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COSTA, Luiz. 2017. Owners of kinship: asymmetrical relations in indigenous Amazonia. Chicago: HAU Books. 275p.

COSTA, Luiz. .2017. .Owners of kinship. : asymmetrical relations in indigenous Amazonia. .Chicago: :. HAU Books, .275p.

O trabalho de Luiz Costa vem se destacando há alguns anos por suas contribuições ao estudo das relações de maestria na Amazônia. Haveria nesses mundos amazônicos donos demais, como diz Fausto (2008FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: maestria e domínio na Amazônia”. Mana: Estudos de Antropologia Social, 14(2): 329-366 . ) em artigo que foi, talvez, a primeira tentativa de síntese sobre o tema da maestria, no qual Costa aparece duas vezes como referência. Trata-se assim de uma trajetória de investigação que se insere em um dos estilos analíticos sugeridos por Viveiros de Castro (2011[2002]:333VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2011[2002]. A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac-Naify.), a saber, a economia política do controle, mas na qual as trocas simbólicas também ocupam um importante papel.

O livro se articula, como resume Janet Carsten no prefácio, em quatro temas- chave principais: alimentação, maestria, dependência e comensalidade, todos eles orientados pela investigação sobre o parentesco. A articulação entre estes quatro temas busca portanto responder ao que permite aos Kanamari fabricarem parentesco ou, dito de modo mais amplo, o que significa (para os Kanamari) estar em relação. O fio condutor da argumentação é a relação entre corpo e dono, que é apresentada inicialmente a partir de uma investigação sobre como era o corpo dos antigos chefes, durante a qual o autor escuta a seguinte reflexão de um kanamari: “nosso corpo é nosso dono e nosso chefe” (:2COSTA, Luiz. 2017. Owners of kinship: asymmetrical relations in indigenous Amazonia. Chicago: HAU Books. 275p.). Chega-se então ao termo warah (que o autor irá traduzir como “corpo-dono”), descrito como a relação através da qual os Kanamari produzem parentesco.

Como o ato de alimentar é central nesse processo, cria-se parentesco tanto alimentando alguém quanto dividindo o alimento, duas coisas fundamentalmente diferentes para os Kanamari. De um lado ao alimentar (um animal de estimação, um recém-nascido...), a relação que se cria é de dependência (por parte do alimentado); e de outro ao dividir o alimento com os corresidentes surgem relações de comensalidade. Por meio destes dois modos relacionais específicos, o ato de alimentar e a comensalidade, os Kanamari pensam os diferentes modos de engajar os outros e coordenar suas ações. Como o ato de alimentar é menos explorado na literatura será justamente ele o foco principal do livro.

Uma das teses centrais do livro é que, entre os Kanamari, o parentesco deriva de relações de maestria, isto é, relações assimétricas entre um dono e suas criaturas. A maestria revela-se como um esquema relacional básico seja no parentesco, na caça, na guerra ou no xamanismo. O trabalho de Costa se alinha deste modo a um conjunto de outras pesquisas (ver especialmente a nota 2 na página 6) que focam naquilo que seria uma noção amazônica (ou ameríndia, de maneira mais ampla) de domínio. Nesse esquema relacional orientado pela maestria pais são “donos” de seus filhos assim como um chefe é “dono” de seu grupo e uma mulher é “dona” de seu animal de estimação.

A análise das relações assimétricas entre os Kanamari começa pela relação das mulheres kanamari com seus animais de estimação (bara o’pu, “pequena caça”): é aqui que se revela de maneira mais óbvia a transformação de relações de predação (que é o contexto do qual esses animais se originam, isto é, a caça) em controle e proteção. Alimentar (ayuh-man, “dar comida” ou “causar necessidade”, ou seja, suprir, prover) é descrito então como o jeito kanamari de olhar para as relações, pois a potência deste ato é aquela capaz de criar e perpetuar uma necessidade, e isto tanto em animais quanto em pessoas e mesmo em espíritos auxiliares (no xamanismo). Alimentar o animal, a princípio selvagem (geralmente capturado durante uma caçada por um homem e dado a uma mulher na aldeia), se constitui em um expediente de efetivo controle, que induz nele a necessidade da dona. Se na relação com animais de estimação vemos surgir no alimentado um desejo mecânico, no xamanismo o que aparece a partir do ato de alimentar é um desejo negociado, no qual o xamã precisa alimentar o seu espírito auxiliar (que chama o xamã de “pai” justamente por isso) para manter sua potência xamânica.

É no terceiro capítulo que Costa transpõe de maneira detalhada a análise da maestria para a relação entre os pais e o recém-nascido, demonstrando se tratar, também aqui, de um processo de conversão de predação em parentesco por meio da filiação adotiva. Trata-se de pôr em relevo a natureza construída das relações de filiação através das quais bebês são transformados em parentes. Um importante aspecto é o fato de que a couvade e também as práticas perinatais dos Kanamari estão presentes mesmo se gestações não resultam em bebês, revelando a preocupação com o sangue envolvido tanto nos eventos de nascimento quanto nos de abortos. De certo modo, assim como os Kanamari não sabem como se forma o sangue dos seus inimigos, também ignoram como é feito o sangue dos bebês, já que nem um nem outro foi alimentado pelos Kanamari: trata-se de um sangue “novo”, originado em um elemento externo, estranho e por isso mesmo perigoso.

Apesar dos rituais de couvade isolarem o pai e a mãe, os limites do parentesco kanamari são dados pelo pertencimento a um subgrupo, ou dyapa (como em muitas sociedades situadas nas bacias do Juruá e Purus), associado a uma grande casa, e principalmente a um chefe. Os subgrupos kanamari estão em relações de aliança (ou de hostilidade) entre si, organizadas por meio de encontros muitas vezes rituais como os hori, que não envolvem fabricação de parentesco e nem mútua alimentação, mas sim a troca entre afins (tawari). Trata-se assim de um terceiro modo relacional, diverso dos outros dois que vimos até o momento e que evita o parentesco através da aliança. Aqui ao mesmo tempo em que se fala em “matar” os membros do outro subgrupo ao torná-los bêbados, também verificamos que as relações de troca permitem a construção daquilo que o autor chama de “arquipélagos de segurança num oceano de predação” (:208COSTA, Luiz. 2017. Owners of kinship: asymmetrical relations in indigenous Amazonia. Chicago: HAU Books. 275p.).

O fato de que existe um chefe de subgrupo que alimenta seus seguidores é, segundo Costa, a origem da vida social kanamari. Num mesmo subgrupo todos se dirão parentes, da mesma maneira que fora dos seus limites está a região do parentesco de onde provêm os afins, que os Kanamari caracterizam como “parentes distantes”. Para além deste limite estão os não parentes, outros povos indígenas e evidentemente também os brancos (embora na narrativa kanamari o prmeiro branco apareça como tawari). É interessante notar que a própria divisão do tempo histórico segundo os Kanamari (capítulo quatro) descreve um movimento de dispersão destes subgrupos (inclusive com o abandono das roças por causa do trabalho nos seringais) e sua posterior reorganização em torno da Funai.

O convívio diário entre corresidentes orientado pela comensalidade (e pelo “conhecer a terra”, pelo “amor”) se faz possível somente graças ao processo contingente de magnificação da pessoa do chefe. Ao chefe da aldeia (ou do subgrupo) cabe o estabelecimento de uma roça principal, por meio da qual distribui alimentos e também faz o compartilhamento da carne de caça. O chefe tem muitas vezes os meios místicos de reprodução e de garantia da fertilidade em função do ritual do jaguar. Em tais rituais, descritos com maior ênfase no quinto capítulo da obra, o “cantor-jaguar” é warah do jaguar mítico, ou seja, o jaguar originário, dono do mundo nos primórdios dos tempos. O canto é uma narrativa mítica na qual um kanamari do presente produz enunciados míticos como se ele fosse um jaguar no passado. Esta atividade ritual implica uma relação com o jaguar que tem por finalidade assegurar a reprodução dos próprios Kanamari já que os jaguares são responsáveis por familiarizar animais e revigorar a fertilidade da floresta (e do mundo em última instância).

Para concluir, uma palavra sobre a pecuária kanamari e sobre o porquê de ela aparecer como tão reveladora no livro. Embora os Kanamari criem gado, galinhas e porcos, eles não comem estes animais, pois não os consideram alimentos. Ao mesmo tempo, não se é “corpo-dono” destes animais como acontece com os animais de estimação usuais trazidos da floresta. A resposta para estas duas questões está no fato de que os brancos é que são os verdadeiros donos de tais animais. E tal qual os ogros da floresta que alimentam pessoas kanamari para comê-las, os brancos alimentam os animais que comem, o que leva os Kanamari a pensar nos brancos como canibais. Ou seja, ao comerem aqueles que alimentam, os brancos apresentam claramente uma indistinção entre predação e parentesco, evidentemente horrível para os Kanamari, que justamente alimentam para criar parentesco inibindo a predação, como vimos.

Assim, a ambiguidade dos tempos atuais reside justamente neste duplo jogo envolvendo os brancos, pois se, por um lado, não desejam se tornar brancos, por outro, já há algumas décadas eles vêm se “tornando Funai”, isto é, atualmente o órgão indigenista, na pessoa dos funcionários da Funai local ou na Funai “verdadeira” em Brasília, assume o papel de alimentador (por meio do fornecimento de mercadorias, as quais compõem parte importante do poder dos brancos fazendo deles grandes warah). Papel este central em relação aos Kanamari, configurando a predominância de um corpo-dono e não mais de vários chefes de subgrupos. Como “virar Funai” passou a ser um aspecto fundamental da vida no tempo presente tornou-se uma questão central para os Kanamari: como evitar se tornar branco enquanto se vira Funai?

Referências

  • COSTA, Luiz. 2017. Owners of kinship: asymmetrical relations in indigenous Amazonia. Chicago: HAU Books. 275p.
  • FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: maestria e domínio na Amazônia”. Mana: Estudos de Antropologia Social, 14(2): 329-366 .
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2011[2002]. A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac-Naify.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019
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