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BLANES, Ruy & ESPÍRITO SANTO, Diana (eds). 2014. The social life of spirits. Chicago and London: The University of Chicago Press. 305pp.

BLANES, Ruy; ESPÍRITO SANTO, Diana. 2014. The social life of spirits. Chicago: London: The University of Chicago Press, 305pp

Com o desenrolar da modernidade, um regime de evidência logrou impor-se como única possibilidade de acesso à realidade do mundo. Os métodos científicos, com suas dinâmicas de observação e inferência, prova, verificação e contestação, instituiu-se como procedimento mais adequado à descrição da natureza e à descoberta de suas verdades, destinado a suplantar as antigas formulações religiosas, agora reduzidas ao domínio da crença. Em The social life of spirits, Ruy Blanes e Diana Espírito Santo convidam autores e leitores a explorar a realidade de entidades espirituais, investigando os múltiplos regimes de evidência e produção de mundos que se tornaram proscritos com a consolidação das ciências modernas.

A aposta é simultaneamente clássica e inovadora, como afirmam os próprios editores. Trata-se da retomada de antigas intuições dos estudos sobre fenômenos religiosos, articuladas às mais recentes formulações dos estudos de ciência e tecnologia. Se na modernidade o religioso foi relegado ao domínio da crença ou do sobrenatural, The social life of spirits apresenta uma abordagem que aproxima esses fenômenos de outros identificados pelas ciências como plenamente verdadeiros e naturais. Neste livro, santos, espíritos, encantados e outras entidades que povoam universos descritos como religiosos são tão (in)tangíveis quanto quarks, buracos negros, o mercado ou o inconsciente. Uns e outros, fenômenos religiosos, físicos, econômicos ou psicológicos só ganham concretude e podem ser inferidos por meio de seus efeitos. No campo dos estudos da religião, a referência aqui são os seminais trabalhos de Willian James e o pragmatismo contido em suas propostas. Como apresentam os organizadores do volume, trata-se de uma orientação geral pragmatista, associada ao reconhecimento de que os mundos habitados e suas entidades componentes são múltiplos, a despeito do que o naturalismo cientificista possa sugerir. Amplamente, o que se vê é o esboço de uma antropologia dos intangíveis, em que o abismo entre o fato e o feito, natural e sobrenatural, religião e ciência ganha novas pontes e possibilidades de transposição.

Conforme argumentam os autores, o interesse por intangíveis não é recente, tampouco restrito aos estudos de religião. De fato, ainda no século XIX, antes mesmo de as ciências sociais terem meios de abordar objetos tão esquivos, as emergentes ciências já produziam evidências da ação de intangíveis como o ether, o magnetismo e a eletricidade. Em seus primórdios, a propria distinção categórica entre o natural e o sobrenatural não estava tão bem consolidada, tendo existido a esperança de que avanços científicos viessem a finalmente comprovar suposições e sensibilidades religiosas.

Construída sobre o que os editores apresentam como um regime vitoriano de evidência, a ciência foi pensada como possibilidade de extensão dos limites sensoriais humanos e de suas capacidades de apreensão do mundo. No entanto, tecnologias como a fotografia e o rádio foram rapidamente mobilizadas visando à comprovação da realidade de entidades inacessíveis aos sentidos humanos e, por fim, o desenvolvimento das disciplinas acadêmicas terminou por produzir seus próprios intangíveis e mecanismos de mapeamento de suas influências sobre o mundo. O religioso e o científico, neste sentido, são aproximados por suas potencialidades enquanto produtores de evidências e de mecanismos de reconhecimento de agências de entidades intangíveis.

The social life of spirits é um livro singular e atualíssimo em sua proposta de investigação, avançando sobre o que talvez seja o que há de mais esquivo naquilo que se identifica como religioso. Ainda, as ferramentas conceituais mobilizadas contribuem, simultaneamente, para desfazer as barreiras que isolaram o religioso enquanto um domínio circunscrito e sui generis da realidade, cuja principal característica seria justamente sua distância do real cientificamente validado. Para além desta ampla agenda de pesquisa proposta pelos organizadores como introdução ao volume, o livro é composto por outros dez artigos que desdobram contextos, problemas e horizontes de investigação construídos em torno dos modos pelos quais entidades intangíveis ganham concretude e incidem na vida social.

Após a introdução, os três primeiros artigos abordam diretamente as presenças de intangíveis e os modos pelos quais elas se anunciam e são apreendidas. Kirsh, pensando a partir do caso de uma comunidade pentecostal carismática do Zâmbia, propõe a investigação de ontologias do Espírito Santo, atento particularmente aos modos como se dá o movimento e a identificação desta entidade. Tendo como premissa o reconhecimento da variação cultural dos entendimentos sobre movimento, o autor sumariza três tipos de mobilidade do Espírito Santo, buscando ao final desdobrar consequências destas formas sobre lugares e pessoas.

Delaplace, a partir da experiência dos Dorvod da Mongólia, busca acompanhar como se dá o reconhecimento do contato, sempre suspeito, com um fantasma. Para eles, nunca se sabe o que é um fantasma até que se encontre um, de modo que é impossível afirmar de antemão como é e o que é um fantasma. A questão posta pelo autor mira os regimes de reconhecimento do invisível e de suas ações, e atenta para como a identificação do encontro com um fantasma é sobretudo uma questão em torno das próprias sensações e percepções envolvidas nesses eventos.

Florencia Tola, trabalhando com os Toba do Chaco argentino, procura as noções de pessoa implicadas em cosmologias povoadas por espíritos e entidades invisíveis. Como afirma, entre os Toba não há uma oposição binária entre humano e não humano, mas uma miríade de subcategorias e multiplicidades. Existem tanto humanos incorpóreos quanto não humanos corporalizados, o que abre questões sobre as concepções de corpo e de humanidade.

Quatro textos do livro constroem-se em torno de noções de narrativa e narrativização. Vânia Cardoso pensa as narrativas tecidas sobre o povo da rua na Umbanda, e sobre como são tramadas as suas relações com espaços na cidade, significados e pessoas. Narrativas são aqui tomadas em sua plena potência produtiva, o que tem como efeito aproximar narrativas etnográficas e religiosas em seu poder de conformar as existências do povo da rua.

Kristina Wirtz aborda como, entre praticantes da santeria e do espiritismo cubano, são tecidos entrelaçamentos entre suas trajetórias pessoais e as trajetórias de entidadades espirituais com as quais constroem relações. Segundo argumenta, se entidades só manifestam sua agência através de materializações específicas, suas formas enquanto discurso servem de base para pensar outros modos pelos quais se materializam.

Em seguida, Ana Stela Cunha toma cantos, conversas e sonhos como o meio pelo qual entidades espirituais se relacionam entre si e com as pessoas que cultuam o Pajé do Maranhão. Trata-se de pensar as diversas conexões que são estabelecidas entre os de cá e os de lá, e entre as distintas linhas de encantados entre si, explorando os aspectos cosmológicos envolvidos em tais trocas e interações. Enquanto os pajés se associam aos encantados através de sonhos, estes se relacionam com o público através de cantos. Amplamente, o que se tem no horizonte é a centralidade da sociabilidade dos encantados na conformação de pontes entre domínios e universos concebidos como distintos.

O quarto texto construído em torno de narrativas é de autoria de Emerson Giumbelli e acompanha a biografia do Caboclo das Sete Encruzilhadas, figura histórica do panteão umbandista afro-brasileiro. Parte do esforço contido neste texto consiste em traçar a biografia espiritual desta entidade, tendo por referência as narrativas que se remetem às suas existências materiais e aos distintos tempos e espaços que modulam sua identidade. Trata-se do esforço de caracterização de uma economia espiritual da Umbanda, atento para suas dimensões ontológicas e para os modos como essas dinâmicas dialogam com e informam sobre os contextos sociais mais amplos em que se inserem. Como propõe o autor, mais do que pensar esta religião como um reflexo de certos imaginários de constituição da nação, o que se busca é a nação que é construída pela Umbanda através das narrativas biográficas dos componentes do seu panteão.

Mark Harris, tecendo considerações a partir de comunidades ribeirinhas no Pará, aborda a atribuição de significados a elementos visíveis e invisíveis articulados em torno de uma rede em cujo centro se encontra um rio. Este, ao longo do tempo, vai adquirindo o status de entidade particular, capaz de atuar na mediação de domínios humanos e não humanos. Em seu texto, apresenta três categorias de entidades presentes no universo ribeirinho: múmias e pedras indígenas; o muiraquitã e potes cerâmicos; por fim, o próprio rio e dois de seus elementos, que ao longo do tempo vão ganhando valores e significados. Como conclui, para os ribeirinhos com os quais estuda, não há um corte ontológico entre o visível e o invisível, existindo antes um complexo de entidades mutuamente implicadas. Ao final, o próprio rio emerge como entidade de fronteira, conectando e promovendo articulações ao seu redor.

O penúltimo texto do livro é de autoria de Susan Greenwood, e aborda subjetividades e noções de pessoa que existem em certos encontros com entidades intangíveis. Tomando como ponto de partida seu estudo sobre "religiões naturais" na Inglaterra e sua própria experiência de contato com uma entidade identificada como o dragão, a autora tematiza os impactos e os efeitos do encontro com o dragão sobre sua própria sensibilidade e produção acadêmica. Como artifício, lança mão do conceito de consciência mágica para dar conta de seu encontro e compreender aspectos de seu engajamento com o dragão.

Por fim, como texto de encerramento do livro, Stephan Palmie desdobra suas considerações tendo como ponto de referência a desaprovação demonstrada pelo espírito de um morto acerca do toque de tambor realizado em uma sessão de culto afro-cubano. Conforme narra, o que se passa parece ser um desacordo em relação ao procedimento apropriado ao culto, decorrente particularmente de um descompasso histórico entre o evento contemporâneo e as referências históricas de Ño Carlos, falecido acerca de cem anos. O que está em jogo, porém, não é a adequação da reprovação, mas os regimes temporais envolvidos na constituição de eventos presentes. Trata-se de explorar os modos como as biografias post-mortem de entidades desafiam noções materialistas de história linear, e como se pode pensar em uma antropologia do conhecimento que abarque distintos regimes de historicidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2015
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