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“A doença do mundo”: xamanismo baniwa contra a pandemia

“The illness of the world”: Bainwa shamanism against the pandemic

“La enfermedad del mundo”: chamanismo baniwa frente a la pandemia

Resumo

Este artigo explora a pesquisa de um iñapakaita, benzedor, Afonso Fontes, homem baniwa do clã Hoohodene, por uma encantação xamânica para uma doença: a covid-19. Essa busca será compreendida como inventiva, nos termos da dialética wagneriana (2010), pois ocorre a partir de seus conhecimentos do cosmos, dos mundos mítico e atual, não humanos e humanos, indígenas e não indígenas. A análise das fórmulas verbais contidas na encantação de Afonso contra o coronavírus descreverá o seu caráter composicional, explicitando perspectivas a partir das quais são constituídas, bem como a agência xamânica atua na reordenação do cosmos. Por fim, realizam-se apontamentos de ordem especulativa, desde uma crítica xamânica, sobre o surgimento das doenças como conectadas a outros colapsos e associados ao modo de vida dos não indígenas no Antropoceno.

Palavras-chave:
Baniwa; Noroeste amazônico; Xamanismo; Pandemia; Antropoceno

Abstract

This article explores how a healer (iñapakaita), Afonso Fontes, a Baniwa man of the Hoohodene clan, searches for a shamanic incantation against an unknown disease: Covid-19. The iñapakaita's quest is understood to be inventive, in terms of Wagnerian dialectics (2010), because it derives from his knowledge of the cosmos, of mythical and actual worlds, of non-human and human, and of indigenous and non-indigenous. The analysis of the verbal formulas contained in Afonso's incantation against the coronavirus describes their compositional character, making explicit the perspectives from which they are constituted, as well as the shamanic agency in reordering the cosmos. Finally, starting from a shamanic critique, the article speculates on the emergence of illnesses as connected to other collapses and associated with the way of life of non-indigenous people in the Anthropocene.

Keywords:
Baniwa; Northwest Amazon; Shamanism; Pandemic; Anthropocene

Resumen

Este artículo explora la investigación realizada por un iñapakaita, benzedor, Afonso Fontes, un hombre baniwa del clan Hoohodene, en la procura de un encantamiento chamánico para una enfermedad desconocida: el Covid-19. La búsqueda se entenderá como inventiva, en los términos de la dialéctica wagneriana (2010), porque se produce a partir de su conocimiento del cosmos, de los mundos míticos y presentes, no humanos y humanos, indígenas y no indígenas. El análisis de las fórmulas verbales contenidas en el encantamiento de Afonso contra el coronavirus describirá su carácter compositivo, explicando las perspectivas desde las que se constituyen, así como la agencia chamánica en la reordenación del cosmos. Por último, se hacen apuntes especulativos, desde una crítica chamánica, sobre la aparición de enfermedades entendidas como conectadas a otros colapsos y asociadas al modo de vida y a las elecciones de los no indígenas en el Antropoceno.

Palabras clave:
Baniwa; Noroeste de la Amazonia; Chamanismo; Pandemia; Antropoceno

Introdução1 1 Nicole Soares-Pinto, Milena Estorniolo, Stephen Hugh-Jones e Geraldo Andrello, bem como os/as pareceristas anônimos/as, leram versões que resultaram neste texto. Agradecemos seus comentários, sugestões e críticas. Um esboço inicial dessas ideias foi apresentado no GAIA: Núcleo de estudos dos povos da terra, agradecemos os comentários recebidos.

Este artigo procura explorar a busca de um iñapakaita, benzedor, Afonso Fontes, Kamida seu nome tradicional, 57 anos, homem baniwa do clã Hoohodene, por um iñapakati, encantação, apropriado para uma doença que o acometeu, seus parentes próximos e distantes, bem como indígenas e não indígenas em todo o mundo: a Covid-19. Benzimento é como se designa em português e de modo franco no Alto Rio Negro2 2 Azevedo (2018:153), antropólogo Yepamahsã, povo que habita o Alto Rio Negro, aponta a influência religiosa da tradução “benzimento”, recusando-a em seu texto. Este autor define-o como “palavras e expressões especiais que possibilitam a comunicação, interação, o diálogo com os Mahsã e waimahsã [as gentes invisíveis], para evitar certas doenças das diversas fases da vida, para ocupar e usufruir nas formas diversas do espaço Di’ta Nʉhkʉ [Terra/Floresta]”. o que a literatura etnológica denomina de encantações ou cantos xamanísticos, compostos por fórmulas verbais. O benzimento contra a covid-19 não constava até a eclosão da pandemia no repertório de Afonso e, ao que tudo indica, nem no de qualquer outro especialista xamânico que vive nesta região. Com a epidemia global, Afonso (Fontes 2021FONTES, Afonso. 2021. “Coronavírus no sonho do Hoohodene”. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, v. 1, n. 9, out. Disponível em Disponível em http://www.pari-c.org/ . Acesso em 31/ 01/ 2022.
http://www.pari-c.org/...
) e outros especialistas (Diakara 2020DIAKARA, Jaime. 2020. Esse vírus me atacou uma perspectiva dêsana em imagens sobre o Covid-19. Trad.: Justino Rezende. Coleção Pandemias Amazônicas/ Infoamazônia. Disponível em: <Disponível em: https://infoamazonia.org/2020/06/14/portugues-esse-virus-me-atacou-uma-perspectiva-desana-em-imagens-sobre-o-covid-19 /. Acesso em 09/03/2021.
https://infoamazonia.org/2020/06/14/port...
) do Alto Rio Negro empreenderam uma investigação, considerando a sua própria experiência de adoecimento.

Ao anunciar a sua descoberta, Afonso disse: “Eu que inventei este benzimento, não é de qualquer outro benzedor. Mas não é inventar..., é que fui eu que encontrei”. Ele não desconhece que invenção pode ser entendida como falsidade em um sentido comum, então, se corrige. Afonso explica que não se inventa uma encantação xamânica ex nihilo, como se ela pudesse ser o objeto de seu exclusivo engenho. Isto seria absurdo, ela seria desprovida de sentido, incapaz de mobilizar qualquer força e potência. Uma nova encantação, segundo ele, se sonha, pois se descobrem suas fórmulas pela interlocução onírica com os demiurgos míticos. Assim, explorando esses pontos da busca de Afonso, o foco neste artigo recairá nos processos inventivos que entenderemos a partir de Roy Wagner (2010WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac e Naify .) como os efeitos da simbolização diferenciante em tensão com as convenções.

Para este antropólogo, invenção implica sempre um procedimento dinâmico entre simbolizações diferenciantes e convencionalizantes, capazes de criar e reconhecer contextos (mundos, perspectivas) a partir dos quais se pode relativizar um problema. Portanto, consideraremos a epidemia de covid-19 como um desses problemas e os esforços dos iñapakaita como agenciamentos na tentativa de criar contextos xamânicos, invisíveis aos olhos dos não especialistas, em que esse colapso pode ser relativizado, isto é, extraído dele o seu caráter absoluto e unívoco. Não propomos que seja tanto uma questão de indigenizar o novo vírus (Sahlins 1997SAHLINS, Marshall. 1997. “O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um “objeto” em via de extinção (parte I)”. Mana , v. 3, n. 1.) pela acomodação numa estrutura cosmológica prévia (Albert & Ramos 2002ALBERT, Bruce & Ramos, Alcida Rita (orgs.). 2002. Pacificando o branco: cosmologias do contato no norte-Amazônico. São Paulo: Unesp.) que se expandiria por transição anamórfica. Trata-se, antes, de multiplicar os modos de lidar com a doença, não simplesmente pelo alargamento de um repertório de encantações, mas pela recriação xamânica do conhecimento, do mundo e seus lugares.

Na medida em que diferenciações e convencionalizações se pressupõem reciprocamente, notaremos a invenção como “um processo que ocorre de forma objetiva, por meio de observação e aprendizado, e não como uma espécie de livre fantasia (Wagner, 2010:30WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac e Naify .)”. Esta abordagem adota a postura de “afirmar algumas coisas inquietantemente subversivas sobre o conhecimento tradicional e algumas outras implausivelmente positivas sobre operações não convencionais” (:22). Assim, entende-se a busca do iñapakaita Afonso a partir de seus conhecimentos do cosmos herdados de seus ascendentes, que inclui um repertório de encantações, situada em um espaço convencional, mas também em um eixo inventivo,3 3 A abordagem dinâmica proposta neste artigo a partir da semiótica wagneriana é inspirada nas formulações de Kelly (2005). nas interações oníricas atuais com os demiurgos e com os parentes mortos, em um imperativo que se impõe a ele de “imprever” o mundo, as suas convenções, levando-o a (re)inventá-las.

Notaremos um regime de atenção específico dos xamãs sobre os seres, os lugares e os acontecimentos, assentado na axiomática de que potencialmente todas as coisas do mundo, como notou o perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro 1996VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana , v. 2 n. 2.; Lima 1996LIMA, Tânia Stolze. 1996 “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi”. Mana , v. 2, n. 2:21-47.), possuem uma duplicidade imanente. Com isso, seguiremos os caminhos que levaram Afonso a encontrar o benzimento contra o coronavírus, notando o caráter composicional dos pañapaka, benzimentos, explicitando algumas das perspectivas ontológicas que mobilizam. Para tanto, a descrição da busca de Afonso inclui uma análise minuciosa da sua encantação, em suas fórmulas verbais, por meio da tradução que ele e sua esposa Ilda realizaram. Por fim, pretendemos realizar alguns apontamentos de ordem especulativa desde uma crítica xamânica baniwa da modernidade, fornecendo alguns matizes para se pensar o surgimento das doenças como conectado a outros colapsos planetários no Antropoceno4 4 Termo cunhado por Crutzen e Stoermer (2015) para caracterizar a época em que a espécie humana se tornou uma força geofísica de alcance planetário e de duração e abrangência geológicas. Essa época geológica é marcada pela queda da biodiversidade, elevação dos mares, aquecimento global, entre outros indicadores, que delineiam um colapso ecológico em curso que extingue e ameaça as condições de vida humana e não humana no planeta. associados ao modo de vida dos não indígenas.

A autoria deste artigo é coletiva, mas as contribuições são heterogêneas. Por este motivo, eu, o primeiro autor, escrevo em vários momentos do texto em primeira pessoa, com o intuito de fazer notar os diferentes aportes da escrita. A opção pela coautoria é decorrente da compreensão dos autores de que os resultados aqui alcançados não se circunscrevem à privilegiada relação de interlocução estabelecida em trabalho de campo, mas pela cooperação ativa na elaboração do texto. Coube a mim a argumentação antropológica e a escrita acadêmica, pela qual sou responsável, enquanto a Afonso e Ilda coube a crucial tradução poética da encantação, cerne do argumento aqui desenvolvido.

Medzeniakonai

A região do Alto Rio Negro, no Noroeste amazônico, situa um complexo sociocultural composto por mais de 23 povos, falantes de línguas de quatro troncos linguísticos, com sua população distribuída em mais de 750 comunidades no interior das terras indígenas e nos centros urbanos das cidades de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas. Os Baniwa, povo de língua arawak, conformam dentro deste complexo, quando considerado apenas o território brasileiro, uma população de 7.145 pessoas distribuídas em mais 90 comunidades às margens dos Içana e seus afluentes, território tradicional, em comunidades dispersas em outras calhas de rio na diáspora regional e nas cidades da região (SIASI 2014). Não considerados nesse censo os habitantes das cidades acima mencionadas.

Baniwa é o exônimo de um conjunto profuso de clãs de língua arawak que se designam como Medzeniakonai, reconhecendo entre si relações de parentesco, distribuindo-se entre Brasil, Colômbia e Venezuela, com uma população de 17.645 pessoas (Instituto Socioambiental 2021).5 5 Dados do verbete Baniwa escrito por Wright e Andrello para a publicação “Povos indígenas no Brasil”, organizado pelo Instituto Socioambiental. Em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Baniwa. Acesso em 16/03/2021. Nestes últimos dois países, esses clãs podem receber a designação de Curripaco (Journet 1995JOURNET, Nicholas. 1995. Les paix des jardins: Structures sociales des Indiens curripaco du haut Rio Negro (Colombie). Paris: Institut D’Ethnologie, Musée de L’Homme.; Rojas 1997ROJAS, Filintro. 1997. Ciencias naturales em la mitología Curripaco. Guainia: Fundación Etnollano.) ou Wakuenai (Hill 1993HILL, Jonathann. 1993. Keepers of Sacred Chants. The Poetics of Ritual Power in an Amazonian Society. Tucson: The University of Arizona Press.). Os clãs são definidos na literatura etnológica regional como grupos de descendência patrilinear vinculados miticamente a um epônimo animal. Os membros desses coletivos se denominam como os “netos da anta” (clã Walipere Dakenai), os “netos da paca” (clã Awadzoronai), os “netos do inambu” (clã Hoohodene), os “netos da onça” (clã Dzawinai), e assim por diante. Esses diferentes clãs podem estar associados miticamente a outros, considerando-se mutuamente como clãs “irmãos” (consanguíneos), por meio da classificação de senioridade. Por sua vez, os clãs que não estão relacionados por germanidade consideram-se entre si clãs “cunhados” (afins), aqueles com os quais se casam preferencialmente, ou então, clãs “-doenai” (coafins), aqueles com os quais não se casam preferencialmente, mas que também não são propriamente “irmãos”. Não obstante, os Medzeniakonai são todos eles netos do demiurgo Ñapirikoli e da demiurga Amaro.

De modo geral, podemos caracterizar a mitologia baniwa a partir das relações entre Ñapirikoli e seus irmãos mais novos Dzooli e Eeri, sua tia paterna Amaro e Kowai. Eles conformam a Gente-Universo: os Hekoapinai. Eles são os principais demiurgos da cosmogonia baniwa, estando envolvidos com a etiologia de uma série incontável de criações que ocorrem no tempo mítico, preparando o mundo para a humanidade atual, Walimanai ou a “nova geração”. A relação entre esses demiurgos é complexa. Ñapirikoli, Dzooli e Eeri são irmãos com habilidades distintas, eles estão alinhados sob a chefia do primeiro, mas a relação deste com Amaro é controversa e com Kowai é de hostilidade. Amaro é a tia paterna (-koiro) de Ñapirikoli, ele se interessa por ela e um filho é resultado desta relação, sem que disso decorra conjugalidade entre eles. Esse filho de Amaro e Ñapirikoli é Kowai. A criança nasce estranha, não humana, branco como uma pessoa não indígena. Ñapirikoli não admite sua existência neste mundo e o envia ao céu. Desde então deflagra-se um conflito entre Ñapirikoli com Amaro em torno da disputa pelo filho.

Dzooli, o dono do benzimento

Em março de 2020, Afonso foi infectado pelo novo coronavírus, assim como Ilda, a sua esposa, além de sua mãe, filhas, genro e neto. Nessa ocasião, ele sonhou com a fórmula xamânica de que precisava. Até então, Afonso utilizava exclusivamente as fórmulas contidas no benzimento contra gripe (whétsi), em razão dos sintomas comuns entre as doenças, o que todavia não se mostrava eficaz. As fórmulas contra gripe não foram abandonadas, mas rearranjadas, conformando uma das bases para a descoberta xamânica contra a covid-19.

Acompanhemos o relato de Afonso, em que aponta a reconfiguração onírica do tratamento xamânico contra a doença:

[...] eu comecei a sentir uma dor horrível, causando mal-estar e dor de cabeça. Fiquei sem vontade de comer, com nariz entupido e uma dor apertando meu tórax, febre forte, diarreia, falta de ar, dores musculares e tosse constante.

Passou uma semana, eu já estava bem fraco, com muitas dores, dormi durante o dia, de dia mesmo. Em meu sonho, apareceu o senhor Dzooli, o dono de Benzimento, era uma voz me avisando que, se eu não tomasse cuidado, naquele dia eu iria morrer, e me mandou olhar para os dois lados: direito e esquerdo. Quando olhei, notei duas bolas no ar se aproximando de mim, mas não eram bolas normais, eram bolas que pareciam frutas biriba, bolas marrons com pontas de lança afiadas em sua superfície.

Ao despertar neste mundo, eu ainda estava me queixando, muito fraco, com dor apertando o peito, falta de ar forte e com o meu coração se agitando fortemente. Eu não tinha mais força, voltei a dormir, e o senhor Dzooli apareceu novamente no meu sonho, dizendo:

- Corte estas dores com o Dzooli imaipere.

Isto é, disse para cortar com o terçado (facão) de Dzooli, indicando, no meu sonho, uma sacola pendurada na parede. Parecia uma sacola pendurada com o terçado dentro, mas, na verdade, Dzooli queria falar do benzimento de cura.

E disse ainda:

- Lembre-se da história que foi falada. Lembre-se do Kowai, teste o seu conhecimento. Agora é a sua vez de se curar. Lembre-se do Kowai, lembre-se do Kowai, lembre-se do Kowai.

Ao mesmo tempo, essa era a voz do finado meu pai, João Fontes, pois, muitas vezes, foi com ele que eu ouvia muitas histórias antigas e reais, histórias do Kowai e das vinganças dele para a humanidade de hoje, e muitos benzimentos de cura (Fontes 2021FONTES, Afonso. 2021. “Coronavírus no sonho do Hoohodene”. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, v. 1, n. 9, out. Disponível em Disponível em http://www.pari-c.org/ . Acesso em 31/ 01/ 2022.
http://www.pari-c.org/...
).

Contra a agência impertinente do coronavírus, Afonso encontrou em sonho as orientações de Dzooli que o lembrava de que no benzimento ele precisava pensar em Kowai, até então ignorado, pois se concentrara apenas nas fórmulas da encantação contra gripe. Dzooli é, como apontamos acima, o irmão de Ñapirikoli, ele é o “dono” (iminali) do tabaco e por isso é reportado a ele o conhecimento dos pañapaka (benzimentos) de cura. Enquanto “dono do tabaco”, Dzooli personifica este vegetal detentor de propriedades xamânicas, razão pela qual ele é o demiurgo ao qual os iñapakaita recorrem em suas encantações com a finalidade de promover a cura de um paciente.

Assim, ao acordar, Afonso sabia o que deveria pensar na sua encantação. Ele conhecia bem as histórias de seu pai sobre Kowai, bem como quais eram as “coisas de Kowai”, isto é, as partes do seu corpo que se transformaram nos venenos que existem hoje no mundo. Na caracterização dos procedimentos xamânicos como inventivos, é importante notar que Dzooli não ensinou as palavras exatas que Afonso deveria entoar, mas um modo de atenção: “Lembre-se do Kowai”. Neste caso, lembrar não tem relação com a memória como recognição, pois o que o demiurgo faz é impeli-lo a uma invenção.6 6 Ramos e Epps (2018) oferecem uma crítica à redução da habilidade xamânica de entoar encantações à memória, destacando como os aprendizes benzedores hupd’äh aprendem as fórmulas em caminhadas na floresta.

Sobre isso, Afonso comentou:

Ao despertar para este mundo, comecei a meditar sobre o sonho, sobre o que eu ouvi. Eu estava fazendo um quebra-cabeça, em busca das ‘palavras-chave’ e das ‘palavras geradoras’ [do benzimento]. Eu pesquisei nas histórias antigas [nos mitos], que também foram pesquisadas pelos antropólogos, que passaram nas mãos dos velhos mais antigos e nas mãos dos pajés, e realmente encontrei este formato de desenho: o corpo do Kowai. Cada parte do seu corpo mostra as doenças que ele deixou para a vingança contra a humanidade.

Os iñapakaita estão familiarizados com os elementos poético-xamânicos convencionais que compõem o benzimento. A esse respeito, o “terçado de Dzooli” é um dos exemplos que Afonso oferece do que ele designa como “palavras geradoras” que todo especialista deve conhecer. Segundo ele, esse “terçado é uma palavra mágica do benzimento para tirar do corpo do paciente todos os sintomas que está sentindo”. É com esta arma xamânica que o iñapakaita “em pensamento” quebra as presas e estraçalha as garras dos parasitas e que corta as amarras que comprimem a alma da pessoa doente. Mas Afonso precisou meditar sobre o sonho, investigar outras fórmulas, entoá-las por outros caminhos, procedimentos que não se reduziam a encontrar uma encantação em um repertório preestabelecido. Dzooli convocou-o ao exercício de “imprevisão” do seu conhecimento.

O aspecto do pensamento é apontado de modo importante pelos xamãs no Alto Rio Negro. Lolli (2013LOLLI, Pedro. 2013. “Sopros de vida e destruição: composição e decomposição de pessoas”. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 56, n. 2.) destaca que o xamã yuhupdëh na entoação fica imerso no “pensar e sentir” (Silva & Silva 2012SILVA, Cácio & SILVA, Elisângela. 2012. A língua dos Yuhupdeh. São Gabriel da Cachoeira: Pró-Amazônia.), analogamente, os especialistas Yepamahsã mobilizam, conforme Azevedo (2018:67AZEVEDO, Dagoberto Lima. 2018. Agenciamentos do mundo pelos Kumuã Ye’pamahsã: o conjunto dos bahsese na organização do espaço Di’ta Nʉhkʉ. Coleção Reflexividades Indígenas. Manaus: EDUA.), a “força de tuñase (pensar)” e, segundo Cardoso (2018:240CARDOSO, Juvêncio da Silva. 2018. “A cuia e a formação do universo: uma abordagem baniwa no contexto da física intercultural”. Revista do Patrimônio Histórico e a Artístico Nacional (IPHAN), Brasília, n. 37:233-248.), é por meio do pensamento que o xamã baniwa se conecta com “o princípio de origem-corpo - lhitaka limidzaka idakinaawa”. Agir em pensamento, no caso aqui enfocado, significa atuar em um registro mítico-onírico, ou seja, deslocado no tempo-espaço, em outra perspectiva cósmica com fins de cura.

Por um lado, Afonso precisa conhecer as histórias de Kowai e seu corpo repleto de agências malfazejas para os humanos, bem como as armas xamânicas ou as palavras geradoras, mas, por outro lado, necessita “testar o conhecimento”. É nesta recombinação de conhecimentos prévios em uma nova ordenação das fórmulas verbais e dos mitos cosmogônicos, exigentes de um “teste”, que se nota a invenção das convenções xamânicas e a reorganização do cosmos. Sobre isso, o maliri (pajé)7 7 Fontes (não publicado) categoriza diferentes funções xamânicas entre os Baniwa: “sucção da doença”, “benzer”, “prever acontecimentos”, “dançar” e “conhecer remédios tradicionais”. Um maliri (pajé) geralmente reúne a maior parte dessas funções que se distribuem entre os diferentes especialistas e mesmo entre os não especialistas. Contudo, é exclusivo dos maliri a sucção da doença e a utilização de pariká com fins de cura, o que implica que têm certo privilégio no contato com seres não humanos que habitam o cosmos. Para uma discussão das especialidades xamânicas no Alto Rio Negro, ver o clássico artigo de S. Hugh-Jones (1994). Manuel da Silva, do clã Hoohodene, faz um relato sobre as viagens cósmicas que caracterizam a atuação xamânica dos especialistas que utilizam o pariká:8 8 Designação genérica para diferentes tipos de pó alucinógeno utilizados pelos maliri baniwa para viajar no cosmos e encontrar a cura de seus pacientes.

[O pariká] mostra a caixa de remédios de Ñapirikoli, e assim os pajés podem saber tudo sobre a doença. Depois que eles sabem tudo sobre o mundo, o pajé volta para contar para o povo. Eles contam tudo para o povo como é no começo, antes deles, como Ñapirikoli contou para os pajés. Os pajés podem ficar como o mestre do mundo, em seu pensamento. Eles fazem o mundo. Eles podem, e têm em seu pensamento poder. Assim, eles pensam por todo o povo. Tudo - eles não podem enganar nisso. Eles ficam bem igual - como o Ñapirikoli era, assim eles são. Lá, os pajés são como Ñapirikoli. Eles fazem tudo. Eles fazem as pedras, eles fazem a madeira, eles transformam tudo com pariká. Eles se transformam em madeira, em onça, se transformam em jacaré, em boto, em urubu, tudo isso em seu pensamento - eles se transformam em pessoas também. Assim também eles se transforam naquele mestre do mundo. Então, eles são capazes de conhecer o mundo (Cornelio et al. 1999:183CORNELIO, José; FONTES, Ricardo; SILVA, Manuel; SILVA, Marcos; MANUEL, Luís; SILVA, Inocêncio. 1999. Waferinaipe Ianheke. A Sabedoria dos Nossos Antepassados. Histórias dos Hohodene e dos Walipere-Dakenai do rio Aiari. Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro. São Gabriel da Cachoeira: FOIRN.).

Os maliri, por meio do pariká, e os iñapakaita, por meio das fórmulas verbais, se inscrevem no registro mítico, deslocam-se no cosmos, transitam entre as perspectivas, e atuam no mundo como os demiurgos criadores nos primórdios dos tempos. Desse ponto de vista, eles são “como Ñapirikoli”. Assim, “conhecer o mundo” não está relacionado com a capacidade dos especialistas em espelhá-lo na forma do discurso aos seus parentes, mas de inventá-lo: “fazer o mundo” tal como os demiurgos. Os xamãs não são simplesmente mediadores do tipo mensageiros, não atuam como diplomatas profissionais, mas distintamente como chefes em missão diplomática, ou mais, como demiurgos criadores. Isto porque, no caso dos pajés, as notícias que trazem na volta da viagem de pariká não são as de um observador passivo, os seus relatos são sobre as suas próprias criações junto aos demiurgos no Outro Mundo.

Kowai, o dono da doença

Desde a deflagração da pandemia, nós, os autores, passamos a conversar continuamente por telefone. Afonso relatava-me suas preocupações, discutíamos os casos de doentes, conjecturávamos relações com os mitos e, então, ele me comunicava os avanços em sua busca por um tratamento adequado.

Em meu trabalho de campo para tese doutoral (Vianna 2017VIANNA, João. 2017. Kowai e os nascidos: a mitopoese do parentesco baniwa. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catariana, Florianópolis.), realizamos conjuntamente a tradução de uma série de benzimentos. Afonso, para ensinar-me as encantações, sempre me tomou como um aprendiz de iñapakatti, ensinando-as como se eu fosse recitá-las no intuito de proteger a mim e meus parentes. No caso da pandemia de coronavírus, ele gostaria que eu testasse o seu “novo” benzimento para saber a eficácia de suas fórmulas entre os não indígenas. Evidentemente, a despeito da benevolência inestimável de meu amigo, eu não poderia benzer. Por isso, Afonso enviou-me por correio um pacote de tabaco já benzido, bastando que eu soprasse a fumaça sobre aqueles que eu quisesse proteger.9 9 À época, relatei para Afonso que minha cachorra estava rouca, sem nenhuma voz, então, suspeitando de se tratar do novo coronavírus, ele me orientou para que eu a benzesse com o mesmo tabaco que ele havia me enviado. Os animais estão incluídos entre os parentes que compõem uma casa.

Antes disso, entretanto, quando Afonso ainda tinha alguma esperança de que pudesse ajudá-lo nos “testes”, ele me enviou uma transcrição em baniwa do benzimento contra covid-19. Considerei à época que poderia traduzir, mas o meu conhecimento instrumental da língua baniwa é rudimentar e minha tentativa foi reprovada por Ilda Cardoso. Ela explicou-me que, embora os sentidos das frases não estivessem completamente errados, as minhas palavras eram “pesadas”, “feias” e “perigosas”. Suponho que ela apontava para uma falha na tradução da poética, uma desatenção à forma e à estética do xamanismo. Por isso, ela mesma, junto a Afonso, traduziu.

Deixamos a transcrição em baniwa para permitir que as fórmulas possam receber outro tratamento analítico. As notas que constam na tradução foram realizadas a partir de observações de Ilda Cardoso.

Primeira fórmula10 1. Lhiakapani likaitheni lipanianaa yaanaa katsani Dzooli, 1. Este aqui que é o próprio chá da planta do Dzooli, 2. likaitheni lipoiperettaka. 2. que fica dentro do território dele. 3. Liyokaro nowhaa nottidzaa romidzaka iwedalikona. 3. Com este chá eu vou sentar e adocicar a garganta dela.11 4. Romidzaka idakinaa, 4. Adocicar o corpo dela 5. likhoette watsehe yomali ipoamaka romidzaka idakinaa rhoa medzawadoa. 5. contra esta enfermidade que quer infectar dentro do corpo dessa criatura.12 Segunda fórmula 6. Kaphada mitha phia kani phia, Kowai Manhekanali, 6. Será que é você? Você, o Kowai Manhekanali, 7. ipoamali romidzaka idakinaa rhoaha medzawadoa. 7. que infectou o corpo desta criatura?13 8. Liyokaapeepimidzakaidakipemi, pianomhamiphia Kowai, 8. Com parte do seu corpo: com sua saliva, você Kowai 9. PimottoitheniKalikattadapanakhitte 9. que deixou surgir da copa da árvore 10. Malinalieninai ima. 10. por desobediência dos Malinalieni.14 11. Ima piakaliakonawapixenimikaniphia Manhekanali. 11. Pois consideraste que são as suas iras, como bicheiras, você Manhekanali.15 12. Pittoidanimikatsaniphia Manhekanali, 12. Os seus piolhos, você Manhekanali, 13. Pimawidalemikatsaniphia Manhekanali, 13. Os seus pentes, você Manhekanali, 14. Inaalikapakamoroitakanakaromidza-kaiwedalikonaarhoamedzawadoa. 14. que deixam a garganta perturbada, com tosse constante, desta criatura. 15. Kaphadamithananomhakainaliitakaromidzaka Iwedalikonaa rhoa Medzawadoa? 15. Será que é a saliva dos bichos que deixa irritada a garganta desta criatura? 16. Nhaalikapawatsanowhalinotakha-dalhelhemelimaipereiyowatseDzool 16. São contra estes que vou sentar, cortar e quebrar com o terçado de Dzooli 17. KathinadepidalimorodalerikoiDzooli 17. que sempre ficou guardado na mochila do Dzooli 18. Liiyokarowatsanotakhaa-namidzakahiiwidanaa, 18. Com este terçado, eu vou cortar a cabeça deles,16 19. Namidzkayetshanaa 19. os dentes deles e as línguas deles.17 Terceira fórmula 20. Romidzakaiwedalikonaayoodza, 20. É da garganta dela, 21. Romidzaka iwarodalenaayoodza, 21. é do tórax dela, 22.Romidzaka ikodanaayoodza. 22. é do peitoral dela 23. Liyowatseerottidzaanhaarhoa Amaro, 23. Com este, o chá de Amaro, 24. LikaithenilipaniakhakatsaniDzooli, 24. pois (ele) foi cultivado pelo Dzooli, 25. Lipoiperettakatsani 25. que fica no terreno dele. 26. Romalitshialeittadakatsani. 26. O que fica dentro do campo dela.18 27. Liyokarowatsa-notakhaadalhelhemeromidzakaidakinaayoodza 27. Com este (chá) eu vou cortar e quebrar estes que estão no corpo dessa criatura. 28. NhaalixenimikaKowai 28. São as bicheiras de Kowai. 29. Imalimakaleeitetekamika, noakaliakonawa 29. Para que a alma-coração não se assuste, eu vou acalmar 30. Makaleeirapathakamikanoakaliakonawa 30. a alma-coração que se agita. Vou aliviá-la. 31. NoomaMawalaninamikaliakona. 31. Vou deixar o corpo aliviado e sem dores.19 32. Liyowatsehenattidzaanhaamaapa: 32. Com este, o néctar das abelhas: 33. Peramadawa-naika, Pettoledawa-naika, 33. as vermelhinhas, as cinzas 34. Pettakadawa-naika. 34. as pretas 35. LipoiperettakatsaneDzooli. 35. Que ficam no terreno de Dzooli. 36. Nenikarowatsanoakarodzemaanawa: 36. Com estes tabacos, deixarei o corpo saudável: 37. KenhapenaliDzeema 37. O tabaco-suor,20 38. HaalhamhewiriDzeema, 38. o tabaco-alívio,21 39. KonenaliDzeema, 39. o tabaco-néctar de fruta,22 40. PottitshewiriDzeema, 40. o tabaco-doce,23 41. ManopanaaliDzeema. 41. o tabaco-sem reimoso.24 Quarta fórmula 42. Wadeetsakha mitha linakhitteka lhita liako daliawe Kowaika Keramo. 42. É possivelmente o bebê Kowai que se juntou às duas doenças.25 43. Linakhitteka Littiriko mika Oomawali Haarowi, 43. Junto à medula dele, do cobra Haarowi, 44. Rotani Ipoa: Dzakoi, Kawittiri, Kadane e Mooli]. 44. a temperatura da canoa dela: Dzakoi, Kawittiri, Kadane e Mooli.26 45. Royamaka ipoa, [Royamaka: Yamakatti]. 45. A temperatura das rendas dela.27 46. Rotsipalayale ipoa: Makali, Tsoyali: Lidana Iraiyali Ewayali, Ittayali e Haleyali. 46. A temperatura da voadeira dela: grande e pequena: vermelha, amarela, preta e branca. 47. Royarakale ipoa, Yaarakaya: Makali, Tsoyali: Lidana Iraiyali Ewayali, Ittayali e Haleyali. 47. A temperatura do avião dela: grande e pequeno: vermelho, amarelo, preto e branco.28 48. Rokaroni ipoa: Makali e Tsoyali: Lidana raiyali, Ewayali, Ittayali e Haleyali. 48. A temperatura do carro dela: grande e pequeno: vermelho, amarelo, preto e branco.29 49. Rotsintale ipoa: Lidana Iraiyali, Ewayali, Ittayali e Haledali. 49. A temperatura das tintas dela: vermelha, amarela, preta e branca.30 50. Rokapheni rodzekapeka nhaa linoma irapamirikoi Yaawali. 50. Tudo isto foi fabricado por ela31 no fogo, o fogo que sai na boca do Yaawali.32 51. Ikatsa watsa nowhalika nodzaliketa 51. São contra estes que eu sentarei e apagarei 52. romidzaka idakinaa yoodza watsa rhoa medzawadoa. 52. do corpo desta criatura.33 53. Wadee mithaa nhaaka kapatoitakana 53. É possível que eles provoquem dores graves para ela 54. Khamoka yoomanhioka romidzaka idakinaa. 54. e causem febre alta no corpo dela. 55. Nhopekaa liakonaa 55. Tudo isto eu vou esfriar 56. Dokomia nai hiipekaa iyo, 56. com o frio do Aroul,34 57. Hiwirhi nai hiipeka iyo, 57. com o sereno das estrelas, 58. Waliwa nai hiipekaa iyo, 58. com o sereno das estrelas-horizontes, 59. Rotsipalanalemi hiipekaa iyorhoa Amaro. 59. com o gelo que fica na geladeira da Amaro. 60. Wadee tsakha mithaa lhiakani graxa 60. É possível que seja a graxa. 61. Graxa Ewadali, iraidali, hiipoledali, ittadali, amoladali. 61. Graxas das cores amarela, vermelha, azul, preta e violeta 62. kadowhialenali yomaka romidzaka iwedalikonaa. 62. que a deixa sentir muita ânsia na garganta. 63. Gasolina: hipolenhai, irayanhai, haaleanhaai e amolanhai. 63. Gasolina azul, vermelha, branca e violeta. 64. Ikatsa nowhalika nhota kalaame, dzalaame romidzaka iwedalikonaa yoodza, 64. São contra estes que vou sentar, tirar e desmanchar da garganta dela, 65. Nopatoita liakonaa wapinakoalhe. 65. para não levar o doente ao outro mundo, Wapinakoalhe.35 66. Imali mawekana mika watsa liakonaa, 66. Para que ela não tenha mais tosse constante, 67. imali mamoroitakami kaliakonaa, 67. para que não tenha febre alta, 68. imali menene namika naakonaa, 68. para que não tenha mais línguas.36 69. Romidzaka iwedalikonaa yodza rhoa medawadoa. 69. Da garganta desta criatura. Quinta fórmula 70. Nodieta watsa rokalee liodza watsee pakoma 70. Devolverei a alma dela, do outro mundo 71. atsa watsaha nakalekomaliko nhaa medzawañanai 71. para aqui mesmo, no mundo das almas das pessoas. 72. Maapa makakoe pottidzakoe, 72. A abelha grande adocica37 73. Mapa tsokoe pottidzakoe rikolhee. 73. A abelha pequena adocica.38 74. Noa watsa romidzaka yedairenawa liedairena mitseka Daawi Ñapirikoli, 74. Ofereço um banquinho fresquinho para corpo dela, o banquinho que era da Onça-Ñapirikoli,39 75. kadzokaro mitsa nadenhikani nhaaka Likoaiñaite. 75. porque assim fizeram as Gentes-Saúde dele.40 76. Nokadaa roedairenawa iwidzoli idoniakoa. 76. Deixo um banquinho feito de leite de sorveira. 77. Attalee idoniakoa. 77. Feito de leite de sorveira grande. 78. Kaarapaa idoniakoa. 78. Feito de néctar de uva preta. 79. Piimi iwidzole idoniakoa. 79. Feito de sorvera da beija-flor. 80. Heemali Waro hemale idoniakoa. 80. Feito com abiú do papagaio. 81. Kamhero tsodalipe, makadalipe idoniakoa. 81. Feito com néctar de cucura pequena e grande. 82. Idzepo dzodalipe, makadalipe idoniakoa. 82. Feito com néctar de cucura do mato, pequeno e grande. 83. Maporotti tsodalipe, makadalipe idoniakoa. 83. Feito com néctar de umiri pequeno e grande. 84. Deeri idonia iyoo. 84. Feito com néctar de soruruca.41 85. Nayokaro watsa nodieta rokale liodza watse pakoma 85. Com estas frutas resgatarei a fraca alma-coração dela do outro patamar,42 86. imali makalee itetekamika noaka liakonaw 86. para que o coração não se agite, 87. Makale irapathakamika noaka liakonawa 87. Para que a alma-coração não se balance. 88. Liodza watsehe lidakipemii Kowai 88. Contra as peças que Kowai carregou como corpo43 89. rotanipoa rhoa Amaro. 89. ou a doença da poluição da canoa da Amaro.44 90. Nokadaa romidzaka iwawaronawa 90. Deixo para a alma dela 91. Konenali Dzeema, 91. o tabaco Konenali,45 92. Keñapenali Dzeema, 92. o tabaco Keñapenali,46 93. Padzapadzanali Dzeema, 93. o tabaco Padzapadzanali,47 94. Halhamhewiri Dzeema, 94. o tabaco Halhamheriwiri,48 95. KattimhewiriDzeema 95. o tabaco Kattimhewiri,49 96. Romidzaka idzolikadapana yaaphitte. 96. Dentro da casa dela.50 97. Kadzokaromitseka wapedzakiri Dzaawi Ñapirikoli, 97. Assim o fez Dzaawi-Ñapirikoli desde o princípio, 98. lhiakatsapa nhopa RoDzeemanawa rhoa medzawadoa, 98. assim também vou fazer na vida desta criatura. 99. Lidzemana mitseka wapedzakiri Pinaiwali. 99. Todos os tabacos que eram do Pinaiwali.51 100. Nookadaa romidzaka idakinawa 100. Vou deixar o corpo dela 101. limidzaka idakine patsirikonawaali. 101. igual ao corpo do camarão. 102. Lhiakapani matsiade hipaka imidzaka idakinawa likanalia yaphitte hEeri. 102. Ele que fica dentro da água com tranquilidade. Sexta fórmula 103. Pikapakapa wakokatsa liakokana 103. Olha! Todos esses que foram citados, nós também sabemos citar. 104. Wanoma katsa liakokana. 104. Fala igual a nossa fala. 105. Wawedakatsa liwedanaa, 105. Queixo a queixo resolvemos. 106. Wanhekatsa whapekaka wamidzaka idakinaa yodzani 106. Nós também sabemos desmanchar toda esta maldade do nosso corpo 107. Liyowatsee [...] 107. com este chá para esta criatura.52 108. Piako idakipemi yodza phia Kowai, 108. Contra toda a maldade que você, Kowai, carrega dentro do seu corpo, 109. piako idakipemi yodza phia omawali Harowiittiriko. 109. contra você também, medula da cobra grande,53 110. nhota dakadakame yakonaa. 110. despedaço todos vocês. 111. Kadzokaromitseeka 111. Assim também fez 112. wawheri DzawiÑapirikoli. 112. o nosso avô, Dzaawi-Ñapirikoli, 113. Yaako imakañai yodza yhia kapiwheriñainai 113. Contra o feitiço de todos vocês que foram transformados para seres encarnados.54

O benzimento contém seis fórmulas, como designamos aqui, que marcam diferentes momentos e etapas da encantação. A primeira e a última fórmula, embora distintas, tratam de momentos da encantação, em uma marcação temporal, quando o iñapakaita abre e fecha sua encantação; por sua vez, as outras fórmulas tratam das perspectivas mobilizadas, vislumbrando-se uma topologia cósmica, a partir das quais realiza-se a identificação dos agentes agressivos-patogênicos, as ações do especialista para combatê-los, bem como para a recomposição do corpo da pessoa doente. Essa topologia de diferentes lugares (idzakale, em baniwa) como autodeterminados ontologicamente pode ser formulada antropologicamente por meio da noção de “mundo” ou “perspectiva”, mas que, na opção de Ilda e Afonso, assume mais comumente a tradução de “cidade”, como no caso da “cidade dos ossos” (verso 66), “cidade das abelhas” (versos 73-74) e “cidade das frutas” (verso 85).55 55 Para uma discussão sobre a recorrência da ideia de “cidade” mobilizada no discurso xamânico baniwa, ver Wright (no prelo). Este etnólogo designou como “cosmogonic cities” esses lugares traduzidos como cidade pelos Baniwa para falar de diferentes pontos do cosmos que são associados aos espíritos e demiurgos, que os pajés visitam em seus sonhos e transes de pariká.

Na primeira fórmula, o especialista deve ofertar algo a Dzooli, dono do benzimento - lembremos que foi ele quem ensinou a encantação a Afonso. No caso em questão, foi oferecido um chá, mas pode ser também tabaco ou mel. A depender da doença, há ofertas mais eficazes que outras, elas são o “veículo do benzimento” (Buchillet 1992BUCHILLET, Dominique. 1992. “Nobody is there to hear: Desana therapeutic incantations”. In: E. Matteson, Jean Langdon & Gerhard Baer (orgs.), Portals of power: shamanism in South America. Albuquerque: University of New Mexico Press. pp. 211-230.). Além disso, é necessário um dawai, que traduzimos, por falta de termo melhor, como pagamento. Todo benzimento de cura deve ter um, em dinheiro ou por meio de algum objeto ou alimento, que é, por sua vez, oferecido pelo iñapakaita ao Dzooli. Assim, a invocação de Dzooli e o encontro do benzedor com ele, através de suas palavras, iniciam-se seguindo uma cortesia típica com as visitas formais baniwa a um grupo de parentes afins, exemplarmente desempenhada nas cerimônias poodali (Hill 1993HILL, Jonathann. 1993. Keepers of Sacred Chants. The Poetics of Ritual Power in an Amazonian Society. Tucson: The University of Arizona Press.; Journet 1995JOURNET, Nicholas. 1995. Les paix des jardins: Structures sociales des Indiens curripaco du haut Rio Negro (Colombie). Paris: Institut D’Ethnologie, Musée de L’Homme.), a saber, a troca de cumprimentos, informações e presentes. A partir de então, como vimos, Dzooli comparece nas fórmulas seguintes por meio de seu terçado, Dzooli imaipere, que é utilizado pelo especialista como se ele o tomasse emprestado do demiurgo. A troca de prestações se estabelece, o dawai do paciente pelo facão de Dzooli, mediado pelo iñapakaita, que o utilizará em favor do primeiro contra os agressores, cujas ações são evidenciadas na doença.

Na fórmula que sucede à abertura, acompanhamos o iñapakaita identificar a origem da doença, mas ele não o faz de modo direto, ele especula, perguntando a Kowai se é ele mesmo que causa o mal. Esse tom inicial, mais diplomático e cauteloso, cede lugar nas fórmulas seguintes a um tom mais beligerante. Oscila-se entre a negociação e a guerra, o que o iñapakaita modula de modo diligente. O tom do especialista quando menciona Kowai é o de negociação, mas, veremos, quando direcionado aos outros agentes causadores das doenças - que podem ser as partes destotalizadas de seu corpo, expressa por Afonso como “coisas” de Kowai -, tende a assumir um ar belicoso. Ainda nesta segunda fórmula, o especialista especifica a causa da doença, localizando-a precisamente na saliva, nos dentes e nas presas dos “bichos” de Kowai. Descreve os efeitos específicos destes elementos agressores no corpo de seu paciente e apresenta os modos de neutralizar e expurgar aquilo que o aflige.

Kowai é o dono da doença e isto significa que ele personifica o infortúnio, mas o especialista não perde do horizonte a multiplicidade que o constitui, anterior à sua individuação. Deste modo, o iñapakaita por meio de suas palavras está diante não apenas da pessoa do demiurgo, Kowai, mas do conjunto de agentes patógenos invisíveis que são partes destotalizadas de seu corpo. Esse corpo se distribui, tal como descrevem as fórmulas verbais, como os diferentes “bichos” ou “bicheiras” que são, mais especificamente:

[...] o cupim grande de três cores (vermelho, preto e branco); cupins pequenos de três cores (vermelhos, pretos e brancos); aranha; formiga; formiga de fogo; tocandeira; escorpião etc. Esses insetos são os piolhos de Kowai, e os olhos das pessoas comuns não podem vê-los. Mas os conhecedores, os benzedores e pajés percebem quando eles estão devorando o organismo das pessoas com a COVID-19, provocando sintomas de falta de ar, dores musculares, dor de cabeça, canseira, garganta entupida e tosse constante (Fontes 2021FONTES, Afonso. 2021. “Coronavírus no sonho do Hoohodene”. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, v. 1, n. 9, out. Disponível em Disponível em http://www.pari-c.org/ . Acesso em 31/ 01/ 2022.
http://www.pari-c.org/...
).

O corpo de Kowai ainda se destotaliza como aquilo que Afonso designa como as suas “peças”, isto é:

Após sua morte, Kowai deixou as partes de seu corpo como matéria-prima (animal, vegetal e mineral), instrumentos sagrados (japurutu, cariçu, maracá, surubim, ambaúba etc.), instrumentos dos não indígenas (percussão, sopro e cordas) e também como equipamentos feitos nas fábricas (televisão, eletrodomésticos, armamentos, máquinas etc.). Tudo isto faz parte do corpo de Kowai, são as suas peças, e permanece até hoje (Fontes 2021FONTES, Afonso. 2021. “Coronavírus no sonho do Hoohodene”. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, v. 1, n. 9, out. Disponível em Disponível em http://www.pari-c.org/ . Acesso em 31/ 01/ 2022.
http://www.pari-c.org/...
).

Os diferentes “bichos”, num registro animal, bem como suas “peças” (verso 89), num registro industrial, conformam um conjunto indeterminado de objetos patogênicos que funcionam como armas para Kowai (verso 89), o que nos permite compreendê-los como animados, vivos. Essas “coisas” de Kowai são notadas pelos xamãs como se relacionadas e indexadas na pessoa deste demiurgo. Kowai, assim, não é somente o mito, na forma de um de seus personagens, mas ele é a dobra entre, de um lado, os humanos (que adoecem ou podem vir a adoecer) e o cosmos especificado (atual) e, de outro, o mito, com um fundo virtual de diferença intensiva (Viveiros de Castro 2000VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2000. “Atualização e contraefetuação do virtual na socialidade amazônica: o processo de parentesco”. Ilha: revista de antropologia, v. 2, n. 1:05-46.), o duplo invisível (sobrenatural) do mundo humano. Por fim, através desta fórmula, chama-se novamente Kowai por seu outro nome, Manhekanali (versos 7, 12-14), variando as maneiras de identificar a doença que se pretende curar.

Na terceira fórmula, Amaro é identificada pelo iñapakaita, notando que é dentro dela, ou seja, em seu corpo e em seu “campo” (verso 27), que são encontradas as “peças” e as “bicheiras” de Kowai, aquilo que é preciso expurgar. Kowai, lembremos, é filho de Amaro, gestado por ela, então, observamos a função continente da mãe ser atualizada no benzimento. Por “campo” de Amaro podemos entender o lugar em que ela passou a viver depois de exilada por Ñapirikoli. Na epopeia mítica baniwa, esse exílio ocorreu porque Amaro capturou os aerofones cerimoniais nos quais o filho Kowai tinha se transformado, no episódio conhecido como “o roubo feminino das flautas sagradas”. Esse “lugar de Amaro” nas franjas do território indígena, cujo centro é a cachoeira de Hipana no rio Aiari, na bacia do rio Içana, coincide com o lugar onde vivem os brancos. Por esta razão, ela é “mãe de Kowai”, mas também “mãe dos brancos”, identificando-se ao mesmo tempo com as “coisas de Kowai” e com as “coisas dos brancos”.

É nesta fórmula da encantação que se inicia a recuperação do corpo doente. O iñapakaita realiza ações para não permitir mais que o coração (alma), ikaalemi, do paciente fique agitado, atuando no alívio das dores por meio dos diferentes tipos de tabaco e dos néctares de flores e frutas. A agitação do coração é o sinal para o xamã de que a alma do doente corre o risco de não retornar ao corpo, de encontrar outro mundo para viver. Também, ponto crucial, essas ações xamânicas visam ao esfriamento do paciente febril, já que à Amaro é atribuído o calor das fábricas e indústrias das grandes cidades, cujas fumaças se condensam no ar por meio da poluição tóxica, inoculando-se no paciente que respira o ar contaminado da atmosfera (verso 90). Aqui encontramos as fórmulas também utilizadas nos benzimentos contra gripe, whétsi.

Na quarta fórmula, é anunciada pelo iñapakaita a articulação entre Amaro, Kowai e Harowi. Já apresentamos brevemente os demiurgos Amaro e Kowai, faltando introduzir a cobra Harowi: o avô mítico dos brancos. Na cosmologia baniwa, avós míticos diferenciam-se dos demiurgos, embora tal distinção não seja nem precisa, nem absoluta.56 56 Em parte, essa imprecisão aponta para a necessidade de aprofundamento da investigação etnográfica, mas também para a indefinição fundamental que marca a ancestralidade mítica que, não obstante, reflete problemas que o parentesco amazônico formula a partir da curta memória genealógica e a indistinção terminológica, nos casos dravidianos ao menos, entre consanguíneos e afins na segunda geração ascendente e descendente, o que repercute o problema de os “mortos serem outros” (Carneiro da Cunha 1978), absorvidos sempre à afinidade potencial (Viveiros de Castro 2002, 2007). Assim, podemos considerar, como já fizemos, que os demiurgos são também avós míticos, porque se reconhece neles uma ascendência mítica que conecta um tempo mítico e atual, em relações complexas entre pessoas do mundo terrestre (Hekoapi) e do outro mundo (Apakoa Hekoapi). Mas, no caso de Harowi, embora os iñapakaita reconheçam nele a ascendência mítica (e não genealógica) dos brancos, não o reconhecem como um demiurgo, porque a ele não é atribuída nenhuma função especial na cosmogonia. Para os iñapakaita é importante compreender a ascendência não indígena para investigar a etiologia das doenças relacionadas de alguma maneira aos brancos e ao seu modo de vida, como o é o caso da gripe, da covid 19 e outras doenças infectocontagiosas pós-contato e, também, para atendê-los quando procuram os serviços xamânicos.57 57 João Paulo Barreto (2021), antropólogo yepamahsã, em sua tese, dedica um capítulo sobre como os especialistas xamânicos utilizam fórmulas adequadas capazes de recuperar e proteger pessoas não indígenas no centro de medicina indígena, Bahserekowi, em Manaus.

Toda pessoa que pretende ser “benzida” por um especialista baniwa precisa revelar sua filiação clânica (ou étnica), pois assim ele invocará o avô mítico de seu coletivo, bem como o tabaco específico relacionado a esse ancestral. Todos os clãs baniwa possuem um avô mítico e um tabaco xamânico exclusivo, que são invocados sempre diante de cada encantação. Mas os benzedores baniwa não conhecem a ancestralidade mítica de todos os clãs (e etnias) e, então, em face de pacientes estrangeiros, podem designar o avô e o tabaco como Manhekanali . Este é, como vimos, o outro nome de Kowai, revelando este demiurgo como o avô mítico dos estrangeiros e, assim, vislumbramos sua associação com a afinidade potencial. No caso dos brancos, ao invés deste avô mítico “coringa”, Afonso e outros benzedores baniwa têm reconhecido Harowi como o avô mítico, sendo Omawali Harowi Idzemana o nome do tabaco específico.58 58 Para saber o nome do tabaco e avô mítico dos clãs Walipere e Hohoodene, ver Fontes (2021).

Mencionamos que, nesta quarta fórmula, se estabelece uma articulação entre demiurgos e o avô mítico dos brancos, notando que são Amaro e Harowi, em especial, os invocados nos benzimentos contra gripe que compõem também a encantação contra covid-19. Na verdade, trata-se da articulação de duas encantações distintas contra gripe que podemos encontrar nos repertórios xamânicos de diferentes especialistas baniwa: uma que identifica sua causa em Amaro, a mais comum, e outra que a reconhece em Harowi, a preferida de Afonso. Esta relação entre as fórmulas encontradas nas duas distintas encantações contra gripe (de Amaro e da cobra Harowi) e a encantação contra o veneno (de Kowai) é a principal descoberta de Afonso em seu sonho com as orientações de Dzooli.

Na quinta fórmula, apresenta-se mais abertamente a terceira das principais ações xamânicas no benzimento: a recomposição do corpo da pessoa doente por meio do resgate da alma (ikaale).59 59 Lolli (2013) designou o que chamei de resgate da alma, acompanhando a literatura etnológica, como a composição dos componentes da pessoa. Segundo o autor, tal composição refere-se ao fato de que a alma yuhupdëh da pessoa doente se distribui entre os quatro pontos cardeais e que, por isso, precisa ser reunida novamente no corpo por meio da mediação do especialista xamânico. No caso baniwa, nos benzimentos que analisei, essa distribuição pulverizada da alma não comparece, pelo menos não da mesma maneira. Encaminha-se com isso para o fechamento da encantação. Essas ações implicam resgatar a alma do paciente que está perdida em Wapinakoalhe, a cidade dos ossos, localizada no subterrâneo, onde, do ponto de vista humano, após a putrefação da carne, os ossos dos defuntos repousam. Mas de outra perspectiva trata-se de uma camada cósmica onde estão os espectros dos mortos, dos demônios inayme, é o lugar no qual os feiticeiros jogam as almas que capturam (versos 71,72). É preciso resgatar a alma da pessoa doente e devolvê-la para a superfície, a Terra, “este mundo” (Hekoapi). Isto feito, é preciso retirar o rastro do amargo de Harowi e Amaro que corrompe as entranhas do paciente, substituindo por mel e néctar para, então, fortalecê-lo com os tabacos recuperadores (versos 91 a 96). É preciso ainda ajudar o corpo do paciente que está fraco, oferecendo-lhe um banquinho onde a pessoa pode recobrar sua postura ereta e sentir-se serena. O iñapakaita está recompondo o corpo do doente, refazendo-o, como quando diz que o está moldando à feição de um camarão que boia tranquilamente na água (versos 101, 102, 103).

Por fim, antecipando o fechamento da encantação ainda em sua quinta fórmula, o iñapakaita convoca o demiurgo Ñapirikoli, chamando-o por seu nome na linguagem do benzimento, Dzawi-Ñapirikoli, isto é, Ñapirikoli-onça (Versos 98, 99). Este é o demiurgo responsável pela ordenação do cosmos, por várias conquistas culturais, em suma, trata-se de um herói criador. Assim, na última fórmula desta encantação, o iñapakaita, que na abertura tinha acionado Dzooli, o dono do benzimento, agora conclama Ñapirikoli, dizendo que com suas palavras está fazendo o mesmo que o demiurgo criador dos Baniwa fez desde o princípio dos tempos (Versos 112, 113). Trata-se de procedimento análogo ao que descreve o maliri Manuel: o xamã com pariká (e diríamos aqui, com “palavras geradoras”) é como Ñapirikoli.


Súmula das principais ações de acordo com as fórmulas poético-xamânicas

Kowai-mundo, Kowai-terra

Francineia Fontes (2019:119FONTES, Francineia. 2019. Hiipana, eeno hiepolekoa: construindo um pensamento antropológico a partir da mitologia Baniwa e de suas transformações. Dissertação de Mestrado, Museu Nacional/UFRJ.), antropóloga baniwa do clã Walipere Dakenai, em sua dissertação de mestrado, destaca que no princípio dos tempos a Terra era muito perigosa, pois todos os insetos possuíam venenos letais. Segundo a autora, isso se deveu às ações de Ñapirikoli que, para matar os animais Eenonai, usou muito veneno. Entretanto, esses venenos utilizados como arma de guerra tiveram um efeito inverso, pois os inimigos de Ñapirikoli tornaram-se extremamente peçonhentos. Determinado a corrigir o seu equívoco, o demiurgo queimou todo o mundo, em seguida, lavou-o com um dilúvio e, por fim, secou-o novamente. Embora ele não tenha conseguido extinguir os venenos dos animais, atenuou o suficiente para permitir a vida atual dos seus netos, os humanos.

Afonso assinala que a Terra continua a reter em seu solo e subsolo os venenos utilizados por Ñapirikoli e que esses venenos são na verdade o sangue e as cinzas de Kowai. Um exemplo, segundo ele, na visão dos xamãs, são os minerais localizados no subterrâneo, tal como o petróleo e o carvão mineral que, extraídos e queimados na forma de combustível fóssil, configuram a forma visível (“material”) dos venenos de Kowai. Não é somente o subsolo, mas o solo de maneira geral que está revirado e, por isso, aponta Afonso, os venenos de Kowai estão pulverizados na atmosfera, o que explica a toxicidade atual do planeta, suas mudanças climáticas e as “doenças do mundo”, as epidemias que acometem seus habitantes. Do ponto de vista xamânico, trazer à superfície as “coisas de Kowai” em grande escala para sustentar as fábricas de Amaro e os motores da filha da cobra Harowi, bem como alimentar os seus netos, os não indígenas, não pode senão causar infortúnios e adoecimentos para populações inteiras do planeta.

Diversos diagnósticos apontam que a pandemia de covid-19, como outros surtos de doenças infectocontagiosas do último século, é o resultado do avanço do capitalismo (Marques 2020MARQUES, Luis. 2020. “A pandemia incide no ano mais importante da história da humanidade. Serão as próximas zoonoses gestadas no Brasil?”. Pandemia crítica. Disponível em: < Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/textos/5 >. Acesso em 29/03/2021.
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). Mais especificamente, pode-se apontar que sua eclosão está relacionada, conforme Wallace (2020:527WALLACE, Rob. 2020. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Elefante.) “às mudanças na produção ou no uso do solo associadas à agricultura”, pela monocultura de capital intensivo. Segundo este biólogo evolutivo, a agroindústria de pecuária e a agricultura impulsionam desmatamento que aumenta a taxa e o alcance taxonômico do transbordamento de patógenos dos animais selvagens para os animais da pecuária e, então, para os humanos. O mundo industrial moderno que produz objetos, tecnologia e carne animal para consumo humano se alimenta das “coisas de Kowai”, transformando-as em mercadorias e, assim, suas “peças” e “bicheiras” se distribuem em escala global. Todavia, as “coisas de Kowai” não estão exclusivamente no mundo industrial, pois estão, antes, nos insetos com ferrão, nos animais, no subsolo e na superfície terrestre, nas árvores e nas frutas, nas águas e nos peixes.

Os Baniwa manejam esses riscos em suas comunidades, roças e floresta, sendo eles objetos de atenção na caça, na pesca, na coleta, na roça, na confecção de canoas, de aerofones cerimoniais e de utensílios para beneficiamento de mandioca. Eles sabem que qualquer atividade humana produz efeitos no mundo, o qual responde e, por isso, requer cuidados: benzimentos, manejos ambientais, rituais de troca, assepsia xamânica, comedimento na produção e extrativismo, silêncio em determinados lugares e negociações cósmicas com os “donos”. Tal como delinearam magnificamente o xamã yanomami Davi Kopenawa e o antropólogo Bruce Albert60 60 Referimo-nos a Albert (1988, 1993) e Kopenawa e Albert (2010). em uma crítica xamânica da modernidade, é possível observar que os brancos (o “povo da mercadoria”, nas palavras de Kopenawa) em sua empresa capitalista, ao contrário dos Baniwa, dos Yanomami e dos povos indígenas de modo geral, negando macro e micropoliticamente os efeitos nocivos de suas próprias atividades, atuam como se eles não existissem e, por isso, exponenciam os riscos descontroladamente.

Não é contra Kowai que o iñapakaita direciona suas fórmulas verbais, mas contra as suas “coisas”. Em grande medida, porque Kowai é tudo e todas as coisas, ele é os animais, os vegetais e os minerais,61 61 Em algumas versões, ao invés de descrito como homem branco, pode ser descrito um animal desconhecido. No mito, Kowai transforma-se em pedra para poder devorar os Malinalieni. No fim da narrativa, após ser assassinado por Ñapirikoli, ele se transforma na palmeira paxiúba, a partir da qual se confeccionam os aerofones cerimoniais, nos quais Kowai se transforma. é o dono do ar, dos venenos e das doenças, ele é a música e as encantações, ele é os instrumentos aerofones das cerimônias de iniciação masculina, ele é indígena e não indígena, ele está vivo e morto ao mesmo tempo, ele é a própria Terra que expandiu com seu sopro musical62 62 Segundo Garcia, do clã Hoohodene: “Wamodana [Kowai] apontou o dedo indicador na direção dos meninos [os Malinalieni] e começou o canto dele, conhecido como Maliawa. Cada parte, de todo o seu corpo, produzia uma música diferente. Foi neste momento que a Terra tomou a forma e a proporção que conhecemos hoje, conforme a propagação do eco produzido pelo som da música de Kowai. Parecia que a Terra se enchia como um balão, expandindo-se. Esta é a origem dos solos para nosso povo” (ACEP v.2 2013). e o solo que ele constituiu a partir de suas fezes.63 63 Segundo Luis Manuel, do clã Walipere-dakenai (Cornelio et al. 1999:74): “Nhãprikuli pensou sobre essa terra - será que não havia nenhum modo dele conseguir e dar terra para o povo, e dele conseguir plantas para colocar roça? Então ele procurou a terra com Kuwai. Assim, era muito pequena a primeira terra. Cresceu a terra... Ele cagou a terra, o Kowai... Nhãpirikuli viu Kuwai cagar a terra [...] Essa terra é seu cocô, o cocô de Kuwai. A terra cresceu um pouco, a terra era tão pequena, assim era a terra antigamente, o primeiro mundo para nós [...] Assim, no começo, a terra foi feita para nós”. O iñapakaita (benzedor) e o maliri (pajé) baniwa não pretendem matá-lo, prendê-lo ou exilá-lo, como tentou malogradamente Ñapirikoli em determinado momento, mas sim quebrar e adocicar as suas “coisas” que fazem mal naquele momento ao seu paciente. É preciso lembrar que Kowai é dono de tudo, porque o seu corpo é constituído de todas as coisas que existem no mundo, com exceção do fogo. Os diferentes tipos de veneno que provêm das distintas partes do corpo de Kowai são seus pelos, aqueles do peito, da perna e do braço, são sua saliva e são o seu cérebro, o mais forte de todos, além das cinzas de sua carne e de seus ossos incinerados na fogueira de Ñapirikoli. São esses venenos que os feiticeiros (manhene iminiali) procuram, cavando a terra, para fazerem venenos (manhene) com fins malignos. Não fortuitamente as pessoas envenenadas apresentam como sintoma o desejo de comer terra, cinzas e pedaços podres de pau que ficam no chão. Kowai os deixou de propósito na Terra, para a humanidade, ele queria se vingar pela imolação que lhe foi imposta por Ñapirikoli.

Para fazer intervir o xamanismo baniwa no debate sobre o Antropoceno, poderíamos experimentar uma analogia, apontando que tanto Kowai quanto a Terra estão se vingando dos humanos. Vimos que Kowai é vulnerável ao fogo, mas, mesmo incinerado, ele não sucumbe, retornando em vingança. Assim também a Terra que, embora vulnerável ao calor, apresentando-se “febril”, o “aquecimento global” parece se voltar contra os humanos de muitos modos possíveis. Stengers (2015STENGERS, Isabelle. 2015. No tempo das Catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify.) designa como “a intrusão de Gaia” o que os humanos experimentam como a vingança da Terra no atual regime climático. Mas a autora defende que isto não é propriamente uma vingança, pois Gaia, o sistema Terra, é indiferente aos humanos. Nesse sentido, a vingança de Kowai trata igualmente de um retorno lógico, um efeito bumerangue que assombra os humanos que acreditavam tê-lo superado, mas, diferentemente, Kowai não apresenta a mesma indiferença de Gaia. Ele tem arroubos de ira, como quando canibalizou os Malinalieni, e nas inúmeras vezes em que tentou assassinar Ñapirikoli.

Disto podemos depreender que os esforços dos especialistas baniwa no caso da pandemia pelo novo coronavírus não é somente contra o capitalismo, a modernidade e os brancos, embora não os subestimem de maneira alguma. Mas, descentrando os não indígenas do debate cosmopolítico em questão, eles parecem mais atentos ao perigo de uma certa ideia insidiosa - a da transcendência humana em relação à imanência da Terra, a negação da Terra -, que todos nós, não indígenas e indígenas, embora não da mesma maneira, e isso faz absolutamente toda a diferença, escolhemos atualizar.

Considerações finais

Afonso tem testado largamente o seu benzimento e tem repassado as fórmulas aos seus irmãos e parentes para que protejam suas famílias. Agora, ele divide sua encantação com mais gente, porque sabe que ela é um bálsamo frio para corpos febris. Trata-se de um cuidado para que os doentes se recuperem e estejam preparados para os outros infortúnios certamente vindouros no regime político e climático atual. Ele não defende que seu benzimento seja a cura do mundo, pois sabe que sozinhos, ele e os outros xamãs, não poderão desligar todas as fontes de calor, esfriar o planeta e esconder novamente as coisas de Kowai debaixo da terra para desanuviar as fumaças tóxicas do céu. É por isso que escreve aqui suas palavras, ensina-as aos não indígenas. O benzimento aqui transcrito, traduzido e analisado não é para que os brancos o reproduzam - aliás, mesmo possuindo-o, não poderiam -, mas para que o traduzam em seus próprios termos. Assim, se bem escutarmos os iñapakaita e maliri baniwa, poderemos aprender com estes especialistas a xamanizar o mundo, o que não significa acessar uma experiência religiosa, mística, transcendente, mas, ao contrário, inventar novas relações com a terra, percebê-la em sua imanência. É sobretudo um alerta que Afonso oferece a todos aqueles que preferem não ver as “coisas” vivas do mundo.

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Notas

  • 1
    Nicole Soares-Pinto, Milena Estorniolo, Stephen Hugh-Jones e Geraldo Andrello, bem como os/as pareceristas anônimos/as, leram versões que resultaram neste texto. Agradecemos seus comentários, sugestões e críticas. Um esboço inicial dessas ideias foi apresentado no GAIA: Núcleo de estudos dos povos da terra, agradecemos os comentários recebidos.
  • 2
    Azevedo (2018:153), antropólogo Yepamahsã, povo que habita o Alto Rio Negro, aponta a influência religiosa da tradução “benzimento”, recusando-a em seu texto. Este autor define-o como “palavras e expressões especiais que possibilitam a comunicação, interação, o diálogo com os Mahsã e waimahsã [as gentes invisíveis], para evitar certas doenças das diversas fases da vida, para ocupar e usufruir nas formas diversas do espaço Di’ta Nʉhkʉ [Terra/Floresta]”.
  • 3
    A abordagem dinâmica proposta neste artigo a partir da semiótica wagneriana é inspirada nas formulações de Kelly (2005).
  • 4
    Termo cunhado por Crutzen e Stoermer (2015CRUTZEN, Paul J. & STOERMER, Eugene F. 2015. “O antropoceno”. Piseagrama, Belo Horizonte, sem número. Disponível em: <Disponível em: https://piseagrama.org/o-antropoceno >. Acesso em 31/01/2022.
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    ) para caracterizar a época em que a espécie humana se tornou uma força geofísica de alcance planetário e de duração e abrangência geológicas. Essa época geológica é marcada pela queda da biodiversidade, elevação dos mares, aquecimento global, entre outros indicadores, que delineiam um colapso ecológico em curso que extingue e ameaça as condições de vida humana e não humana no planeta.
  • 5
    Dados do verbete Baniwa escrito por Wright e Andrello para a publicação “Povos indígenas no Brasil”, organizado pelo Instituto Socioambiental. Em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Baniwa. Acesso em 16/03/2021.
  • 6
    Ramos e Epps (2018RAMOS, Danilo & PATIENCE, Epps. 2018. “Caminhos de sopro: discurso xamânico e percursos florestais dos Hupd’äh”. Mana, 24 (1):161-198.) oferecem uma crítica à redução da habilidade xamânica de entoar encantações à memória, destacando como os aprendizes benzedores hupd’äh aprendem as fórmulas em caminhadas na floresta.
  • 7
    Fontes (não publicadoFONTES, Afonso. (Não publicado). Pajés e modernidade.) categoriza diferentes funções xamânicas entre os Baniwa: “sucção da doença”, “benzer”, “prever acontecimentos”, “dançar” e “conhecer remédios tradicionais”. Um maliri (pajé) geralmente reúne a maior parte dessas funções que se distribuem entre os diferentes especialistas e mesmo entre os não especialistas. Contudo, é exclusivo dos maliri a sucção da doença e a utilização de pariká com fins de cura, o que implica que têm certo privilégio no contato com seres não humanos que habitam o cosmos. Para uma discussão das especialidades xamânicas no Alto Rio Negro, ver o clássico artigo de S. Hugh-Jones (1994HUGH-JONES, Stephen. 1996. “Shamans, prophets, priests and pastors”. In: Nicholas Thomas & Carolin Humphrey (orgs.), Shamanism, history, and the state. Ann Arbor: University of Michigan Press. pp. 32-75.).
  • 8
    Designação genérica para diferentes tipos de pó alucinógeno utilizados pelos maliri baniwa para viajar no cosmos e encontrar a cura de seus pacientes.
  • 9
    À época, relatei para Afonso que minha cachorra estava rouca, sem nenhuma voz, então, suspeitando de se tratar do novo coronavírus, ele me orientou para que eu a benzesse com o mesmo tabaco que ele havia me enviado. Os animais estão incluídos entre os parentes que compõem uma casa.
  • 10
    A organização da apresentação do benzimento é livremente inspirada nas soluções encontradas por Ramos e Epps (2018RAMOS, Danilo & PATIENCE, Epps. 2018. “Caminhos de sopro: discurso xamânico e percursos florestais dos Hupd’äh”. Mana, 24 (1):161-198.) para a tradução de uma encantação xamânica hupd’äh.
  • 11
    Ela, a pessoa que contratou o serviço xamânico.
  • 12
    Criatura é um dos modos de designar nesta tradução a pessoa objeto do procedimento xamânico.
  • 13
    Momento em que o iñapakaita deve anunciar o clã da pessoa benzida e pegar o pagamento (dawai).
  • 14
    Na mitologia baniwa, Malinalieni é o conjunto de irmãos, sobrinhos de Ñapirikoli, que estão em jejum ritual para iniciação masculina sob coordenação de Kowai. Os irmãos, com exceção de um deles, desobedecem uma restrição imposta por Kowai e são por isso devorados por ele. Neste episódio, sabemos também que os cipós são a saliva de Kowai que, ao dormir em cima de uma árvore, babou deixando a saliva pendendo em direção ao chão, tal como os cipós de hoje.
  • 15
    Um dos modos dos iñapakaita designarem Kowai nos benzimentos.
  • 16
    As cabeças das “bicheiras”.
  • 17
    Dentes cuja mordida e língua provocam moléstia à garganta.
  • 18
    O campo-território de Amaro.
  • 19
    Isso porque a pessoa doente está sentindo uma espetada no peito.
  • 20
    Para o corpo voltar a ficar bem, capaz de produzir suor.
  • 21
    Para o corpo voltar a sentir-se aliviado, leve.
  • 22
    Para corpo ficar protegido dentro dos néctares das frutas.
  • 23
    Para o corpo ficar doce e a doença não poder infectar a pessoa.
  • 24
    Para que esta pessoa volte se alimentar normalmente.
  • 25
    Referência à gripe de Amaro e à gripe de Harowi.
  • 26
    A “canoa de Amaro” funciona como categoria geral para as canoas de madeira. Dzakoi, Kawittiri, Kadane e Mooli são nomes de árvores das quais se fazem canoas, caracterizadas por diferentes qualidades que envolvem dureza, odores e cores.
  • 27
    Referência também às “máquinas de costura de Amaro”, funcionando como categoria geral das máquinas de costura.
  • 28
    O “avião de Amaro” funciona como categoria geral dos aviões.
  • 29
    O “carro de Amaro” funciona com categoria geral dos carros.
  • 30
    A “tinta de Amaro” funciona como categoria geral das tintas.
  • 31
    Amaro.
  • 32
    Dragão ou jacaré que originou o fogo, de acordo com a mitologia baniwa.
  • 33
    O iñapakaita deve mais uma vez enunciar o clã da pessoa benzida.
  • 34
    Aroul, Aru ou Arú, modo como se designa em nheengatu, língua geral na região, os seres que carregam o frio e provocam a “friagem” que ocorre entre os meses de julho e agosto.
  • 35
    A cidade dos ossos.
  • 36
    Referência às línguas dos “bichos”, é com língua que eles chupam a garganta do doente, causando tosse.
  • 37
    Referência à “cidade das abelhas”, onde o corpo do doente pode ficar dentro dos méis das abelhas, protegido da doença.
  • 38
    Referência à “cidade pequena das abelhas”, assim o iñapakaita guarda a alma do doente para ficar protegido.
  • 39
    O “banquinho” é um lugar protegido, doce e macio, onde a pessoa está a salvo da maldade. Neste lugar a doença não pode mais chegar na pessoa, nem infectá-la.
  • 40
    Referência às “gentes” que cuidaram da saúde do demiurgo Ñapirikoli no episódio narrado pela mitologia baniwa em que ele quase morreu após ter sido engolido pela cobra grande e vivido dentro de sua barriga.
  • 41
    Nesse momento do benzimento, o iñapakaita está pensando numa cidade repleta dessas frutas, ele leva a alma do paciente até este lugar. Assim, depois de se recuperar, o paciente pode ficar protegido de qualquer doença maligna.
  • 42
    Referência ao mundo das pessoas muito doentes, onde estava a alma da pessoa doente.
  • 43
    As peças são como armas de Kowai que podem causar doenças, mas aqui o iñapakaita refere-se especificamente ao coronavírus.
  • 44
    Referência à gripe.
  • 45
    Para o corpo saudável.
  • 46
    Para o corpo voltar a suar.
  • 47
    Para a pele ficar sempre hidratada.
  • 48
    Para o corpo se aliviar das dores.
  • 49
    Para o corpo ficar muito alegre depois do sofrimento.
  • 50
    Referência ao resgate de alma levada de volta ao seu corpo.
  • 51
    O iñapakaita, com essas palavras estão reunidos todos os tipos de tabacos bons que foram deixados pelo ser Pinaiwali.
  • 52
    Mencionar o nome da pessoa benzida novamente.
  • 53
    Haarowi.
  • 54
    Os humanos atuais.
  • 55
    Para uma discussão sobre a recorrência da ideia de “cidade” mobilizada no discurso xamânico baniwa, ver Wright (no preloWRIGHT, Robin.No prelo. “Cities of Transformations and Power in the Baniwa and Kuripako Cosmos”. In: Fernando Santos-Granero & Emanuele Fabiano (orgs.), Urban Imaginaries in Native Amazonia: Tales of Alterity, Power and Defiance. Gainesville: University Press of Florida.). Este etnólogo designou como “cosmogonic cities” esses lugares traduzidos como cidade pelos Baniwa para falar de diferentes pontos do cosmos que são associados aos espíritos e demiurgos, que os pajés visitam em seus sonhos e transes de pariká.
  • 56
    Em parte, essa imprecisão aponta para a necessidade de aprofundamento da investigação etnográfica, mas também para a indefinição fundamental que marca a ancestralidade mítica que, não obstante, reflete problemas que o parentesco amazônico formula a partir da curta memória genealógica e a indistinção terminológica, nos casos dravidianos ao menos, entre consanguíneos e afins na segunda geração ascendente e descendente, o que repercute o problema de os “mortos serem outros” (Carneiro da Cunha 1978CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 1978. Os mortos e os outros. Uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa entre os índios krahó. São Paulo: Hucitec.), absorvidos sempre à afinidade potencial (Viveiros de Castro 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. “O Problema da afinidade na Amazônia”. In: E. Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac e Naify. pp. 87-180., 2007VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2007. “Xamanismo transversal, Lévi-Strauss e a cosmopolítica amazônica”. In: Rubem Caixeta de Queiroz & Renarde Freire Nobre (orgs.), Lévi-Strauss: leituras brasileiras. Belo Horizonte: UFMG.).
  • 57
    João Paulo Barreto (2021BARRETO, João Paulo. 2021. Kumuã na kahtiroti-ukuse: uma “teoria” sobre o corpo e o conhecimento-prático dos especialistas indígenas do Alto Rio Negro. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal do Amazonas, Manaus.), antropólogo yepamahsã, em sua tese, dedica um capítulo sobre como os especialistas xamânicos utilizam fórmulas adequadas capazes de recuperar e proteger pessoas não indígenas no centro de medicina indígena, Bahserekowi, em Manaus.
  • 58
    Para saber o nome do tabaco e avô mítico dos clãs Walipere e Hohoodene, ver Fontes (2021FONTES, Afonso. 2021. “Coronavírus no sonho do Hoohodene”. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, v. 1, n. 9, out. Disponível em Disponível em http://www.pari-c.org/ . Acesso em 31/ 01/ 2022.
    http://www.pari-c.org/...
    ).
  • 59
    Lolli (2013) designou o que chamei de resgate da alma, acompanhando a literatura etnológica, como a composição dos componentes da pessoa. Segundo o autor, tal composição refere-se ao fato de que a alma yuhupdëh da pessoa doente se distribui entre os quatro pontos cardeais e que, por isso, precisa ser reunida novamente no corpo por meio da mediação do especialista xamânico. No caso baniwa, nos benzimentos que analisei, essa distribuição pulverizada da alma não comparece, pelo menos não da mesma maneira.
  • 60
    Referimo-nos a Albert (1988ALBERT, Bruce. 1988. "La fumée du métal: histoire et représentations du contact chez les Yanomami (Brésil)". L'Homme, 106-107:87-119., 1993) e Kopenawa e Albert (2010KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. 2010. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras.).
  • 61
    Em algumas versões, ao invés de descrito como homem branco, pode ser descrito um animal desconhecido. No mito, Kowai transforma-se em pedra para poder devorar os Malinalieni. No fim da narrativa, após ser assassinado por Ñapirikoli, ele se transforma na palmeira paxiúba, a partir da qual se confeccionam os aerofones cerimoniais, nos quais Kowai se transforma.
  • 62
    Segundo Garcia, do clã Hoohodene: “Wamodana [Kowai] apontou o dedo indicador na direção dos meninos [os Malinalieni] e começou o canto dele, conhecido como Maliawa. Cada parte, de todo o seu corpo, produzia uma música diferente. Foi neste momento que a Terra tomou a forma e a proporção que conhecemos hoje, conforme a propagação do eco produzido pelo som da música de Kowai. Parecia que a Terra se enchia como um balão, expandindo-se. Esta é a origem dos solos para nosso povo” (ACEP v.2 2013ACEP. 2012. O que a GENTE precisa para VIVER e estar BEM no MUNDO. Vols. 2. Disponível em: Disponível em: https://issuu.com/instituto-socioambiental/docs/manejo_pamaali_portugues . Acesso em 20/04/2016.
    https://issuu.com/instituto-socioambient...
    ).
  • 63
    Segundo Luis Manuel, do clã Walipere-dakenai (Cornelio et al. 1999:74): “Nhãprikuli pensou sobre essa terra - será que não havia nenhum modo dele conseguir e dar terra para o povo, e dele conseguir plantas para colocar roça? Então ele procurou a terra com Kuwai. Assim, era muito pequena a primeira terra. Cresceu a terra... Ele cagou a terra, o Kowai... Nhãpirikuli viu Kuwai cagar a terra [...] Essa terra é seu cocô, o cocô de Kuwai. A terra cresceu um pouco, a terra era tão pequena, assim era a terra antigamente, o primeiro mundo para nós [...] Assim, no começo, a terra foi feita para nós”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2021
  • Aceito
    30 Jan 2022
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