas dissonâncias em suas aparentes reemergências através dos tempos. Tendo por referência os movimentos significativos da categoria nativa sem-terra, inicio seu estudo revisando brevemente a definição prevalecente de mística, de origem romântica, como experiência subjetiva do transcendente, as reapropriações do conceito feita pela teologia da libertação, sua fecundação pela religiosidade popular nas pastorais sociais, para então delinear os contornos da mística como categoria e prática do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, explorando as implicações do singular enredamento entre religião e política nela ensejado. Com esse intento, o texto apresenta breve exposição de confluências institucionais, sociais e políticas que propiciaram essa insólita figuração da mística, acompanhada de excertos etnográficos que esboçam os significados e os usos da categoria nas concepções e nas práticas políticas sem-terra. Herdeira da teologia da libertação originada na América Latina em fins dos anos 60 e do patrimônio coletivo das festas populares, a mística do MST é uma experiência social criativa, fértil para o pensamento, reveladora de aspectos pouco conhecidos e inexplorados da emergência política da religião na história brasileira recente.

Sendo a mística sem-terra uma política do sentido e uma tecnologia organizativa fundada em premissas, princípios, conhecimentos e valores críticos à democracia liberal, visa não só à constituição do sujeito coletivo que é o movimento social, mas também à formação e, mais recentemente, à difusão de novas sensibilidades e estéticas, outra moralidade e modo de vida. Parte de projeto político que aspira à construção de uma proposta alternativa de nação, elabora sobre o patrimônio de formas culturais que a constituíram, renovando-as e conferindo-lhes novos sentidos. Perscrutar essa apropriação criativa, atentando para os seus contornos, linhas de força e condições fundantes é o objetivo deste artigo, que se desdobra na investigação das possibilidades e dos limites da mística enquanto forma de organização da ação coletiva.1 1 Tema do artigo “A mística do MST e as aporias da ação coletiva”.

Minha discussão analítica baliza-se numa interpretação histórico-etnográfica mais geral sobre o MST como fenômeno político e sobre o papel que a criação de eventos, entendidos como rituais (Tambiah 1985TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. 1985. “A Performative Approach to Ritual”. Culture, Thought, and Social Action. AnAnthropological Perspective. Cambridge: Harvard University Press.), nele desempenha. Esta foi a abordagem adotada na pesquisa sobre a marcha que durou dois meses e percorreu um milhar de quilômetros rumo à capital do país (Chaves 2000CHAVES, Christine de Alencar. 2000. A Marcha Nacional dos Sem-Terra. Um estudo sobre a fabricação do social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará., 2006CHAVES, Christine de Alencar. 2006. “Os limites do consentido”. In: C. Fonseca & J. Brites (orgs.), Etnografias da Participação. Santa Cruz do Sul: EDUNISC.). Também é a perspectiva que proponho para apreender os múltiplos significados e dimensões da mística como categoria e prática sem-terra, e assim iluminar o poder criativo que emerge das suas mobilizações coletivas.

MST: Contexto de origem

Nos estertores do regime militar brasileiro, na virada da década de 1970 para os anos 1980, novos atores entraram em cena e alargaram o espaço político ao reivindicarem direitos mediante pressão direta sobre o Estado com a organização criativa de formas de luta coletiva. O contexto histórico de crise de legitimidade do regime autoritário propiciou o nascimento de movimentos populares que passaram a apresentar demandas de cidadania, questionar o modelo político e econômico, bem como as formas tradicionais de mediação política. No campo, o regime militar implementara uma “modernização conservadora” ao viabilizar um pacto político entre setores da burguesia nacional, internacional e terras-tenentes e ao promover, mediante créditos e incentivos fiscais, a “revolução verde” e o desenvolvimento capitalista na produção agropecuária brasileira, favorecendo processos de expropriação do campesinato, concentração fundiária e conflitos de terra.2 2 Pires e Ramos (2009) fazem uma revisão bibliográfica da apropriação por analistas brasileiros do termo “modernização conservadora”, cunhado por Barrington Moore Jr. (1975). Originalmente proposto para explicar o desenvolvimento tardio do capitalismo na Alemanha e no Japão através de revoluções burguesas pelo alto, o termo foi aplicado à modernização do campo promovida pelo regime militar de 1964. Fruto da crise agrária do período, o MST foi gestado, entre os anos de 1978 e 1984, pela inovadora experiência dos acampamentos em diferentes regiões do país.3 3 Embora não fossem historicamente inéditos, no período surgiram acampamentos em vários estados brasileiros, cuja articulação, promovida pela Comissão Pastoral da Terra-CPT, daria nascimento ao MST (Stédile & Frei Sérgio 1996). Rosa (2009) faz uma análise circunstanciada das distinções entre os acampamentos do Master/RS, nos anos 1960, daqueles que gerariam o MST. Os acampamentos foram fundantes: forjaram o MST, seus métodos de organização coletiva, suas formas de ação política e, como veremos, a síntese particular de sua mística.

Nenhum dos movimentos sociais daqueles anos alcançou a expressividade e a longevidade do MST, atualmente organizado em todo o território nacional e fonte de inspiração para dezenas de outros movimentos de luta pela terra e pelo direito à cidade no Brasil e fora dele. Nesses últimos 37 anos susteve a luta pela reforma agrária no país, tendo seus assentamentos extensa base territorial, com exemplos de exitosas cooperativas de produção. Nesse ínterim, deu ensejo a extensa gama de atividades: elaborou pautas de política agrícola e de fortalecimento da agricultura familiar, renovou suas práticas organizativas, modelos de produção e desenvolvimento para assentamentos, criou métodos e instituições nas áreas de educação, comunicação, cultura e formação política, estabeleceu parcerias de educação no campo com diversas universidades públicas, concertou redes de cooperação nacionais e internacionais e, atualmente, trabalha na elaboração de formas de financiamento popular.

A ritualização integra grande número de criações no celeiro de experimentação social que é o MST. Ela se encontra presente tanto nas práticas organizativas como nos novos estilos de ação política por ele disseminados, caracterizados por padrões ritualizados de interação social e uma dinâmica conflitiva estandartizada em relação ao Estado. A criação de eventos coletivos na esfera pública tornou-se traço distintivo da sua ação política no último interregno democrático e conferiu-lhe projeção, em especial nas décadas de 1980 e 1990.4 4 Embora a ação direta permaneça uma marca do MST, a diminuição das ações coletivas e da visibilidade pública do movimento é notória e antecede às atuais condições hostis à expressão democrática de demandas políticas, remontando ao primeiro governo de Lula da Silva. Uma análise desse fenômeno complexo não cabe nesta discussão. Acampamentos às margens das estradas e em praças públicas, ocupações de terrenos e prédios governamentais, passeatas, marchas e bloqueios de estrada, de diferentes formas os sem-terra tornaram-se visíveis com eventos distintivos de tomada de posse do espaço e interrupção do fluxo normal do cotidiano, ocupando tempo e espaço também no noticiário. No MST, a ritualização modela o confronto criado por meio da ação coletiva e direta e, ao ordenar a dinâmica de ação das multidões, favorece sua legitimação e eficácia. Por meio dela os sem-terra buscam tornar menos desfavoráveis condições estruturalmente desiguais no contínuo conflito que entretecem envolvendo diversos atores - proprietários, agentes públicos, líderes religiosos, políticos, advogados, juízes, ministros do governo, policiais militares. Para além dos objetivos imediatos, suas moblizações coletivas terminam por questionar os sentidos da lei e da ordem institucional, a definição de direitos e da violência, o significado do estado de direito e da democracia (Chaves 2000CHAVES, Christine de Alencar. 2000. A Marcha Nacional dos Sem-Terra. Um estudo sobre a fabricação do social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará., 2006CHAVES, Christine de Alencar. 2006. “Os limites do consentido”. In: C. Fonseca & J. Brites (orgs.), Etnografias da Participação. Santa Cruz do Sul: EDUNISC.).

No MST, portanto, a ritualização das mobilizações políticas tem sido recurso sistemático para sustentar propósitos pacíficos e buscar legitimidade para ações coletivas essencialmente conflitivas no contexto de um Estado e de uma sociedade histórica estruturalmente repressivos. Ela tem igualmente sido fundamental à sua organização interna e à constituição do sujeito coletivo que é o próprio movimento. Portanto, a ritualização é constituinte tanto da ação política (Chaves 2000CHAVES, Christine de Alencar. 2000. A Marcha Nacional dos Sem-Terra. Um estudo sobre a fabricação do social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.) quanto do sujeito coletivo que a enceta - tema deste estudo. Entender tais inovações políticas requer investigar como o desejo individual de autonomia no trabalho e na vida é convertido em ações coletivas - ações que ao articular demandas por terra também questionam as bases históricas da desigualdade e da hierarquia no país. Em outras palavras, cabe perguntar como homens e mulheres que entram nos acampamentos do movimento em busca de um pedaço de chão transformam-se em sem-terra.

Os sem-terra sugerem uma resposta ao precisarem que “a mística é o que nos une”. Eles consideram ser a mística o que alimenta as esperanças de mudança dos militantes e sua vontade de lutar.5 5 Evidentemente, são variadas e não estáveis as motivações e o engajamento dos sujeitos concretos ou dos “militantes” e da “base”, sendo um dos objetivos da mística sua constituição e renovação constante com vistas aos objetivos específicos de cada atividade e aos propósitos maiores do MST. Entramos no terreno do imponderável, presente em afirmações como “a mística é a alma do movimento” e nas formas litúrgicas ou nos rituais de encorajar sua “luta”. Aqui a partição moderna de domínios revela-se frágil, “religião” e “política” mostram-se imbricadas e misturadas, quase indistintas.6 6 Remeto a Asad (2003) para um desenvolvimento crítico dessa distinção moderna. O amálgama assumiu uma configuração peculiar já nas origens do MST e também da teologia da libertação, uma de suas fontes, quando a crítica social de inspiração marxista fundiu-se com o catolicismo popular (Fernandes 1984FERNANDES, Rubem César. 1984. “‘Religiões Populares’. Uma visão parcial da literatura recente”. BIB, 18:3-26.)7 7 Tenho ciência do caráter problemático e polissêmico da expressão, característica comum às ideias fortes nas ciências sociais, como notou Fernandes (1984) em resenha crítica do termo. Tomo-o à falta de melhor, guiada por seu uso pelos teólogos da libertação e apoiada no emprego consagrado pela literatura pertinente. e seus rituais festivos.

Mística, teologia da libertação, religiosidade popular

Mística cristã medieval

Pouco desenvolvido nas ciências sociais, o termo mística é por excelência um conceito religioso que engendrou derivações na filosofia, na arte e na teoria social (Sell & Bruseke 2006SELL, Carlos & BRÜSEKE, Franz J. 2006. Mística e Sociedade. São Paulo: Paulinas .). No Ocidente, teve origem na Antiguidade e desde o século XIX passou a designar um tipo específico de experiência religiosa proveniente do contato direto com a divindade, o testemunho enunciado dessa experiência e a reflexão produzida pelos estudiosos do fenômeno. Tanto quanto seu objeto, o Outro absoluto na tradição cristã representado por Deus, a mística é uma figura histórico-cultural elusiva e com fronteiras imprecisas, que no mundo cristão delineou-se principalmente entre os séculos III e XVII (Vaz 1992:506VAZ, Henrique L. 1992. “Mística e Política. A experiência mística na tradição ocidental”. Síntese Nova Fase, 19 (59):493-541.), mas apenas no século XVI, segundo Certeau (2015CERTEAU, Michel. 2015. A Fábula Mística. Os séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Forense.), ganhou contornos de tradição. Ela emergiu a partir das ruínas medievais como reação à falência do sistema de sentido de sua cosmologia, expressa no solapamento de ideias-mestras como providência divina e ordenamento hierárquico dos seres. O desmoronamento da cosmologia medieval manifestou-se como impossibilidade de reconhecer a inscrição da ordem divina nas coisas do mundo, à qual se somou a fratura da Cristandade. Rupturas fundamentais que propiciaram a autonomização do conhecimento científico, o deslocamento da função de unidade referencial da Igreja para o Estado (Dumont 1985DUMONT, Louis. 1985. O Individualismo. Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco.; Certeau 2015CERTEAU, Michel. 2015. A Fábula Mística. Os séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Forense.) e a constituição do espaço político como âmbito de enfrentamento de crenças e práticas diversas.

A ruptura, contudo, nasceu no interior da teologia através da incipiente racionalização dada pela escolástica, quando a inteligência espiritual que antes desvendava o sagrado legível na positividade da história deu lugar à experiência subjetiva do Mistério (Certeau 2015CERTEAU, Michel. 2015. A Fábula Mística. Os séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Forense.). Órfãos do concreto em face da cisão entre palavras e coisas, esteados em técnicas espirituais no recôndito da interioridade e em permanente tensão com os poderes eclesiásticos e institucionais, fosse na Igreja Católica, fosse na Protestante, os místicos almejavam a unio mystica com Deus, o Outro da Razão, fundamento espiritual do ser e da realidade. Formada pela nostalgia do Absoluto e do Uno, se há algo que caracteriza a ciência mística, essa figura histórica de transição que fulgura com seu brilho fátuo nos séculos XVI e XVII para logo desaparecer na voragem da modernidade, é a disposição de tomar como objeto as cintilações evanescentes do inteiramente outro, a alteridade radical, o não isso.

Parte do processo de crise das formas legítimas de representação do real, a resistência da mística à racionalização paradoxalmente transformava o sistema de signos à medida que buscava na subjetividade a comunicação com o uno e o infinito nomeados como Deus. Com os místicos surge uma literatura que dá expressão a essa comunicação com o indizível e outra que pretende decifrá-la. Ainda segundo Certeau, na virada do século XVI a palavra mística passou de adjetivo a substantivo que delineia um campo de saber. No curto período dos séculos XVI e XVII, no início da moderna diferenciação do conhecimento, ela formou tradição e aspirou a ser ciência. Suspeição e repressão, contudo, sempre acompanharam os místicos e suas narrativas, tomadas como “palavras perigosas” - a tensão com o instituído e o institucional tem acompanhado a mística e seus emissários. Como a mística entre os gregos, a nova ciência permaneceu associada ao oculto e ao segredo, portanto sujeita ao equívoco da relação visível/invisível e à ilusão da dinâmica do ser/parecer, daí seu vínculo com a ficção e a mentira.

Esse sentido duvidoso sobreviveu ao ocaso da mística medieval e à resistência que como campo de saber ela representou no limiar da modernidade. No lusco-fusco, o Deus da Palavra parece ter calado. No uso comum do termo, mais do que aqueles que O invocam, místico tornou-se sinônimo de fraude. Sua forma substantivada refluiu (ou foi substituída por “mistificação”, significando ludibrio, farsa, embuste) e o adjetivo reassumiu soberania na linguagem ordinária. Contudo, ressonâncias da mística aparentemente vazam nas rachaduras do edifício moderno como a assinalar o fundo incerto dos seus fundamentos, reverberando na filosofia de Nietzsche, Heidegger e Husserl, na imensa e variada vaga do Romantismo, em cuja vertente marxista aparece em Walter Benjamin, E.P. Thompson, Ernest Bloch (Sell & Bruseke 2006SELL, Carlos & BRÜSEKE, Franz J. 2006. Mística e Sociedade. São Paulo: Paulinas .; Löwy & Sayre 1993LÖWY, Michel & SAYRE, Robert. 1993. Romantismo e Política. São Paulo: Paz e Terra.) e, com direta influência na teologia da libertação, Mariátegui (Löwie 2005:106LÖWY, Michel. 2005. “Mística Revolucionária. José Carlos Mariátegui e a religião”.Estudos Avançados , 19 (55):105-116.).

Mística na teologia da libertação

Com semântica, procedimentos e propósitos completamente outros, a mística do MST tem, contudo, procedência religiosa, uma vez ser herdeira direta da mística das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e da CPT (Comissão Pastoral da Terra). Através da atuação capilarizada de agentes religiosos e leigos, as pastorais sociais foram decisivas para os movimentos sociais na redemocratização. Isso só foi possível em vista de mudanças tectônicas na Igreja Católica, dentre as quais se podem citar o amplo movimento de renovação, ou aggiornamento, trazido pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), um processo de abertura da Igreja Católica para o mundo, a modernidade e a própria diversidade interna; as conferências gerais do episcopado latino-americano em Medellín (1968) e Puebla (1979), aprofundando processo já em curso de transformação sociocultural da Igreja no continente;8 8 Na Igreja Católica do Brasil, mudanças aparecem em série. A partir de 1947, sob influência de D.Hélder Câmara e inspiração no método ver-julgar-agir, a Ação Católica Brasileira (ACB) assumiu uma orientação progressista nos vários ramos de sua militância leiga. Na mesma direção deu-se a fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (1952), dos Círculos Bíblicos de leitura popular pelo “método de confrontação circular de vida e texto” e das Comunidades Eclesiais de Base, com enorme expansão nas décadas de 1970 e 1980. Fora do âmbito da Igreja Católica mas com expressiva participação de leigos da ACB, podem-se citar os movimentos pelos direitos humanos, o Movimento de Educação de Base, além de associações de moradores, sindicatos rurais e urbanos, clubes de mulheres etc. disseminados pelo país. A esse fenômeno, que inclui cultura religiosa e rede social, fé e prática, Löwy (2016) chamou Cristianismo de Libertação. e as novas ideias da teologia da libertação, cujo marco inaugural convencionou-se ser 1971, ano da publicação do livro Teologia da Libertação. Perspectivas, do dominicano nascido no Peru, Gustavo Gutiérrez.9 9 A Teologia da Libertação é fenômeno complexo, não exclusivo da Igreja Católica e hoje difundido em vários continentes, embora originária da América Latina.

Por outro lado, a mística sem-terra e a própria teologia da libertação seriam fecundadas pela sensibilidade religiosa do catolicismo rústico, de traços rurais e medievais. Como sua influência difusa, essa religiosidade eminentemente sacral, povoada de presenças numinosas atuantes no cotidiano, feita de relações pessoais e diretas com os santos de devoção, de caráter ritualístico e festivo (Souza 1986SOUZA, Laura M. 1986. O Diabo na Terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Cia das Letras.; Higuet 1984HIGUET, Etienne. 1984. “O misticismo na experiência católica”. In: Religiosidade Popular e Misticismo no Brasil. São Paulo: Paulinas .), desaguaria, por múltiplas vias, na mística do MST: entre os sem-terra como experiência social condensada em tradição, e como inspiração prático-pastoral no caso dos agentes religiosos sob influência da teologia da libertação.10 10 Fernandes (1984) elenca uma vertente inteira de estudos de religião popular produzidos por religiosos da Teologia da Libertação.

Na releitura da espiritualidade cristã realizada pelos teólogos da libertação, a mística aparece transfigurada: eles revivesceram e renovaram sua significação em direção intramundana e orientada para a práxis transformadora.11 11 Há toda uma história precedente de fecundação pela mística medieval dos múltiplos domínios em que o conhecimento se fragmentou na modernidade. Esse fenômeno reorientou a mística para o mundo da vida e para a mística da ação, como mostram Sell e Bruseke (2015) e Vaz (1988) denuncia, o que, posteriormente, influenciaria uma renovação da teologia europeia (Susin 2013). À diferença de Sell e Bruseke, que sugerem uma “virada mística da TdL” apenas após o declínio do socialismo, considero que, apesar de pouco evidenciada pelos analistas, a mística nela esteve presente desde os primórdios, como os trabalhos citados a seguir procuram demonstrar. Para eles, a verdadeira relação com o Outro se expressa na relação com os outros; a salvação - ou libertação - delineia-se através da ação no mundo.12 12 “Libertação é a salvação de Jesus que se dá na história”, dirá Galilea (1977:23). Para seus enunciadores, como “o Verbo se fez carne” (Jo, 1:14), apenas uma espiritualidade encarnada representaria o verdadeiro “seguimento” de Jesus (Sobrino 1985SOBRINO, Jon. 1985. “Espiritualidad de Jesus y espiritualidade de la liberacion. Cuadernos Espirtiualidad de la Libertacion . HOAC, 9.; Casaldáliga & Vigil 1996CASALDÁLIGA, Pedro & VIGIL, JoséMaría. 1996. Espiritualidade da Libertação. Petrópolis: Vozes.). Assim invocam o caráter revolucionário da utopia cristã presente na mensagem evangélica da fraternidade universal, liberdade e igualdade de todos como filhos de Deus. Uma vez que o mistério revela-se na história,13 13 Donde a centralidade conferida pela teologia da libertação à narrativa bíblica da fuga do cativeiro no Egito narrada no Êxodo. A saga do povo que sofre e luta converteu-se num mitema, estrutura simbólica onipresente nas cerimônias místicas das pastorais sociais da Igreja, do MST e em outros movimentos populares. é nela que se encontra “o rosto novo e desafiador de Deus”, sendo toda a humanidade convocada a nela intervir e assim participar da revelação da face do “Deus da Vida”. Concebida como relação com o todo da realidade, transcendente e histórica, a espiritualidade complexifica-se ao enfatizar tanto a experiência subjetiva de Deus quanto a prática concreta de amor aos homens (Sobrino 1985SOBRINO, Jon. 1985. “Espiritualidad de Jesus y espiritualidade de la liberacion. Cuadernos Espirtiualidad de la Libertacion . HOAC, 9.) - no espírito do Concílio Vaticano II, dedicação ao “povo de Deus”, especialmente os mais pobres. Traços significativos dessa releitura religiosa perduram nas novas figurações da mística em vários movimentos sociais da América Latina.

Na teologia da libertação elabora-se um ascetismo no mundo que, ao contrário do estudado por Weber (1983WEBER, Max. 1983 [1904]. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira.), funda-se numa ética do compromisso, uma espiritualidade “vivida na pobreza, no serviço, na luta e no martírio” (Casaldáliga & Vigil 1996:12CASALDÁLIGA, Pedro & VIGIL, JoséMaría. 1996. Espiritualidade da Libertação. Petrópolis: Vozes.) - temas recorrentes na mística no MST. Um Deus ativo na histórica requer do cristão uma contemplação igualmente ativa, ou seja, uma mística da ação. Para Boff (1985:29BOFF, Leonardo. 1985. “Contemplativos de la liberacion”. Cuadernos Espirtiualidad de la Libertacion. HOAC, 9.), trata-se de renovação da máxima monástica medieval ora et labora: nova síntese entre fé e vida através da oração e da ação a serviço do “Reino de Deus” na Terra, união entre mística e ação política. O teólogo chileno Segundo Galilea dirá: “a mística cristã é uma mística do compromisso”. Como outros, aponta a dimensão social e coletiva do Cristo encarnado no irmão a exigir “contemplativos em ação”, numa síntese entre militantes e contemplativos (Galilea 1985GALILEA, Segundo. 1985. “La liberacion como encuentro de la politica y de la contemplacion”. Cuadernos Espirtiualidad de la Libertacion . HOAC, 9.). Entretanto, os teólogos da libertação não deixaram de notar as tensões franqueadas entre a racionalidade política, sujeita ao critério da eficácia, e as percepções intuitivas do mistério, presentes na mística como abertura ao transcendente (Frei Betto 1985FREI BETTO. 1985. “La oración, uma exigencia política”. Cuadernos Espirtiualidad de la Libertacion . HOAC, 9.). Outros, como o teólogo espanhol radicado em El Salvador, Jon Sobrino (1985:24SOBRINO, Jon. 1985. “Espiritualidad de Jesus y espiritualidade de la liberacion. Cuadernos Espirtiualidad de la Libertacion . HOAC, 9.), foram ainda mais cautelosos ao alertar para o risco de fazer da luta um fim último e converterem-na, justamente, em mística.14 14 É sintomático que no opúsculo Espiritualidad de la Liberacion seja Jon Sobrino o único autor a manter cautela com a palavra mística, sempre referida em negativo como mistificação. Em lugar de “mística” Sobrino prefere “espiritualidade” e “contemplação”, enquanto os demais autores tomam os três termos como equivalentes. A despeito de ser expressão de importante porção da Igreja, conquanto periférica, e da invocação dos fundamentos evangélicos e bíblicos de sua visão teologal, a teologia da libertação e seus proponentes não foram poupados de censura e sistemática oposição institucional nos papados de João Paulo II e Bento XVI, sofrendo com isso um inegável declínio.

Para compreender a fecundidade da teologia da libertação e a disseminação de sua mística do compromisso em movimentos sociais da América Latina, é preciso considerar suas origens: ela é o reflexo e uma reflexão resultantes de amplo movimento religioso e social que Löwy (2016LÖWY, Michel. 2016. O que é Cristinanismo da Libertação. Religião e Política na América Latina. São Paulo: Expressão Popular .) chamou “Cristianismo da Libertação”. O movimento congregou leigos, freiras, sacerdotes e bispos enraizados em pastorais sociais pulverizadas no território e fertilizadas pelo ambiente social e politicamente conturbado do continente no final dos anos 1950 e na década seguinte. Germinada nessa experiência teológico-pastoral e guiada pelo impulso crítico e de diálogo com a modernidade dado pelo Concílio Vaticano II, ela é uma teologia que busca realizar releitura da Bíblia e dos Evangelhos à luz da realidade social latino-americana. A “honradez em face do real”15 15 Expressão de Sobrino (1985). A mesma “paixão do que é”, do que se autoriza a si mesmo, foi encontrada na mística medieval por Certeau (2015:22) e parece ser constitutiva do pensamento místico em todas as latitudes. Na Teologia da Libertação, a “honradez em face do real” orienta uma ação no mundo transformadora das injustiças que nele se reconhecem e se compreendem como pecado. conduziu seus teólogos a aprofundarem a posição crítica do Concílio e a posicionarem-se no debate teórico da época a respeito do subdesenvolvimento da região, e inspirou-os a se contraporem aos pressupostos tipológicos e ao apelo reformista da teoria da modernização então em voga. Adotaram a perspectiva da teoria da dependência, segundo a qual a matriz do subdesenvolvimento está nas relações econômicas e políticas estruturalmente desiguais entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, gerando nestes pobreza e dependência, e neles reproduzindo-se internamente como relações de dominação de classe. Esta chave analítica favoreceu a aproximação com o marxismo como ferramenta teórica, utopia de transformação social e orientação para a ação. Ao significado religioso do conceito fundante de libertação acrescenta-se, assim, um inequívoco sentido político emancipatório.

Mas a indisposição crítica e a rejeição do catolicismo ao espírito do capitalismo têm origens remotas, pré-modernas: ancoram-se nos fundamentos da ética religiosa que alicerça uma “luta de princípios” entre sua racionalidade ética substantiva e a racionalidade instrumental, impessoal e reificada da economia de mercado (Weber 1991WEBER, Max. 2015 [1913]“Sociologia da Religião (Tipos de Relações Comunitárias Religiosas)”. In: Economia e Sociedade. Vol. I. Brasília: Ed. UnB.) - justificada racionalmente pelo liberalismo. Para alguns intérpretes como Michel Löwy, a teologia da libertação herda e radicaliza esses fundamentos éticos do catolicismo. O autor elenca características dessa nova figuração ética que acrescenta a crítica econômica à crítica moral; substitui o conceito de caridade pelo de justiça social; opõe-se ao individualismo moderno e enfatiza a dimensão social e comunitária da experiência; censura a privatização da fé e a separação entre religião e política; transmuta a representação tradicional do pobre em classe social explorada, raças desprezadas e culturas marginalizadas; assume a ideia-força de sua autolibertação; orienta-se para um futuro utópico (entendido como realização histórica do Reino de Deus) e não para o passado (Löwy 1989:50-54LÖWY, Michel. 1989. “Catolicismo Latino-americano Radicalizado”. Estudos Avançados , v. 3, n. 5:50-59.).

Além do opróbrio da filiação teórica marxista, outra crítica contudente à teologia da libertação refere-se ao alegado imanentismo da sua espiritualidade expresso, por exemplo, na mística do compromisso. Na teologia da libertação entende-se que a relação com o mistério de Deus presentifica-se não como experiência subjetiva, mas como visão e realização de transcendência na história pelo seguimento de Jesus e seu evangelho do amor, numa ênfase deliberada na figura e na trajetória humana do “Cristo Salvador”. Trata-se de hermenêutica que identifica o Cristo - a dimensão divina encarnada na humanidade de Jesus - aos pobres, vítimas sacrificiais no passado e no presente, e toma a fórmula que identifica o amor a Deus ao amor ao próximo, expressa nos Evangelhos, como modelo para a experiência cotidiana do mistério.

Um dos aspectos mais inovadores da teologia da libertação alicerça-se nessa articulação Deus, homem e realidade histórica atual: a crítica aos fundamentos teológicos da economia de mercado (Hassmann & Hinkelamert 1989AASMANN, Hugo & HINKELAMERT, Franz J. 1989. A Idolatria do Mercado. Ensaio sobre Economia e Teologia. São Paulo: Vozes.).16 16 Articulada principalmente pelos pesquisadores reunidos no Departamento Ecuménico de Investigaciones (DEI), na Costa Rica. Esta perspectiva teológica adianta-se à crítica antropológica no questionamento da suposta secularização da modernidade, além de criticar o confinamento “burguês” da religião à esfera privada.17 17 Segundo Löwy, o Cristianismo da Libertação conjuga, sem contradição, o imperativo do envolvimento ético/político cristão na política e a defesa da autonomia e da separação institucional entre religião e política (2016:110). No Brasil, essa postura é herdeira de uma complexa relação histórica entre Igreja Católica e Estado. A Igreja manteve voz ativa na vida pública por meio de sua mensagem religiosa e sociopolítica, embora alheia à vida partidária (Oro 2005; Giumbelli 2008; Debald 2007). Essa posição difere do empenho das igrejas neopentecostais em assumir o poder político-institucional, observado em anos recentes no Brasil. Numa singular leitura da “guerra de deuses” notada por Weber e antecipando divulgação da tese do “capitalismo como religião” de Walter Benjamin, os teólogos da libertação identificam “pressupostos teológicos na teoria econômica”. A par disto, criticam o que consideram a elevação do mercado e suas leis tornadas transcendentais ao estatuto de uma idolatria que exige sacrifícios humanos. Nessa leitura, a economia assumiu funções tradicionais da religião e criou uma “religião econômica” ao subrepticiamente redefinir a natureza dos seres humanos e seus modos de relacionamento e ao aprisionar o desejo humano de infinitude na finitude do mercado. Segundo eles, contra os “ídolos da opressão” e seus sacrifícios devem erguer-se insurgências inspiradas em horizontes “além do possível agora”, horizonte utópico diuturnamente desacreditado pela teologia mundana do mercado e que a mística do MST procura incessantemente cultivar.

Religiosidade popular e mística do MST

Ao tomar como interlocutor o oprimido e não o descrente, como na teologia europeia, a teologia da libertação precisou atentar para a multiplicidade de dimensões da opressão a demandar “redenção” ou “libertação”. Por outro lado, situar-se como “igreja com e a partir dos pobres” implicou tomá-los como sujeitos plenos, com valores, atitudes, religiosidade e perspectivas políticas próprias. Essa reorientação deu-se na confluência da renovação institucional vivida pela igreja latino-americana em interconexão complexa com mudanças no pensamento teológico e processos sociais emergentes. Fermentação que se consolidou como orientação institucional em 1968, na II Conferência Geral do Episcopado, em Medellín, Colômbia. Em seu documento final, os bispos reconheceram a força da religiosidade popular latino-americana e recomendaram respeito ao seu catolicismo, mesmo que sob a égide de propósitos evangelizadores (Guariza 2008:123). Dessa forma, ainda que foco de estudos e debate, a religiosidade popular permaneceu um tema permeado de ambivalências e subordinada a intenções de cunho pedagógico e pastoral.

A vertente de estudos que no bojo do complexo processo do Cristianismo da Libertação e também fomentada por um impulso romântico propôs-se a reconhecer, interpretar e criticar os valores e as aspirações populares buscou-os tanto na religiosidade quanto nas “lutas de libertação social”. Em ambas os teólogos discerniram a existência e a necessidade da mística. Em ensaio síntese sobre a teologia da libertação, Segundo Galilea é terminante: “não há igreja popular sem uma mística, como tampouco há movimento social sem uma mística política” (Galilea 1977:72GALILEA, Segundo. 1977. Teologia da Libertação. Ensaio de Síntese. São Paulo: Paulinas.). No contexto desta reflexão, mística refere-se à espiritualidade em sentido amplo, entendida como fé, motivações, atitudes e valores profundos, às vezes reconhecidamente contraditórios e negativos - “contravalores” -, e também por uma simbologia que lhe serve de veículo e expressão (Casaldáliga & Vigil 1996CASALDÁLIGA, Pedro & VIGIL, JoséMaría. 1996. Espiritualidade da Libertação. Petrópolis: Vozes.). Enquanto para estes autores a integração entre mística e política deriva de um conceito ampliado de libertação, para seus críticos trata-se de deplorável degradação das profundas aspirações humanas de infinito que a mística manifestaria, consequência do seu deslocamento rumo à imanência iniciado no Romantismo (Vaz 1988VAZ, Henrique L. 1988. “Mística e Política”. Síntese, 42.). Fato é que a orientação para o vivido e o concreto presentes na teologia da libertação fê-la sensível às experiências religiosas do homem comum, manifestas de maneira ampla na religiosidade popular.18 18 O próprio termo é equívoco, notando-se oscilações no emprego de correlatos não equivalentes: religiosidade, religião ou religiões populares, acrescida da acepção mais restrita de catolicismo popular. Além desta dificuldade de circunscrição, dada a imensa variedade de fenômenos e tradições que os termos pretendem abarcar, a qualificação “popular” é problemática: ora refere-se a estratos inferiores da população, ora às maiorias fora do âmbito de regulação institucional, ora a todo o laicato (Fernandes 1984). Opto pelo termo mais abrangente e menos institucional, religiosidade popular, embora empregue catolicismo popular quando assim referido pelos autores ou quando o contexto histórico exigir.

Na especificação dessa religiosidade há várias convergências e algumas discordâncias nas leituras realizadas por religiosos, historiadores e cientistas sociais. Eles nela identificaram herança do catolicismo ibérico medieval, marcadamente devocional, afetivo e simbólico, características reforçadas pela Contrarreforma e, posteriormente, pela espiritualidade do Barroco (Souza 1986SOUZA, Laura M. 1986. O Diabo na Terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Cia das Letras.; Galilea 1978GALILEA, Segundo. 1978. Religiosidade Pastoral e Popular. São Paulo: Paulinas.). Tratar-se-ia de uma religiosidade no cruzamento de influências culturais e religiosas múltiplas, dado pela situação colonial, e de trânsitos entre diferentes padrões de formulação e expressão religiosa, erudita e popular. Apesar de passar por períodos de maior ou menor afluência, determinados aspectos atravessariam séculos: ela seria uma religiosidade definitivamente voltada à resolução de problemas concretos e inserida no cotidiano, conjugando promessas aos santos e pactos com o demônio; povoada de legião de entidades espirituais, ela seria constituída por relações de devoção, assim como por profanações movidas pela intimidade com o sagrado, a veneração cedo cedendo lugar ao desacato; seria, ainda, uma religiosidade itinerante, feita de procissões, peregrinações, “giros” e romarias, repleta de lugares santos, carregada de objetos e símbolos, constituída pela diversidade e a profusão de cultos. Uma religiosidade, enfim, em constante “tensão entre o múltiplo e o uno, entre o transitório e o vivido” (Souza 1986:99SOUZA, Laura M. 1986. O Diabo na Terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Cia das Letras.).

Em suas inumeráveis manifestações, a religiosidade popular traria todos os matizes de uma espiritualidade vívida, afetiva e sobretudo festiva. Dos relatos dos historiadores às etnografias e às análises dos cientistas sociais, ao longo da história brasileira e abarcando a diversidade regional do país, emerge uma religiosidade com intensidade simbólica e ritual, feita de celebrações fervilhantes, profusão de estímulos sensoriais e grande riqueza plástica em meio à conjugação e à mistura entre sagrado e profano. Festas coloridas, cheias de alarido e suor, movidas ao ritmo de diferentes instrumentos musicais, com danças, cantos, trovas, representações dramáticas, frequentemente combinadas com partilha de alimento - fonte de fascínio para estudiosos que nelas viram o poder da resistência popular à dominação, e que enchem de riqueza plástica as páginas de etnografias mais recentes. No período colonial e imperial, o pendor festivo e multitudinário da religiosidade popular não cedia sequer à morte, quando se conjugavam esplendor visual e dimensão lúdica no espetáculo dos cortejos fúnebres (Reis 1991REIS, João. 1991. A Morte é uma Festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras .). É certo que os teólogos anotaram uma excessiva atenção dos intérpretes ao festivo massivo, apontando o sentido cotidiano e interno dos valores e das motivações espirituais presentes na religiosidade popular, mas também não se furtaram - ecoando outros analistas, aliás - a avaliarem-na depreciativamente como dada a “exterioridades” e “tendências ritualistas”.19 19 Os críticos da visão centrada na história da Igreja, formulada pelos teólogos e estudiosos das ciências sociais por eles influenciados, acentuarão as ressalvas à suposta “superficialidade” e “exterioridade” da religiosidade popular. Para um apanhado dessa produção crítica, ver Dilmann (2012).

Recurso inicial de conversão religiosa e regulação social, o modelo festivo-teatral jesuítico fez-se matriz dos rituais festivos do país, condensando um repertório de formas desdobráveis: a festa como modalidade de espetáculo, composição multíplice de procissão, dança, cena teatral, coro cantado, diálogos dramáticos, fogos e adereços em que a mistura de elementos simbólicos heteróclitos, dada inicialmente pela situação colonial, teria gerado uma “terceira esfera simbólica” (Bosi 1992BOSI, Alfredo. 1992. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras.). Como mostra Carvalho (2015CARVALHO, Sérgio. 2015. “Teatro e sociedade no Brasil colônia: a cena jesuítica no Auto de São Lourenço ”. Revista Sala Preta, 15 (1):7-53.) a respeito do Auto de São Lourenço celebrado em Niterói no jubileu de 1587, no espetáculo de Anchieta havia pedagogia, criação de vínculos comunitários, sujeição e disciplinamento social, assim como comunicação simbólica não só entre jesuítas e indígenas, mas também entre autoridades religiosas e políticas. Ponto de encontro e elaboração de tradições heterogêneas em uma sociedade repleta de tensões e conflitos, a festa permaneceu saturada de ambiguidades e múltiplas valências. Com exuberância magnetizadora da atenção pública e da vida social, elas atravessaram fronteiras de tempo, localidades, tradições culturais e religiosas e tornaram-se lugar de convergência e negociação dessas diferenças.

De início as festas assumiam feição essencialmente oficial, com profusão de celebrações relacionadas ao calendário religioso e à vida dos governantes. Entradas e recebimentos de autoridades - governamentais e religiosas -, triunfos e jubileus, além das comemorações dos dias santos, formavam extenso calendário de festividades públicas cujos aparato e frequência escandalizavam viajantes estrangeiros. Inseridas no contexto da aliança Igreja e Estado e do Padroado,20 20 As fronteiras entre religião e política sempre foram imprecisas. As relações de aliança entre Igreja Católica e Estado português foram institucionalmente marcantes desde o início do reinado, inclusive no aspecto mítico de atribuição da sua fundação a um milagre, e reforçadas após o Concílio de Trento (Queirós 2009). Na lógica da Cristandade, a expansão ultramarina e a empresa colonial portuguesa também se revestiram de sacralidade, transformadas em guerra santa de conquista e conversão. Esse ideário santificava e legitimava a “guerra de missão” contra os indígenas e a escravidão dos africanos como “redenção” (Azzi 2005; Hoonaert 1974), e durante quatro séculos marcou as relações constitutivas, embora tensas, entre Igreja e Estado, religião e política no Brasil. pelo qual a Santa Sé conferia poder religioso ao monarca luso e, depois, ao imperador brasileiro, que exercia a chefia efetiva da Igreja no Brasil, elas foram um recurso decisivo de consolidação do poder secular e religioso, de integração social e afirmação de diferenças. Se a profusão de templos e grandes procissões marcavam com fausto a vida religiosa das cidades, um catolicismo patriarcal e familiar, com descrição memorável feita por Gilberto Freyre, igualmente devocional e festivo, desenvolveu-se nas grandes propriedades que dominavam o meio rural, e nas vilas em sua órbita.

Festas e procissões formavam o “catolicismo obrigatório” (Hoornaert 1978HOORNAERT, Eduardo. 1978. Formação do Catolicismo Brasileiro 1550-1800. Petrópolis: Vozes .) do período colonial e imperial, um catolicismo ostensivo corolário do vínculo oficial entre Igreja e Estado apenas dissolvido com o advento da República. Pouco a pouco, porém, elas foram se travestindo em festa do povo com as intervenções dos folguedos profanos e das irmandades e confrarias religiosas leigas, que reuniam as gentes e hierarquizavam os grupos sociais, constitundo praticamente toda a vida associativa do período. Portanto, apesar de oficiais, as festas paradoxalmente também criavam tempo e espaço para a fantasia, a sátira, o riso e, inclusive, davam vazão à violência contida no sistema vigente de poder (Priori 1994PRIORI, Mary. 1994. Festas e Utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense., 1997PRIORI, Mary. 1997. Religião e Religiosidade no Brasil Colonial. São Paulo: Ática.).

Nas cidades, nas vilas e nos bairros rurais, os estudiosos são unânimes em reconhecer o pendor autônomo e leigo da religiosidade popular, o que explicaria sua sobrevivência à crise do modelo de Igreja da Cristandade e à Romanização tardia que, em meados do século XIX, conduziu o clero ao afastamento das práticas religiosas tradicionais e reforçou a hierarquia e a ortodoxia doutrinária da Igreja Católica (Azzi 1981).21 21 Para uma perspectiva dissidente a respeito da Romanização e que reforça a importância da religiosidade popular na historiografia, ver discussão da literatura trazida por Santirocchi (2014). Com o refluxo institucional, a religiosidade popular refugiou-se no mundo rural e nas cidades menores. É ali que ela perdura enraizada, com seus “sacerdotes da viola”, seus “palhaços de folia”, seus reis e rainhas do Congo, rezadores e mestres a darem o tom e o compasso de cantorias, danças e perambulação por ruas e estradas circunvizinhas.

Não é sem razão que sob o rótulo de “cultura popular” suas distintas manifestações tenham sido tomadas, já na República, como foco privilegiado do movimento folclórico, cujo campo de estudos tornou-se objeto de políticas culturais e instrumento simbólico de construção e legitimação da identidade nacional (Vilhena 1997VILHENA, Luis R. 1997. Projeto e Missão. O movimento folclórico brasileiro 1947-1964. Rio de Janeiro: Funarte.). É conhecida a influência sociológica na teologia da libertação via teoria crítica da dependência, mas sociólogos e antropólogos também inspiraram o interesse dos teólogos pela “cultura popular” e pela “religiosidade do povo”. Um curioso ritornelo, dado que que nas décadas de 1940 e 1950 os sociólogos haviam repudiado os estudos e os temas do folclore em favor de um projeto político de integração da sociedade nacional. Já o projeto pluralista de construção da nação da antropologia produzida no período admitia proximidade com temas do folclore, da cultura e da religiosidade popular22 22 A partir dos anos 1990, o enquadre conceitual da religiosidade popular entrou definitivamente em declínio, embora ainda se encontrem trabalhos que utilizem o conceito de catolicismo popular. (Peirano 1992PEIRANO, Mariza. 1992. “A legitimidade do Folclore. In: Seminário folclore e cultura popular: as várias faces de um debate. República Federativa do Brasil: Ministério da Cultura. pp. 85-88.). Com tais referências, não surpreende que as festividades religiosas tenham atraído a atenção dos teólogos da libertação munidos de propósitos simultaneamente pedagógicos e emancipatórios.

Com uma polissemia enaltecida pelo convívio de tradições religiosas e simbólicas distintas, no Brasil, as festas historicamente deram ensejo ao disciplinamento social, mas também a exibições de conflito e violência; à ritualização das hierarquias, como à sua aniquilação momentânea; à explicitação do ordenamento social e à sua subversão através da expressão do sonho, do transe e da utopia de outra ordem. Ponto de encontro de diferenças, as festas propiciam misturas de gentes, símbolos, sensações; pletóricas, são plenas de paradoxos e campo aberto à experimentação social. Houve quem as tenha elevado a uma espécie de contrato social brasileiro fundante, modo de “mediação privilegiado”, modelo de sociabilidade, modo de ação e participação coletiva (Amaral 1998AMARAL, Rita. 1988. “As mediações culturais da festa”. Mediações, 3 (1):13-22., 2003AMARAL, Rita. 2003. “Festas católicas brasileiras e os milagres do povo”. Civitas, 3 (1):188-205.). Certo é que festas religiosas, como festas de santo padroeiro e festas juninas, não sem tensões podem metamorfosear-se em festas da política (Chaves 2003CHAVES, Christine de Alencar. 2003. Festas da Política. Uma etnografia da modernidade no sertão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará .). Outro exemplo de plasticidade e polivalência é o carnaval que, erigido a festividade emblemática do país e usualmente associado à herança afro-brasileira e a seus símbolos religiosos, foi recentemente ocupado por blocos de rua evangélicos, reconvertido em meio de doutrinação e reivindicação de um lugar na cultura popular e nacional (Oosterbann 2017OOSTERBAAN, Martijn. 2017. “Carnivals of Contestation: Fissures and fusions in the Brazilian Sacrospace”. Manuscrito.) - um notório reposicionamento dessas denominações reconhecidamente iconoclastas diante da forma cultural do carnaval, mas também em face do histórico uso da “arma da cultura” pelas religiões afro no espaço público brasileiro (Mafra 2011MAFRA, Clara. 2011. “A ‘arma da cultura’ e os ‘universalismos parciais’”. Mana, 17 (3): 607-624.; Giumbelli 2008GIUMBELLI, Emerson. 2008. “A presença do religioso no espaço público. Modalidades no Brasil”. Religião e Sociedade, 28 (2):80-101.), agora assumida por evangélicos. Esses exemplos mais ou menos aleatórios são suficientes para assinalar a fecundidade, a polivalência e a plasticidade simbólica das festas, bem como os diferentes usos a que ela se presta.

O patrimônio festivo brasileiro tem se prestado, portanto, a apropriações múltiplas e dinâmicas, na interface igualmente mutável e fugidia do que se define como religião, política e cultura. As festas efetivamente favorecem conjugações e atravessamentos de várias ordens: entre o sério e o lúdico, o sagrado e o profano, a ética e a estética, a religião, a política e a cultura. Essa polivalência parece ser constitutiva da festa como ritual, para além de tempos e lugares específicos. Instrumento comunicativo de primeira ordem, ela é ferramenta privilegiada dos detentores do poder, seja para a afirmação de uma velha como de uma nova ordem social, como evidenciam, num caso, a história brasileira, noutro, a Revolução Francesa (Ozouf 1988OZOUF, Mona. 1988. Festivals and the French Revolution. Cambridge/London: Harvard University Press.). Mas por criarem uma transcendência coletiva no aqui e agora, e mobilizarem o desejo - concretizando-o e satisfazendo-o momentaneamente -, elas também são capazes de projetar ideais. Ao tomar de empréstimo e rearranjar os materiais simbólicos que configuram o mundo social partilhado, elas favorecem e se beneficiam da imaginação, tornando-se veículo para a formulação e a expressão criativa desses ideais. É a potência de tornar plausível um mundo diverso alavancado por aspirações comuns que a mística do MST, numa transmutação, procura canalizar para propósitos definidos de ação coletiva.

A mística do MST

Na cena, o pano de fundo ganha realce pela faixa com a frase JUVENTUDE EM LUTA PELA VIDA E POR DIREITOS, as palavras destacadas em cores alternadas de vermelho e negro. No canto inferior, à esquerda, em letras vermelhas menores, lê-se: MST/RN, no lado oposto #FORA BOLSONARO. No centro da cena, uma mesa recebe a bandeira do MST. Sobre ela empilham-se raízes de mandioca ladeadas de caixas repletas de vegetais, que também se distribuem pelo chão, derramando abóboras, cocos, bananas. Uma das crianças sentadas no chão sustenta uma muda, enquanto duas jovens seguram outra faixa onde se lê, também em vermelho e preto: DESPEJO NA PANDEMIA É CRIME! # ... QUILOMBO. Na imagem, todos usam máscaras. Esta é a cena final do vídeo da 11ª. Jornada Nacional da Juventude Sem-Terra, postado, em 20/08/20, na página do Facebook do MST.

O texto da postagem explica:23 23 Em: https://www.facebook.com/MovimentoSemTerra/videos/4263843237021425/. Acesso em 25/08/20.

Com muita mística, solidariedade e coletividade, construímos nossa Jornada Nacional da Juventude Sem-Terra no Rio Grande do Norte. Beneficiamos e distruibuímos mudas de espécies nativas e frutíferas, fizemos mutirões, faixaços, atos e construímos viveiros. Deixamos o recado que nossa juventude do campo está atenta e disposta a lutar pelos nossos direitos. A luta por uma vida digna, por alimento sem veneno, por saúde, educação, agroecologia e (em oposição a) tudo que vá contra o que defendemos. Encaramos o #ForaBolsonaro, gritamos que somos contra a volta às aulas na pandemia e apoiamos nossos companheiros/as do acampamento Quilombo Campo Grande/MG, que foram vítimas de uma ação brutal.

Juventude em luta: pela vida e por direitos! [...]

A sucessão de fotogramas exibe, em diferentes localidades, as iniciativas mencionadas no texto. Na concertação de atividades que constituem as “jornadas” do MST, ações semelhantes espalharam-se pelo país. Senão uma mística, a sequência mostra algumas de suas feições, além das dramatizações que normalmente nomeia: atos simbólicos como a distribuição e o plantio de mudas; passeatas com adornos de tambores e jogral; atividades como o preparo de hortas e viveiros comunitários e a distribuição de alimentos e máscaras em situação de pandemia do Covid-19. Nessas intervenções como nas místicas, vemos ações expressivas concebidas para evocar determinados sentidos, emoções e valores, sublinhados por elementos dramáticos e cenográficos envolventes a partir de um repertório simbólico partilhado pelos sem-terra, como canções, bandeiras, enxadas, foices, alimentos. Um ou outro elemento é acrescido para sinalizar o contexto, como a referência ao despejo da comunidade quilombola mineira acampada sob a bandeira do movimento.24 24 Em aproximação inesperada para um movimento de bases marxistas ortodoxas, o MST incorporou à sua pauta temáticas identitárias e ecológicas, com a formação de coletivos e eventos específicos relativos às questões étnico-raciais, feministas e de orientação sexual.

No MST, mística é o nome dado a cerimônias mais ou menos elaboradas feitas de elementos variados como encenações, danças, cantos, poesias, jograis, coros, palavras de ordem etc., cuja finalidade é “animar a militância”. É celebração que procura fazer da luta,25 25 É impossível aqui tratar da riqueza semântica da categoria e seu uso cotidiano e frequente entre os sem-terra. Com diferentes acepções entre os trabalhadores rurais (Comerford 1999), luta tornou-se categoria central no vocabulário e no ideário do MST, referindo atividades organizativas internas e ações coletivas de confrontação pública com proprietários rurais e interpelação do Estado na demanda por direitos. festa. Compostas por diversos elementos expressivos no intuito de integrar os sentidos e através da sensibilidade tocar as diferentes faculdades dos sujeitos (sensação, emoção, razão e vontade), as místicas variam em grau de elaboração conforme o evento em que se inserem. Como cerimônias, elas apresentam características rituais, sendo dotadas de padronização e recorrência, especialmente dos símbolos e da narrativa dramática. Mas uma boa mística deve também se adequar às circunstâncias concretas de ocasião, lugar e público. As mais elaboradas condensam o tempo: evocam o passado de lutas, presentificando-o, encenam mazelas contemporâneas e seu enfrentamento na luta sem-terra, antecipam e projetam o futuro desejado como seu fruto.

Consideradas combustível indispensável à luta, as místicas precisam ser vivas e saber falar à emoção. Motivadoras, elas associam diferentes recursos artísticos intimamente integrados ao projeto político do MST, do qual auferem as orientações mestras e, ao mesmo tempo, impulsionam-no com seus recursos rituais e simbólicos. Elas contribuem simultaneamente para a formação dos militantes e a perene recriação do grupo: as celebrações da mística são produzidas em coletividade e para ela. Por seus múltiplos usos, ora é classificada como “princípio organizativo” (Stédille 1997:105), ora como “método de organização social” e forma de desenvolver o "trabalho de base” (MST 1986:103-106MST. 1986. Construindo o Caminho. São Paulo: MST .; Bogo 2002BOGO, Ademar. 2002. O Vigor da Mística. Caderno de Cultura/2. São Paulo: MST.). Essa variação classificatória fala da natureza complexa da mística: simultaneamente um princípio/valor e uma prática.

Definidas nos manuais de orientação dos militantes como atividade prescritiva, as cerimônias da mística estão efetivamente presentes em todas as atividades coletivas do MST, invariavelmente abrindo-as, de maneira eventual também as encerrando. Sua importância é atestada por ser atividade cercada de orientações que abrangem as etapas de “preparação”, “apresentação”, “condução”, “consagração” e “conclusão” (MST 1986MST. 1986. Construindo o Caminho. São Paulo: MST .), “tarefa” a cargo de equipe ou “brigada” rotativa. Místicas são indispensáveis tanto nos Congressos Nacionais do Movimento como em reuniões corriqueiras; elas inauguram cada dia das marchas, ocorrem nas comemorações festivas de acampamentos e assentamentos, permeiam manifestações públicas. Místicas são esperadas no início de cada aula - nas escolas de acampamentos e assentamentos do MST, nos cursos de formação de militantes, e mesmo naqueles realizados em parceria com universidades. Elas são usualmente planejadas e ensaiadas, mas acontecimentos fortuitos, como uma criança que adentra reunião ao se tematizar a esperança de dias melhores (Chaves 2000CHAVES, Christine de Alencar. 2000. A Marcha Nacional dos Sem-Terra. Um estudo sobre a fabricação do social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.), são considerados mística.

Contudo, para os sem-terra, a mística extravasa os limites de espaço e tempo das cerimônias que nomeia. Compreendida como o que une, move e dá vida, para eles a mística preserva algo de inefável, sendo a força invisível que anima a luta, tanto no plano do coletivo sem-terra quanto no da subjetividade militante. Vista como insondável, misteriosa e ao mesmo tempo necessária à luta, ela é tida como sementeira de esperança, arauto do sonho, alimento da utopia. Crença, convicção, paixão, otimismo, garra, animação, motivação são palavras por eles empregadas na tentativa de descrever o seu esperado efeito. Nas primeiras formulações dos teóricos do MST, ela era definida como “a força que anima os militantes” (Peloso 1994PELOSO, Roberto. 1994. A força que anima o militante. São Paulo: MST .). “Mística é o sentimento materializado em símbolos que ajudam as pessoas a manter a utopia coletiva”, teoriza Roseli Caldart (2001:222CALDART, Rosely. 2001. “O MST e a formação dos sem-terra: o movimento social como princípio educativo”. Estudos Avançados, 15 (43):207-224.), intelectual do movimento.

A mística é uma tecnologia política inextricavelmente vinculada à cosmologia do MST. É veículo de comunicação dos princípios abrangentes da luta, sendo capaz de congregar militantes de diferentes graduações, motivá-los e conferir direção e propósito político à ação coletiva. Místicas são apresentadas em situações alegres e festivas, mas ocasiões de tensão e pesar também as propiciam. Além de “força secreta” que anima as ações de luta, é um anteparo seguro para as vicissitudes de seus resultados: bons ou ruinosos, eles são celebrados com intuito motivacional. Suas características evocativas e mobilizadoras, alcançadas mediante a conjugação de recursos simbólicos imantados pela expressão coletiva de ideais, recordam qualidades do universo religioso.


Antônio Pacheco

No plano histórico, a mística do MST origina-se das CEBs e da CPT. Em livro de depoimentos sobre o acampamento da Encruzilhada Natalino/RS, organizado antes da fundação do MST, no início dos anos 1980, notam-se sementes da mística, da estrutura organizacional e de outras práticas políticas do movimento. Naquela ocasião, com supervisão e apoio de padres e agentes pastorais, o que depois seria chamado de mística alimentou a vontade de resistência inclusive à intervenção militar:

No começo, nós tínhamos uma cruz pequena, até tinha escrito “Salva Tua Alma”. Depois, quando chegou a Semana Santa [...], iríamos fazer uma procissão. Discutimos que seria importante fazer uma cruz que significasse a nossa luta, o sofrimento nosso, o que nós estávamos carregando. Nós estamos carregando uma cruz pesada, porque a nossa luta é pesada [...]. Então nós fizemos uma cruz pesada que precisa de 15 a 20 homens pra carregar. Fizemos ela e colocamos ali (Raul Vargas, membro da Comissão Central da Encruzilhada Natalino, citado em Méliga & Janson 1982:31MÉLIGA, Laerte & JANSON, Maria. 1982. Encruzilhada Natalino. Porto Alegre: Vozes.).

Mais do que a experiência individual de sofrimento, a cruz passou a denotar a unidade dos trabalhadores perante o adversário representado pelo “governo” e opositores da reforma agrária. Ela tornou-se um símbolo dinâmico e catalizador de sentidos: a ajuda recebida em alimentos transformava-se em escoras; com panos brancos nela se expressava o sofrimento pela morte de crianças acampadas. Sempre que os acampados decidiam mudar-se, carregavam a cruz em procissão rumo “à terra prometida”. Cedo descobriram os efeitos profundos desses atos que os enchiam de alegria e entusiasmo: “aquilo foi empolgando, a turma animada, a gente rezando e cantando, o povo se emocionou, se juntou [...]. Tudo isso serviu pra ir afirmando o povo na luta” (Raul Vargas citado em Méliga & Janson 1982:39MÉLIGA, Laerte & JANSON, Maria. 1982. Encruzilhada Natalino. Porto Alegre: Vozes.). O significado religioso original da mística fundia-se à experiência política. A experiência compartilhada de sofrimento e luta revestia-se do sentido de sacrifício com esperança de vitória. Ideias e emoções entreteciam-se aos símbolos e às ações coletivas. Logo a cruz seria substituída pela bandeira (1987), pelo timbre e pelo hino (1990) como símbolos do MST e sua luta.

A simbologia dos três é bastante conhecida pelos sem-terra, explicitada em suas cartilhas e livros (MST 1986; 1989; Bogo 2002BOGO, Ademar. 2002. O Vigor da Mística. Caderno de Cultura/2. São Paulo: MST., 2003BOGO, Ademar. 2003. Arquiteto de Sonhos. São Paulo: Expressão Popular.; Stédile & Frei Sérgio 1996STÉDILE, João Pedro & FREI SÉRGIO. 1996. A Luta pela Terra no Brasil. São Paulo: Scritta.) e comumente tematizada nas místicas. Por sua recorrência, a mística da bandeira chega a ser chamada de “pretinho básico”.27 27 Para exemplos, ver Chaves (2000) e Chaves (s/d). Elas são, de fato, paradigmáticas: exaltam o próprio movimento, sua organização e o sujeito coletivo continuamente nelas recriado. Mas a onipresença da bandeira nos espaços e nas atividades do movimento não é casual e sim obrigatória, definida nas normas internas (MST 1989MST. 1989. Normas Gerais do MST. São Paulo: MST .), e vem reforçar o valor conferido pelos sem-terra ao coletivo que o símbolo evoca. Dadas as condições de permantente ameaça de agressão vivida em acampamentos e ocupações, espaços formativos de ingresso no MST, sua presença denota força coletiva merecedora de confiança. Estampados em bandeiras e em suportes prosaicos como camisetas e bonés, os símbolos do Movimento são afirmações de luta e rebeldia em manifestações, marchas e audiências, assim como sinais de vitória e conquista em assentamentos, cooperativas e produtos do MST.

A mística é tecnologia política imprescindível aos objetivos de uma organização cujo principal recurso é a mobilização coletiva e a ação direta. Há, no entanto, mais: os atos da luta e das manifestações coletivas infundem-se eles mesmos de mística e são, aparentemente, sua fonte primeira. Os sem-terra costumam mencionar com emoção a força da experiência do ato de ocupar uma propriedade, por exemplo. Depois do trabalho de reunir e preparar os interessados, a “frente de massa” - setor responsável pela arregimentação - divulga, de véspera, uma data para a “festa”, como é chamada a ação de realizar uma ocupação. O local é definido pela frente de massa mediante levantamento das propriedades que, por alguma razão, não cumprem a “função social da propriedade” exigida pela Constituição brasileira como garantia do direito de propriedade de terras. O destino final é cuidadosamente mantido em sigilo, inclusive dos futuros ocupantes. Acordada a data, à noite, em silêncio e segredo o grupo reúne-se pouco a pouco, sendo então conduzido em veículo alugado ao local escolhido. É madrugada quando os pretendentes se aproximam da cerca. Alguém corta o arame farpado e todos avançam no breu, como multidão. Tensão, arrepio, medo, alegria e um indescritível sentimento de liberdade, poder e força acompanham-nos, experiência enaltecida pelo fato de ser compartilhada com outros, conhecidos e desconhecidos.

Assim os sem-terra costumam recordar as ações de ocupação, experiência que constitui uma das matrizes mais poderosas da mística sem-terra. Nessas ocasiões, eles experimentam a potência de ocupar uma terra em ato transgressor que mistura desejo e culpa, às vezes revolta e indignação, junto com medo, coragem e uma indescritível sensação de poder. O amálgama e a intensidade das sensações e emoções, ideias e julgamentos morais que conformam a experiência realçam-na tanto quanto o caráter ritualizado da ação coletiva.

Tão significativa quanto o ato de ocupar uma terra são as experiências de confronto com forças repressivas. Tais confrontos envolvendo forças policiais assumem formas ritualizadas como os atos de ocupação e, à semelhança dos conflitos estudados por Tambiah (1996TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. 1996. Leveling Crowds: Ethnonatinalist conflicts and collective violence in South Ásia. Berkeley: University of California Press.), incluem uma linguagem da violência - e da paz. Durante as ações de despejo, mulheres e crianças sem-terra ficam à dianteira demonstrando o caráter familiar da ocupação e em apelo mudo ao reconhecimento da sua disposição pacífica e posição de fragilidade, simbolicamente encarnada na infância sem-terrinha. Com consequências às vezes trágicas, degenerando em verdadeiros massacres, tais confrontos também marcam a mística sem-terra e são reiteradamente dramatizados em suas cerimônias.

Nessas interações conflitivas, os sem-terra surpreendem ao constituir, em linguagem muda, símbolos com forte apelo a partir de itens triviais. Foi um recurso empregado na resistência ao despejo do Acampamento Quilombo Campo Grande,28 28 A autorização dada pelo Tribunal de Justiça estadual foi aplicada em 18/08/20. Situado em Campo do Meio/MG, o acampamento era formado por 450 famílias. mencionado acima. Por pelo menos dois dias, a PM/MG usou bombas de gás lacrimogêneo, ateou fogo no acampamento, destruiu a escola comunitária e um barracão de habitação coletiva. Em imagem do despejo vê-se de um lado o grupo sem-terra, alguns portanto bonés e camisetas do MST, enquanto do lado oposto enfileira-se a tropa de choque da PM paramentada com botas de cano alto, capacetes e escudos. A cena exibe o grupo estático de trabalhadores usando máscaras protetoras do vírus; mostrando antecipação, uma faixa denuncia o despejo em tempos de pandemia, anuncia resistência e é adornada por pencas de banana dispostas no solo. Os PMs estão a um passo, corpos em movimento, mas sua postura e celular a postos para fotografar revelam clima relativamente distensionado. Produzida pelo MST e reproduzida em site de notícias,29 29 https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/mariana-belmont/2020/08/14/pm-de-minas-deixa-feridos-em-acampamento-do-mst-quilombo-campo-grande.htm. Acesso em 25/08/20. percebe-se a elaboração de imagens e sentidos dissonantes às narrativas oficiais de despejo “em nome da lei e da ordem. Expedientes e elaboração típicos das cerimônias de mística não se limitam a elas, sendo levados para momentos dramáticos de conflito e para outras circunstâncias comunicativas, como as jornadas acima mencionadas.

Cada vez mais, o MST tem investido na formação de seus membros, no refinamento estético das suas produções, na incorporação de novas referências do campo da arte e da comunicação, no incremento e na diversificação dos instrumentos de divulgação de seus conteúdos.30 30 O MST promove eventos como a “jornada nacional de plantio de árvores e alimentos saudáveis”, o “festival de arte e cultura da reforma agrária”, a “mostra nacional de poesia da reforma agrária”, a “mostra de cinema na terra”, além de eventos de ação literária, desenho, atos político-culturais, cineclubes, círculos de literatura, feiras, cursos de arte, festivais juninos e de cultura popular, clipes de rap etc. Tais eventos, às vezes realizados com outros parceiros sociais, ocupam os espaços de assentamentos, armazéns do campo, centros e escolas do MST, além de locais públicos das cidades. Ele também criou diferentes canais de comunicação como o Jornal Sem-Terra, da Editora e Livraria Expressão Popular, mais programas, cursos e eventos em seus canais digitais. Esse ímpeto na produção e na veiculação cultural é um desdobramento inesperado da atenção à dimensão ético/estética da ação política que a criação continuada de místicas gerou no MST e, no contexto de arrefecimento da ação direta, uma alternativa encontrada para consolidar valores e ideais entre os militantes e comunicá-los ao público externo. O cuidado com o apuro estético caminha junto com a formação, inclusive artística, dos militantes e conflui outra vez para a mística, que se espraia em novos campos de realização como, em tempos de pandemia, aqueles especialmente criados para os programas do MST em mídia digital - o que requer uma outra investigação etnográfica, mas demonstra a capacidade de renovação e adaptação constantes do movimento, neste caso, aos novos tempos de cultura digital.

Palavras finais

Embora seja possível retomar alguns rastros e traçar como percurso histórico as passagens ou as transformações significativas do termo mística, são largas as diferenças das condições sociais, campos de experiência e sentidos abarcados pela categoria ao longo do tempo. As descontinuidades são flagrantes. Há, porém, algo em comum: a busca provocada pela ausência produz errâncias e multiplica as produções do desejo. Nos místicos da igreja, a busca nostálgica da unidade perdida, quando a Palavra era pura revelação e o mundo era dela um espelho. Entre os sem-terra, a melancolia cedeu lugar à esperança, a ausência motiva a prefiguração poética do que ainda não é, mas, acredita-se, já se anuncia. O porvir desejado, também uma promessa, é representado em paisagens idílicas prosaicamente estampadas em murais, cartazes, camisetas.

Mas na mística sem-terra, a utopia não se resigna à espera. Literalmente desenhada, versejada e cantada, a expressão do desejo tem propósito: impulsionar a ação. Um passo além em relação à sua predecessora, à ética da ação presente na mística do compromisso da teologia da libertação ela somou uma inflexão agonística, a mística da luta. Um passo a mais no mundo e na política que nela insere, também, suas antinomias. A constituição de um corpo político é sua primeira tarefa, como o corpo místico foi uma questão central para sua congênere medieval. A unidade recoloca-se como problema sob nova forma, mas continua absorvente. Fabricar no coletivo um corpo político, dotá-lo de vontade, direção, movê-lo, eis as tarefas da mística sem-terra. Não é sem razão que eles nela reconhecem “a alma do movimento”.

Agonística, a mística da luta implica um campo formado por amigos, aliados e inimigos. Os seus embates concretos, com riscos não desprezíveis, são por ela revestidos de sentido épico, ético e também estético, assim como infundidos de valor afetivo pela presença viva ou moral da coletividade. As cerimônias que no MST recebem o nome de mística e suas ações coletivas públicas atualizam sinteticamente essas dimensões: reúnem os sem-terra, mobilizam as subjetividades, celebram a luta, conferem sentido de grupo, renovam a força coletiva, reafirmam valores e ideais que conforme as circunstâncias do evento podem também ser publicizados e reiterados para o meio social mais amplo.

Transformada em ferramenta política, prática organizacional com regramentos e subordinação a fins, a mística do MST converte a “massa” em corpo social e político, sujeito coletivo. Transmutada em sem-terra, a figura simbólica do “pobre” da teologia da libertação encontra uma posição diversa na multidão. Nesse corpo público e originário, o sem-terra transforma seu deslocamento social em arma simbólica e projeta outras imagens e representações do mundo, fazendo dos seus eventos coletivos mística e, com ela, uma política do sentido. Cantam, dançam, representam e expressam-na seguindo o mote poético: “Porém, bem sei que te alegra/O pão que não se regra/Quem na terra a semente rega/ O aço que se molda/O destino que se muda/Seu místico mundo mítico”.31 31 “Mítico”, de Joatan Oliveira Xavier, no livro de poemas sem-terra Versando Rebeldias (MST 2016).

A mística sem-terra pode ser vista como mais uma resposta à atual encruzilhada histórica em que a invocação de temas morais e religiosos sobrelevam na vida pública, as paixões políticas assumem ares de religião e facções partidárias ganham contornos de igreja. As condições de deterioração do espaço público e do modelo representativo, em que um Estado em ruínas perde a capacidade de representar o todo da sociedade, favorecem essa hipótese. Vimos, no entanto, que ela tem raízes mais profundas na nossa sociedade e história.

É sintomático que um dos vórtices da plataforma utópica do MST seja construída a partir de referenciais religiosos, embora seja fato conhecido que a criatividade humana tende a inovar com base em materiais antigos e emprestados. É também significativo que a força inovadora da mística sem-terra opere através da fusão de demandas de cidadania e ideais cristãos valendo-se de modos de sociabilidade, valores, símbolos e práticas com profundo enraizamento histórico. No Brasil, o discurso de uma sociedade justa e igualitária parece requerer um solo moral construído através de processo que borra as fronteiras entre política e religião, conforme o senso comum ocidental. Sem perder de vista o caráter ilusório desse senso-comum, não se deve deixar de perguntar se a busca de uma referência religiosa pode ser vista como uma indicação das dificuldades implicadas em manter ideais de solidariedade civil em termos estritamente seculares. Afinal, é igualmente no campo da moral e da religião que as forças regressivas encontram, hoje, no paroxismo de mais um ciclo democrático que termina, sustentação e legitimidade para a sua “política de saída da política”.

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Notas

  • 1
    Tema do artigo “A mística do MST e as aporias da ação coletiva”.
  • 2
    Pires e Ramos (2009PIRES, Murilo & RAMOS, Pedro. 2009. “O termo modernização conservadora no Brasil: sua origem e utilização”. REN, 40 (3):412-424.) fazem uma revisão bibliográfica da apropriação por analistas brasileiros do termo “modernização conservadora”, cunhado por Barrington Moore Jr. (1975). Originalmente proposto para explicar o desenvolvimento tardio do capitalismo na Alemanha e no Japão através de revoluções burguesas pelo alto, o termo foi aplicado à modernização do campo promovida pelo regime militar de 1964.
  • 3
    Embora não fossem historicamente inéditos, no período surgiram acampamentos em vários estados brasileiros, cuja articulação, promovida pela Comissão Pastoral da Terra-CPT, daria nascimento ao MST (Stédile & Frei Sérgio 1996STÉDILE, João Pedro & FREI SÉRGIO. 1996. A Luta pela Terra no Brasil. São Paulo: Scritta.). Rosa (2009ROSA, Marcelo. 2009. “Sem-terra. Os sentidos e transformações de uma categoria de ação coletiva no Brasil”. Lua Nova, 76:197-227.) faz uma análise circunstanciada das distinções entre os acampamentos do Master/RS, nos anos 1960, daqueles que gerariam o MST.
  • 4
    Embora a ação direta permaneça uma marca do MST, a diminuição das ações coletivas e da visibilidade pública do movimento é notória e antecede às atuais condições hostis à expressão democrática de demandas políticas, remontando ao primeiro governo de Lula da Silva. Uma análise desse fenômeno complexo não cabe nesta discussão.
  • 5
    Evidentemente, são variadas e não estáveis as motivações e o engajamento dos sujeitos concretos ou dos “militantes” e da “base”, sendo um dos objetivos da mística sua constituição e renovação constante com vistas aos objetivos específicos de cada atividade e aos propósitos maiores do MST.
  • 6
    Remeto a Asad (2003ASAD, Talal. 2003. Formations of the Secular. Christianity, Islam, Modernity. Standfor: Standford University Press.) para um desenvolvimento crítico dessa distinção moderna.
  • 7
    Tenho ciência do caráter problemático e polissêmico da expressão, característica comum às ideias fortes nas ciências sociais, como notou Fernandes (1984) em resenha crítica do termo. Tomo-o à falta de melhor, guiada por seu uso pelos teólogos da libertação e apoiada no emprego consagrado pela literatura pertinente.
  • 8
    Na Igreja Católica do Brasil, mudanças aparecem em série. A partir de 1947, sob influência de D.Hélder Câmara e inspiração no método ver-julgar-agir, a Ação Católica Brasileira (ACB) assumiu uma orientação progressista nos vários ramos de sua militância leiga. Na mesma direção deu-se a fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (1952), dos Círculos Bíblicos de leitura popular pelo “método de confrontação circular de vida e texto” e das Comunidades Eclesiais de Base, com enorme expansão nas décadas de 1970 e 1980. Fora do âmbito da Igreja Católica mas com expressiva participação de leigos da ACB, podem-se citar os movimentos pelos direitos humanos, o Movimento de Educação de Base, além de associações de moradores, sindicatos rurais e urbanos, clubes de mulheres etc. disseminados pelo país. A esse fenômeno, que inclui cultura religiosa e rede social, fé e prática, Löwy (2016) chamou Cristianismo de Libertação.
  • 9
    A Teologia da Libertação é fenômeno complexo, não exclusivo da Igreja Católica e hoje difundido em vários continentes, embora originária da América Latina.
  • 10
    Fernandes (1984FERNANDES, Rubem César. 1984. “‘Religiões Populares’. Uma visão parcial da literatura recente”. BIB, 18:3-26.) elenca uma vertente inteira de estudos de religião popular produzidos por religiosos da Teologia da Libertação.
  • 11
    Há toda uma história precedente de fecundação pela mística medieval dos múltiplos domínios em que o conhecimento se fragmentou na modernidade. Esse fenômeno reorientou a mística para o mundo da vida e para a mística da ação, como mostram Sell e Bruseke (2015SELL, Carlos & BRÜSEKE, Franz J. 2006. Mística e Sociedade. São Paulo: Paulinas .) e Vaz (1988VAZ, Henrique L. 1988. “Mística e Política”. Síntese, 42.) denuncia, o que, posteriormente, influenciaria uma renovação da teologia europeia (Susin 2013SUSIN, Luis Carlos. 2013. “Teologia da libertação: de onde viemos, para onde vamos”. Horizonte, PUC/MG, v. 11, n. 32.). À diferença de Sell e Bruseke, que sugerem uma “virada mística da TdL” apenas após o declínio do socialismo, considero que, apesar de pouco evidenciada pelos analistas, a mística nela esteve presente desde os primórdios, como os trabalhos citados a seguir procuram demonstrar.
  • 12
    “Libertação é a salvação de Jesus que se dá na história”, dirá Galilea (1977:23GALILEA, Segundo. 1977. Teologia da Libertação. Ensaio de Síntese. São Paulo: Paulinas.).
  • 13
    Donde a centralidade conferida pela teologia da libertação à narrativa bíblica da fuga do cativeiro no Egito narrada no Êxodo. A saga do povo que sofre e luta converteu-se num mitema, estrutura simbólica onipresente nas cerimônias místicas das pastorais sociais da Igreja, do MST e em outros movimentos populares.
  • 14
    É sintomático que no opúsculo Espiritualidad de la Liberacion seja Jon Sobrino o único autor a manter cautela com a palavra mística, sempre referida em negativo como mistificação. Em lugar de “mística” Sobrino prefere “espiritualidade” e “contemplação”, enquanto os demais autores tomam os três termos como equivalentes.
  • 15
    Expressão de Sobrino (1985SOBRINO, Jon. 1985. “Espiritualidad de Jesus y espiritualidade de la liberacion. Cuadernos Espirtiualidad de la Libertacion . HOAC, 9.). A mesma “paixão do que é”, do que se autoriza a si mesmo, foi encontrada na mística medieval por Certeau (2015:22CERTEAU, Michel. 2015. A Fábula Mística. Os séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Forense.) e parece ser constitutiva do pensamento místico em todas as latitudes. Na Teologia da Libertação, a “honradez em face do real” orienta uma ação no mundo transformadora das injustiças que nele se reconhecem e se compreendem como pecado.
  • 16
    Articulada principalmente pelos pesquisadores reunidos no Departamento Ecuménico de Investigaciones (DEI), na Costa Rica.
  • 17
    Segundo Löwy, o Cristianismo da Libertação conjuga, sem contradição, o imperativo do envolvimento ético/político cristão na política e a defesa da autonomia e da separação institucional entre religião e política (2016:110LÖWY, Michel. 2016. O que é Cristinanismo da Libertação. Religião e Política na América Latina. São Paulo: Expressão Popular .). No Brasil, essa postura é herdeira de uma complexa relação histórica entre Igreja Católica e Estado. A Igreja manteve voz ativa na vida pública por meio de sua mensagem religiosa e sociopolítica, embora alheia à vida partidária (Oro 2005ORO, Ari Pedro. 2005. “Religião e Política no Brasil”. Cahiers des Amériques Latines, 48/49:205-222.; Giumbelli 2008GIUMBELLI, Emerson. 2008. “A presença do religioso no espaço público. Modalidades no Brasil”. Religião e Sociedade, 28 (2):80-101.; Debald 2007DEBALD, Blasius. 2007. “A relação da Igreja Católica com o Estado brasileiro - 1889-1960”. Pleiade,1 (1):51-61.). Essa posição difere do empenho das igrejas neopentecostais em assumir o poder político-institucional, observado em anos recentes no Brasil.
  • 18
    O próprio termo é equívoco, notando-se oscilações no emprego de correlatos não equivalentes: religiosidade, religião ou religiões populares, acrescida da acepção mais restrita de catolicismo popular. Além desta dificuldade de circunscrição, dada a imensa variedade de fenômenos e tradições que os termos pretendem abarcar, a qualificação “popular” é problemática: ora refere-se a estratos inferiores da população, ora às maiorias fora do âmbito de regulação institucional, ora a todo o laicato (Fernandes 1984). Opto pelo termo mais abrangente e menos institucional, religiosidade popular, embora empregue catolicismo popular quando assim referido pelos autores ou quando o contexto histórico exigir.
  • 19
    Os críticos da visão centrada na história da Igreja, formulada pelos teólogos e estudiosos das ciências sociais por eles influenciados, acentuarão as ressalvas à suposta “superficialidade” e “exterioridade” da religiosidade popular. Para um apanhado dessa produção crítica, ver Dilmann (2012).
  • 20
    As fronteiras entre religião e política sempre foram imprecisas. As relações de aliança entre Igreja Católica e Estado português foram institucionalmente marcantes desde o início do reinado, inclusive no aspecto mítico de atribuição da sua fundação a um milagre, e reforçadas após o Concílio de Trento (Queirós 2009QUEIRÓS, Helena. 2009. “Nota Crítica à Obra A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700”. Via Spiritus. Revista de História da Espiritualidade e do Sentimento Religioso, 16:175-186.). Na lógica da Cristandade, a expansão ultramarina e a empresa colonial portuguesa também se revestiram de sacralidade, transformadas em guerra santa de conquista e conversão. Esse ideário santificava e legitimava a “guerra de missão” contra os indígenas e a escravidão dos africanos como “redenção” (Azzi 2005; Hoonaert 1974HOORNAERT, Eduardo. 1978. Formação do Catolicismo Brasileiro 1550-1800. Petrópolis: Vozes .), e durante quatro séculos marcou as relações constitutivas, embora tensas, entre Igreja e Estado, religião e política no Brasil.
  • 21
    Para uma perspectiva dissidente a respeito da Romanização e que reforça a importância da religiosidade popular na historiografia, ver discussão da literatura trazida por Santirocchi (2014SANTIROCCHI, Ítalo. 2014. “Historiografia sobre a Igreja Católica no Brasil Imperial”. XVI Congresso Regional de História da Anpuh. Anais. Rio de Janeiro: Santa Úrsula.).
  • 22
    A partir dos anos 1990, o enquadre conceitual da religiosidade popular entrou definitivamente em declínio, embora ainda se encontrem trabalhos que utilizem o conceito de catolicismo popular.
  • 23
    Em: https://www.facebook.com/MovimentoSemTerra/videos/4263843237021425/. Acesso em 25/08/20.
  • 24
    Em aproximação inesperada para um movimento de bases marxistas ortodoxas, o MST incorporou à sua pauta temáticas identitárias e ecológicas, com a formação de coletivos e eventos específicos relativos às questões étnico-raciais, feministas e de orientação sexual.
  • 25
    É impossível aqui tratar da riqueza semântica da categoria e seu uso cotidiano e frequente entre os sem-terra. Com diferentes acepções entre os trabalhadores rurais (Comerford 1999COMERFORD, John. 1999. Fazendo a Luta. Sociabilidade, falas e rituais na construção de organizações camponesas. Rio: Relume-Dumará.), luta tornou-se categoria central no vocabulário e no ideário do MST, referindo atividades organizativas internas e ações coletivas de confrontação pública com proprietários rurais e interpelação do Estado na demanda por direitos.
  • 26
    V Romaria da Terra, Encruzilhada Natalino, 1982.
  • 27
    Para exemplos, ver Chaves (2000CHAVES, Christine de Alencar. 2000. A Marcha Nacional dos Sem-Terra. Um estudo sobre a fabricação do social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.) e Chaves (s/dCHAVES, Christine de Alencar. s/d. “A mística do MST e as aporias da ação coletiva”.).
  • 28
    A autorização dada pelo Tribunal de Justiça estadual foi aplicada em 18/08/20. Situado em Campo do Meio/MG, o acampamento era formado por 450 famílias.
  • 29
    https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/mariana-belmont/2020/08/14/pm-de-minas-deixa-feridos-em-acampamento-do-mst-quilombo-campo-grande.htm. Acesso em 25/08/20.
  • 30
    O MST promove eventos como a “jornada nacional de plantio de árvores e alimentos saudáveis”, o “festival de arte e cultura da reforma agrária”, a “mostra nacional de poesia da reforma agrária”, a “mostra de cinema na terra”, além de eventos de ação literária, desenho, atos político-culturais, cineclubes, círculos de literatura, feiras, cursos de arte, festivais juninos e de cultura popular, clipes de rap etc. Tais eventos, às vezes realizados com outros parceiros sociais, ocupam os espaços de assentamentos, armazéns do campo, centros e escolas do MST, além de locais públicos das cidades. Ele também criou diferentes canais de comunicação como o Jornal Sem-Terra, da Editora e Livraria Expressão Popular, mais programas, cursos e eventos em seus canais digitais.
  • 31
    “Mítico”, de Joatan Oliveira Xavier, no livro de poemas sem-terra Versando Rebeldias (MST 2016MST. 2016. Versejando Rebeldias. São Paulo: MST .).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2020
  • Aceito
    05 Maio 2021
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