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A Nação Tutelada: Uma interpretação a partir da fronteira

The Nation Under Tutelage. From the point of view of the frontier

La Nación tutelada. Una interpretación a partir de la frontera

Resumo

Este artigo procede a uma breve e esquemática etnografia das políticas e ações indigenistas realizadas por governos militares (1964-1985), apresentando algumas hipóteses sobre modos de governabilidade e democracia. Tomando como objeto primário de atenção os povos indígenas e a construção de fronteiras interiores, busco explicitar alguns fatores que podem ajudar a compreender a dinâmica destes distintos governos e situações históricas, evidenciando conexões entre fatos sociais habitualmente vistos como não relacionados. As formas políticas, fruto de performances em diferentes escalas, existem no interior de um continuado processo de adaptação e transformação. A sua unidade não é definida a priori por doutrinas ou modelos, mas se revela pelos impactos sobre a produção de riquezas e na gestão das desigualdades. É necessário para isso repensar a noção de fronteira, depurando-a dos pressupostos que a sustentam. Os indígenas constituem uma parte crucial da fronteira interna da nação, um fator essencial para a compreensão de seu dinamismo. Sem uma cuidadosa atenção aos aspectos étnicos e raciais na formação do Brasil, as interpretações sociais e históricas estão fadadas ao fracasso.

Palavras-chave:
Do ponto de vista da fronteira; governos militares; políticas indigenistas; Amazônia

Abstract

This article provides a brief and schematic ethnography of policies and actions towards Indigenous people carried out by the military governments of Brazil (1964-1985), presenting hypotheses about modes of governance and democracy. Taking Indigenous peoples and the construction of internal borders as a primary object of attention, I seek to explain some factors that may help to understand the dynamics of these different governments and historical situations, highlighting connections between social facts that are usually seen as unrelated. Political forms, which result from performances at different scales, exists in the interior of a continuous process of adaptation and transformation. Their unity is not defined a priori by doctrines or models, but is revealed through their impacts on the production of wealth and the management of inequalities. For this, it is necessary to rethink the notion of ‘frontier’, revoking the colonialist assumptions that sustain it. Indigenous people are a crucial part of the nation 's internal frontier, an essential factor in understanding its dynamism. Without careful attention to ethnic and racial aspects of the formation of Brazil, social and historical interpretations are bound to fail.

Key words:
From the point of view of the border; military governments; indigenous policies; Brazilian Amazonia

Resumen

Este artículo presenta una breve y esquemática etnografía de las políticas y acciones indígenas llevadas a cabo por gobiernos militares (1964-1985), indicando algunas hipótesis sobre modos de gobernabilidad y democracia. Tomando a los pueblos indígenas y a la construcción de fronteras interiores como principal objeto de atención, busco explicitar algunos factores que pueden ayudar a comprender la dinámica de estos diferentes gobiernos y situaciones históricas, evidenciando conexiones entre acontecimientos sociales que en general son pensados como no relacionados. Las formas políticas, resultado de acciones ocurridas en diferentes escalas, existen en el interior de un continuo proceso de adaptación y transformación. Su unidad no se define a priori por doctrinas o modelos, sino que se manifiesta en los impactos que generan en la producción de riqueza y en la gestión de las desigualdades. Para ello, es necesario repensar la noción de frontera, depurándola de los supuestos colonialistas que la sustentan. Los pueblos indígenas pueden ser pensados como agentes cruciales en la delimitación de la frontera interna de la nación l esenciales para comprender su dinamismo. Sin una consideración cuidadosa de los aspectos étnicos y raciales en la formación de Brasil, las interpretaciones sociales e históricas están condenadas al fracaso.

Palabras clave:
Desde el punto de vista de la frontera; gobiernos militares; políticas indigenistas; Amazonía

Introdução

Em geral as interpretações do Brasil buscam explicar as transformações do país a partir de fatos e teorias derivadas de uma larga faixa atlântica, ocorridos nas regiões Leste e Sudeste, dando pouca importância ao que sucede na região Amazônica e nos sertões. Os indígenas em especial, pensados através de regimes narrativos e imagéticos engendrados durante o período colonial e consolidados nos séculos XIX e XX no processo de formação nacional, são representados como irrelevantes para a configuração das estruturas políticas e econômicas da nação. Observados exclusivamente sob o signo da diferença, nunca desvelam as estratégias de resistência, adaptação e ressignificação que estabeleceram em face dos colonizadores. Paralelamente, os seus impactos sobre as formas de vida e as instituições dos colonizadores permanecem desconhecidos ou minimizados.

No texto a seguir, inspirando-me em uma abordagem anterior (Pacheco de Oliveira 2016PACHECO DE OLIVEIRA, J. 2016. O nascimento do Brasil e outros ensaios. ‘Pacificação’, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa .), estarei tratando de fatos ocorridos há algumas décadas atrás. Para evitar a transposição de informações e análises de maneira fragmentária e distorcida, optei por fazer um relato etnográfico, apresentando aos leitores tudo o que julgo necessário para uma compreensão de meu objeto. Embora se trate do mesmo país, duas ou três gerações se passaram, enquanto paralelamente os meios de comunicação se encarregaram de construir interpretações deformadas ou romantizadas desse período, apresentando-o como uma página virada da história. Ao contrário argumenta um estudioso do tempo presente: “Como compreender que permaneçam com tanta força lideranças e mecanismos de poder preservados e/ou construídos no período da ditadura, pela e para a ditadura?” (Aarão Reis 2005AARÃO REIS, Daniel. 2005. Ditadura militar, esquerda e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar.). O que me moveu neste exercício analítico foi justamente a sensação de urgência quanto a uma melhor compreensão daqueles fatos para o entendimento de processos em curso na atualidade.

A ditadura civil-militar (1964-1985)

Em 31 de março de 1964 um golpe militar depôs o presidente João Goulart e colocou no comando da nação uma junta militar (Ferreira & Castro Gomes 2014FERREIRA, J. & CASTRO GOMES, A. 2014. O golpe que derrubou um presidente e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). Três anos antes, Jango, como era popularmente chamado, fora eleito com expressiva votação como vice-presidente, em uma eleição em que os dois cargos eram disputados separadamente. Uma paradoxal renúncia do presidente eleito, Jânio Quadros, cuja base parlamentar era frágil e instável, ocorreu quando o vice-presidente estava em uma missão oficial na China. Setores militares se opuseram à posse de Jango, muito próximo do movimento sindical e supostamente de ideias socialistas. A solução política engendrada pelo Congresso foi mudar a forma de governo, instituindo o parlamentarismo, deixando assim o novo presidente com poderes limitados, submetido a um primeiro-ministro e a um gabinete de composição parlamentar.

No ano seguinte, após uma pressão popular sobre o Congresso, foi aprovado um plebiscito sobre a forma de governo. Por ampla maioria o presidencialismo foi restabelecido, sendo outorgado assim a João Goulart os poderes dos anteriores presidentes da República. O grupo mais próximo de Jango, sentindo-se fortalecido pela expressiva votação obtida, investiu na criação de um movimento pelas chamadas “reformas de base”, com destaque para a reforma agrária e a regulamentação dos investimentos das empresas estrangeiras. Tal movimento era capitaneado por uma frente parlamentar nacionalista, que contava com apoio de centrais sindicais, estudantis e de entidades da sociedade civil.

O golpe militar, autodenominado de “revolução”, assumindo uma faceta pública de movimento restaurador da moralidade e da democracia, era de fato uma contrarrevolução preventiva (Silva 2014SILVA, Hélio. 2014. 1964: Golpe ou contragolpe? Porto Alegre: L&PM.). A ruptura da ordem constitucional tinha como motivação blindar os interesses de grupos que seriam prejudicados com as “reformas de base”, como era o caso dos grandes proprietários de terra e dos investidores estrangeiros.

A burguesia industrial tinha sólidas conexões com o setor agrário e com o capital externo. Os grandes proprietários de terras mantinham relações familiares e redes de influências que se estendiam profusamente pelo Congresso, imprensa, Judiciário, clero e Forças Armadas. O objetivo de expansão do mercado consumidor interno, identificado por Celso Furtado (1964FURTADO, Celso. 1964. Dialética do desenvolvimento. São Paulo: Fundo de Cultura.) como o sustentáculo de um crescimento econômico endógeno, a via para o desenvolvimento de um capitalismo nacional, não foi o escolhido pela burguesia industrial. A sua opção foi a associação crescente aos capitais externos (de que a indústria automobilística, os eletrodomésticos e os alimentos industrializados foram os primeiros exemplos).

Apostando na expansão do mercado interno voltado para o consumo de setores médios e numa possível abertura de mercados externos, esta foi a “revolução burguesa” no Brasil (Fernandes 1975FERNANDES, Florestan. 1975. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar .), que permitiu a acumulação do capital em estratos reduzidos e a continuidade de uma modalidade de governabilidade que aprofundou a condição de dependência em face da economia mundial. Jamais foi colocado como objetivo o enfrentamento das causas das desigualdades sociais, regionais ou na escala mundial.

A tomada de poder pelos militares foi consumada sem uma sangrenta guerra civil1 1 Embora esta interpretação seja bastante difundida no senso comum, os estudiosos a contestam apoiados em fatos. Antes do golpe existiram importantes mobilizações de marinheiros e da baixa oficialidade do exército, assim como ocorreram depois protestos e revoltas nos quartéis (Chirio 2012). Violentas incursões contra sindicatos e grêmios estudantis resultaram em centenas de vítimas. Em Pernambuco, um dirigente sindical estimou em quase dois mil o número de trabalhadores rurais mortos ou desaparecidos. No Rio delegacias, quartéis e até navios de guerra não foram suficientes para prender opositores políticos. O estádio de futebol Caio Martins, em Niterói, foi utilizado durante alguns meses como presídio e campo de concentração, sendo estimado que ali passaram quase duas mil pessoas (Tendler, 2014). e logo respaldada por mobilizações de massa de teor anticomunista organizadas pelo clero conservador, com extenso apoio econômico americano e amplificadas pela grande imprensa. Com a intervenção nos sindicatos, a cassação de parlamentares e de centenas de funcionários públicos (entre estes alguns militares, juízes e professores) e a censura sobre os meios de comunicação, a esquerda ficou inteiramente desestruturada e sem canal de expressão na vida política brasileira. Qualquer manifestação pública nessa direção era susceptível de enquadramento criminal como um atentado à segurança nacional.

Em 1968, após protestos estudantis (dessa vez repercutidos pelos jornais) e de parlamentares, foi produzido um novo endurecimento do regime. O Ato Institucional nº 5, baseado na justificativa de combater uma “guerra revolucionária” em curso no país, impôs a adoção de procedimentos policiais e administrativos ainda mais restritivos das liberdades civis. Os setores mais radicais da esquerda foram fisicamente exterminados ou passaram ao exílio (SEDH/PR 2007SEDH/PR - Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. 2007. “Direito à Verdade e à Memória”. Publicação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: SEDH/PR.).

Apesar dessa escalada repressiva, os governos militares conviveram paradoxalmente com expressões democráticas desde que controladas e circunscritas. O Congresso podia legislar sobre múltiplos assuntos, exceto aqueles que trouxessem encargos financeiros ao Estado ou afetassem a “segurança nacional”. A presidência da República era escolhida por via indireta e o Congresso aceitava e legitimava as indicações dos comandos militares. Por sua vez, o Judiciário continuou a arbitrar sobre as demandas civis e comerciais, enquanto, em paralelo, os crimes considerados como de “segurança nacional”, incluindo todos os processos de natureza política, eram objeto unicamente dos tribunais militares. Mesmo governadores de oposição, eventualmente eleitos, eram dependentes de organismos e políticas federais, incapazes de manutenção da ordem pública sem o concurso de polícias militares.

Na primeira parte dos anos 70 a face repressora do governo continuou a ser a mais saliente. Ao final dessa década, porém, começou a delinear-se uma ainda tímida democracia tutelada.2 2 A extensa e valiosa documentação reunida por Araújo, Soares e Castro (1994), assim como por Gaspari (2014), aponta a multiplicidade de estilos de governo e formas institucionais assumidas pela ditadura num exercício camaleônico de adaptação às transformações internas e exteriores. Nas descrições que se seguem, eu optei por pensar as diferenças em termos de impactos nas formas de construção de fronteiras e no exercício de políticas repressivas x a criação de estruturas tutelares. Coexistindo com administrações do partido democrático nos Estados Unidos, que enfatizavam a importância dos direitos humanos, coube ao general Golbery do Couto e Silva, figura central do quinto e último governo militar, formular a ideia de uma “transição lenta, gradual e segura” (Napolitano 2014). Uma peça fundamental para isso foi a Lei da Anistia (1979), que perdoava os crimes de natureza política realizados em anos anteriores, aplicada tanto aos civis (as vítimas) quanto aos militares acusados de morte e tortura. No mesmo ano, em eleição indireta realizada no Congresso Nacional, o general João Batista Figueiredo foi eleito para a presidência por ampla maioria e seu mandato foi ampliado de cinco para seis anos. Isto evidencia a continuidade, ao longo de 15 anos, do apoio das lideranças e dos representantes da sociedade civil aos governos militares.

Em 1983/4 um projeto de emenda constitucional apresentado no Congresso Nacional desencadeou um amplo movimento popular pelas Diretas Já, que literalmente parou as grandes cidades brasileiras. Apesar dessa ampla mobilização, a votação não atingiu dois terços da Câmara federal e a emenda foi derrubada pela base parlamentar governista. O último governo militar preparou terreno para a eleição indireta de um presidente civil (1985) por meio de um colégio eleitoral composto pelo Congresso Nacional.

Em suma, através de uma intervenção militar que deixou de ser eventual para ser instituinte de uma modalidade de governança (Foucault, 2005FOUCAULT, Michel. 2005. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes. 4ª. ed.) que se apresentava como democrática, os interesses empresariais tiveram asseguradas pelo menos três décadas de bonança, apesar de alguns questionamentos setoriais e minoritários. A bandeira política das “reformas de base” foi definitivamente sepultada da vida institucional e política brasileira, não só durante o longo período militar (1964 a 1985), mas também na Constituição de 1988 (que não tocou na redistribuição de terras e na regulação dos investimentos estrangeiros), bem como na agenda administrativa dos 12 anos de mandato presidencial da esquerda. A reforma agrária e a regulamentação dos investimentos estrangeiros foram cláusulas pétreas que fizeram parte da governança na democracia brasileira durante mais de cinco décadas.

Os governos militares e a questão indígena

Seria inteiramente equivocado pretender fundar o indigenismo brasileiro apenas nas ações estatais e na participação de militares aí dentro. Os estudos existentes (Stauffer 1959/1961STAUFFER, David Hall. 1959-1961. “Origem e Origem e fundação do Serviço de Proteção aos Índios”. Revista de História, São Paulo, n. 37 (1959); n. 42, n. 43, n. 44 (1960); n. 46 (1961).; Souza Lima 1985SOUZA LIMA, Antonio Carlos. 1985. Aos fetichistas, ordem e progresso. Um estudo sobre o campo indigenista no estado de sua formação. Dissertação de Mestrado, PPGAS/MN/UFRJ.) deixam clara a importância de cientistas, párocos, artistas, educadores, jornalistas etc. - de pessoas da sociedade civil - nos debates públicos sobre os indígenas, configurando múltiplas formas de representação e de intervenção. Hoje também poderíamos dizer que sem o estudo da expansão das fronteiras da economia nacional e sem uma investigação sobre os conflitos daí resultantes, inclusive com a recuperação das estratégias e do protagonismo indígena no âmbito étnico e local, seria impossível imaginar a política indigenista como um fenômeno social.

No entanto o Estado brasileiro, ao criar em 1910 o Serviço de Proteção aos Índios, sedimentou uma forma de agir e pensar sobre os indígenas assentada na filantropia e no humanitarismo de agentes estatais (entre estes, com destaque, os militares). O ícone foi a atuação de Candido Mariano da Silva Rondon, um engenheiro militar que chefiou desde o início a agência indigenista, a qual se autorrepresentava como voltada para a assistência e a tutela protetora dos indígenas. Rondon foi transformado no fundador inconteste do indigenismo brasileiro.

As idealizações quanto ao SPI foram sacudidas quando, a pedido do ministro do Interior, general Albuquerque Lima, foi conduzida em 1966/67 uma ampla investigação presidida pelo procurador Jader de Figueiredo Correia, que percorreu mais de 16 mil quilômetros, entrevistou dezenas de agentes do SPI e visitou ou reuniu informações sobre 130 postos indígenas. As suas conclusões estão reunidas em mais de 7 mil páginas.

O órgão era descrito como absolutamente ineficaz, desprovido de quadros qualificados e atuando sem nenhuma sintonia com as orientações rondonianas. Pior, dezenas de seus funcionários eram denunciados por corrupção e venda de terras públicas, por práticas de trabalho forçado, mortes, violências e torturas perpetradas contra os próprios indígenas. A repercussão negativa dessas constatações levou o segundo governo militar em 1967 a decretar a extinção do SPI e a criar em seu lugar uma nova agência indigenista, a Funai/Fundação Nacional do Índio.

Apesar de um elevado número de aposentadorias e demissões dos notoriamente culpados, o relatório Figueiredo não trouxe consequências institucionais mais concretas. A nova agência indigenista herdou basicamente os mesmos padrões de atuação, os quadros e os problemas de sua predecessora. De forma bastante suspeita, o relatório Figueiredo foi dado como desaparecido durante um incêndio que destruiu grande parte dos papéis do antigo SPI. Este documento, fundamental para a compreensão do funcionamento do regime tutelar, só veio a ser encontrado quase cinquenta anos depois, no meio de velhas correspondências no Museu do Índio, durante as pesquisas realizadas pela Comissão Nacional da Verdade3 3 A Comissão Nacional da Verdade, instituída pelo governo Dilma Roussef para apurar as denúncias de violações de direitos humanos durante o período militar (1964-1985), teve sua atuação nos anos de 2013 e 2014, quando divulgou o seu relatório final. Não tinha, porém, um caráter legal nem funções punitivas (à diferença do que ocorreu em países como Peru e Argentina), limitando-se a compilar documentos. (Zelic 2014ZELIC, Marcelo. 2014. “Povos Indígenas: ainda uma vez o esbulho”. Disponível em: Disponível em: http://armazemmemoria.com. br/povos-indigenas-ainda-uma-vez-o-esbulho-por-marcelo-zelic-ggn/ . Acesso em 10/12/2020.
http://armazemmemoria.com. br/povos-indi...
). Tal documentação inspirou trabalhos de jornalismo investigativo que buscavam revelar a face oculta do indigenismo durante os governos militares (Valente 2017VALENTE, Rubens. 2017. Os fuzis e as flechas. A história de sangue e resistência indígenas na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras.).

Mesmo antes do reaparecimento do relatório Figueiredo (2013), alguns trabalhos de pesquisa, norteados por uma visão crítica do indigenismo (Pacheco de Oliveira 1988PACHECO DE OLIVEIRA, J. 1988. “O nosso governo”: os Ticunas e o regime tutelar. São Paulo/Brasília: Marco Zero/CNPq.; Souza Lima 1994SOUZA LIMA, Antonio Carlos. 1994. Um grande cerco de paz. Petrópolis/São Paulo: Vozes/ANPOCS.), já haviam apontado o caráter espoliativo e repressor do regime tutelar.4 4 Categoria analítica formulada por Pacheco de Oliveira (1988), duas décadas antes do reaparecimento do relatório Figueiredo, para abordar o indigenismo como um modo de dominação, que abrange tanto ações protetoras quanto clientelísticas e repressoras, em contraste com as autorrepresentações filantrópicas e humanitárias que produz, podendo servir a interesses diversos e até mesmo opostos aos dos indígenas. Um exemplo acintoso disto foi a criação do Reformatório Krenak, estabelecido a partir de uma colaboração entre o SPI e a Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), iniciada em 1966. Localizado no município de Resplendor (MG), a cerca de 400 km da capital do estado, ele se destinava a abrigar em regime carcerário relativamente aberto índios infratores de vários povos e regiões do país.

Inaugurado oficialmente em 1969, já na vigência da Funai, ele funcionava como um verdadeiro campo de concentração, para o qual eram enviados sem julgamento ou inquérito administrativo índios que, por arbitrariedade, eram considerados por funcionários da agência como “desordeiros” ou “desafetos”. Ali eram impostos trabalhos forçados, prática de torturas, cárcere privado e desaparecimento (Corrêa 2000CORRÊA, José Gabriel Silveira. 2000. A ordem a se preservar: a gestão dos índios e o Reformatório Agrícola Indígena Krenak. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, PPGAS/MN/UFRJ.). O presídio funcionou até o ano de 1972, quando foi desativado em função do interesse de algumas empresas pelos terrenos circunvizinhos.

Outra iniciativa de militarização extrema dos procedimentos de administração tutelar da Funai ocorreu em Minas Gerais, mas com impactos muito mais difundidos nas aldeias indígenas de todo o Brasil. Foi a formação da Guarda Rural Indígena/GRIN, milícia que era totalmente constituída por indígenas selecionados por funcionários da Funai e treinados por oficiais da área de inteligência e informações. A GRIN foi instituída pela portaria 231, de 25/09/1969, da Funai. Ali eram passados aos indígenas não só um treinamento militar básico, com a inculcação de uma hierarquia e atitudes agressivas que eram inteiramente estranhas à sua cultura, mas também uma instrução em técnicas de combate contraguerrilha e a prática de tortura aos prisioneiros.

Na formatura da 1ª. Turma da GRIN, ocorrida no Batalhão Voluntários da Pátria, em Belo Horizonte, em 05 de fevereiro de 1970, em um filme realizado pelo fotógrafo Jesco Von Puttkamer, os jovens indígenas desfilavam exibindo um outro indígena (que simulava um inimigo) submetido ao aparelho de tortura chamado de “pau-de-arara”.5 5 Forma de tortura em que a vítima é suspensa a dois metros do chão, com a cabeça para baixo. Aplicado no século XIX para punição de escravos fugitivos, tornou-se durante a ditadura militar uma técnica de interrogatório bastante utilizada nos quartéis e nos centros clandestinos de repressão. Longe de tratar-se de algo camuflado ou de expressão eventual, a formatura foi assistida por altas autoridades federais e estaduais, como o vice-presidente da República, José Maria Alckmin, o presidente da Funai, José Queiróz Campos, o ministro do Interior, coronel Costa Cavalcanti, o então governador de Minas Gerais, Israel Pinheiro, tendo sido acompanhada por uma multidão.

A composição dessa primeira turma de 84 indígenas deixava clara também a intenção de utilização dos indígenas na localização e na perseguição dos fugitivos da chamada “guerrilha do Araguaia”, que estava naquele momento sendo combatida por forças especiais do Exército e da Aeronáutica. Eram 30 índios Karajá (GO), 30 Krahô (MA), 25 Xerente (TO) e dois Gavião (PA), todas áreas supostamente limítrofes à guerrilha.6 6 A exceção ficou por conta de 10 índios maxacali (MG), local de atuação direta do capitão Manoel Pinheiro.

O tema despertou curiosidade e alguns estudos analisaram a dimensão repressiva do indigenismo tutelar durante a ditadura militar (Heck 1996HECK, Egon Dionísio. 1996. Os índios e a caserna: políticas indigenistas dos governos militares, 1964-1985. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas. Disponível em: <Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/279393 >. Acesso em 22/07/2018.
http://www.repositorio.unicamp.br/handle...
; Jonas Filho 2015JONAS FILHO, Antônio. 2015. Sobre os viventes do rio Doce e da Fazenda Guarany: dois presídios federais para índios durante a ditadura militar. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, PUC-SP.; Trinidad 2018TRINIDAD, Carlos Benítez. 2018. “La Fundação Nacional do Índio al servicio de los interesses geoestratégicos e ideológicos de la Dictadura Brasileña (1967-1985)”. Americania, Sevilla, n. 3:243-277, jun.). Não foram encontradas referências à formação de novas turmas da GRIN. Uma jornalista da FSP localizou apenas uma reportagem de outubro de 1973 em que o segundo presidente da Funai, general Oscar Jerônimo Bandeira de Mello, falava sobre a decisão de encerrar as GRIN por estarem gerando fortes atritos no interior das aldeias indígenas, “com denúncias de espancamentos, arbitrariedades, insubordinação e até estupros cometidos pelos guardas que retornaram às aldeias” (Capriglione 2019CAPRIGLIONE, Laura. 2019. “Como a ditadura militar ensinou técnicas de tortura a GRIN”. Disponível em: Disponível em: https://jornalistaslivres.org/como-a-ditadura-ensinou-tortura-guarda-rural-indigena/ . Acesso em 15/12/2020.
https://jornalistaslivres.org/como-a-dit...
).

O impacto da GRIN, porém, foi bem maior do que uma turma de formandos. Por meio de relatos de diferentes partes do Brasil devemos supor que muitos funcionários da Funai, mesmo sem o treinamento fornecido por agentes do SNI, estimularam a formação de milícias no interior das aldeias indígenas, nelas se apoiando para adequar pela força os indígenas aos seus estilos autoritários de administração.

Uma outra prática muito lesiva era o desenvolvimento dentro das áreas indígenas de atividades que geravam rendas administradas exclusivamente pelos funcionários locais, a serem convertidas em fonte de sustentação da agência.7 7 Nas décadas de 1940 e 1950, justificada pela escassez do orçamento do SPI, começou a impor-se uma “mentalidade produtivista” (Cardoso de Oliveira 1978), que recomendava aos funcionários desenvolverem atividades econômicas dentro das áreas indígenas de modo a reembolsar os gastos públicos. Estimulados pelas reduzidas punições decorrentes do relatório Figueiredo, tais práticas continuaram durante a gestão da Funai. Sobretudo em regiões de colonização mais antiga, onde as terras eram escassas e de mais elevado valor, como no sul, sudeste e nordeste, foram instituídas práticas de arrendamento de terrenos para agricultura e pecuária, limitando seriamente o usufruto pelos indígenas das terras e dos recursos ambientais que lhes eram destinados. Em geral, tais procedimentos de arrendamentos estimularam a corrupção e o enriquecimento ilícito de muitos funcionários.

O modelo econômico da ditadura militar

A intervenção nos sindicatos, o congelamento salarial e a abertura aos capitais estrangeiros permitiram um certo crescimento econômico e garantiram o aumento nos lucros dos empresários. Porém, isso não resolveu o problema do desemprego nem as suas possíveis consequências políticas. Como o governo militar temia uma onda de protestos urbanos, logo nos primeiros meses a equipe econômica delineou uma proposta de reativação do setor da construção civil. A Lei 4380/1964 criou um sistema financeiro voltado para a construção de casas populares. Como ponderava Andrade (1976ANDRADE, Luís Aureliano Gama de. 1976. “Política urbana no Brasil: o paradigma, a organização e a política”. Estudos Cebrap, São Paulo, n. 18:119-148, out./nov.), “a escolha da habitação como eixo da política se deveu principalmente a ter sido sob o aspecto das tensões nas favelas, das migrações maciças para as cidades, que o problema urbano ganhou visibilidade e contorno nos inícios dos anos 60”.

No início recursos do Tesouro Nacional eram destinados ao Banco Nacional de Habitação/BNH para estas atividades. A partir de 1967, em função da reforma previdenciária da Lei 5.107/1966, o BNH passou a carrear para si compulsoriamente todos os recursos do recém-constituído FGTS/Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (o que representava 8% do valor de todos os salários recolhidos pelo empregador). Com isso, em dois anos, o BNH tornou-se o segundo banco do país (Valadares s/ind.VALADARES, Lícia do Prado. s/ind. Verbete “BNH”. Dicionários on-line do CPDOC: Dicionários on-line do CPDOC: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/banco-nacional-da-habitacao-bnh . Acesso em 20/12/2020.
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionari...
).

Concebido na perspectiva liberal e não estatizante, o BNH nunca teve uma atuação direta na produção de moradias populares, toda a sua intervenção se dando através do repasse de recursos ao setor privado, este sim responsável pelo planejamento das ações, pela execução das operações financeiras e a captação dos lucros. Após 1971, começou também a apoiar a construção de moradias até para setores de classe média,8 8 Além de conjuntos habitacionais voltados para a moradia popular (Rio de Janeiro em 1972; São Luís/MA, Vitória/ES e Salvador/BA em 1973; Manaus/AM em 1976/7), outros construídos em Porto Alegre/RGS em 1971, em Curitiba/PR e São Paulo em 1975, e em Belém/PA (1976) exigiam dos moradores comprovação de rendimentos superiores ao valor de 5 até 21 salários mínimos). Vide http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/tabela.php?year=1950. Acesso em 20/12/2020. atendendo a interesses imobiliários associados à privatização do planejamento urbano.9 9 No Rio de Janeiro, por exemplo, este planejamento foi entregue a uma empresa internacional (Doxiadis) e várias normas dos próprios financiamentos do BNH estimulavam que o planejamento urbano estivesse acoplado ao interesse da iniciativa privada (Maricato 1987).

Em 1970 o Brasil ganhou a Copa do Mundo no México e fortes investimentos públicos foram feitos com a construção de grandes estádios de futebol em muitas capitais e cidades importantes. De 1969 a 1982, os governos militares construíram 30 estádios pelo país afora.10 10 Para se ter uma ideia da extensão dessa política, é possível identificar uma lista que começou em Aracaju (1969), Maceió (1970), Campo Grande (1971); Recife, São Paulo e Uberaba (MG) em 1972; Teresina (PI) e Itabuna (BA) em 1973; Brasília (1974); Goiânia, João Pessoa e Campina Grande (PB) em 1975; Sobradinho (cidade satélite do DF), Londrina (PR) e Caxias do Sul em 1976; Limeira (1977), Belém (PA) e Taguatinga (outra cidade satélite do DF) em 1978. Vide https://www.sitefutebol.com.br/30-estadios-construidos-no-brasil-nos-anos-1970/. Acesso em 30/11/2020. Através de tais obras, que se constituíam em objeto de barganha com políticos regionais, os governos militares mantiveram inflados os ganhos das grandes empreiteiras e construtoras. A pretexto de gerar empregos, colocava em funcionamento um mercado de trabalho mal remunerado, instável e precário.

A criação da fronteira como pivô do desenvolvimento econômico

No primeiro governo militar, do general Castelo Branco, foi criada pela Lei 5.173/1966 a Sudam/Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, em substituição ao antigo SPVEA/Superintendência de Valorização Econômica da Amazônia, organismo bastante identificado com as atividades extrativistas. Ela abrangia na totalidade os estados de Acre, Amazonas e Pará, os então territórios (hoje estados) de Roraima, Amapá e Rondônia e partes dos estados de Mato Grosso e Goiás (hoje incluindo também o Tocantins). Essa região, que corresponde a 59% do território brasileiro, passou a ser denominada nos programas oficiais como Amazônia Legal, um dos pilares essenciais da modalidade de desenvolvimento capitalista que ocorreu no Brasil durante a ditadura militar, bem como da forma de governança instalada durante esse período. A partir de prioridades e formas de intervenção distintas dos governantes, foi se delineando um modelo econômico bastante específico, que teve - e tem - repercussões profundas nas formas de governabilidade. Otávio Velho (1975VELHO, Otávio Guilherme. 1975. Capitalismo autoritário e campesinato. Rio de Janeiro: Zahar .) chamou a isso de capitalismo autoritário.

O ponto de inflexão foi estabelecido logo no início do terceiro governo militar (gen. Garrastazu Médici, 1969 a 1974), com a elaboração do 1º. PND/Projeto Nacional de Desenvolvimento e mais especificamente com o PIN/Programa de Integração Nacional (Decreto 1106/1970). O seu objetivo era ocupar os grandes espaços vazios da Amazônia com os excedentes populacionais do nordeste, pondo em sintonia de forma complementar as duas regiões mais pobres do país (“homens sem terras do nordeste para as terras sem homens da Amazônia”. Brasil 1971). O êxodo rural de nordestinos para as grandes cidades do sudeste, potencial gerador de tensões sociais no campo e nos espaços urbanos, seria deslocado para o povoamento e a colonização da Amazônia.

A obra que expressaria melhor a criação desta nova fronteira seria a construção da rodovia Transamazônica (BR-230), cujo marco zero estava em Cabedelo, na Paraíba, seguindo longitudinalmente para o oeste, atravessando Ceará, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas, numa extensão de 4.260 km. No planejamento original, a estrada seguiria até Benjamin Constant (AM), onde se encontraria com a Perimetral-Norte, estrada que no sentido norte-sul acompanharia a linha da fronteira do Amapá até o Acre. Em Rio Branco (AC) viria a integrar-se com a rodovia-Cuiabá-Porto Velho (BR-364), que terminava em Limeira, no oeste paulista. De Cuiabá partia um entroncamento com a Transamazônica em Santarém (PA), inaugurado em 1974, enquanto uma outra rodovia (BR-070) permitiria chegar à capital federal (Abreu 2020ABREU, Alzira Alves de. s/ind. Verbete para o CPDOC/FGV: Verbete para o CPDOC/FGV: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/programa-de-integracao-nacional-pin#:~:text=INTEGRACAO%20NACIONAL%20(PIN)-,PROGRAMA%20DE%20INTEGRA%C3%87%3%83O%20NACIONAL%20(PIN),e%20no%20NorKdeste%20do%20pa%C3%ADs . Acesso em 15/12/2020.
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).

Esta malha rodoviária projetada sobre a floresta amazônica nela criava quase 15 mil km de sulcos profundos, desmatamento e intensos trabalhos, com movimentação de grandes contingentes humanos, tendo um impacto muito grande sobre os povos indígenas e o meio ambiente. Estudos de especialistas mostram que o desmatamento aumenta num raio de 100 km de uma área que venha a receber uma nova estrada (Pfaff et al. 2007PFAFF et alii. 2007. Amazonia and Global Change. Geophysical Monograph Series, 186.). Com os dados da época e referindo-se apenas à Transamazônica, Ianni mencionou 29 povos indígenas, cujos territórios foram atravessados pela estrada, sendo que 11 destes eram ditos pela Funai como povos isolados e sem contatos anteriores (Ianni 1979IANNI, Octávio. 1979. Ditadura e agricultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). Um detalhado relatório informativo dos desacertos da ação indigenista da FUNAI no Pará, Mato Grosso e Rondônia foi escrito por antropólogos e indigenistas que não se identificaram por temerem represálias (Anônimo, 1974ANÔNIMO. 1974. A política de genocídio contra os índios do Brasil. AEPPA/Associação de Ex-Presos Políticos Antifascistas, sem indicação de local de impressão.). O mais impressionante e bem documentado levantamento foi feito por Shelton H. Davis (1978DAVIS, Shelton H. 1978. Vítimas do milagre. O desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar .), utilizando extensamente dados então apenas disponíveis em arquivos americanos, que apontou que os indígenas foram “as vítimas do milagre econômico brasileiro”.

A aposta inicial do governo militar com o 1º. PND foi direcionada para a produção agrícola, como uma válvula de escape contra o aumento das tensões sociais no campo e na cidade. Os Projetos Integrados de Colonização se estenderam no Pará e em Mato Grosso, enquanto novas cidades foram surgindo quase espontaneamente. Para algumas dessas, consideradas estratégicas, como Marabá (1974), Alta Floresta (1976) e Juína (1978), foi estabelecido um completo planejamento urbano.

Problemas diversos impediram que a meta de uma colonização agrícola, com 100.000 famílias assentadas, fosse atingida: transparecia a insatisfação dos colonos assentados com o crédito e os meios de comercialização; a fixação das famílias era precária pela ausência de serviços básicos (como energia, água e rede de esgotos) e condições sociais de assistência (educação e saúde). Por outro lado, o governo viu outras alternativas econômicas, não agrícolas, para a expansão e a exploração da fronteira, as quais progressivamente começaram a tornar-se as novas prioridades.

Fatores de diferentes ordens (climáticas, tecnológicas e a crise do petróleo) fizeram com que diversas dessas estradas projetadas não chegassem a ser terminadas. A própria Transamazônica, que tem 4.260 km e cuja primeira parte foi entregue em 1972, além de vários trechos intransitáveis durante a metade do ano, parou na cidade de Lábrea (AM), sem atingir a fronteira e a Perimetral Norte. Esta última ficou com vários de seus trechos apenas no papel, com obras logo paralisadas ou nem sequer iniciadas.

Uma comparação entre o que foi projetado e o que foi efetivamente implementado apontava para a adaptação dos governos militares às formas concretas de construção de uma fronteira, distanciando-se das preocupações de segurança interna (transformar uma massa empobrecida em colonos) e de considerações geopolíticas (proteção dos espaços nacionais em face dos países vizinhos). Passaram a trabalhar por uma outra forma de colonização, que impactasse mais diretamente o PND e as exportações.

Isso se refletia na diferença entre as propostas do governo Médici (1969-1974), expressas no 1º. PND, e do quarto governo militar, do general Ernesto Geisel (1975-1979). No 2º. PND as expectativas quanto à expansão da fronteira amazônica privilegiou outros aspectos, como a utilização do potencial hidrográfico para a ampliação da oferta de energia no mercado interno e a ênfase na prospecção mineral (sobretudo como um fator de impacto na balança de exportações). As estradas já eram pensadas de outro modo, não como sementeiras de colonização agrícola e povoamento, mas como “corredores de exportação” que transportariam madeira, celulose e minérios para o porto de São Luís (MA) (Smith 1989SMITH, Nigel J. H. 1989. Rainforrest Corridors. Berkeley and Los Angeles: University of California Press.) ou do sudeste (como Santos e São Sebastião) (Smith 1989SMITH, Nigel J. H. 1989. Rainforrest Corridors. Berkeley and Los Angeles: University of California Press.).

Os dados oficiais sobre os programas de colonização na Amazônia evidenciam que eles se iniciaram através de projetos dirigidos e executados por estruturas governamentais. Progressivamente começam a coexistir com empreendimentos privados. A partir de 1978, contudo, cessaram por completo as iniciativas governamentais (Incra 1981INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. 1981. “Informações gerais sobre os assentamentos da reforma agrária”. Disponível em: Disponível em: http://painel.incra.gov.br/sistemas/index.php . Acesso em 15/12/2020.
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; Santos 1985SANTOS, José Vicente Tavares dos. 1985. “Política de colonização agrícola e o protesto camponês”. Ensaios FE, Porto Alegre, v. 6, n. 2:127-140.). Todos os novos e lucrativos empreendimentos resultaram exclusivamente de iniciativas privadas financiadas por organismos públicos.

Entre 1964 e 1981, a área total abrangida por esses projetos alcançou uma superfície de 10,5 milhões de hectares, envolvendo 47 mil famílias. Destas iniciativas, apenas 28 foram projetos públicos, enquanto 70 eram empreendimentos privados (Santos 1985SANTOS, José Vicente Tavares dos. 1985. “Política de colonização agrícola e o protesto camponês”. Ensaios FE, Porto Alegre, v. 6, n. 2:127-140.). Bem distantes porém de um modelo econômico liberal, esses empreendimentos dependiam extensamente da concessão de recursos públicos, captando financiamentos via Sudam e bancos oficiais, beneficiando-se de incentivos fiscais, acessando terras ou legitimando-as através do Incra.

Por sua vez, a primeira e mais significativa experiência de um megaempreendimento no setor energético na Amazônia foi a construção da Usina Hidroelétrica de Tucuruí, iniciada em 1974. Localizada no rio Tocantins (PA), a 300 km de Belém, o reservatório tem 200 km de comprimento e 2.850 km² de área quando cheio, possuindo o segundo maior sangradouro do mundo. A sua construção ficou a cargo da empresa Camargo Corrêa, implicando na formação de três vilas para os diferentes tipos de trabalhadores. No período mais intenso de construção chegou a mobilizar 30.000 trabalhadores.

Foi inaugurada em 1984, no quinto e último governo militar (1980-1985), pelo general João Figueiredo, com 50% de sua capacidade. Finalizada essa primeira etapa da construção da hidrelétrica, as vilas temporárias foram gradualmente desativadas, ao mesmo tempo em que se desenvolvia a infraestrutura urbana da cidade de Tucuruí. A hidroelétrica, no entanto, só atingiu a sua potência máxima prevista (8.370 megawatts) em 2010, no governo Lula.

Projeto totalmente financiado com recursos nacionais, não foi submetido aos procedimentos prévios e de salvaguarda quanto ao meio ambiente e às populações locais estabelecidos pelo Banco Mundial e outras agências internacionais. Afetou pesadamente a flora e a fauna regional, impactando povos indígenas, como Parakanã, Gavião e Assurini, entre outros (Acselrad 1991ACSELRAD, Henri. 1991. “Planejamento autoritário e desordem socioambiental na Amazônia: crônica do deslocamento das populações de Tucuruí”. Revista de Administração Pública, v. 25, n. 4:53-68.). Muitos povoados foram inundados. Estima-se que 10 mil famílias foram removidas para a construção do reservatório, apenas duas comunidades conseguindo da Eletronorte reassentamento em sítios próximos (Castro 2010CASTRO, Edna Ramos de. 2010. Estudo Socioeconômico dos municípios da região de Tucuruí. Belém: Editora NAEA.).

Um outro megaempreendimento fortemente associado à UHE de Tucuruí foi o Programa Grande Carajás/PGC, criado pelo Decreto-Lei nº 1813, de 24 de novembro de 1980, com uma área de 900.000 km que abrangia parte do estado do Pará, Goiás, hoje estado do Tocantins, e Maranhão. Incluía três frentes integradas: um conjunto de projetos de mineração; atividades agropecuárias e florestais; e projetos de infraestrutura (ferrovias, rodovias, portos e barragens). Trata-se de uma província mineralógica, considerada a mais rica do mundo, contendo minério de ferro de alto teor, ouro, estanho, bauxita, manganês, níquel, cobre e minérios raros. A vida útil das reservas de ferro foi estimada em cerca de 500 anos.

Embora sua exploração se iniciasse nos anos 70, em associação com a United States Steel, no final dessa década, após vultosa indenização, passou a pertencer exclusivamente à empresa estatal CVRD/Companhia Vale do Rio Doce, que assim se tornou o maior exportador do país, o maior fornecedor de ferro do planeta, o maior produtor de ouro da América Latina, a terceira maior mineradora do mundo.

Não foram apenas as grandes empresas que se envolveram na prospecção mineral. Em 1979 um agricultor encontrou uma pepita de ouro de 13 kg na região da Serra dos Carajás, em terreno oficialmente pertencente a CVRD. Em poucos meses já havia 5 mil pessoas naquele que foi o maior garimpo do Brasil. O governo federal colocou no comando das atividades um ex-militar, conhecedor da região e pertencente aos órgãos de segurança. Foi imposto um monopólio sobre a comercialização do ouro e criada uma agência local da Caixa Econômica Federal. A atividade garimpeira entrou em declínio após 1985, mas a sua extinção só ocorreu em 1992.

O indigenismo durante a expansão da fronteira amazônica

Para os militares que dirigiram o golpe de 1964 e os economistas neoliberais que os ajudaram a estruturar as linhas de governo, a temática indígena era algo menor e irrelevante para os destinos do país. A argumentação desenvolvida pelos admiradores de Rondon e dos trabalhos do SPI ia na mesma direção - a questão indígena era de natureza humanitária e nem de longe poderia afetar o destino do Brasil. Darcy Ribeiro, que nos anos 50 funcionava como um autorizado intérprete de Rondon e principal ideólogo do indigenismo, costumava dizer que os índios eram tão poucos em face da população brasileira que as contradições que mantinham com ela apenas incomodavam o despotismo de antiquados poderes econômicos locais.

O órgão ganhou alguma visibilidade - e bastante negativa - nos governos militares em função do relatório Figueiredo (1967) e da divulgação de fotos e detalhes brutais do chamado “massacre do Paralelo 11”,11 11 Trata-se do extermínio de numeroso grupo de indígenas Cinta-Larga (RO) perpetrado a mando da firma de extração de borracha Arruda, Junqueira & Co, em 1963, que veio à tona quatro anos depois através de entrevista coletiva à imprensa concedida pelo procurador Jader Figueiredo, em março de 1967. Apesar da ampla repercussão e de inquérito na Polícia Federal, durante o qual ocorreu a confissão de um dos envolvidos, ninguém foi punido. O mandante, irmão de um ex-prefeito de Cuiabá (MT), foi acusado, duas décadas depois, da morte do missionário Vicente Cañas (1987). fato este que repercutiu muito na mídia internacional, gerando manifestações de protestos e a visita ao Brasil de comissões de direitos humanos. A extinção do SPI e a criação de um novo órgão (Funai), para o qual foi nomeado um jornalista, José de Queiroz Campos, era um modo de responder àquelas suspeitas, evitando maiores desgastes políticos para o governo militar.

Com a deficiente estrutura administrativa herdada do SPI, a Funai logo foi afetada pela orientação militarista e repressiva que ganhava corpo e redundou no Ato Institucional nº 5. Iniciativas como a criação da GRIN redundaram na militarização da vida nas aldeias e do próprio indigenismo. Por outro lado, empenhou-se na ampliação do Parque Indígena do Xingu e tentou iniciar um diálogo com os missionários no 1º. Encontro Funai-Missões Religiosas (1969). Foi também durante a sua gestão que foi aprovado o artigo 19812 12 Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes. § 1º Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas. § 2º A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio. da Emenda Constitucional de 1967. Embora pensado com o foco no Parque do Xingu, foi bastante criticado por juristas conservadores, sendo um dispositivo central para a defesa dos direitos territoriais indígenas por quase duas décadas.

Com o governo Médici (1970-1974), a Amazônia se tornou uma parte importante das metas governamentais, o que se expressava no planejamento elaborado (o 1º. PND e o PIN). Em 1969 assumiu o Ministério do Interior, ao qual a Funai estava diretamente subordinada, o cel. José Costa Cavalcanti, parlamentar e um dos mais ativos articuladores do golpe de 64 e da edição dos Atos Institucionais,13 13 Embora fosse reformado na patente de coronel, ele fez treinamento militar nos Estados Unidos, foi adjunto do adido militar brasileiro em Washington e assessor da Comissão Militar de Defesa Brasil-Estados Unidos. Foi até 1985 presidente da Itaipu Binacional, cargo que acumulou durante algum tempo com a presidência da Eletrobrás. Em 1986 foi indicado para a direção do Projeto Jari. Vide verbete “Cavalcanti, José da Costa” em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/jose-costa-cavalcanti. Acesso em 15/12/2020. pessoa de confiança de alguns generais-presidentes.

Para a Funai foi indicado o general reformado Oscar Jerônimo Bandeira de Mello, cujo mandato coexistiu com a gestão de Costa Cavalcanti no MINTER, este que foi de fato a figura determinante da política indigenista. Durante a administração de Bandeira de Mello na Funai, para atender à pedidos de supostos proprietários de terra, que solicitavam empréstimos bancários onde eram exigidos diversos documentos, passou a emitir declarações sobre a inexistência de indígenas em diversas áreas da Amazônia. Elaboradas sem a realização dos necessários estudos de campo, tais documentos foram alcunhados de “certidões negativas” (da presença indígena), abrangendo inclusive terras posteriormente reivindicadas pelos indígenas. Em sua gestão a “renda indígena” foi restabelecida, como um passo para que a ação indigenista se autocusteasse através de projetos econômicos. O Conselho Indigenista, instância importante de assessoramento da FUNAI, foi igualmente desativado.

Em 1973 o Congresso Nacional aprovou a Lei 6.001, conhecida como o Estatuto do Índio. Certamente um fator decisivo para a sua elaboração e aprovação foi a preocupação internacional sobre as fortes ameaças que pesavam sobre o indígena brasileiro. Isto se evidenciava na forma de divulgação oficial realizada - um livreto no qual, ao lado do original em português, constavam traduções em inglês e francês, o que apontava claramente a centralidade da circulação deste documento no exterior, inexistindo qualquer iniciativa oficial de traduzi-lo em qualquer uma das línguas indígenas (Pacheco de Oliveira 1985PACHECO DE OLIVEIRA, J. 1985. “Contexto e Horizonte Ideológico: reflexões sobre o Estatuto do Índio”. In: Silvio Coelho dos Santos (org.), As Sociedades Indígenas e o Direito. Florianópolis, SC.: Ed. da UFSC. pp. 17-30.).

Algumas conceituações importantes, como o já citado artigo 198/67, foram recuperadas na integra (artigo 62). Em vários artigos são descritos circunstanciadamente os procedimentos para a definição das terras indígenas. Ainda que o documento falasse em integração do índio, ele teve um papel importante na abertura de espaços políticos para os direitos indígenas, pois as suas colocações estavam muito à frente das práticas sociais então vigentes e da consciência de administradores públicos, legisladores e dos tomadores de decisão em diversas escalas (federal, estadual e local). Na conjuntura de uma ditadura militar, caracterizar a questão indígena como de nível federal algumas vezes permitiu aos indígenas que se fizesse respeitar a legislação existente em face da truculência dos poderes locais.14 14 Isso foi abordado no trabalho de doutoramento de Arruti, José Maurício Andion. 2002. Etnias Federais - o processo de identificação de índios e negros no sertão do São Francisco. PPGAS/Museu Nacional/UFRJ.

Com o quarto governo militar a presidência da Funai foi ocupada pelo general reformado Ismarth de Araújo Oliveira, que se aproximou de alguns indigenistas de carreira e tentou transformar a agência em executor de fato de uma política indigenista. Ele reativou o Conselho Indigenista, restabeleceu o diálogo com as missões religiosas, promovendo o 2º. Encontro Funai e Missões Religiosas (Manaus, 1975) e estabeleceu pela primeira vez parcerias com universidades destacadas na pesquisa etnológica (UnB e USP).

Durante a gestão do general Ismarth, dando seguimento ao disposto na Lei 6.001, foram normatizados os procedimentos para reconhecimento de terras indígenas. O principal deles é o Decreto 76.999, de 08 de janeiro de 1976, que veio em seguida especificado por portarias e instruções normativas da própria Funai. Dezenas de grupos de trabalho foram formados e deram início aos procedimentos de identificação, delimitação e demarcação de terras indígenas. De 1975 a 1979 foram delimitadas 41 terras indígenas (Pacheco de Oliveira 1998:31PACHECO DE OLIVEIRA, J. 1998. Indigenismo e Territorialização. Poderes, rotinas e saberes coloniais no Brasi contemporâneol. Rio de Janeiro: Contra Capa.). A grande maioria dessas terras estava concentrada na Amazônia Legal - na 2ª DR (Pará e Amapá): 10 milhões de hectares; na 1ª. DR (Amazonas): 8,5 milhões; na 8ª. DR (Acre, Rondônia, partes de Mato Grosso e Amazonas): 5,6 milhões; na 10ª. DR (Roraima e partes do Amazonas): 5, 3 milhões; na 5ª. DR (Mato Grosso): 2, 7 milhões; na 6ª. DR (Maranhão): 1,8 milhão (Pacheco de Oliveira 1998:29).

Em 1979 o ministro do Interior, economista Rangel Reis, já sintonizado com algumas preocupações de empresários na Amazônia, pretendeu concretizar possibilidades latentes em alguns artigos da Lei 6.001 que falavam sobre a integração do índio. Elaborou uma minuta de decreto em que previa casos em que a administração poderia proceder ex-ofício à emancipação de comunidades indígenas, retirando delas a assistência prestada pelo órgão tutor e sobretudo os direitos especiais sobre a terra. O país, já vivendo em clima de liberdade de imprensa, viu uma reação muito forte da opinião pública. Do Rio Grande do Sul ao Acre formaram-se inúmeros grupos de defesa dos povos indígenas, incorporando antropólogos, indigenistas, missionários, defensores dos direitos humanos, sindicalistas e uma multidão de jovens universitários. O próprio Conselho Indigenista e o general Ismarth manifestaram-se contrários à medida, que acabou arquivada pelo ministro.

De todo modo isso explicitou uma intenção em altas esferas de poder quanto a limitar os direitos indígenas. O efeito, porém, foi o contrário do pretendido - a questão indígena passou a fazer parte crescentemente dos debates de opinião pública e consolidou-se uma rede de apoio aos seus direitos e reivindicações. Surgiram algumas associações indígenas, que realizaram congressos em Brasília, São Paulo e Campo Grande (MS), recuperando temas como a demarcação de terras e educação que haviam sido debatidos localmente em dezenas de assembleias indígenas na década anterior.

Durante o último governo militar, do general Figueiredo (1980 a 1985), a presidência da Funai refletiu esta nova estratégia. Os administradores se sucediam-se sem conseguir efetivamente controlar o aparelho burocrático e responder às pressões contraditórias que recebiam do MINTER, de políticos e fazendeiros, de indigenistas e dos próprios indígenas.

João Carlos Nobre da Veiga, coronel reformado, tentou disciplinar o órgão e submetê-lo às orientações do governo: demitiu 39 indigenistas e antropólogos, reestruturou a Funai priorizando as unidades regionais (em geral mais articuladas com os poderes locais) e procurou operacionalizar o projeto de emancipação do índio através do estabelecimento de “critérios de indianidade”15 15 Tema que foi retomado recentemente por uma resolução da FUNAI, agora intitulado de critério de “heteroidentificação” (FUNAI 2021 - https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2021/funai-fixa-criterios-complementares-para-autodeclaracao-indigena ), cuja aplicação no entanto foi suspensa por decisão do STF. . Apesar disso não obteve sucesso em colocar um freio nos estudos de identificação de terras indígenas, que chegaram a 23 nesse ano (Pacheco de Oliveira 1998).

Em 1982 foi nomeado para a presidência da Funai o coronel-aviador Paulo Moreira Leal, que servira antes no Conselho de Segurança Nacional/CSN. Diferente de seu antecessor, recebia em audiência os indígenas e anunciou um plano de reestruturação do órgão em que as funções mais importantes pudessem ser assumidas diretamente por indígenas. No ano seguinte, antes de deixar o cargo, foi editado um novo decreto (88.118/83) para normatizar os processos de reconhecimento de terras indígenas, retirando do presidente da Funai o controle exclusivo destes processos, que passaram a ser decididos no âmbito de uma comissão interministerial, integrada por representantes do MINTER e do MEAF/Ministério Extraordinário de Assuntos Fundiários (então dirigido pelo general Danilo Venturini, presidente do CSN).

Além dos critérios antropológicos para a definição de uma terra indígena, eram explicitamente mencionados no decreto outros fatores a serem considerados no processo decisório. Um deles era a “situação atual” (ou seja, de algum modo reconhecer como consolidados outros direitos sobre a terra que não o dos indígenas) e levar em conta o risco de elevar o nível de “tensão social” (isto é, de certo modo condicionando o reconhecimento dos direitos indígenas a uma aceitação pacífica disso por parte dos demais grupos sociais aí envolvidos).

A estratégia do governo em relação à Funai mudou então radicalmente - a Funai foi deixada como vitrine para a política indigenista, recebendo delegações indígenas, movida por preocupações protecionistas e disputada por grupos indigenistas rivais. Em paralelo, as decisões cruciais relativas à demarcação de terras eram deslocadas para outra esfera, lembrando uma conhecida tática militar de entregar ao inimigo um bastião (desprovido de recursos estratégicos) para melhor poder controlar os seus movimentos.

Com este novo arranjo institucional, as demarcações de terras indígenas passaram a gotejar muito lentamente, embora no âmbito da Funai os estudos de identificação continuassem a ser produzidos em ritmo intenso e sob a pressão direta dos indígenas. No tempo restante do governo Figueiredo, menos de dois anos, sucederam-se três pessoas na presidência da Funai, sem que isto tivesse qualquer implicação na dimensão fundiária.

Repensando criticamente a noção de fronteira

A palavra fronteira comparece em alguns momentos deste texto, mas não a estamos utilizando num sentido comum, que é o de limites administrativos internacionais, algo que é definido pelo domínio da diplomacia e da geopolítica. Também não estamos focalizando movimentos mais ou menos espontâneos de população no sentido de áreas remotas ou menos habitadas, onde trabalhadores individuais ou famílias buscam terras livres ou recursos ambientais inexplorados dos quais possam se apossar.

Este segundo sentido, muito comum na sociologia e na geografia, merece um comentário especial pela importância que ocupa na bibliografia existente. Para isso devemos nos reportar aos trabalhos de Frederick Jackson Turner (1962 [1920]TURNER, Frederick Jackson. 1962 [1920]. The Frontier in American History. New York: Holt.) sobre a fronteira oeste americana. Embora criticado por sociólogos e historiadores americanos posteriores (vide Maybury-Lewis 2009MAYBURY-LEWIS, David & MACDONALD, Theodore (eds.). 2009. Manifest Destiny and Indigenous Peoples. Harvard: Harvard University.), ainda fornece um fundamento implícito em construções analíticas sobre a fronteira. Na formulação de Turner tratar-se-ia de um movimento quase espontâneo de famílias de trabalhadores vindas da costa leste dos Estados Unidos em busca de terras onde pudessem vir a estabelecer unidades agrícolas produtivas e desta forma tornar-se parte integrante fundamental da economia e da constituição de uma nação. Nessa perspectiva a fronteira é percebida como uma válvula de escape para aliviar a pressão política de setores sociais marginalizados, propiciando a mobilidade social e sendo um lugar de construção de cidadania a partir de valores como a liberdade, a autonomia e a fé no progresso através da iniciativa individual.

Ao contrário, a fronteira como a vejo aqui se constitui numa produção do domínio político, implementada por uma instância reconhecida de poder, capaz de desencadear por si mesma expectativas e intervenções sociais (Pacheco de Oliveira 2016PACHECO DE OLIVEIRA, J. 2016. O nascimento do Brasil e outros ensaios. ‘Pacificação’, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa .). A fronteira não beneficia centralmente setores marginalizados da sociedade, ela atende sobretudo a interesses econômicos mais diretamente associados aos que ocupam o aparelho de Estado.

Embora em sua retórica se justifique por argumentos naturalizantes, colocados taticamente como determinantes, a definição de uma fronteira resulta de escolhas bem precisas e de atos de vontade. Neste sentido, não há qualquer espaço social que seja necessariamente uma fronteira, nem há espaços sociais que não possam ser convertidos em fronteiras. A mais remota região não é inexoravelmente e a priori uma fronteira, assim como o mais próximo espaço urbano pode em certas circunstâncias ser transformado em uma fronteira.16 16 Vide em Pacheco de Oliveira (2016) a discussão sobre a categoria de “pacificação”, utilizada na gestão estatal de áreas de favelas no Rio de Janeiro.

Na ótica das populações indígenas, que tiveram seus territórios devassados e comprimidos, a fronteira é, ao contrário, o lugar de negação de direitos, de construção de um inimigo e de criminalização do outro. O perverso efeito ideológico das teses de Turner é conduzir ao esquecimento conflitos e violências que foram fundantes da nação. Foram estas que lançaram as bases de uma nação marcada pela desigualdade de oportunidades, pelo racismo e pela permanente disposição à conquista. Para abandonar os pressupostos apologéticos e colonialistas dessa concepção de fronteira, necessitamos dar uma outra conceituação a este instrumento analítico.

O que a meu ver torna a fronteira um poderoso instrumento de investigação social é que ela articula ações relativas a direitos e propriedades com a produção de identidades sociais (outrificação), de maneira a engendrar linhas de inclusão e exclusão que irão dirigir de forma considerada legítima o uso e a apropriação de recursos econômicos. A criação de uma fronteira corresponde à destituição de direitos precedentes, de uma população (no caso nativa) cuja existência está assentada no uso de recursos locais, os quais, por uma intervenção unilateral do poder, são declarados passíveis de uso e apropriação por outros agentes econômicos (Pacheco de Oliveira 2016PACHECO DE OLIVEIRA, J. 2016. O nascimento do Brasil e outros ensaios. ‘Pacificação’, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa .). A fronteira não pode existir sem uma forma manifesta ou velada de execução da violência e, no limite, da guerra, implicando na negação de direitos precedentes, sem o que os espaços assim definidos não poderiam passar ao controle de novos donos.

Através de ações coordenadas, os governos militares criaram uma fronteira amazônica que desempenhou um papel econômico central no desenvolvimento capitalista e propiciou formas bem singulares de governabilidade. A instituição dessa fronteira, que concretiza no contexto brasileiro uma articulação dialética entre democracia e estado de exceção (Agamben 2004AGAMBEN, Giorgio. 2004. Estado de exceção. Homo Sacer [II.I]. São Paulo: Boitempo.), consolidou dispositivos de governança que continuaram a se refletir em conjunturas políticas posteriores, inclusive as caracterizadas como a democracia brasileira pós-regime militar.

Distante da ideologia neoliberal e das receitas de política econômica nelas inspiradas, vimos complexas interrelações entre público e privado, em que fundos públicos financiavam empresas privadas. Os empreendimentos governamentais, geridos por uma burocracia na qual a alta oficialidade detinha lugares de destaque, assumiram uma função exploratória, criando uma indispensável infraestrutura. Progressivamente, as agências estatais deixaram a função executora, abandonando até mesmo o planejamento para os grandes grupos econômicos (nacionais ou internacionais), aproximando-se assim mais de uma orientação econômica liberal.

A geração de riquezas dependendo primordialmente da exportação exigiu a criação de uma gigantesca infraestrutura de transportes e energia (estradas, hidroelétricas, portos e cidades) (Aarão Reis, Ridenti & Motta, 2014AARÃO REIS, Daniel; RIDENTI, Marcelo & MOTTA, Rodrigo Patto Sá. 2014. A ditadura que mudou o Brasil - 50 anos do golpe de 64. Rio de Janeiro: Zahar .). “De 1974 a 1986, o Plano de Integração Nacional e outros fundos conexos investiram aproximadamente 13 bilhões de dólares. Destes se estima que o investimento direto na construção de estradas foi de US$ 4 bilhões” (Pfaff et alli 2007PFAFF et alii. 2007. Amazonia and Global Change. Geophysical Monograph Series, 186.). Isso permitiu acumulação de riquezas em empresas nacionais e grandes empreiteiras, cujos lucros só poderiam ser mantidos por meio de uma íntima associação com o poder político (Campos 2014CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. 2014. Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar (1964-1988). Niterói: EDUFF.). Na década de 1980, a Camargo Corrêa despontou como a maior empreiteira mundial. O seu dono, Sebastião Camargo, foi o primeiro brasileiro a entrar na lista dos bilionários, divulgada por grandes revistas americanas, como Forbes e Fortune (Pinto 2002PINTO, Lucio Flavio. 2002. A internacionalização da Amazônia: sete reflexões e outros apontamentos inconvenientes. Belém: Edição Jornal Pessoal.).

A avaliação do cumprimento das metas, os chamados “objetivos estratégicos nacionais”, definidos em última instância pelos comandos militares, serviu para adaptações de cronograma, redirecionamento de funções e revisão de custos. Isso abriu caminho para uma articulação entre interesses individuais, jogos corporativos, clientelas políticas e redes de favorecimento.17 17 Neste cenário os atravessamentos entre os interesses coletivos e os individuais não podem ser analisados como procedimentos raros e exóticos, passíveis apenas de uma apreciação moral, mas como constitutivos do modo de operação da burocracia de Estado (Bezerra 2018; Campos 2014). Negociações de grande vulto e sem qualquer transparência foram incorporadas enquanto dispositivos de governança colocados em uso por um Estado autocrático e corporativo, associado a uma modalidade particular de desenvolvimento capitalista que tornava os recursos econômicos da fronteira amazônica disponíveis aos grandes grupos internacionais.

A formação dessa fronteira, a Amazônia Legal, considerada como um “imperativo de segurança nacional”, foi imposta a ferro e fogo pela ditadura militar sobre as populações camponesas, extrativistas e indígenas. Uma massa empobrecida foi o destino dessas comunidades locais, que mal se pode estimar o número e recuperar os nomes, que foram deslocadas de seus sítios originários. Os seus integrantes vieram a buscar meios de sobrevivência nas grandes obras, nos garimpos, na retirada de madeiras e em outras atividades extrativistas, o que implicou assim esvaziar o interior, buscando as capitais da Amazônia e as grandes e médias cidades da região Sudeste. O resultado foi exatamente o oposto daquele pretendido no momento de criação da fronteira, que visava diminuir o desemprego e a miséria nas grandes cidades redirecionamento o êxodo rural para o povoamento do interior e a ampliação da produção de alimento. O tão temido pelos primeiros governos militares agravamento das tensões e das disparidades sociais foi substituído por outras prioridades.

Por uma combinação de fatores em diferentes escalas, do local ao nacional e ao global, as populações indígenas tiveram maior capacidade de resistência e conseguiram manter o controle sobre parte de seus territórios. O último governo militar, no entanto, conseguiu paralisar o processo de reconhecimento das terras indígenas, retirando da Funai o poder de decisão e transferindo-o a outras esferas de governo. Neste cenário, eu e Alfredo Wagner Berno de Almeida realizamos uma etnografia da agência indigenista, apontando as contradições em que ela se debatia, a ausência de projetos institucionais e de práticas compartilhadas (Pacheco de Oliveira & Almeida 1998 [1985]PACHECO DE OLIVEIRA, João & ALMEIDA, Alfredo Berno Wagner de. 1998. “Demarcação e reafirmação étnica” [1985]. In Indigenismo e Territorialização. Poderes, rotinas e saberes coloniais no Brasil contemporâneo. PACHECO DE OLIVEIRA, João (Org). Rio de Janeiro: Contra Capa .). Foi nesta situação de caos que os governos militares, após 21 anos de controle, entregaram a agência indigenista ao poder civil em 1985.

O que sucedia na Funai não representava de modo algum um acontecimento isolado, desconectado da cena nacional e da conjuntura internacional. No plano estritamente econômico, os indicadores do Banco Mundial não eram nada favoráveis - de 1979 a 1985 registrou-se uma redução de 0,17% da renda per capita. Quando o general Figueiredo assumiu a presidência, a inflação estava em 40,81%, por ocasião da entrega do poder a um governo civil estava em 215,28%. No plano internacional eram claros os sinais de esgotamento do mundo bipolar e da guerra fria, as justificativas para a manutenção de uma ditadura militar tornavam-se frágeis e desconfortáveis.

O pós-ditadura

O foco deste artigo, por razões de espaço, foram os governos militares (1964-1985), mas antes de passarmos às considerações finais, que serão relativas à fronteira como ferramenta analítica, caberia fazer uma breve e esquemática menção a aspectos do funcionamento das instituições democráticas no país (que estarei explorar em outro texto a ser divulgado nos próximos meses).

O formalismo jurídico e a história oficial esqueceram continuidades fundamentais, para a política indigenista e a fronteira amazônica o ponto de inflexão não foi o fim dos governos militares nem a aprovação da Constituição de 1988. Durante o primeiro governo civil não cessou a tutela militar sobre a Amazônia e a política indigenista. O instrumento para isso foi o Projeto Calha Norte (1985-1990), que colocava sob o comando da CSN toda uma faixa de 150 km ao longo das fronteiras internacionais, o que representava em termos de superfície 1.500.000 ha (14% do território nacional), abrangendo 74 municípios e centenas de terras indígenas, assim como as principais jazidas de minerais estratégicos (Pacheco de Oliveira 1990aPACHECO DE OLIVEIRA, J. 1990a. “Segurança das Fronteiras e o Novo Indigenismo: formas e linhagens do Projeto Calha Norte”. Antropologia e Indigenismo, Rio de Janeiro, v. 1, p. 15-22, 1990. e 1990bPACHECO DE OLIVEIRA, J. 1990b. “Frontier Security and the new Indigenism: Nature and origins of Calha Norte Project”. In: GOODMAN, Davis & HALL, Anthony. (Eds.). The future of Amazonia: Destruction or Sustainable Development? London: Macmillan. p. 155-176.).

Critérios inteiramente novos para a demarcação de terras indígenas foram ali estabelecidos com base apenas em um decreto presidencial que aprovava o PCN, sobrepondo-se às disposições do Estatuto do Índio (Lei 6001/73) e ignorando por completo as orientações contidas na Constituição de 1988. A força e o prestígio da assessoria militar da presidência da República eram tamanhos que foram descumpridas as determinações do STF para retirada de garimpeiros das terras dos Yanomami e rechaçadas veementemente, a pretexto de contrariarem a soberania nacional, as recomendações da OIT quanto à proteção aos indígenas e ao meio ambiente.

A Constituição de 1988 trouxe um grande avanço doutrinário nas relações entre o Estado brasileiro e os povos indígenas. Conceituava as terras indígenas como aquelas de ocupação tradicional (independentemente do tamanho ou de interesses contrariados de terceiros), assegurava aos indígenas a posse permanente e o usufruto exclusivo dos recursos ambientais, e lhes reconhecia capacidade civil e de associação política. Mas a aplicação dos preceitos constitucionais dependia de vontade política e da elaboração de leis complementares, o que não sucedeu durante o primeiro governo civil.

No segundo governo civil ocorreu uma alteração radical na política externa brasileira, sob o influxo da 2ª Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro, em 1992. Alinhando-se às recomendações globais, o governo brasileiro resolveu rever as escolhas anteriores quanto ao meio ambiente e à política indigenista. As propostas de delimitação e demarcação de terras indígenas encaminhadas desde a década de 1980 pela Funai foram assinadas, garantindo aos indígenas o reconhecimento de mais de 100 milhões de hectares. Foi determinado ao Exército a retirada de todos os garimpeiros da área Yanomami, afinal demarcada como área única.

Os militares perderam o seu lugar privilegiado de assessores e planejadores para a Amazônia, ocorrendo um progressivo alinhamento do país com as convenções internacionais sobre meio ambiente, clima e proteção aos direitos indígenas. Foram estabelecidos acordos internacionais por meio dos quais os órgãos do governo brasileiro vieram a receber recursos materiais e assistência técnica da cooperação alemã, inglesa e do Banco Mundial. Muitas dessas iniciativas foram concebidas segundo critérios de participação e consulta, até então estranhos à administração pública brasileira. Os indígenas passaram a ser crescentemente chamados para integrar conselhos relativos à execução de políticas públicas na demarcação de terras, na saúde, na educação.

Ao longo de duas décadas o cenário da Amazônia como uma grande fronteira aberta aos interesses e à especulação de agentes econômicos nacionais e internacionais foi profundamente alterado. Os direitos indígenas começaram a ser relativamente mais respeitados e colocados em prática, ajudando inclusive a alavancar a defesa de populações quilombolas e extrativistas (Almeida 2012ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. 2012. “Territórios e territorialidades específicas na Amazônia: entre a ‘proteção’ e o ‘protecionismo’”. Cadernos CRH, Salvador, v. 25 n. 64, jan./abr.). Pela primeira vez as terras habitadas e os recursos ambientais controlados pelos povos indígenas pareciam estar deixando de ser um território inteiramente livre para a exploração empresarial. Através de muita luta e de mobilização em várias escalas, a Amazônia tornou-se, parcialmente, um lugar de reconhecimento - e não de negação - de direitos das populações locais e do meio ambiente.

No sentido oposto foi sendo articulada uma forte reação de setores empresariais, sobretudo do agronegócio, carro-chefe das exportações brasileiras, que nesse influxo de ganhos crescentes pretendia expandir bastante as áreas sob seu controle. Os conflitos locais se tornaram muito mais duros e dramáticos quando começaram a ser usados contra os indígenas serviços de segurança privada e milícias armadas contratados por fazendeiros mais radicais. Em paralelo, campanhas publicitárias de grande envergadura buscavam criar uma imagem muito favorável do agronegócio, enquanto se consolidavam lideranças políticas municipais e estaduais construídas na oposição à destinação de terras para indígenas e para conservação ambiental. No Congresso Nacional uma comissão parlamentar de inquérito sobre a Funai e o Incra foi o instrumento para colocar sob suspeita o processo de demarcação de terras indígenas, enquanto simultaneamente corriam projetos de lei para a mudança da sistemática.

Foi através do estabelecimento de vínculos com estes interesses, fazendo uso de preconceitos raciais e de uma retórica autoritária, que foi conduzida a campanha eleitoral de 2018 e foi montado um programa de governo em que um dos objetivos básicos é a reabertura da fronteira, com a paralisia das demarcações, a legitimação de propriedades incidentes em terras indígenas e a permissão para atividades lesivas (como os desmatamentos, os garimpos e a mineração).

Considerações finais

A noção de fronteira como uma ferramenta analítica exige que alguns pressupostos sejam revistos. Uma fronteira não resulta de um movimento espontâneo nem se constitui em uma sementeira da cidadania, mas frequentemente é induzida pelo Estado ou por poderes transnacionais e não engendra formas de convivência republicanas e democráticas. Ao contrário, os territórios que constitui se tornam um lugar de ampliação das desigualdades, de formas de trabalho compulsórias e de experimentação de modos predatórios de geração de riquezas e acumulação de capitais. Muito distantes do paraíso terrenal, eles mais se aproximam do estado de exceção de que nos fala Agamben (2004AGAMBEN, Giorgio. 2004. Estado de exceção. Homo Sacer [II.I]. São Paulo: Boitempo.). São espaços onde se expressam o arbítrio e a violência, os discursos racistas e autoritários são naturalizados, onde são postos em prática ensaios de formas autocráticas de governança. As regiões e as populações que foram imaginadas como fronteira raramente se beneficiaram dos processos ali deflagrados.

Segundo, a inauguração de um modo de governo não corresponde a um projeto estático nem inspirado estritamente em ideologias nacionais ou raciais. O golpe militar de 1964, proposto como uma ação restauradora da democracia e que duraria um ano, levou 21 anos. Comportou também projetos muito diferentes em relação à fronteira amazônica, ao desenvolvimento econômico e a formas mais ou menos tuteladas de democracia. O exercício do poder pode acarretar muitas alternativas, programas e estilos que não estavam de modo algum previstos no movimento inicial. O projeto geopolítico de colonização agrícola e povoamento da Amazônia foi logo substituído por um capitalismo neoextrativista, dirigido para a exportação e inteiramente atrelado à economia global. Assegurar a soberania brasileira sobre a região se demonstrou paradoxalmente compatível com empreendimentos estrangeiros que, operando à semelhança de microestados, controlaram largos espaços (os espaços de sua escolha). As definições jurídicas e os modelos ideológicos não servem como guias para entender a complexidade de processos políticos interconectados com o dinamismo de uma multiplicidade de fatores em diferentes escalas.

Terceiro, embora a implantação da fronteira amazônica tenha sido imensamente facilitada pela existência de uma ditadura militar, não convém imaginar que a retomada de uma exploração predatória dependa necessariamente de uma tal ruptura institucional. No contexto atual o objetivo de reabertura da fronteira integra uma articulação política muito ampla, que vai de prefeitos e governadores da região Amazônica até o presidente e seus ministros, expressando-se fortemente no Congresso Nacional. Agências governamentais de aparência tutelar e reguladora, como a FUNAI, o INCRA e o IBAMA, foram aparelhadas por setores em aberto antagonismo com as leis que as criaram. Uma extensa participação de militares no governo e na gestão das políticas para a Amazônia poderá mais uma vez favorecer a imposição de metas sem debates públicos e transparência, sem ouvir as comunidades locais e sem levar em conta seus representantes e aliados. Em 1964 era o jogo democrático que ameaçava os interesses de grupos econômicos dominantes, num cenário internacional que contrastava radicalmente o sólido sistema político americano com as instáveis repúblicas de sua área de influência no continente. Na atualidade, como apontam para o caso recente dos Estados Unidos Levitsky & Ziblatt (2018LEVITSKY, Stephen & ZIBLATT, Daniel. 2018. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar .), as instituições democráticas estão em crise, sendo corroídas por dentro. Isso se expressa agora de forma muito semelhante na metrópole ou em economias dependentes.

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Notas

  • 1
    Embora esta interpretação seja bastante difundida no senso comum, os estudiosos a contestam apoiados em fatos. Antes do golpe existiram importantes mobilizações de marinheiros e da baixa oficialidade do exército, assim como ocorreram depois protestos e revoltas nos quartéis (Chirio 2012CHIRIO, Maud. 2012. A Política nos Quartéis: revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Zahar.). Violentas incursões contra sindicatos e grêmios estudantis resultaram em centenas de vítimas. Em Pernambuco, um dirigente sindical estimou em quase dois mil o número de trabalhadores rurais mortos ou desaparecidos. No Rio delegacias, quartéis e até navios de guerra não foram suficientes para prender opositores políticos. O estádio de futebol Caio Martins, em Niterói, foi utilizado durante alguns meses como presídio e campo de concentração, sendo estimado que ali passaram quase duas mil pessoas (Tendler, 2014TENDLER, Sílvio. 2014. Os advogados contra a ditadura. Ministério da Justiça e Segurança Pública. https://www.youtube.com/watch?v=fhRJxeFfbYM, acessado em 30-11-2020.
    https://www.youtube.com/watch?v=fhRJxeFf...
    ).
  • 2
    A extensa e valiosa documentação reunida por Araújo, Soares e Castro (1994ARAUJO, Maria Celina de; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso (orgs.). 1994. Visões do Golpe, os Anos de chumbo e a volta aos quartéis. Rio de Janeiro: Relume Dumará.), assim como por Gaspari (2014GASPARI, Elio. 2014. A Ditadura Envergonhada; A Ditadura Escancarada; A Ditadura Derrotada; A Ditadura Encurralada. Rio de Janeiro: Intrínseca.), aponta a multiplicidade de estilos de governo e formas institucionais assumidas pela ditadura num exercício camaleônico de adaptação às transformações internas e exteriores. Nas descrições que se seguem, eu optei por pensar as diferenças em termos de impactos nas formas de construção de fronteiras e no exercício de políticas repressivas x a criação de estruturas tutelares.
  • 3
    A Comissão Nacional da Verdade, instituída pelo governo Dilma Roussef para apurar as denúncias de violações de direitos humanos durante o período militar (1964-1985), teve sua atuação nos anos de 2013 e 2014, quando divulgou o seu relatório final. Não tinha, porém, um caráter legal nem funções punitivas (à diferença do que ocorreu em países como Peru e Argentina), limitando-se a compilar documentos.
  • 4
    Categoria analítica formulada por Pacheco de Oliveira (1988), duas décadas antes do reaparecimento do relatório Figueiredo, para abordar o indigenismo como um modo de dominação, que abrange tanto ações protetoras quanto clientelísticas e repressoras, em contraste com as autorrepresentações filantrópicas e humanitárias que produz, podendo servir a interesses diversos e até mesmo opostos aos dos indígenas.
  • 5
    Forma de tortura em que a vítima é suspensa a dois metros do chão, com a cabeça para baixo. Aplicado no século XIX para punição de escravos fugitivos, tornou-se durante a ditadura militar uma técnica de interrogatório bastante utilizada nos quartéis e nos centros clandestinos de repressão.
  • 6
    A exceção ficou por conta de 10 índios maxacali (MG), local de atuação direta do capitão Manoel Pinheiro.
  • 7
    Nas décadas de 1940 e 1950, justificada pela escassez do orçamento do SPI, começou a impor-se uma “mentalidade produtivista” (Cardoso de Oliveira 1978CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. 1978. A sociologia do Brasil Indígena. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.), que recomendava aos funcionários desenvolverem atividades econômicas dentro das áreas indígenas de modo a reembolsar os gastos públicos.
  • 8
    Além de conjuntos habitacionais voltados para a moradia popular (Rio de Janeiro em 1972; São Luís/MA, Vitória/ES e Salvador/BA em 1973; Manaus/AM em 1976/7), outros construídos em Porto Alegre/RGS em 1971, em Curitiba/PR e São Paulo em 1975, e em Belém/PA (1976) exigiam dos moradores comprovação de rendimentos superiores ao valor de 5 até 21 salários mínimos). Vide http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/tabela.php?year=1950. Acesso em 20/12/2020.
  • 9
    No Rio de Janeiro, por exemplo, este planejamento foi entregue a uma empresa internacional (Doxiadis) e várias normas dos próprios financiamentos do BNH estimulavam que o planejamento urbano estivesse acoplado ao interesse da iniciativa privada (Maricato 1987MARICATO, Ermínia. 1987. A política habitacional durante o regime militar. Petrópolis: Vozes.).
  • 10
    Para se ter uma ideia da extensão dessa política, é possível identificar uma lista que começou em Aracaju (1969), Maceió (1970), Campo Grande (1971); Recife, São Paulo e Uberaba (MG) em 1972; Teresina (PI) e Itabuna (BA) em 1973; Brasília (1974); Goiânia, João Pessoa e Campina Grande (PB) em 1975; Sobradinho (cidade satélite do DF), Londrina (PR) e Caxias do Sul em 1976; Limeira (1977), Belém (PA) e Taguatinga (outra cidade satélite do DF) em 1978. Vide https://www.sitefutebol.com.br/30-estadios-construidos-no-brasil-nos-anos-1970/. Acesso em 30/11/2020.
  • 11
    Trata-se do extermínio de numeroso grupo de indígenas Cinta-Larga (RO) perpetrado a mando da firma de extração de borracha Arruda, Junqueira & Co, em 1963, que veio à tona quatro anos depois através de entrevista coletiva à imprensa concedida pelo procurador Jader Figueiredo, em março de 1967. Apesar da ampla repercussão e de inquérito na Polícia Federal, durante o qual ocorreu a confissão de um dos envolvidos, ninguém foi punido. O mandante, irmão de um ex-prefeito de Cuiabá (MT), foi acusado, duas décadas depois, da morte do missionário Vicente Cañas (1987).
  • 12
    Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes.
    § 1º Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas.
    § 2º A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio.
  • 13
    Embora fosse reformado na patente de coronel, ele fez treinamento militar nos Estados Unidos, foi adjunto do adido militar brasileiro em Washington e assessor da Comissão Militar de Defesa Brasil-Estados Unidos. Foi até 1985 presidente da Itaipu Binacional, cargo que acumulou durante algum tempo com a presidência da Eletrobrás. Em 1986 foi indicado para a direção do Projeto Jari. Vide verbete “Cavalcanti, José da Costa” em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/jose-costa-cavalcanti. Acesso em 15/12/2020.
  • 14
    Isso foi abordado no trabalho de doutoramento de Arruti, José Maurício Andion. 2002ARRUTI, José Maurício Andion. 2002. Etnias Federais - o processo de identificação de índios e negros no sertão do São Francisco. Tese de Doutorado, PPGAS/Museu Nacional/UFRJ.. Etnias Federais - o processo de identificação de índios e negros no sertão do São Francisco. PPGAS/Museu Nacional/UFRJ.
  • 15
    Tema que foi retomado recentemente por uma resolução da FUNAI, agora intitulado de critério de “heteroidentificação” (FUNAI 2021 - https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2021/funai-fixa-criterios-complementares-para-autodeclaracao-indigena ), cuja aplicação no entanto foi suspensa por decisão do STF.
  • 16
    Vide em Pacheco de Oliveira (2016PACHECO DE OLIVEIRA, J. 2016. O nascimento do Brasil e outros ensaios. ‘Pacificação’, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa .) a discussão sobre a categoria de “pacificação”, utilizada na gestão estatal de áreas de favelas no Rio de Janeiro.
  • 17
    Neste cenário os atravessamentos entre os interesses coletivos e os individuais não podem ser analisados como procedimentos raros e exóticos, passíveis apenas de uma apreciação moral, mas como constitutivos do modo de operação da burocracia de Estado (Bezerra 2018; Campos 2014CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. 2014. Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar (1964-1988). Niterói: EDUFF.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2021
  • Aceito
    28 Mar 2021
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