Acessibilidade / Reportar erro

PUAR, Jasbir. 2017. The Right to Maim: Debility, Capacity, Disability. Durham: Duke University Press. 296 pp.

Analisar a produtividade de uma regulação não é tarefa nova. Muitos autores refletiram a partir de contextos diversos sobre como a proteção social foi sendo negociada segundo dinâmicas locais e globais em torno dos direitos humanos e dos interesses dos Estados-nações. A teórica queer Jasbir Puar acrescenta uma reflexão vigorosa sobre as mutações nas biopolíticas contemporâneas em The Right to Maim, livro no qual articula a debilitação como forma mais recente de modular populações, circunscrevendo alguns grupos sociais como mais indignos nas disputas por inclusão ou simplesmente mais direcionados para o dano. Em quatro capítulos, com introdução e posfácio, a autora destrincha novas estratégias de gestão através da debilitação de corpos, territórios e realidades, especialmente em situações de ocupações coloniais.

Sua reflexão está alinhada com uma preocupação política de questionar a estruturação do imaginário, da infraestrutura e das administrações segundo um rastro de longa duração da colonialidade, precisamente porque a relação entre as práticas securitárias e a vulnerabilidade de alguns grupos se acentua por um persistente controle racializado do direito à matabilidade. Ou, também, à mutilação. Afinal, o reconhecimento social que os Estados-nações ainda fomentam também se baseia em processos de racialização em que alguns danos contam como perdas aceitáveis e outros como acidentes contornáveis. Nesse sentido, a deficiência tomada como um “infortúnio” que deve ser reorganizada e incluída socialmente a partir de parâmetros normativos (:65PUAR, Jasbir. 2017. The Right to Maim: Debility, Capacity, Disability. Durham: Duke University Press. 296 pp.) vai ser distinta da deficiência que é conformada como um “produto” endêmico do funcionamento imperialista em torno das disputas por soberania, cidadania e proteção estatal (:76PUAR, Jasbir. 2017. The Right to Maim: Debility, Capacity, Disability. Durham: Duke University Press. 296 pp.).

Ao longo do livro, Puar tensiona algumas temáticas minoritárias sobre o paradigma dos direitos, como a continuidade da discussão da excepcionalidade do orgulho LGBTI+ na figura do “homonacionalismo”, ou a crítica à “deficiência empoderada” que supõe uma integração através da recapacitação normativa do corpo em inscrições (neo)liberais. Nessas situações, Puar percebe como uma modalidade de debilitação vai ser positivada pelo capitalismo na medida em que uma capacidade “atípica” ou “abjeta” pode ser reinscrita tanto como oportunidade quanto como escolha. Então, a promoção de certos modelos afetivos, familiares ou corporais como marcadores de aceitação e progresso nacional serviria, em última análise, para criar formas mais legítimas de subjetividades e corporalidades.

Para a autora, o “sucesso” que alguns grupos ou discursos têm nessa busca por direitos tende a produzir novas falhas biopolíticas (:34PUAR, Jasbir. 2017. The Right to Maim: Debility, Capacity, Disability. Durham: Duke University Press. 296 pp.). Há uma certa captura normativa, seja em termos generificados, seja em termos capacitistas, que excluem corpos ou grupos sociais mais precarizados da incorporação vigente pelo orgulho ou pela acessibilidade. Essa discussão dos capítulos iniciais gira em torno dos artifícios do reconhecimento identitário enquanto justiça social, mas também das diferenças cruciais entre a biopolítica da deficiência e a biopolítica da debilitação. Precisamente porque o corpo produtivo não vai ser controlado apenas com disciplina ou segurança, mas através de minuciosas entradas afetivas que qualificam quem vai ser integrado de maneira digna ou debilitante, mas não definitivamente excluído por ser considerado indesejável. Em suas palavras:

Enquanto a biopolítica da deficiência ainda depende de sistemas de inclusão nos modelos liberais de deficiência, observando quem é excluído e por que desses enquadramentos, a biopolítica da debilitação revela que a propagação de tais estruturais não exclui apenas aqueles que não podem realizar uma reabilitação cultural excepcional ou uma relação excepcional com a deficiência, mas também funciona para obscurecer o dano explícito e a debilitação das populações, destacando à custa de quem - quais mortes lentas - esses quadros dobram (:72PUAR, Jasbir. 2017. The Right to Maim: Debility, Capacity, Disability. Durham: Duke University Press. 296 pp.).

Claro que essa interpretação também é uma análise particular muito valorativa. Por exemplo, quando se organizam tipos de experiências identitárias a partir da adesão ou não às normas de gênero, no fim das contas, também se hierarquizam enquadramentos epistemológicos e somáticos na forma de encarnar um “corpo sexuado” (Butler 2019BUTLER, Judith. 2019. Corpos que Importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: N-1 Edições.). De todo modo, considero as proposições de Puar fundamentais para refletir sobre os complicados modelos de integração social em contextos contemporâneos nos quais a passabilidade muitas vezes perde espaço para a inclusão normativa através da fragmentação, do cálculo de risco e da salvação, especialmente quando esse corpo deficiente ou generificado se articula com outros marcadores sociais, como raça e classe.

Mas será na reflexão dos capítulos três e quatro sobre a economia militarizada da debilidade que conforma inteiramente a população palestina que suas argumentações mais significativas sobressairão. Na convergência da acumulação primitiva do capitalismo com a morte lenta da biopolítica, Puar apresenta uma crítica relevante à retórica do “exepcionalismo” que movimenta tanto estratégias de resistência ou de solidariedade como também celebrações humanitárias a partir dos projetos de inclusão ou de reabilitação nacional. O que ela quer dizer nessa discussão é que as regulações sexuais estão intimamente interligadas com os processos de racialização das populações, no caso, de Israel e da Palestina. Para a autora, a regulação de casais héteros miscigenados nas ocupações israelenses pode ser tão violenta quanto a regulação de sujeitos LGBTI+ em territórios árabes. Do mesmo modo, também sugere que o uso corrente das técnicas de reprodução assistida (facilitada para casais homoafetivos) se entrelaça com políticas reprodutivas pautadas por um racismo estrutural que busca validar-se moral, religiosa e fisicamente pela continuidade do Estado-nação sionista.

Um ponto fundamental para mostrar as nuances do que ela concretiza valorosamente nesse tipo de “homonacionalismo” (:123PUAR, Jasbir. 2017. The Right to Maim: Debility, Capacity, Disability. Durham: Duke University Press. 296 pp.) é que não há regulamentação do casamento civil igualitário em Israel, já que a união familiar remonta às leis religiosas do judaísmo, fazendo com que essas formas mais recentes de regulações sexuais e reprodutivas proliferem uma lógica de “pinkwashing” (:124PUAR, Jasbir. 2017. The Right to Maim: Debility, Capacity, Disability. Durham: Duke University Press. 296 pp.), na qual a aptidão civilizacional se organiza a partir da vigilância dos corpos, das identidades e dos afetos. Então, quando direitos e tecnologias são incorporados em discursividades normativas pela nação, esse acesso da diversidade vai ser modulado como uma celebração singular de progresso - do que seria excepcional para a geopolítica do entorno - mas que acaba por mascarar processos de debilitação e violação dos territórios palestinos na sedimentação nacionalista de uma soberania racializada. De maneira mais profunda, ela argumenta que seria precisamente pela precarização dos corpos e das infraestruturas da Palestina que a reabilitação do Estado de Israel pode perdurar como um processo democrático extraordinário.

Nessa interpretação, regular o acesso aos direitos, ambientes e tempos de encontros de toda uma população seria uma maneira poderosa de encerrar futuros, especialmente no trânsito dos grupos queer palestinos. Da mesma maneira, Puar também chama a atenção para as diferenças escorregadias entre uma deficiência de mobilidade (:109-111PUAR, Jasbir. 2017. The Right to Maim: Debility, Capacity, Disability. Durham: Duke University Press. 296 pp.), em que a deficiência aplicada às estruturas físicas do campo populacional pode ser instrumentalizada para assegurar fundos e ajudas humanitárias, e uma condição estruturada pelo dano à mobilidade (:157PUAR, Jasbir. 2017. The Right to Maim: Debility, Capacity, Disability. Durham: Duke University Press. 296 pp.), situação de debilitação mutilatória que integra o cálculo administrativo dos recursos e das negociações internacionais, mas que se torna inviabilizada enquanto “dano colateral” do que seria um esforço humanitário da guerra.

Nesse contexto dos direitos compactuados internacionalmente, a debilitação em termos mutilatórios se torna preferível à morte, porque não é contabilizada como genocídio, permitindo que o próprio Estado israelense organize os espaços, as narrativas e os serviços dos territórios ocupados de acordo com uma razão humanitária (Fassin 2012FASSIN, Didier. 2012. Humanitarian Reason: A Moral History of the Present. Los Angeles: University of California Press.) que sustentaria uma vida digna. Não é uma acusação explícita do uso da debilitação como tática de guerra, mas ela argumenta categoricamente que “ao desobedecer a protocolos internacionais em relação à neutralidade médica, junto com a pacificação da prescrição para minimizar mortes de civis, Israel secretamente decreta esse direito de mutilar” (:141FASSIN, Didier. 2012. Humanitarian Reason: A Moral History of the Present. Los Angeles: University of California Press.). Portanto, atirar para mutilar e não para matar contamina esse princípio do dano colateral, enquanto intensidade baixa e mais sutil da guerra, pois afirma que “o assassinato não intencional de civis, assim como a morte ou ferimento de crianças, se não forem deliberadamente direcionados, são danos colaterais” (:142FASSIN, Didier. 2012. Humanitarian Reason: A Moral History of the Present. Los Angeles: University of California Press.).

Nesse sentido, o que Puar chama no livro de “direito à mutilação” seria uma fonte inesgotável de extração de valor de populações que de outra forma seriam consideradas descartáveis. A deficiência funciona no cenário palestino em dois níveis. Primeiro, ela materializa a mutilação de seres humanos em situações de violência e desigualdade, pois são privados de estruturas mínimas e funcionalidades sociais, sendo incapazes de se transformarem plenamente em “deficientes” (:143PUAR, Jasbir. 2017. The Right to Maim: Debility, Capacity, Disability. Durham: Duke University Press. 296 pp.), isto é, em sujeitos de direitos com acesso adequado à saúde. Segundo, a deficiência também se configura em um modo de controle biopolítico, no qual pessoas e grupos sem deficiência se tornam debilitados por meio de controles produtivos de longo prazo tanto infraestruturais quanto afetivos (:144). A mutilação precisa ser compreendida, então, como uma forma de tortura incorporada, banalizada e regularizada nesse cotidiano da ocupação militarizada.

A necessária pergunta que rasga as páginas do livro de Jasbir Puar para o mundo comum seria: quando acaba o cálculo de risco dos supostos danos colaterais para a marcação visível da morte lenta? Ou também, quanto de resistência pode ser minada sem exterminar completamente uma população? Aprofundando o artigo de Lauren Berlant (2007BERLANT, Lauren. 2007. “Slow Death”. Critical Inquiry, Vol. 33 (4):754-780.), Puar nos instiga a pensar que a debilitação dos palestinos, notadamente no sufocamento diário da Faixa de Gaza (:135PUAR, Jasbir. 2017. The Right to Maim: Debility, Capacity, Disability. Durham: Duke University Press. 296 pp.), não é apenas requisito da lucratividade de uma economia racializada, neoliberal e humanitária, mas que condicionamos a própria produtividade dessa população com sua perversa debilidade. Dito de outra maneira, a população palestina não é unicamente alvo do biopoder segundo a máxima foucaultiana do “deixar morrer”, seria na verdade um “não deixar/fazer morrer” que incorpora estrategicamente discursos humanitários de “deixar viver” (:139). Para Puar, a intencionalidade importa. Por isso, ao mesmo tempo em que Israel exerce seu direito soberano de infligir dano e consequentemente de mutilar, continua a assegurar sua retórica de excepcionalidade pelo direito à reabilitação nacional e à reparação especulativa das ocupações.

Referências bibliográficas

  • BERLANT, Lauren. 2007. “Slow Death”. Critical Inquiry, Vol. 33 (4):754-780.
  • BUTLER, Judith. 2019. Corpos que Importam: os limites discursivos do “sexo” São Paulo: N-1 Edições.
  • FASSIN, Didier. 2012. Humanitarian Reason: A Moral History of the Present Los Angeles: University of California Press.
  • PUAR, Jasbir. 2017. The Right to Maim: Debility, Capacity, Disability Durham: Duke University Press. 296 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistamanappgas@gmail.com