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BEZERRA, Marcos Otavio. 2018. Corrupção: um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 265 pp.

BEZERRA, Marcos Otavio. . 2018. Corrupção: um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil.2ª ed. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 265 pp.

O espectro da corrupção sempre esteve ao nosso redor e parece que não vai e nem pretende nos deixar - não tão cedo. Foi Durkheim quem ao final do XIX notava como a sociedade foi acusada e, na obra de Rousseau, tida como contrária à natureza humana e, por isso, sua corruptora maior (cf. Durkheim 2008DURKHEIM, Emile. 2008. Montesquieu e Rousseau: pioneiros da sociologia. São Paulo: Madras.). Os ventos revolucionários e seu moralismo próprio sopraram noutras direções e latitudes, e as acusações de corrupção, qua categoria de mobilização de afetos e de produção de identidades políticas, atravessaram o século XX e, no caso brasileiro, levaram mais direta que indiretamente ao suicídio de Vargas e ao golpe de 1964 (cf. Fico 2018FICO, Carlos. 2018. Prefácio a Ditadura e corrupção: A Comissão Geral de Investigações e o confisco de bens de acusados de enriquecimento ilícito no Brasil, 1968-1978. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional.), chegando, mais recentemente, à interrupção de nossa jornada democrática pós-1988. Não por acaso, é neste último intervalo, entre meados da década de 1970 e dos anos 1990, que se situam os “casos” analisados em Corrupção: um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil, de Marcos Otavio BezerraBEZERRA, Marcos Otavio. 2018. Corrupção: um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 265 pp., livro ora relançado em segunda edição pela Papéis Selvagens.

O livro se divide em quatro capítulos, já publicados na primeira edição e aos quais se somam os novos Prefácio e Pós-Escrito. No primeiro capítulo, são discutidas as contribuições antropológicas clássicas aos estudos que aproximam parentesco e política na chave das relações de amizade, patronagem e redes pessoais. Os seguintes capítulos tratam dos três “casos” que são objeto privilegiado de análise: “caso Valença”, “caso Capemi”, “caso Coroa-Brastel”. Em cada um deles, uma intrincada e variada sobreposição de laços, recursos institucionais, posições oficiais, estimas e honrarias em risco - tudo isso junto - configura as tramas e as redes de acesso (ou de bloqueios) a pessoas, informação, bens e serviços, intermediados por “favores” ou “ajudas”. No Pós-escrito,1 1 Publicado em Revista Pós de Ciências Sociais. Ver Bezerra (2017). uma análise da interação, da intimidade e dos “brindes” circulantes entre burocracias, Legislativo e a assim chamada Odrebecht (a construtora) permite reforçar teses afins ao do institucionalismo histórico que vêm sublinhando a mútua constituição entre Estado e atores não estatais (cf. Gurza Lavalle & Szwako 2015GURZA LAVALLE, Adrian & SZWAKO, José. 2015. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”.Opinião Pública, v. 21, n. 1:157-187.), expandindo, neste caso, a noção de cofabricação ou codeterminação entre instituições estatais e atores econômicos.

De um ponto de vista mais amplo, o livro traz questões com as quais, até hoje, as Ciências Sociais brasileiras têm de lidar e, mesmo, se posicionar nas fronteiras entre um moralismo prenhe de potencial conservador, uma autoimagem nacional via de regra deteriorada e a sanha de grupos e partidos políticos volta e meia autoimbuídos de uma pretensa “luta contra a corrupção”.

“Se qualquer sociedade corrompe, a sociedade brasileira corrompe mais!” - esta é uma das certezas do senso comum reinante contra as quais luta obliquamente o autor. Sua intenção não é desmascarar nem desconstruir “a corrupção” - este ente maligno e reificado - pois tratá-la nesse registro seria endossar que existem “condutas e práticas em si mesmas corruptas” (:17). Sua análise quer contribuir “para a compreensão das relações e dos mecanismos sociais, historicamente constituídos, que estruturam as práticas concebidas como corruptas e corruptoras” (:32). Trata-se de desafio intelectual caro às Ciências Sociais, porque talhado na interlocução e na fronteira com História, Ciência Política e Sociologia (na Apresentação, Bezerra é elogiosamente chamado de “sociólogo/antropólogo”), embora, como veremos ao final, seja orientado e cercado por frutífero projeto de uma Antropologia da Política.

“Se a sociedade brasileira corrompe, o Estado brasileiro corrompe muito mais!” - bem entendida, esta máxima diz que, entre nós, não seria apenas a sociedade um agente corruptor. No Brasil, por razões renitente e alegadamente histórico-culturais, o Estado seria “mais corrupto ainda”. Largamente aceita e difundida por mídias tradicionais e virtuais, tal visão não é, contudo, exclusiva das mídias e das redes sociais. Parte nada desprezível do nosso pensamento social e político clássico dedicou rios de tinta a nossas supostas mazelas (:29), sendo o tema da corrupção sempre reiterado entre elas na chave de um determinismo cultural. Bezerra se posiciona criticamente em relação a tais interpretações que são abordagens “criminais e essencialistas”, recusadas por optarem por um tipo de análise “predominantemente moral” da corrupção (:21, 209). Em particular neste flanco, quanto ao pensamento social e político brasileiro, valeria, a quem interessar, e partindo da agenda sobre os usos políticos da corrupção, se perguntar pelas conexões entre reflexão intelectual, estereótipos nacionalmente autoatribuídos (os rótulos são muitos: “Estado corrupto” ou “ineficiente”, “cultura do jeitinho”, “país do futuro”, “sociedade atrasada” e “insolidária”, “sociedade civil amorfa” etc.) e o renitente sucesso de categorias como clientelismo ou patrimonialismo, não raro forjadas nas Ciências Sociais e na interlocução com elas.

“Na época da ditadura não havia corrupção” - se nunca chegou realmente a sair do imaginário brasileiro dominante pós-1988, esta máxima tem sido, desde 2013, pública e constantemente reivindicada. Antes e depois da destituição de Dilma Rousseff, grupos na sociedade civil e ligados a partidos autodenominados “de direita” vêm defendendo e disputando a visão idealizada de que práticas institucionais corruptas não teriam sido conhecidas ou fomentadas por lideranças militares. Dois dos três “casos” analisados por Bezerra não permitem tal ilusão, mas, notem, sua análise não consiste em uma mera inversão dos termos daquela máxima, como quem assevera: “havia corrupção na ditadura” ou “as empreiteiras também eram corruptas àquela época”. Como é possível notar no Prefácio desta nova edição, o autor não desconsidera o peso político de seus achados, que podem hoje desfazer qualquer visão imaculada dos governos militares, de seus ministros e ministérios, e de suas relações com grandes construtoras. Contudo, apesar de seus achados, o livro não toma a fração fascistizada e pró-militarismo do senso comum contemporâneo como seu interlocutor, como que para desenganá-lo. Seu problema de pesquisa é outro: ao situar os “casos” ou os “escândalos de corrupção” em registro não moralista, eles são observados à luz das funções de mediação, intermediação e de solução de dilemas que tanto redes de relações pessoais e de parentesco, como gramáticas de afeto, amizade e reciprocidade, desempenham nos modos de aproximação entre setores do Estado e do empresariado, de modo a buscar objetivos e vantagens (não apenas privadas nem só privatizantes) às partes e pessoas aí envolvidas.

Esta talvez seja a maior das maiores contribuições de Corrupção: não ter se curvado à lógica e à tentação do denuncismo - mesmo se e quando sua nova edição tenha sido concebida em tempos nos quais, sob a alegação de corrupção, desfigurou-se quase todo o nosso sistema político. Exemplo a contrario dessa contribuição pode ser lida em “Ditadura dos Empreiteiros” (Campos 2012CAMPOS, Pedro. 2012. A Ditadura dos Empreiteiros: as empresas nacionais de construção pesada, suas formas associativas e o Estado dictatorial brasileiro, 1964-1985. Tese de Doutorado, UFF. Disponível em: Disponível em: http://www.historia.uff.br/stricto/td/1370.pdf . Acesso em: 05/01/2020.
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), elogiado en passant por Bezerra. Com base em farta documentação histórica, Campos comprova que havia, sim, corrupção na ditadura e denuncia, à conclusão, que os donos das grandes empreiteiras nos governos militares, ao recorrerem a “mecanismos ilícitos”, se inscreviam na “lógica da reprodução capitalista, visando elevar as margens de ganho, neutralizar a concorrência e dividir seus frutos com agentes públicos e privados” (Campos 2012, s/pCAMPOS, Pedro. 2012. A Ditadura dos Empreiteiros: as empresas nacionais de construção pesada, suas formas associativas e o Estado dictatorial brasileiro, 1964-1985. Tese de Doutorado, UFF. Disponível em: Disponível em: http://www.historia.uff.br/stricto/td/1370.pdf . Acesso em: 05/01/2020.
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). Assim delimitadas, as razões e as lógicas da corrupção ficam obscurecidas por essa sorte de moralismo materialista, cujo ente maligno dileto é a economia e o empresariado (e não “a sociedade”). Em sentido diverso, porém, “o que se designa como corrupção não é apenas uma transação econômica, mas também uma prática cultural que exige um saber fazer específico” (:210). E este saber específico está incontornavelmente mediado por relações de dependência e reciprocidade, de afetos e desafetos, irredutíveis à pura reprodução capitalista.

Toda essa discussão e os insights trazidos pelo livro não desaguam em relativismo. Do ponto de vista que interessa a eventuais práticas e instituições de controle e combate à corrupção, pouco ou de nada adiantam enquadramentos moralistas - esta é a lição - para sua adequada compreensão e regulação. Neste sentido, tanto os discursos inflamados de reacionários que clamam pelo “fim da corrupção” como a analítica denuncista de certo marxismo compartilham uma estranha sintonia: ambas as visões reduzem aquilo que seria o avesso da corrupção a uma espécie de dimensão puramente administrativo-instrumental, supostamente livre de “mecanismos ilícitos”, de modo a desconsiderar a teia sempre e já política mais ampla de transações e representações das quais a troca corrupta, no belo termo de Bezerra, é apenas uma parte. O exemplo recente das lideranças do Ministério Público não mostra senão isto: não bastam incentivos administrativo-instrumentais; i.e., não são suficientes o fomento de instituições de controle e o fomento material à autonomia de atores para essas mesmas instituições, pois suas redes de sociabilidade e afinidades extrainstitucionais podem e, de fato, conseguem atravessar e englobar tais instituições.

Por fim, um breve comentário sobre uma ou duas raízes intelectuais de Corrupção. Em meio a outros trabalhos de mestrado e doutorado de uma geração de antropólogas e antropólogos em formação na década de 1990, o livro traz pistas daquilo que seriam alguns dos eixos interpretativos distintivos do NuAP - Núcleo de Antropologia da Política, conformado entre Museu Nacional, UnB e UFC. Para mencionar apenas dois eixos: em primeiro lugar, além da abordagem etnográfica, o privilégio epistêmico dado à compreensão nativa dos significados da política; o projeto do Núcleo se propunha a “investir nas zonas de interseção entre o que etnograficamente é percebido como relativo à “política” e o que, também do ponto de vista nativo, é colocado fora desse domínio” (Peirano 1997:8PEIRANO, Mariza. 1998. Uma Antropologia da Política: Rituais, Representações e Violência (Projeto de pesquisa). Cadernos do NuAP, 1. Disponível em: Disponível em: http://www.marizapeirano.com.br/artigos/1998_uma_antropologia_da_politica.pdf . Acesso em: 05/01/2020
http://www.marizapeirano.com.br/artigos/...
). Por outro lado, dava-se ênfase às representações da política, que era também nome da linha de pesquisa do próprio Marcos Otavio e de Moacir Palmeira, seu orientador de mestrado e doutorado. Como que antecipando essas marcas cognitivas do NuAP, Corrupção se vale empiricamente das visões e das cosmovisões mobilizadas por parte dos atores acusados de corrupção e, ainda, dos efeitos que tais visões, figuras e metáforas, em geral sob a forma de ataques, acarretam para a representação pública desses atores.

Certamente, os insights, achados e eixos interpretativos de Corrupção não se esgotam nestas linhas, mas elas dão mais que boas razões para convidar à sua leitura.

Referências bibliográficas

  • BEZERRA, Marcos Otávio. 2017. “Corrupção e produção do Estado”. Revista Pós de Ciências Sociais Disponível em: Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rpcsoc/ article/view/6407 Acesso em: 03/01/2020
    » http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rpcsoc/ article/view/6407
  • BEZERRA, Marcos Otavio. 2018. Corrupção: um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil 2ª ed. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 265 pp.
  • CAMPOS, Pedro. 2012. A Ditadura dos Empreiteiros: as empresas nacionais de construção pesada, suas formas associativas e o Estado dictatorial brasileiro, 1964-1985. Tese de Doutorado, UFF. Disponível em: Disponível em: http://www.historia.uff.br/stricto/td/1370.pdf Acesso em: 05/01/2020.
    » http://www.historia.uff.br/stricto/td/1370.pdf
  • DURKHEIM, Emile. 2008. Montesquieu e Rousseau: pioneiros da sociologia São Paulo: Madras.
  • FICO, Carlos. 2018. Prefácio a Ditadura e corrupção: A Comissão Geral de Investigações e o confisco de bens de acusados de enriquecimento ilícito no Brasil, 1968-1978 Rio de Janeiro: Arquivo Nacional.
  • GURZA LAVALLE, Adrian & SZWAKO, José. 2015. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”.Opinião Pública, v. 21, n. 1:157-187.
  • PEIRANO, Mariza. 1998. Uma Antropologia da Política: Rituais, Representações e Violência (Projeto de pesquisa). Cadernos do NuAP, 1. Disponível em: Disponível em: http://www.marizapeirano.com.br/artigos/1998_uma_antropologia_da_politica.pdf Acesso em: 05/01/2020
    » http://www.marizapeirano.com.br/artigos/1998_uma_antropologia_da_politica.pdf

Nota

  • 1
    Publicado em Revista Pós de Ciências Sociais. Ver Bezerra (2017BEZERRA, Marcos Otávio. 2017. “Corrupção e produção do Estado”. Revista Pós de Ciências Sociais. Disponível em: Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rpcsoc/ article/view/6407 . Acesso em: 03/01/2020
    http://www.periodicoseletronicos.ufma.br...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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