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‘Nada É Igual’. Variações sobre a Relação Afroindígena

‘Nothing Is Equal’. Variations on the Afroindigenous Relation

“Nada Es Igual”. Variaciones sobre la Relación Afroindígena

Resumo

Este texto visa retomar alguns pontos da chamada relação afroindígena a fim de situar a questão e dissipar malentendidos. Para isso, procede por uma explicitação dos pontos fundamentais que constituem a noção para, em seguida, examinar alguns casos etnográficos - tratados como teorias situadas - que a noção pode iluminar ao mesmo tempo em que é por eles iluminada. A partir desses casos, o foco se volta para a complexidade e potencial da noção de “virar”, tal qual pensada e formulada nas religiões de matriz africana no Brasil. Noção que permite discutir o lugar e a importância das imagens neste e em outros contextos, assim como conectar essa noção com os recentes debates em torno de uma possível “virada ontológica” na antropologia.

Palavras-chave:
Religiões de matriz africana; Afroindígenas; Virada ontológica; Devir; Imagens

Abstract

This text aims to go back to some points of the so-called Afroindigenous relation in order to situate the issue and dispel misunderstandings. To this end, it seeks to explain the fundamental points that constitute the notion, and then examines some ethnographic cases - treated as situated theories - that the notion can illuminate at the same time that it is illuminated by them. From these cases, the focus turns to the complexity and potential of the notion of ‘turning’ [‘virar’] as thought and formulated in Afro-Brazilian religions. This procedure opens a discussion about the place and the importance of images in this and other contexts, as and connects it with recent debates around a possible ‘ontological turn’ in anthropology.

Key words:
Afro-Brazilian religions; Afroindigenous; Ontological turn; Becoming; Images

Resumen

Este texto pretende retomar algunas cuestiones de la llamada relación afroindígena con el fin de situar el tema y disipar malentendidos. Para ello, se procede a una explicación de los puntos fundamentales que constituyen la noción y luego se examinan algunos casos etnográficos - tratados como teorías situadas - que ella puede iluminar al mismo tiempo que es iluminada por ellos. A partir de estos casos, la atención se centra en la complejidad y potencialidad de la noción de “girar” [“virar”], tal como se piensa y se formula en las religiones de matriz africana en Brasil. Noción que permite discutir el lugar e importancia de las imágenes en este y otros contextos, así como conectarla con debates recientes en torno a un posible “giro ontológico” en la antropología.

Palabras clave:
Religiones de Matriz Africana; Afroindígenas; Giro ontológico; Devenir; Imágenes

A relação afroindígena

Este texto visa fundamentalmente retomar alguns pontos do que denominei um tanto inadvertidamente relação afroindígena (Goldman 2014GOLDMAN, Marcio. 2014. “A relação afroindígena”. Cadernos de Campo , 23:213-222)) a fim de situar um pouco a questão e, talvez, dissipar alguns mal-entendidos. Por isso, recordo a observação feita desde esse primeiro momento sobre os riscos envolvidos na expressão, sobre “as imagens que não gostaríamos que o termo afroindígena evocasse, os clichês que não gostaríamos que ele desencadeasse” (Goldman 2014:216GOLDMAN, Marcio. 2014. “A relação afroindígena”. Cadernos de Campo , 23:213-222)). A explicitação de que se tratava de uma tentativa de abordar o tema de um ângulo não identitário e de evitar o privilégio de gêneses ou tipologias, no entanto, não foi suficiente para afastar leituras efetuadas destes pontos de vista, o que, acredito, não pode ser inteiramente atribuído a alguma má vontade de leitoras e leitores. Porque, em face da complexidade da questão, mesmo a insistência em “sublinhar que ao falar de relação afroindígena não se trata de tentar triar o que seria afro, indígena ou o resultado de sua mistura, que é o que costumamos fazer quando nos deparamos com essas situações também chamadas de ‘contato’” (Goldman 2014:216GOLDMAN, Marcio. 2014. “A relação afroindígena”. Cadernos de Campo , 23:213-222))1 1 Texto que faz parte de um pequeno dossiê que reuniu textos da etnologia ameríndia (Macedo & Sztutman 2014; Santos 2014; Vanzolini 2014) e da afro-brasileira (Barbosa Neto 2014; Mello 2014; Sauma 2014). não me parece, hoje, suficiente.

Recordo também que, pouco depois (Goldman 2015GOLDMAN, Marcio. 2015. “‘Quinhentos anos de contato’: por uma teoria etnográfica da (contra)mestiçagem”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 21 (3):641-659).), começaram a ser exploradas as implicações da relação afroindígena para o que chamei de contramestiçagem e contrassincretismo, na direção de uma crítica radical das leituras dominantes dos processos de encontro ou contato, leituras que, como se sabe, oferecem até hoje bases para as interpretações da chamada construção da nação brasileira. Dois anos mais tarde, um dossiê (Pazzarelli, Sauma & Hirose 2017PAZZARELLI, Francisco; SAUMA, Julia F. & HIROSE, Maria Belén (orgs.). 2017. “Dossiê (Contra)Mestiçagens Ameríndias e Afro-Americanas”. R@U. Revista de Antropologia da UFSCar, 9 (2).; ver também Goldman 2017GOLDMAN, Marcio. 2017. “Contradiscursos Afroindígenas sobre Mistura, Sincretismo e Mestiçagem. Estudos Etnográficos”. R@U. Revista de Antropologia da UFSCar , 9 (2):11-28.) apresentava uma série de ensaios etnográficos sobre este tema; e uma nova coletânea (Goldman 2021GOLDMAN, Marcio (org.). 2021. Outras histórias. Ensaios sobre a composição de mundos na América e na África (no prelo).) será em breve publicada.2 2 Sublinho aqui o caráter de fato coletivo de todo esse trabalho porque ele é essencial em função das dificuldades que temos para descrever e compreender as potências em jogo na relação afroindígena por meio de nossos modos de pensar habituais e de nosso vocabulário conceitual tradicional. Além disso, é apenas esse trabalho conjunto que torna possível reunir, aproximar e combinar aquilo que aprendemos em diferentes coletivos. Nesse sentido, uma série de trabalhos fazem parte, direta ou indiretamente, desse esforço coletivo para pensar encontros e misturas fora da chave da unificação, da estatização e do branqueamento. Além de vários trabalhos citados no corpo deste texto, eu mencionaria: Assunção 2018, Banaggia 2015a, Barbosa Neto 2012, Cruz 2018, Fialho 2018, Flores 2013, Flores 2018, Marques 2016, Mello 2020, Meza 2014, Pereira 2017, Pinto Filho 2020, Quiceno Toro 2016, Reyes Escate 2018, Silva 2018, Vasconcelos 2020, Velloso 2019.

O ponto central, sigo recordando, sempre foi tentar encarar a relação afroindígena como uma relação propriamente dita, liberando a noção de qualquer substancialismo. Foi neste sentido que sustentei (Goldman 2017:12GOLDMAN, Marcio. 2017. “Contradiscursos Afroindígenas sobre Mistura, Sincretismo e Mestiçagem. Estudos Etnográficos”. R@U. Revista de Antropologia da UFSCar , 9 (2):11-28.) que é a própria relação que é afroindígena, na medida em que ela não serve apenas para designar conexões unindo conjuntos afros e indígenas preexistentes, mas também para compreender melhor um certo modo particular de articular diferenças. Modo de articulação que permanece reprimido na maior parte das descrições existentes sobre encontros e contatos, que tendem a tomar como quase natural que a mistura leva à integração e que o múltiplo só serve para fazer o um. O que se pretende, ao contrário, é desfazer esse privilégio concedido à fusão e à integração a fim de enfatizar a constância da diferenciação.

É aqui, creio, que parecem espreitar os mal-entendidos. Em poucas palavras, penso que estes se devem a uma questão particular: afinal, por que designar com um termo tão concreto (a relação afroindígena como resultado do encontro histórico entre afros e indígenas) uma ideia ou proposição que pretende ser tão abstrata (a relação afroindígena como modo singular de articulação de diferenças)? A articulação entre essas duas dimensões foi traçada recorrendo à operação ou procedimento que Deleuze tomou emprestado do teatrólogo italiano Carmelo Bene (Deleuze & Bene 1979DELEUZE, Gilles & BENE, Carmelo. 1979. Superpositions. Paris: Éditions de Minuit.), e que ele denominou “minoração”. Operação que consiste, lembremos, em subtrair a variável majoritária dominante de uma trama a fim de que esta possa ser reescrita atualizando virtualidades bloqueadas e possibilidades reprimidas. O resultado, neste caso específico, é liberar situações chamadas de contato do ofuscamento teórico-ideológico produzido pela presença de uma variável maior (ocidental, europeia, branca…) a fim de pensá-las não suprimindo o fato histórico, político e intelectual dos encontros, uma vez que os brancos fazem parte - e como! - dessa história. O problema é fazê-los fazer parte dela de outra maneira e em outro lugar, uma vez que esse vértice branco é muito mais que um vértice na medida em que atua sempre como uma barreira impedindo as conexões entre os outros pontos ou tentando moldá-las de modo limitador como uma força de sobrecodificação.3 3 Agradeço imensamente a Vladimir Moreira Lima por ter chamado a minha atenção para o fato de que, ao contrário do que frequentemente se imagina, a sobrecodificação, tal qual pensada por Deleuze e Guattari (1972 e 1980), não é simplesmente o oposto da descodificação. Ao contrário, a primeira - a submissão de códigos polívocos e complexos a uma regra ou lei que se pretende única - depende de uma profunda descodificação prévia dos códigos a serem submetidos. No caso da relação afroindígena, isso significa, por um lado, que a multiplicidade dos modos pelos quais essa relação é codificada nas práticas e nos pensamentos afro e indígenas (aquilo que lhe dá consistência e torna possíveis agenciamentos que mantêm as singularizações de que são feitos) é, primeiro, destituída de seu rigor e complexidade e, em seguida, reduzida à noção de uma mistura genérica cuja única finalidade e possibilidade seria produzir o Um - ou seja, a “mestiçagem”. Por outro lado, o próprio elemento sobrecodificador, o Branco, não pode deixar de ser resultado de um processo de descodificação, uma vez que, como estabelecido no platô sobre a “Rostidade” (Deleuze & Guattari 1980, Platô 7), todo padrão majoritário resulta da operação de uma laminação de singularizações e multiplicidades.

Poderíamos, claro, introduzir uma distinção entre relações afroindígenas propriamente ditas e o que poderíamos denominar, talvez, de relações de tipo afroindígena. Mas o problema é que restringir a relação afroindígena a essa dimensão mais concreta e histórica significa também restringir o alcance intelectual e existencial do que aprendemos com as pessoas com as quais trabalhamos. A prática antropológica não exige apenas escutar e levar inteiramente a sério o que essas pessoas têm a dizer, mas também seguir o que pensam a respeito de seus encontros de uma maneira tão fiel e respeitosa que nos conduza a incorporar tais ideias a nossos modos de pensar, que serão, então, por elas transformados.4 4 Creio que este ponto foi levantado por José Carlos dos Anjos (2008), ao demonstrar como a religiosidade afro-brasileira também é, ou pode ser pensada como, uma filosofia política que contesta os modos dominantes de pensar e de fazer política.

Há muito tempo, Claude Lévi-Strauss (1962LÉVI-STRAUSS, Claude. 1962. La pensée sauvage. Paris: Plon.) demonstrou que aquilo que chamamos de “sensível” pode perfeitamente ser usado como meio de inteligibilidade e que, quando os ameríndios falam do jaguar, por exemplo, estão simultaneamente pensando por meio do jaguar. Talvez seja mais do que hora de aprendermos algo com o pensamento selvagem, admitindo que, em antropologia, as situações mais concretas são simultaneamente algo sobre o que pensar e meios de pensamento - o que é, aliás, creio, o sentido da ideia de teoria etnográfica de Malinowski (1935MALINOWSKI, Bronislaw. 1935. Coral gardens and their magic. Londres: George Allen e Unwin.). Nesse sentido, o eventual caráter de atributo da relação afroindígena não deve ser separado de sua dimensão categorial.

Assim, a relação afroindígena é e não é abstrata ao mesmo tempo. Ela o é na medida em que ajuda a pensar situações diferentes a partir de uma espécie de cartografia comum que só pode ser traçada por meio de modulações que levem em conta as singularidades de cada caso. Ao mesmo tempo, ela não é nada abstrata, uma vez que designa um dos resultados desse gigantesco e terrível movimento histórico que deu origem ao mundo chamado de moderno: a desterritorialização forçada dos povos africanos e a destruição dos territórios dos povos ameríndios, com os consequentes agenciamentos entre afrodescendentes e indígenas nas Américas.

Por outro lado, parece-me que o que também pode servir de ponte entre essas dimensões é o fato de que inúmeros coletivos elaboram de forma explícita esse evento, mas o elaboram simultaneamente tanto em suas dimensões extensivas quanto intensivas, tanto em sua molaridade histórica quanto em sua molecularidade criativa. O que esses coletivos elaboram no plano intensivo e molecular não é tanto, ou não é apenas, a realidade ou a irrealidade histórica e molar dos encontros afroindígenas; o que realmente importa são as virtualidades de tais encontros, o que eles poderiam ter produzido e que, por isso mesmo, ainda pode ser produzido - tudo aquilo que Deleuze (1968DELEUZE, Gilles. 1968. Différence et répétition. Paris: PUF.) denomina “contraefetuação”. Pois tudo o que foi efetuado pode ser contraefetuado, ou melhor é contraefetuado, uma vez que a contraefetuação é simultânea à própria efetuação ou, melhor ainda, anterior a ela.

Retrospectivamente, imagino que essas considerações igualmente esclareçam um pouco o fato de dois casos etnográficos particulares terem servido, desde o começo, como guias para as elaborações em torno da relação afroindígena. Sem dúvida, foi o trabalho de Cecília Mello (2003MELLO, Cecília Campello do Amaral. 2003. Obras de arte e conceitos: cultura e antropologia do ponto de vista de um grupo afro-indígena do sul da Bahia. Dissertação de Mestrado, PPGAS-Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro., 2010MELLO, Cecília Campello do Amaral. 2010. Política, meio ambiente e arte: percursos de um movimento cultural do extremo sul da Bahia (2002-2009). Tese de Doutorado, PPGAS-Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro., 2020MELLO, Priscilla. 2020. A terra, a luta e os orixás no Assentamento Dom Helder Câmara, Sul da Bahia. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ.) com o Movimento Cultural Arte Manha, de Caravelas, no extremo-sul baiano, que mostrou pela primeira vez a potência dessa noção. Isto porque os militantes desse movimento não apenas se identificam como afroindígenas, como também fazem disto uma questão existencial que os orienta em sua atividade artística, cultural e política, assim como em sua vida como um todo.

O segundo caso paradigmático foi o dos Tupinambá da Serra do Padeiro, no sul da Bahia, onde Helen Übinger (2012ÜBINGER, Helen Catalina. 2012. Os Tupinambá da Serra do Padeiro: religiosidade e territorialidade na luta pela terra indígena. Dissertação de Mestrado, PPGAS, Universidade Federal da Bahia.) aprendeu um procedimento ao mesmo tempo parecido e diferente do de Caravelas. Ao contrário dos militantes do Arte Manha, os Tupinambá não se identificam como afroindígenas; na verdade, eles evitam cuidadosamente o termo na medida em que é em nome de suas presumidas raízes afro que os poderes constituídos não apenas recusam o reconhecimento de suas terras, como os ameaçam de genocídio. O que não significa, contudo, que a potência do virtual contida na relação afroindígena não se manifeste: os Tupinambá ensinam que podem perfeitamente ser “misturados” sem anular o fato de que são, sempre foram e pretendem permanecer indígenas. Nesse sentido, e mesmo eclipsada, ou neste caso porque eclipsada, a relação afroindígena não deixou de ser o modo pelo qual resistiram aos brancos: índios até o século XIX, os Tupinambá se viram obrigados a “submergir”, como dizem, para não serem mortos, metamorfoseando-se em “caboclos”, capazes de sobreviver em alguns nichos até poderem reemergir como índios a fim de retomarem o que é seu.5 5 Sobre este parágrafo, ver Goldman (2014:213-214), (2015:651-657) e (2017:11-12; 20-22).

Esse mesmo tipo de eclipsamento pode ser observado entre os membros dos blocos de negros índios do carnaval de Porto Alegre. Como relata Luiza Dias Flores, eles recusam explicitamente o termo afroindígena, cujo emprego consideram uma estratégia branca para reduzi-los a uma unidade vazia e, assim, folclorizá-los; por outro lado, parecem substituí-lo por uma espécie de alternância contínua entre afirmar-se negro e afirmar-se índio, chegando mesmo a proclamar que “índio, índio mesmo, é negro” (Flores 2017:48FLORES, Luiza. 2017. “A guerra comancheira: contribuições a uma antropologia afroindígena”. R@U. Revista de Antropologia da UFSCar, 9 (2):43-61.). Na mesma direção, ainda que em sentido um pouco diferente, os folgazões de maracatu na Zona da Mata pernambucana, estudados por Noshua Amoras de Morais e Silva (2018SILVA, Noshua Amoras de Morais. 2018. Composição e metamorfose no Maracatu da Zona da Mata de Pernambuco. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ.), que não costumam utilizar o termo, reconhecem, não obstante, sua adequação; ao mesmo tempo, têm plena consciência dos riscos envolvidos em sua utilização pelos poderes dominantes para tentar eliminar o fato central de que se trata sobretudo de uma forma de resistência.

Teorias situadas

Em poucas palavras, a relação afroindígena, tal qual explicitamente elaborada pelo Movimento Cultural Arte Manha de Caravelas e traduzida para o vocabulário antropológico por Cecília Mello, pôde servir como meio para compreender o modo como os Tupinambá da Serra do Padeiro, os índios negros de Porto Alegre, ou os que brincam maracatu na Zona da Mata em Pernambuco elaboram o que pode ser chamado de identidade sem nenhuma necessidade de afirmar qualquer tipo de pureza ou de unidade. Cada um destes coletivos elabora a respeito do tema reflexões que, para acompanhar Donna Haraway (1988HARAWAY, Donna. 1988. “Situated knowledges: The science question in feminism and the privilege of partial perspective”. Feminist Studies, 14 (3):575-599.), poderíamos chamar de saberes situados. Ou, apesar da má fama do termo, de teorias situadas, uma vez que é com elas que buscamos a inteligibilidade de casos diferentes daqueles dos quais partimos - e também para sublinhar sua sofisticação, complexidade e potência, evitando o famoso grande divisor segundo o qual nós temos teorias e eles representações.

Assim, se nos voltarmos agora para alguns contextos que talvez só tenham em comum o fato de se apresentarem como de origem africana, não é difícil encontrar sofisticadas reflexões em torno da questão da mistura e da pureza que talvez permitam seguir a trilha que os ativistas de Caravelas, Serra do Padeiro, Porto Alegre e Pernambuco abriram. O ponto crucial é que exibir ou eclipsar a relação afroindígena depende das modulações de um mesmo saber que permite estabelecer relações com o que é diferente sem que a diferença e/ou a relação tenham que desaparecer para isso.

Em 1984, Seu Esmeraldo Emeterio de Santana, saudoso ogã do terreiro angola Tumba Junsara, de Salvador, por exemplo, apresentou, no importante encontro realizado naquela cidade pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia - encontro que reuniu um grande conjunto de intelectuais não acadêmicos para pensar e falar sobre as religiões de matriz africana no Brasil -, o que eu gostaria de denominar aqui, seguindo a sugestão de Ordep Serra (1995:29-31SERRA, Ordep. 1995. Águas do rei. Petrópolis: Vozes.), uma teoria da milonga. Nela, Seu Esmeraldo sugeria basicamente que a nação angola:

É uma mistura de cambinda, moçambique, munjola, quicongo. Tudo isso é angola. Então virou o que eles mesmos chamam de milonga. Há pouco tempo houve uma polêmica por causa da palavra milonga. Mas milonga é mistura. Foi assim que eles fizeram. Misturaram, porque nas senzalas tinha todas as “nações” e, quando era possível, eles faziam qualquer coisa das obrigações deles, então cada um pegava um pedaço, fazia uma colcha de retalhos, um cozinhava isso, outro cortava aquilo, outro pegava. A mesma coisa fez-se no cântico. Um, “eu sei tal cantiga”, outro, “eu sei tal”, e todos cantavam, e então o “santo” aceitava, e não ficou somente uma “nação” pra fazer aquele tipo de obrigação. Era a mistura, como já disse, a milonga (Santana 1984:35-36SANTANA, Esmeraldo Emeterio de. 1984. “Nação-Angola”. In: Encontro de nações de Candomblé. Salvador: Inamá /CEAO-UFBA. pp. 35-47.).

Se a reflexão de Seu Esmeraldo diz diretamente respeito ao processo que deu origem à nação de candomblé angola, não há nenhuma razão para não estender seu raciocínio às demais nações e mesmo para além do candomblé, de tal modo que milonga poderia justamente exprimir a modalidade de relação que se estabelece entre as diferentes nações de candomblé, assim como entre muitas outras atualizações da herança africana nas Américas.

Essa relação se caracterizaria, por um lado, por ser uma “colcha de retalhos”, ou seja, uma costura entre diferentes elementos que, de certo ponto de vista, podem ser considerados diferentes e apenas artificialmente reunidos e, de outro, compondo um conjunto dotado de funcionalidade, estrutura e beleza. Por outro lado, e esse ponto é crucial, Seu Esmeraldo enfatiza o caráter pragmático da mistura: “e então o ‘santo’ aceitava…”, prova final para as experiências que a situação de diáspora permitia e exigia. Trata-se, assim, de um dispositivo de alternância, que ora afirma a singularidade de cada elemento, ora seu poder de adaptação e combinação.

Essa alternância aparece ainda mais claramente nas reflexões de Seu Nezinho, umbandista de Juazeiro do Norte, que assim explica a Luiz Assunção o que é um caboclo:

Caboclo é índio. É índio, sim. Agora eu acho que varia. Um dia, um caboclo que ele venha, ele desce em várias linhas, varia. Tem caboclo que desce como Exu. Varia, isso aí muda de linha. Uma entidade só tem capacidade de puxar sete cantos. É aí que ele muda de linha. Então, tem caboclo que não desce como Exu. E já tem outros que descem como Exu. Vamos supor, Caboclo Arranca Toco, na linha esquerda ele vem como Exu. Se a pessoa está acostumada a trabalhar linha cruzada, aí desce tudo no mundo. Aí mistura tudo (Assunção 2001:186ASSUNÇÃO, Luiz. 2001. “Os mestres da jurema. Culto da jurema em terreiros de umbanda no interior do Nordeste. In: Reginaldo Prandi (org.), Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas. pp. 182-215.).

Uma teoria da variação (contínua, poderíamos dizer, seguindo Deleuze e Guattari (1980DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Mille plateaux. Paris: Éditions de Minuit.) - voltaremos a este ponto) que pode tornar mais inteligível essa reconhecida disposição das religiões de matriz africana para a adaptação e a combinação.

É o que nos mostra o falecido Pai Francelino de Shapanan, que trouxe a Casa das Minas de Thoya Jarina do Maranhão para São Paulo. Pai Francelino de Shapanan (2001:318FRANCELINO DE SHAPANAN. 2001. “Entre caboclos e encantados. Mudanças recentes em cultos de caboclo na perspectiva de um chefe de terreiro”. In: Reginaldo Prandi (org.), Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas. pp. 318-330.) enfatiza o potencial para a transformação - e, assim, para a mistura - de todas as entidades da Mina. Desse modo, diz ele, “o caboclo, em suas diferentes formas, se misturou”, ele “é o índio civilizado que veio para a cidade, que se misturou com o branco e até mesmo com o africano”. O próprio Caboclo Pedra Preta, de Mãe Lindinalva, por exemplo, conta que ele “é índio, mas se porta como caboclo para o povo entender [...]. Não se considera egum (espírito de morto), mas sua ‘pajelança’ é como de egungum, dos índios mortos que já foram grandes caciques, tuxauas, morubixabas”.

Essa teoria de um sacerdote, e de um caboclo, sobre os caboclos é uma teoria do movimento e da transformação, que ressalta que os encontros não anulam necessariamente as diferenças. O movimento do caboclo permite que ele se transforme, assimilando e se unindo a outros seres, mas permite também que deles não pare de se distinguir.

Luiz Sérgio Barbosa e Almiro Miguel Ferreira, pais de santo e membros da Federação de Cultos Afro-Brasileiros da Bahia, elaboram este ponto na forma do que poderíamos denominar uma teoria das andanças e da indeterminação. Perguntado se os “caboclos são espíritos de índios que existiram no Brasil”, Ferreira responde que “Há pessoas que dizem que são [...]. Agora, não está em mim dizer que os espíritos dos índios são os caboclos. Seria querer saber demais de mim. Eu só sei que existem os caboclos” (Ferreira 1984:67FERREIRA, Almiro Miguel. 1984. “Candomblé-de-Caboclo”. In: Encontro de nações de Candomblé. Salvador: Inamá /CEAO-UFBA. pp. 59-67.).

Barbosa, por sua vez, explica a entrada dos caboclos nas religiões de matriz africana como resultado de “suas andanças nos terreiros de candomblé”:

Os festejos [...] eram presenciados pelos Caboclos (Índios). Os mesmos manifestavam a vontade de participar, em razão dos encontros casuais entre escravos e índios. [...] Os Caboclos espiavam mas não era permitida sua participação. Os africanos vetavam. Os caboclos passaram a reclamar. Alegaram que os africanos vindos para o Brasil nada trouxeram e quando aqui chegaram se valeram do que encontraram, e tudo que existia aqui no Brasil era dele, o caboclo. As terras, as folhas, os rios, as pedras e tudo mais que os africanos estavam usando eram de propriedade dos caboclos (Índios). Com esse entendimento os caboclos começaram a romper a barreira com o aparecimento de incorporações de caboclos nas pessoas possuidoras de mediunidade (Barbosa 1984:88-89BARBOSA, Luiz Sérgio. 1984. “A federação baiana do culto afro-brasileiro”. In: Encontro de nações de Candomblé. Salvador: Inamá/CEAO-UFBA. pp. 69-77.).

Observemos, de passagem, como é difícil aqui saber se os “caboclos e índios” aos quais se refere Barbosa são humanos ou espíritos. Eu arriscaria dizer que talvez sejam ambos e que é por isso que os “africanos” tiveram que aceitar os caboclos, mesmo mantendo alguma separação dos cultos.

A dificuldade, mas também a possibilidade, para a absorção dos caboclos no candomblé deriva, prossegue Barbosa, do fato de que: “Há caboclo que incorpora nas pessoas, dizendo-se ser verdadeiro, quando não é verdade. Os mesmos não são nativos das aldeias. São orixás africanos que, na incorporação, dizem ser caboclo nativo” (Barbosa 1984:89BARBOSA, Luiz Sérgio. 1984. “A federação baiana do culto afro-brasileiro”. In: Encontro de nações de Candomblé. Salvador: Inamá/CEAO-UFBA. pp. 69-77.). Por outro lado, perguntado se os caboclos são espíritos de mortos (os eguns, que, como regra geral, não devem possuir as pessoas no candomblé), Barbosa sustenta que:

O caboclo, ele desencarnado é um espírito. Mas você há de analisar que há caboclo serviçal e caboclo chefe. E nós não podemos, aqui, analisar há quantos milênios existem os caboclos e a sua desencarnação. Então ele pode ser um caboclo espírito porque nós não vamos qualificar o caboclo como egum e ele pode ser um caboclo deificado. Porque ele vem cá, incorpora, com o prodígio dele, faz o bem. Quantas pessoas são beneficiadas pelo caboclo? E o que ele diz é verdade. E vai trabalhar em benefício disso. Portanto ele está chegando ao ponto de ser deificado”. Assim, prossegue, “na linha de caboclo nós não qualificamos como egum. Porque o egum tem muita conotação. A trajetória do egum é diferente dos ensinamentos, dos conhecimentos e da existência do caboclo. Eles são espíritos e podem ser muito evoluídos e, como eu acabo de dizer, o deificado é o orixá, o deificado pode ser o caboclo, que vem na terra implantando o seu prodígio, cuidando das pessoas (Barbosa 1984:94BARBOSA, Luiz Sérgio. 1984. “A federação baiana do culto afro-brasileiro”. In: Encontro de nações de Candomblé. Salvador: Inamá/CEAO-UFBA. pp. 69-77.).

Em poucas palavras, o interessante do caboclo é justamente a indeterminação de seu estatuto ontológico: humano, espírito, espírito de morto, divindade… E talvez seja o fato de só existir modulado que torna tão difícil dizer o que é um caboclo - ou o que um caboclo pode ser, como repetem os especialistas.

Naiana, mãe pequena do Terreiro do Caboclo Juremeira, de Dona Otília, em Belmonte, no sul da Bahia, estudado por Bianca Soares, segue essa mesma direção, ao elaborar o que poderíamos chamar de uma teoria da diferenciação: “os orixás”, ensina Naiana, “viveram e adquiriram poderes que quando morreram conseguiram se diferenciar e voltar. Os pretos velhos e caboclos também” (Soares 2014:37-38SOARES, Bianca Arruda. 2014. Os candomblés de Belmonte: variação e convenção no sul da Bahia. Tese de Doutorado, PPGAS-Museu Nacional-UFRJ.). É isso o que os distingue dos eguns propriamente ditos, os espíritos de mortos indiferenciados, que não aceitam o fato de estarem mortos e por isso se tornam espíritos revoltados que oferecem grande risco aos humanos. Os caboclos, pretos velhos, erês e marujos se diferenciaram desses espíritos ao escolherem trabalhar para as divindades, tornando-se, assim, seus mensageiros.

Creio que são teorias como as da milonga, da variação, do movimento e da transformação, das andanças e da indeterminação, da diferenciação que poderiam nos conduzir a uma compreensão mais respeitosa e mais sofisticada do que denominamos - de novo, bem inadequadamente - sincretismo e mestiçagem.

Assim, a falecida Olga Francisca Régis, a grande mãe de santo baiana Olga do Alaketo, explicava o “sincretismo” dizendo que:

“Nós não servimos a dois deuses. O Deus é um só [...]. O que muda é o nome” (como com a Trindade) [...]; os africanos traduziram essa história do orixá, na África, com santos, no Brasil, por uma circunstância. Cada Oxóssi tem um nome na África. É a velha história, são comparados assim, mas um é o caçador, outro é o que tem a si toda a responsabilidade do mato, do pasto” [...]; “dentro da divindade Jesus Cristo, ou o Sacrifício, tem todas as divindades, com todos os nomes”. Mas, também, que “quando tenho necessidade de apoio, mando as pessoas à Igreja. E eles servem, como eu também sirvo. Isto é uma questão de conhecimento e não de separação”; e “isto do folclore com o candomblé, eu sou mais contra do que com a religião católica” (Régis 1984:28-29RÉGIS, Olga Francisca (Olga de Alaketo). 1984. “Nação-Queto”. In: Encontro de nações de Candomblé. Salvador: Inamá /CEAO-UFBA. pp. 27-34.).

Essa teoria da tradução - acompanhada de uma teoria pragmática que já havíamos observado com Seu Esmeraldo - pode nos fazer entender melhor o equívoco de muitos antropólogos que interpretam posições como as de outra grande mãe de santo baiana, Mãe Stela de Oxóssi do terreiro Axé Opô Afonjá, como “puristas” - e mesmo fundamentalistas! -, quando elas parecem defender o fim do sincretismo. Na verdade, o que Mãe Stela defende é a não necessidade atual do sincretismo. Este, diz ela “surgiu porque os escravos precisavam dele, mas agora não é mais necessário”, o que revela, de imediato, que a oposição entre essas posições é muito mais política, no sentido de tática e estratégia, do que teológica, no sentido de pureza e ortodoxia; o que permite que pais de santo como Balbino Daniel de Paula (em Fry 1984:38FRY, Peter. 1984. “De um observador não participante…”. Comunicações do ISER, 3 (8):37-45.) sustentem que “candomblé e catolicismo são como água e óleo - podem ficar no mesmo copo, mas não se misturam”; e que outros, como Luís da Muriçoca (em Fry 1984:38FRY, Peter. 1984. “De um observador não participante…”. Comunicações do ISER, 3 (8):37-45.), digam que “sei que o Senhor do Bonfim não é Oxalá, mas ninguém vai tirar sua imagem do meu terreiro”, porque “faço isso desde menino”, porque “foi isso que nossos avós nos ensinavam”. Como Norton Corrêa (1992:72CORRÊA, Norton 2006 [1992]. O Batuque do Rio Grande do Sul: antropologia de uma religião Afro-Rio-Grandense. Porto Alegre: Editora Cultura & Arte.) já havia observado, a mãe de santo gaúcha Ester de Iemanjá considerava o catolicismo como mais uma “linha, a linha católica”, pensando assim a relação das religiões de matriz africana com o catolicismo na mesma chave em que se pensam as relações dessas religiões entre si e de cada uma delas consigo mesma.

Foi isso o que a pombagira Maria Molambo, de Mãe Rita, de Pelotas, ensinou a Edgar Rodrigues Barbosa Neto (2012:9BARBOSA NETO, Edgar Rodrigues. 2012. A máquina do mundo: variações sobre o politeísmo em coletivos afro-brasileiros. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ..): uma teoria dos lados, que sustenta não apenas que tudo “sempre tem o outro lado”, como disse o Caboclo Galo Preto para Carmen Opipari (2004:227OPIPARI, Carmen. 2004. Images en mouvement, São Paulo-Brésil. Paris: L’Harmattan.) em São Paulo, mas também que cada lado tem seus próprios lados “simultâneos e heterogêneos”. Esse “politeísmo intensivo”, como o denominou Barbosa Neto, torna-se assim, paradoxalmente, sinônimo de um monoteísmo ou de um monismo igualmente intensivos.

Tudo isso, creio, nos conduz, ou melhor, reconduz à teoria da linha cruzada com a qual, já há algum tempo, José Carlos dos Anjos (2006ANJOS, José Carlos Gomes dos. 2006. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS.) elabora de forma magnífica esta ideia presente em praticamente todas as religiões de matriz africana. Ideia que permite pensar um espaço de agenciamento de diferenças enquanto diferenças, sem a necessidade de pressupor nenhum tipo de síntese ou fusão. As diferenças são aí intensidades que nada têm a ver com uma lógica da assimilação, mas sim com uma organização de forças que não envolve nenhum tipo de escolha binária, mas uma modulação analógica para o estabelecimento de conexões e disjunções múltiplas. Trata-se, para retomar um termo de Guattari, de um modelo heterogenético que, apoiado em variações contínuas, permite opor técnicas complexas de composição aos procedimentos laminadores das teorias da mistura dominantes.

Creio também que são essas características que estão na base da teoria do pluralismo religioso que Ordep Serra (1995:15SERRA, Ordep. 1995. Águas do rei. Petrópolis: Vozes.) considerou próprio das religiões de matriz africana, pluralismo este que, ao contrário dos nossos, não pretende fazer a triagem entre o que “realmente” existe e do que não existe no mundo. Trata-se, antes, de uma espécie de diferencialismo generalizado, que opera com multiplicidades de todos os tipos e que, em lugar de decretar a inexistência ou o caráter ilusório de alguns seres, sustenta (como se diz em Cabo Verde) que “tudo o que tem nome existe”. E que nem por isso deixa de admitir, ao mesmo tempo, que não é sempre possível ou desejável se relacionar com a totalidade desses seres, seja porque não se deve fazê-lo, seja porque não se quer ou não se sabe como fazê-lo.

Em suma, o ponto essencial aqui é que os contradiscursos afroindígenas sobre a mistura se caracterizam por não pressuporem a homogeneização como horizonte da interação entre as diferenças. Ou seja, por não suporem que a combinação de elementos de origem diversa deva necessariamente desembocar nem em um processo de simples confusão sincrética, nem em um processo de homogeneização laminadora. Imagino, assim, que esses contradiscursos procedem por meio de algo como uma modulação da diferença, mais ou menos no sentido de Gilbert Simondon (1964SIMONDON, Gilbert. 1964. L’Individu et sa gênese physico-biologique. Paris: PUF.): processo de variação contínua no qual, na coexistência de elementos diferentes, pode haver um nível em que eles efetivamente se combinam, mas também níveis em que permanecem de algum modo distintos. Uma espécie de indiscernibilidade que, como estabeleceu Deleuze (1985:94DELEUZE, Gilles. 1985. Cinéma 2: L’Image Temps. Paris: Éditions de Minuit.), não é de modo algum uma confusão.

O que está, então, em jogo na ideia de relação afroindígena é, portanto, mais um procedimento político-epistemológico capaz de reativar situações como as que acabamos de ver do que apenas determinadas características de situações empíricas específicas - situações que, não obstante e evidentemente, existem de modo muito concreto. Nesse sentido, até mesmo a relação com os brancos poderia ser pensada de um ponto de vista afroindígena, como veremos adiante. Em outras palavras, o termo afroindígena não pretende caracterizar apenas alguns tipos de realidade empírica, mas uma modalidade de relação essencialmente heterogenética, no sentido estabelecido por Guattari (1992GUATTARI, Félix. 1992. Chaosmose. Paris: Galilée.). Relação que, operando por variações contínuas, permite superar a ideia de que recusar a mistura consiste necessariamente em acreditar em uma pureza qualquer. Ao contrário, trata-se de uma abertura para o caráter analógico, não digital, das misturas, assim como para o elemento de indeterminação que qualquer processo de mistura comporta.

Creio que esse procedimento é o caminho para enfrentar, e quem sabe evitar, a estatização e o branqueamento que ameaçam praticamente todas as teorias mais comuns sobre o contato e a mistura que, quase invariavelmente, supõem ou acabam por concluir que a única forma legítima de identidade é a nacional. Para isso, também creio ser preciso elaborar algo como teorias etnográficas da mistura, que devem estar apoiadas, elas mesmas, em uma espécie de contramestiçagem discursiva, em que nossos discursos acadêmicos, discursos afro, indígenas, afroindígenas, podem se juntar, se separar, voltar a se juntar, mas sem nunca se fundirem totalmente e, sobretudo, sem que um destrua o outro.

Ainda que seja possível dizer que a contramestiçagem inverte ou se opõe à mestiçagem, isto não significa que ela seja nem seu simétrico, nem seu oposto, nem seu inverso. Porque ela pode conter a mestiçagem sem por isso deixar de ser diferente dela. Assim, por contramestiçagem e contrassincretismo pode-se compreender tanto as práticas e as teorias etnográficas que se opõem à mestiçagem e/ou ao sincretismo de forma radical quanto aquelas que tomaram posse dessas noções, incluindo-as em um modo de pensar e fazer no qual os conceitos passam a ser forças em movimento e a operar de modo acima de tudo tático e estratégico. Como sustentei (Goldman 2017:23GOLDMAN, Marcio. 2017. “Contradiscursos Afroindígenas sobre Mistura, Sincretismo e Mestiçagem. Estudos Etnográficos”. R@U. Revista de Antropologia da UFSCar , 9 (2):11-28.), trata-se de algo parecido com um dispositivo ótico de foco dinâmico alternando continuamente entre perspectivas de conjunto (onde diferenças podem ser eclipsadas) e de detalhe (onde são postas em relevo).

Indício disto é, sem dúvida, a impressionante importância concedida aos advérbios nos saberes afroindígenas: “mais negro”, “menos negro”, “mais ou menos negro”, “um pouco índio”, fazer as coisas “de modo afro ou indígena”, e assim por diante. Avaliação incessante daquilo que, em determinado momento, é mais apropriado à situação em jogo, resultado de uma quase certeza de que as misturas estão dadas desde o princípio e que a sabedoria consiste em saber dosá-las e combiná-las sem que percam sua força. Nesse sentido, é impressionante como a maior parte dos estudos sobre o chamado sincretismo afro-americano se contentou em estabelecer tabelas de correspondências entre santos católicos e divindades africanas, ou destas entre si ou com espíritos indígenas, sem ressaltar o caráter dinâmico de tais equações, pois, nelas, nunca se trata de puro alinhamento ou, muito menos, de identificações definitivas. Trata-se, ao contrário, do que Guattari (1992:70-71GUATTARI, Félix. 1992. Chaosmose. Paris: Galilée.) denominou, a partir de um estudo de Marc Augé sobre o Legba no Benin, “multivalência da alteridade”: “o ser, a identidade e a relação com o outro são construídos não apenas de modo simbólico, mas também de modo ontológico aberto” (grifo meu).

Viradas?

Ao se referir à dimensão ontológica desses processos, a observação de Guattari visa sobretudo, creio, evitar a tentação de reduzir essas sofisticadas elaborações de mundos alternativos a fenômenos limitados à dimensão cognitiva. O que permite contornar essa bem conhecida oscilação entre um relativismo que afirma a existência de um mundo que não pode ser conhecido em si mesmo e um universalismo que sustenta que só nós, com nossa ciência, podemos fazê-lo - tudo o mais não passando de representações, modos de pensar, construções etc.

Deste ponto de vista, parece de fato que estamos às voltas com essa passagem de uma perspectiva epistemológica para uma ontológica que, nos dizem, teria marcado a antropologia nos últimos anos - ou seja, com o que se tem convencionado designar como “virada ontológica”. Essa possível passagem, contudo, me parece mais complexa do que se costuma admitir. Afinal, como já observava, em sua quarta lição, o vetusto Fundamentos de Filosofia, do Padre Manuel García Morente (1943GARCIA MORENTE, Manuel. 1943. Fundamentos de filosofia. Lições preliminares. São Paulo: Mestre Jou.), a filosofia sempre se equilibrou de modo complementar entre uma “teoria do ser” e uma “teoria do saber, do conhecer”, isto é, entre uma ontologia e uma gnoseologia ou epistemologia.

A dificuldade dessa separação aparentemente tão clara é que a chamada epistemologia, ao proclamar seu direito de decidir sobre a verdade do conhecimento, sempre acaba por deliberar, ao mesmo tempo, sobre alguma real natureza do mundo conhecido; e que toda ontologia dificilmente deixa de se atribuir o poder de determinar, entre vários pretendentes, aquele com direito ao título de ser em si, mobilizando, para isso, um saber supostamente definidor da realidade. O que significa que no próprio coração da ontologia reside um elemento de conhecimento, único capaz de fornecer princípios de julgamento; e, ao mesmo tempo, que toda epistemologia acaba por tentar determinar o que de fato seria a realidade. Entre epistemologia e ontologia se perfila, então, esse denominador comum que Isabelle Stengers (1992:23STENGERS, Isabelle. 1992. La volonté de faire science. À propos de la psychanalyse. Paris: Les Empêcheurs de Penser en Rond.) situa na constituição das ciências modernas: uma quase incurável vontade de julgar.

Por outro lado, como me parece sugerir François Zourabichvili (2004ZOURABICHVILI, François. 2004. Le vocabulaire de Deleuze. Paris: Ellipses.) em sua leitura da filosofia da Deleuze, uma ontologia poderia funcionar mais como linha de fuga do que como um novo paradigma. Talvez por aqui passe um outro caminho para a compreensão da famosa “virada ontológica”, caminho este que começaria com uma distinção, ou bifurcação, entre um sentido forte e um sentido fraco dessa virada. O sentido forte - ou seja, o suposto abandono da epistemologia em benefício da ontologia - não me parece muito convincente, seja porque, como acabei de sustentar, essa distinção é no mínimo duvidosa, seja porque lembra demais a também chamada virada ontológica que, na história da filosofia, buscou se opor tanto ao império da metafísica e da teoria do conhecimento quanto à virada linguística dos filósofos da linguagem (viradas demais para o meu gosto…).

Por outro lado, em sentido fraco, a virada ontológica pode ser muito mais interessante, começando por não nos permitir esquecer que o que se designa hoje com este nome na antropologia é uma descoberta de caráter sobretudo etnográfico. A saber, o fato de que um grande número de povos indígenas das terras baixas sul-americanas não parece conceber o mundo como descontinuidade dada e necessária entre o humano e aquilo que não o seria - mesmo que descontinuidades dessa natureza possam existir como casos particulares. O que não significa, é claro, que são os únicos a fazê-lo e que o perspectivismo seja um traço cultural a distingui-los de outros povos. Como escreveu Marcel Mauss já em 1938, os coletivos humanos exploram, cada um a seu modo e com graus de elaboração variados, possibilidades ao menos de direito universalmente presentes, de tal modo que a investigação pode se defrontar com casos que “representam verdadeiramente máximos, excessos, que permitem ver melhor os fatos do que lá onde, não menos essenciais, eles permanecem ainda pequenos e involuídos” (Mauss 1950:344MAUSS, Marcel. 1950 [1938]. “Une catégorie de l’esprit humaine: la notion de personne celle de ‘moi’”. In: MAUSS, Marcel, Sociologie et Anthropologie. Paris: PUF. pp. 331-362.).

Assim, quando dizem que “chove para mim”, ou que “fulana é muito má mas para mim ela é muito boa”, ou que “para os porcos do mato eles mesmo não são porcos”, os Yudjá do Alto Xingu, com os quais Tânia Stolze Lima (1996LIMA, Tania Stolze. 1996. “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi”. Mana. Estudos de Antropologia Social , 2 (2):21-47., 2005LIMA, Tania Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim. O povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo: Editora UNESP., 2018LIMA, Tania Stolze. 2018. “A planta redescoberta: um relato do encontro da ayahuasca com o povo Yudjá”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 69:118-136.; ver também Viveiros de Castro 1996VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio”. Mana. Estudos de Antropologia Social , 2 (2):115-144.) aprendeu o perspectivismo desde a década de 1980, não estão dizendo, creio, nem que a chuva, a bondade ou os porcos só existem de seu próprio ponto de vista, ou mesmo do ponto de vista dos humanos em geral (posição, poderíamos talvez dizer, construtivista ou epistemologizante), nem que esses seres e ideias existem em si mesmos (posição mais ou menos essencialista ou ontologizante). O que os Yudjá estão sugerindo, arrisco-me a especular, é que algo só existe na medida em que os afeta, na medida em que entra em relação com alguém. Enfim, tudo se passa como se, com o perspectivismo ameríndio, a antropologia finalmente tivesse se tornado capaz de levar a sério a última parte da definição canônica de signo fornecida por Peirce e sempre lembrada por Lévi-Strauss (1973:19LÉVI-STRAUSS, Claude. 1973. Anthropologie structurale deux. Paris: Plon.): “aquilo que substitui alguma coisa para alguém” (grifo meu).

Desse modo, se o chamado perspectivismo ameríndio (um modo de pensar que antropólogas e antropólogos aprenderam com alguns povos ameríndios) pôde servir de fundamento para a chamada virada ontológica é porque revela a impossibilidade de um fora, de um ponto de vista do todo e de qualquer transcendência. Na ausência desse ponto de vista supostamente exterior, desse julgamento de Deus, nenhum juízo absoluto sobre a realidade dos outros é mais possível, tornando toda epistemologia vã e obrigando a acatar essa realidade dos outros como outra realidade ou como um acréscimo ao que imaginamos ser a realidade. Denominar essa virada de ontológica significa não só que a ontologia pode funcionar como uma saída ou fuga - como sugere Marisol de la Cadena (2014DE LA CADENA, Marisol. 2014. “The politics of modern politics meets ethnographies of excess through ontological openings”. Theorizing the contemporary. Fieldsights, January 13. Disponível em: Disponível em: https://culanth.org/fieldsights/the-politics-of-modern-politics-meets-ethnographies-of-excess-through-ontological-openings . Acesso em 21/06/2019.
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), ao propor o termo “abertura ontológica” em lugar de “virada ontológica” - como, talvez, nos permitir ir ainda um pouco mais longe, indagando se ontologia e epistemologia são de fato nossas únicas opções. Porque não deixa de ser curioso que a terceira dimensão da filosofia ocidental, deontológica ou ética, muito raramente apareça nos debates em torno desta questão, o que poderia talvez permitir que o problema fosse assim colocado: como agir nesse mundo que só existe em sua relação conosco assim como só existimos em relação a ele? Como atuar nesse mundo sem ter que julgá-lo? O que evidentemente implica um mundo no qual agir e um saber sobre como nele atuar.

Não que uma ética não possa ser apresentada como dependente de uma epistemologia ou de uma ontologia, mas este evidentemente não é o caso nos saberes afroindígenas. Neles, creio, a ética apresenta sempre um caráter sobretudo pragmático, no sentido mais nobre da expressão, o do pragmatismo como “uma arte das consequências, uma arte do ‘tomar cuidado’ que se opõe à filosofia da omelete justificando os ovos quebrados” (Pignarre & Stengers 2005:30PIGNARRE, Philippe & STENGERS, Isabelle. 2005. La sorcellerie capitaliste. Paris: La Découverte.), que deixa completamente de lado as grandes questões de princípio ou de moral.6 6 A conceptualização de Pignarre e Stengers elabora uma formulação de Deleuze sobre o humor como uma “arte das consequências ou dos efeitos: está certo, está tudo certo, você me dá isso? Você verá o que sai daí” (Deleuze & Parnet 1977:83). A precedência do pragmatismo, neste sentido preciso, permite inclusive pensar em uma “pragmática ontológica”, no sentido proposto por Guattari e desenvolvido por Vladimir Moreira Lima (2019:82LIMA, Vladimir Moreira. 2019. A partir de Guattari 1: uma política da existência. Rio de Janeiro: Ponteio.) - a quem mais uma vez agradeço por ter chamado a minha atenção para este ponto e por ter observado, em comunicação pessoal, como essa precedência do pragmatismo permite afirmar uma multivalência ontológica ou ôntica em oposição a qualquer equivalência ontológica. E talvez fosse possível dar um passo a mais e imaginar a possibilidade de uma espécie de pragmática epistemológica (ou melhor, epistêmica) que se recusaria, para voltar a falar como Donna Haraway, a considerar os saberes fora de suas situações e funcionamentos empíricos.

É nesse movimento que aquilo que nós denominamos perspectivismo ameríndio pôde ser alinhado conceitualmente com modos de pensar ocidentais, sejam filosóficos (Leibniz, Nietzsche, Deleuze…) ou socioantropológicos (Latour, Strathern, Wagner…). E isso no sentido de que a prática antropológica consiste fundamentalmente em uma tradução na qual as ideias ocidentais mobilizadas para a compreensão de outros pensamentos ao mesmo tempo fornecem um respeitoso acesso a eles e são por eles transformadas. Se o perspectivismo ameríndio pôde se apoiar em algumas filosofias ocidentais, isto se deve apenas a uma percepção, ou mesmo a uma afecção, que faz suspeitar uma estranha proximidade entre aspectos do pensamento de alguns povos ameríndios e de alguns filósofos ocidentais. Percepção que só pode ser confirmada pragmaticamente, ou seja, em função dos resultados da aproximação e de sua capacidade de alterar o ponto de onde partimos. Não se trata consequentemente, de modo algum, da aplicação de nossas formas de pensar àquilo que a elas é indiferente, mas de um alinhamento de forças do pensamento que seja capaz de potencializá-lo.

Em suma, e para empregar termos um pouco mais leves, talvez pudéssemos dizer que ao menos em seu sentido fraco a virada ontológica na antropologia é um nome um pouco mais sério para o falso provérbio chinês citado por Bruno Latour (2005:235LATOUR, Bruno. 2005. Reassembling the social. Oxford: Oxford University Press.): “quando o sábio mostra a Lua, o idiota olha para o dedo”. Ou seja, não importa tanto por que ou como ou as pessoas constroem o mundo de uma determinada maneira, mas sim o mundo que elas assim criam - a ontologia como uma linha de fuga e não como um novo paradigma, reitero.

De todo modo, para aquelas e aqueles que, como eu, estudam religiões de matriz africana, o sucesso intelectual do perspectivismo ameríndio terminou por levantar a questão da possibilidade de algo como um “perspectivismo afro-americano” ou, ao menos, a questão da existência de algum tipo de equivalente ao perspectivismo nessas religiões e nessa tradição. Afinal, além da importância do perspectivismo, o atual estado da arte das relações entre etnologia ameríndia e estudos afro-brasileiros (ver nota 2) tornou quase impossível não tentar colocar em conexão princípios isolados em cada um desses campos. E, de fato, há quem tenha enveredado nessa direção.

Não pude evitar, então, tentar imaginar o que poderia ser esse possível equivalente afro do perspectivismo ameríndio, e não foi muito difícil chegar a uma série de nomes bem duvidosos aos quais, quem sabe, voltarei um dia.7 7 Modulacionismo, vibracionismo, lateralismo, multilateralismo foram alguns desses termos. No entanto, e mesmo com a ajuda de Gabriel Banaggia, a quem agradeço muito, nada disso me pareceu muito satisfatório, nem mesmo “variacionismo”, baseado na sociolinguística variacionista de William Labov de que Deleuze e Guattari (1980) tanto gostavam. Por ora, contudo, eu me limitaria a observar que o problema é que a questão me parece mal colocada porque, primeiro, nada obriga o perspectivismo a ser universal, depois, nada obriga que dois sistemas funcionem por meio de equivalências e, finalmente, nada nos obriga a seguir procedimentos academicistas mesmo quando bem intencionados - que é de onde parece provir a questão no final das contas.

Por outro lado, talvez não seja de todo equivocado tratar a relação afroindígena como uma perspectiva, desde que se admita que esta se apoia no fato de que a oposição entre afros e indígenas é de natureza distinta daquela entre afro e/ou indígena (ou mesmo afroindígena), de um lado, e branco, de outro. É por isso, creio, que essa relação é capaz de resistir à sua captura por uma forma-identidade, e que termos como “índio”, “negro” ou “branco” podem deixar de ser encarados apenas como coisas a pensar e ser vistos como coisas com as quais pensar.

Assim, de uma certa - perdão - perspectiva, trata-se do óbvio: as relações entre as “três raças” do famigerado triângulo brasileiro não podem ser as mesmas quando encaradas do ponto de vista dos dominantes ou dos dominados. Um encontro não pode ser a mesma coisa quando um dos participantes imagina não apenas representar o universal como ter o direito e mesmo o dever de impor esse universal aos demais, e quando se dá entre pessoas ou coletivos que sequer imaginam essa possibilidade.8 8 No filme Ride with the Devil (Cavalgada com o Diabo), de Ang Lee, uma das personagens diz que o Norte não poderia deixar de ganhar a Guerra da Secessão norte-americana porque sequer imagina que outros modos de viver são possíveis. Este também é o sentido, creio, da profunda observação de Abdias Nascimento (1978:108) distinguindo um sincretismo falso, ou falseado, que “longe de resultar de troca livre e de opção aberta [...], decorre da necessidade que o africano e seu descendente tiveram de proteger suas crenças religiosas contra as investidas destruidoras da sociedade dominante” do único fenômeno que “merece o nome de sincretismo”, que, de modo simétrico, “envolveu as culturas africanas entre si, e entre elas e a religião dos índios brasileiros”. Por contramestiçagem ou contrassincretismo não se pretende, é claro, aludir a uma suposta recusa da mistura em nome de uma pureza qualquer, mas tampouco se pretende - e este ponto é crucial - cantar a glória e tecer elogios mais ou menos românticos à mistura, o que reconduziria inevitavelmente àquilo mesmo que tem que ser combatido, os velhos temas racistas de um país mestiço e sincrético vivendo em harmonia.

Talvez pudéssemos parafrasear Antonio Bispo dos Santos (2015:89BISPO DOS SANTOS, Antonio. 2015. Colonização, quilombos. Modos e significações. Brasília: INCTI.) e dizer que assim como “nem tudo o que se ajunta se mistura” (voltaremos a este ponto), nem tudo o que entra em contato se encontra. Como escreveu Deleuze (Deleuze & Parnet 1977:7-13DELEUZE, Gilles & PARNET, Claire. 1977. Dialogues. Paris: Flammarion.), um encontro não é apenas algo de ordem física, não consiste somente em buscar respostas para questões já prontas, em propor ou responder a objeções, em tentar chegar a acordos, consensos etc. Em um verdadeiro encontro, as questões são fabricadas “com elementos vindos de toda parte, de qualquer lugar”, “o objetivo não é responder a questões, é sair delas”, o modo como cada parte é afetada não tem nenhuma necessidade de homogeneidade. Por isso, os encontros não se dão apenas com pessoas, “mas também movimentos, ideias, acontecimentos, entidades”, e se cada um desses encontros pode ter um nome, este não designa simplesmente aquilo que se encontra e sim o encontro propriamente dito.

Para praticantes de antropologia, trata-se da obrigação de, em primeiro lugar, tentar seguir e levar a sério o que milhares ou milhões de pessoas fazem pelo Brasil, pelas Américas e pelo mundo, sublinhando o caráter aberto dos procedimentos que utilizam para conseguir resistir ao emprego destruidor dos encontros e das misturas. Em seguida, trata-se de enfatizar a dimensão analógica, não binária ou digital, o elemento de indeterminação, que qualquer processo ou procedimento de mistura comporta. É nessa acepção, aliás, que o contra (da contramestiçagem ou do contrassincretismo) deve ser compreendido: em seu sentido propriamente clastriano de uma recusa ativa do Um e de uma afirmação das multiplicidades. Afinal, foi Pierre Clastres (1974CLASTRES, Pierre. 1974. La société contre l’état. Recherches d’anthropologie politique. Paris: Minuit.) que nos ensinou (mas ver também Deleuze & Guattari 1972:231DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1972. L’Anti-Oedipe: capitalisme et schizofrénie. Paris: Éditions de Minuit.) que o Um só pode matar na medida em que, ao mesmo tempo, vem de fora e já está de algum modo em nós; e que no nosso caso a questão que portanto se coloca é a do funcionamento das máquinas de guerra afroindígenas mobilizadas para conjurar a mestiçagem e o sincretismo enquanto figuras da unificação.

Espelhos

Se supusermos, então, que na expressão “virada ontológica” o mais interessante não é a ontologia mas a virada, e se nos basearmos no princípio afroindígena de que coisas diferentes podem ser colocadas em conexão enquanto diferentes - sendo que a prova de que a conexão vale a pena reside apenas no possível aumento das potências envolvidas -, talvez possamos arriscar não uma identificação ou uma equivalência, mas uma outra aproximação com o perspectivismo ameríndio por dois caminhos diferentes mas, quem sabe, complementares. O primeiro remete às já mencionadas modulações da diferença como modo de operação dos saberes afroindígenas, ao fato de que em um encontro, mistura ou agenciamento, a indiscernibilidade não significa confusão.

Essa formulação de Deleuze (1985DELEUZE, Gilles. 1985. Cinéma 2: L’Image Temps. Paris: Éditions de Minuit.) em seu segundo livro sobre cinema ressoa de forma impressionante uma elaboração, hoje bem conhecida, de Antonio Bispo dos Santos. Elaboração que é, sem dúvida - ao lado da interpretação da noção de encruzilhada empreendida por José Carlos dos Anjos (2006ANJOS, José Carlos Gomes dos. 2006. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS.) -, uma síntese antecipada das ideias de contramestiçagem e contrassincretismo:

Confluência é a lei que rege a relação de convivência entre os elementos da natureza e - sublinho - nos ensina que nem tudo que se ajunta se mistura, ou seja, nada é igual. Por assim ser, a confluência rege também os processos de mobilização provenientes do pensamento plurista dos povos politeístas (Bispo dos Santos 2015:89BISPO DOS SANTOS, Antonio. 2015. Colonização, quilombos. Modos e significações. Brasília: INCTI.).

Esta observação, cuja profundidade dificilmente poderia ser exagerada, e da qual roubei o título deste texto, mostra que assim como a relação afroindígena não é abstrata, é preciso lembrar que o procedimento de minoração de que falamos não é uma operação arbitrária porque depende justamente dessas modulações da diferença que se encontram no coração dos saberes afroindígenas e, consequentemente, em suas teorias sobre a mistura. Ou seja, no fato de que os seres e as ideias que povoam esses saberes não são pensados como se existissem em estados fixos, mas justamente sempre em modulação. De tal modo que tudo pode aparecer de diferentes maneiras ou, para ser mais preciso, de que, para esses saberes, o ser só pode existir aparecendo de diferentes maneiras.

São essas modulações que fazem com que entidades espirituais (caboclos, por exemplo) possam aparecer - ou “vir como” - seja como espíritos indígenas, seja como exus; que exus, por sua vez, possam “vir como” divindades, orixás ou caboclos; e que mesmo um orixá possa “vir como” orixá propriamente dito ou caboclo. Mas essas modulações também podem permitir a um orixá de uma determinada nação religiosa (angola, jeje, queto…) vir a um terreiro de outra nação sem deixar de ser uma divindade de sua nação de origem; podem fazer com que todo o terreiro de uma determinada nação possa virar para outra, seja para saudar a divindade que chegou, seja para receber um adepto de outra nação; e, também, que uma iniciada possa dizer “hoje estou de Ogum” e, em outro momento, “estou de Oxum”… Não é difícil nem mesmo imaginar todo um coletivo virando alternadamente de afro a indígena e vice-versa - o que, me parece, é mais ou menos o que acontece em Caravelas e que, potencialmente, pode acontecer em muitas partes.

Como já adiantei, creio firmemente que é essa ontologia modulatória que subjaz à chamada “flexibilidade” das religiões de matriz africana (que talvez não esteja ausente nos coletivos indígenas) que seria responsável por seu poder de adaptação por meio da adoção de elementos de diferentes proveniências, incorporando-os e combinando-os de modo a não reduzi-los a um amálgama amorfo que os faria perder sua força. E é por isso que a famigerada e assustadora fórmula de Nina Rodrigues (1897:33) - o sincretismo como “mestiçagem do espírito” - deveria ser refraseada de modo que a contramestiçagem pudesse ser pensada como uma espécie de contrassincretismo do corpo. Porque, como escrevi em outra parte, não é tão difícil imaginar que “a possibilidade de se ser negro E índio (E mesmo, às vezes, branco) possa ser encarada como um processo da mesma natureza que aquele que permite equacionar Oxóssi e São Jorge de um modo em que o conectivo E jamais se torna o verbo É” (Goldman 2017: 22-23GOLDMAN, Marcio. 2017. “Contradiscursos Afroindígenas sobre Mistura, Sincretismo e Mestiçagem. Estudos Etnográficos”. R@U. Revista de Antropologia da UFSCar , 9 (2):11-28.)9 9 A “associação entre o conceito de existência e aquele de uma consistência, portadora de heterogeneidade e de precariedade, implica uma renúncia às oposições massivas binárias do tipo: essência/existência, Ser/Nada etc.” (Guattari 1989:138. Ver, também, Lima 2019:320-321 - mais uma vez agradeço a Vladimir Moreira Lima por esta observação. Acredito que este mesmo ponto também é levantado por José Carlos dos Anjos (2006, 2008). . O que significa que essa possibilidade só pode se atualizar plenamente quando é reversível, temporária e em variação contínua.

É essa propriedade das práticas e dos pensamentos afroindígenas que permite retomar um outro ponto levantado por Deleuze no mesmo volume sobre cinema (que, sublinhemos, trata justamente do tempo). Logo após advertir contra a equivocada indistinção entre indiscernibilidade e confusão, Deleuze define o que denomina “imagem-cristal” ou “descrição cristalina”, que constitui um meio para fazer colapsar o tempo linear sem perder as diferenças entre temporalidades e seus regimes:

A imagem-cristal, ou a descrição cristalina, tem mesmo duas faces que não se confundem. É que a confusão entre real e imaginário é um simples erro de fato, que não afeta a discernibilidade deles: a confusão só se faz “na cabeça” de alguém. Enquanto a indiscernibilidade constitui uma ilusão objetiva; ela não suprime a distinção das duas faces, mas torna impossível designar um papel e outro, cada face tomando o papel da outra numa relação que temos de qualificar de pressuposição recíproca, ou de reversibilidade [...]. São “imagens mútuas” [...] nas quais se efetua uma troca. A indiscernibilidade do real e do imaginário, ou do presente e do passado, do atual e do virtual, não se produz portanto, de modo algum, na cabeça ou no espírito, mas é o caráter objetivo de certas imagens existentes, duplas por natureza. Então, duas ordens de problema se colocam: uma de estrutura, outra de gênese [...]. O caso mais conhecido é o espelho (Deleuze 1985:94DELEUZE, Gilles. 1985. Cinéma 2: L’Image Temps. Paris: Éditions de Minuit.).

Formulação que nos abre o segundo caminho que eu gostaria de explorar, o caminho dos espelhos. Porque esse caminho talvez permita deixar um pouco mais claro esse experimento de cruzamento com o perspectivismo ameríndio aqui esboçado, ao permitir (justamente) especular sobre o que pode virar esse perspectivismo quando o fazemos passar pelas religiões de matriz africana (e, claro, vice-versa).

Em sua linda etnografia sobre candomblés na periferia de Salvador na década de 1980, Jim Wafer se pergunta:

Quando Oxum, que é o espelho, penteia seus longos cabelos em frente ao espelho, o que ela vê? Uma mulher ou um homem? Sua pele é branca ou negra? Ela vê juventude, beleza, amor, riqueza e vida? Ou velhice, feiura, ódio, pobreza e morte? Sua face e sua contraface veem essas coisas como diferentes? Ou essa criatura de conjunções tem uma visão simultânea daquilo que, para nós, mortais, são inversões perspectivas ou transformações temporais? (Wafer 1991:22WAFER, Jim. 1991. The taste of blood: Spirit possession in Brazilian Candomblé. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.).

Confesso nunca ter entendido muito bem por que Wafer parece pensar que, no candomblé, apenas Oxum seria uma “criatura de conjunções” (talvez porque ela sempre traga um espelho). Creio, contudo, que, dadas as características desse sistema, todos os seres que dele fazem parte tendem a apresentar essa dimensão e que, consequentemente, nada nos impede de imaginar e indagar o que qualquer um deles veria quando se olha no espelho.

De todo modo, e de fato, “inversões perspectivas ou transformações temporais” são aquilo mesmo que costuma definir o perspectivismo ameríndio, e a própria monografia de Wafer (1991:133WAFER, Jim. 1991. The taste of blood: Spirit possession in Brazilian Candomblé. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.), aliás, menciona o fato de que os espíritos infantis do candomblé, os erês, têm medo de sandálias de couro porque as veem como jacarés, o que sempre poderia vir a ser mencionado como “um caso de perspectivismo afro-brasileiro”. Há outros exemplos, claro, mas não é nisso que estou interessado aqui. Não apenas porque se pode encontrar esse tipo de situação em quase toda parte, mas principalmente porque o que constitui o interesse do perspectivismo ameríndio não é a compilação de casos isolados e curiosos, mas, como sugerido acima, essa espécie de existencialismo radical no qual a própria existência está submetida à capacidade de relacionamento e afecção mútua dos seres.

Nesse sentido, penso que bem mais interessante é o conhecido medo que esses mesmos erês costumam demonstrar em relação aos espelhos. Não conheço observações muito aprofundadas sobre isso, com a exceção da grande monografia de Ordep Serra (1978:175SERRA, Ordep. 1978. Na trilha das crianças: os Erês num terreiro Angola. Dissertação de Mestrado, UnB.) sobre o tema, na qual o autor observa como o medo de espelhos revela que esses seres são uma espécie de “antinarcisos”. Nossa sorte aqui, entretanto, é dispor do excepcional material apresentado por Carmen Opipari e Sylvie Timbert (1998OPIPARI, Carmen & TIMBERT, Sylvie. 1998. ErêErê. Sua imagem ou a do outro (DVD).) em seu belíssimo documentário intitulado ErêErê. Sua Imagem ou a do Outro.

O filme começa justamente evocando o medo dos espelhos sentido pelos erês, lembrando também que, em ioruba, a palavra erê significa estátua, imagem, duplo, denotando, por via de consequência, uma gemelidade que transparece na associação dos erês com os gêmeos ioruba (Ibeji) ou cristãos (Cosme e Damião). A partir daí, as diretoras decidem fazer uma experiência: mostrar aos erês suas fotografias tiradas no próprio momento da filmagem com uma câmera Polaroid e filmar suas reações: “quem são esses personagens que nossa câmera tenta captar? Como percebem sua colocação em imagem? Qual é o estatuto dessas imagens? Quem reconhece quem?” - perguntam Opipari e Timbert. O resultado é impressionante!

As diretoras conversam e filmam quatro erês. Colibri diz que já viu seu próprio rosto e que “é bonito”, acrescentando para uma das diretoras que “um dia eu vou aparecer para a senhora”. Confrontado com a imagem da Polaroid, confirma seu juízo sobre si mesmo: “eu sou bonito! Sou eu!”.

Lança Azul, de Ogum, conta que “não nasci ainda” (ou seja, seu cavalo ainda não foi completamente iniciado), o que, explica, não constitui obstáculo para sua existência. Fazendo pouco caso dos presentes que dizem “como você é feia!” quando a fotografia da Polaroid se revela, ele conclui que “minha filha vai ficar doida quando ver isso” e, perguntado sobre quem aparece na foto, responde: “sou eu. Sou eu dentro dela”.

No caso dos dois últimos erês do filme - Margarida Laila, de Oxum, e Cuscuzeiro, de Obaluaiê -, o documentário alterna seus depoimentos com aqueles de seus “cavalos” ou “cavalas”. Marlene diz que:

“No meu pensamento, Oxum é gorda, muito bonita. Eu queria ser bonita que nem ela. Beleza. Sei lá, ela é mais alta, bem alta, forte e alta. Não é pequetitinha nem gorduchinha que nem eu. Oxum é a deusa do amor, do ouro e da fertilidade. Agora, não combina comigo porque eu não sou fértil. Gosto de criança. Acho que isso faz parte da personalidade que a Oxum transmitiu para mim”. Diz que já viu sua erê, “mas que ela não é preta, é branca, é loira, com os cabelos cacheados. Eu já sonhei várias vezes com essa criança. Ela é clarinha, mas com a pele queimada, bem queimada”.

Margarida, por sua vez, ao ser perguntada se já viu sua cara, responde que:

- Eu não, eu não preciso ver, é a cara dela [da cavala]; as diretoras insistem:

- Você sabe quem é?, mostrando a foto da Polaroid.

- Essa aí é minha cavalinha, não é? Mas você não me pegou!

- Não é você?!

- Não, mas você vai ver eu hoje. Não sou eu, é a cavala.

- Como você é?

- Você vai ver!

[Alguém explica a uma das diretoras que ela vai sonhar com a erê]

- Como a gente faz pra te ver Margarida? Se isso não é você, quem é?

- É um pouco eu, assim, sabe, é a cavala. Mas você não me conhece não!

Finalmente, ao ver as imagens de seu erê e de seu orixá no vídeo, o cavalo de Cuscuzeiro explica que seu santo não gosta da câmera, mas que o erê vai ficar contente de ver o filme, de se ver nele. Também explica para as diretoras que seu Obaluaiê não pode assistir ao filme porque tem os olhos fechados e só o erê tem os olhos abertos; os santos, conclui, não gostam da televisão: “ele não gosta que tire foto dele, que fique gravando ele; ele acha que é figurinha porque na língua deles é feito figurinha para eles. Nenhum santo gosta. Você não vê que muita foto de santo bate e queima? Porque é o santo que queima, não é ninguém que queima não”.

Quando o erê Cuscuzeiro vê seu Obaluaiê na televisão e perguntam a ele “quem é esse?”, ele responde que:

- É meu dispaizinho que manda em mim.

- Você e teu dispaizinho são a mesma coisa, a mesma pessoa?

- É… Não… É ele que manda em mim. Se ele não vier na frente, eu não venho. Eu só venho em terra se ele deixar.

- Mas por que você não vai embora se estão cantando para você ir?

- Porque aí é outra coisa, não é meu dispaizinho que está aí, ele só está dentro daquele negócio [televisão].

- Desde que eu nasci (reflete Cuscuzeiro) eu nunca me vi num espelho. Eu sou feio.

- Mas por que você pode se olhar em um filme e não pode se olhar num espelho?

- Porque está lá dentro. Mas no espelho que a senhora quer me mostrar, eu nunca olhei. Nós não aparecemos lá dentro. Foi você que me colocou lá dentro?

Após lembrarem algumas das difíceis questões levantadas pelos erês e seus cavalos - “sou eu, não sou eu, é meu cavalo”; “você não me pegou”! “Você não me conhece”! -, as diretoras concluem seu lindo filme com uma observação que acho difícil acompanhar: “não se captura nada em um espelho”. Claro que se trata de uma defesa do cinema e de sua elaboração de perceptos cuja duração ultrapassa a fugacidade das sensações e das percepções. No entanto, se seguirmos Deleuze em seus dois livros sobre o tema, parece-me, antes, que as limitações dos espelhos se devem mais à sua incapacidade de lidar com o movimento e o tempo.10 10 Dependendo dos espelhos, claro: “Os espelhos de Bacon são tudo o que quisermos, menos uma superfície que reflete. O espelho é uma espessura opaca, por vezes preta. Bacon não vive, de modo algum, o espelho à maneira de Lewis Carroll. O corpo passa para o espelho, nele se aloja, ele mesmo e a sua sombra. Eis o que é fascinante: nada há atrás do espelho, mas dentro dele. O corpo parece se alongar, se achatar, se esticar no espelho como se ele se contraísse para passar pelo buraco. Se for preciso, a cabeça se racha numa grande fenda triangular, que vai se reproduzir dos dois lados e espalhar a cabeça por todo o espelho, como um bloco de gordura numa sopa” (Deleuze 2002:25 - agradeço a Ovídio de Abreu por ter me mostrado este texto). Um pouco como o que diz Latour sobre os riscos de “congelar a imagem”:

Tanto no caso da ciência quanto no da religião, congelar o quadro, isolar um mediador dos seus encadeamentos, de sua série, impede instantaneamente que o significado seja modulado e transmitido em verdade. A verdade não se encontra na correspondência - seja entre as palavras e as coisas, no caso da ciência, ou entre original e cópia, no caso da religião -, mas em tomar a si novamente a tarefa de continuar o fluxo, de prolongar em um passo a mais a cascata das mediações [...]. Deus não pediu que não fizéssemos imagens [...]; ele disse que não congelássemos a imagem, que não isolássemos um quadro retirando-o do fluxo que, só ele, empresta às imagens seu real [...] sentido.

Em outros termos, eu diria que o risco dos espelhos - “Sim, são para se ter medo, os espelhos”, como escreveu Guimarães Rosa - é justamente a captura, o que também ocorre com as fotografias, como é atestado em inúmeras partes do mundo. Mas o interessante do filme de Opipari e Timbert é que elas usam uma câmera Polaroid, o que faz com que a imagem vá sendo criada diante dos olhos dos espíritos, dos seus cavalos e dos espectadores, restituindo assim, ao menos em parte, o tempo e o movimento que permitem ultrapassar a simples captura e entrar no domínio da criação. O maravilhamento estampado na face dos erês e de seus cavalos ao acompanharem a materialização das imagens nas fotografias é um dos pontos altos do documentário. E é ele que nos permite vislumbrar o papel central desempenhado por essas dimensões - tempo e movimento - no candomblé e nas religiões de matriz africana em geral. Porque, de fato, as modulações da diferença de que falamos só fazem sentido nesse sistema na medida em que permitem e exigem ao mesmo tempo alternâncias simultaneamente temporais e espaciais.

Observações sobre o verbo virar

Estamos aparentemente longe da relação afroindígena, mas, na verdade, muito próximos. Lembremos, primeiro, que os erês se manifestam sempre segundo uma sequência temporal que o filme mostra muito bem, ao acompanhar a chegada de Margarida Laila de Oxum. Kilombo, seu pai de santo, traz a Oxum de Marlene, que chega chorando e, logo depois, dá passagem ao erê. O rosto de Marlene se transforma completamente e ela pega uma calunga (boneca) com a qual sai batendo na cabeça das crianças presentes em uma espécie de bênção. No final, para despachar o erê, Kilombo chama Marlene pelo nome, mas é Oxum que vem antes de Marlene vir logo depois, para ver, rindo e ligeiramente envergonhada, a fotografia de sua erê.

Em outros termos, se usarmos o vocabulário dos terreiros de candomblé, uma mãe ou pai de santo pode virar sua filha em seu orixá (ou faz virar o orixá em sua filha), que vira no erê, que vira no orixá, que vira na filha de santo. Tudo sugere que a sequência é reversível porque é a mesma pessoa e o mesmo orixá ou erê que vão e voltam; por outro lado, como se sabe, ao longo do tempo tanto a pessoa quanto o orixá e o erê vão mudando na medida em que sua idade de santo vai aumentando. Além disso, é essencial sublinhar que essa sequência não está isenta de riscos, uma vez que, se ela for interrompida em algum ponto, algo de muito grave pode acontecer.

Gabriel Banaggia (2018:9-10, 20BANAGGIA, Gabriel. 2018. “Canalizar o fluxo: lidando com a morte numa religião de matriz africana”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 24 (3):9-32.) mostra, por exemplo, como o fato de uma adepta do Jarê parecer não retornar do estado de transe, mesmo depois de seu caboclo já ter deixado seu corpo, foi motivo de muita apreensão, chegando mesmo a ser lido como uma espécie de “breve morte”. Do mesmo modo, são conhecidos os riscos que o não retorno do plano em que vivem os encantados representam para quem empreende essa viagem xamânica que também envolve algo de possessão (entre os vários trabalhos sobre o tema, ver, por exemplo, Vasconcelos 2020VASCONCELOS, Kauã Favilla da Silva. 2020. Nas margens de lá: entre caboclos e caruanas na Encantaria Marajoara. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ.).

De toda forma, é essa sequência dinâmico-temporal, bem como a proliferação e a recorrência do verbo virar, que eu gostaria de enfatizar. Como se sabe, no candomblé é possível dizer que um orixá vira, que alguém vira no santo, que um toque vira para outra nação, e assim por diante. Ao mesmo tempo, a cada movimento corresponde um “desvirar”: desvirar o santo, desvirar a pessoa, retornar ao toque de sua nação… Creio, assim, que é a complexidade desse processo que permite uma outra conexão entre estes dois sofisticados pensamentos da diferença, o perspectivismo ameríndio e o que sou tentado a denominar, usando uma expressão um pouco grosseira, de viracionismo afro-americano.

Na verdade, é preciso dizer que minha primeira inspiração para essa aproximação veio em direção contrária, ou seja, justamente do uso que parte da literatura etnológica contemporânea tem feito do verbo virar a fim de se referir ao que se costumava denominar aculturação ou contato interétnico. O ponto crucial neste uso, contudo, é que a melhor etnologia - como a de José Kelly (2016KELLY, José A. Lucianni. 2016. Sobre a antimestiçagem. Florianópolis: Cultura e Bárbarie.) sobre os Ianomâmi, por exemplo (ver, também, entre outros, Souza 2017SOUZA, Marcela Stockler Coelho de. 2017. “Uma irritante duplicidade: breve nota sobre a contramestiçagem e os Kisêdjê”. R@U Revista de Antropologia da UFSCAR, 9 (2):201-212. e Nunes 2012NUNES, Eduardo Soares. 2012. No asfalto não se pesca. Parentesco, mistura e transformação entre os Karajá de Buridina (Aruanã - GO). Dissertação de Mestrado, PPGAS, Universidade de Brasília.) - toma este verbo diretamente dos próprios indígenas, em especial quando estes se referem a “virar branco”, coisa que fazem com bastante frequência. O que nos leva, evidentemente, a indagar em que sentido eles estariam formulando o verbo virar, conduzindo assim à minha segunda fonte de inspiração.

Apenas recentemente me dei conta da espantosa polissemia que o verbo virar possui em português, em especial, se não exclusivamente, naquele falado no Brasil. O dicionário Aurélio lista nada menos do que 27 acepções, e o Houaiss algo como 20. Não se trata aqui, é claro, de empreender uma análise linguística rigorosa de todas essas acepções, mas simplesmente de, por meio de sua justaposição, tentar demonstrar um ponto que, espero, logo ficará claro.

É como verbo predicativo que virar parece se impor quando escutamos uma expressão como “virar branco”, por exemplo. De fato, nesse sentido, diz o dicionário Houaiss, virar significa “assumir a forma ou a natureza de (outro), converter-se em, transformar-se em” - “no conto, o sapo vira um belo príncipe”. O mesmo no Aurélio, que acrescenta, todavia, que esse sentido seria próprio do português brasileiro: “transformar-se, tornar-se”. O Aurélio, aliás, atribui a etimologia do verbo a “um provável hibridismo celta-latino, com origem no galês gwyro, que significaria “inclinar-se para um lado”, que teria desembocado no latim virare. Ocorre, contudo, que além de designar essas transformações algo substanciais, virar também quer dizer muitas outras coisas, algumas bastante superpostas:

inverter a direção ou a posição de (virar o automóvel ou virar o carro para a direita); pôr do avesso, voltar o lado interior para fora; revirar (virar os bolsos); pôr em posição contrária à que se encontrava (virou o disco); despejar, bebendo; entornar (virou a garrafa de vinho); fazer dobra em; dobrar (virar a ponta do papel); dar a volta a; dobrar, circundar, quebrar (virar a esquina); fazer girar em torno de um eixo (virar a manivela); fazer mudar de opinião, tenção ou partido (é impossível virar os políticos sérios); mudar de posição (virou o rosto para a parede); mudar de direção, de rumo (o navio virou ao largo); estar voltado; apontar (a janela virava para o nascente); sustentar partido, opinião ou tenção contra; levantar-se, rebelar-se (o povo virou contra o monarca despótico); ficar de borco (a embarcação bateu contra as rochas e virou); mudar de rumo, de direção (pouco antes das eleições a opinião pública virou); mudar (o tempo) (com a ventania, o tempo virou); sofrer mudança súbita e radical (a política virou e o deputado não se reelegeu); [Como reflexivo] voltar-se, rebelar-se (virou-se contra o próprio pai); voltar-se, volver-se; pôr-se em posição contrária àquela em que se encontrava (virou-se de bruços); diligenciar para sair, por seus próprios recursos, de uma situação difícil, complicada, penosa; procurar superar dificuldades, complicações, penúrias, tomar providências, diligenciar, para conseguir ou obter alguma coisa (se virar) [exercer a prostituição].

Não se trata, pois, repito, de tentar explorar cada uma dessas acepções, já que não é muito difícil imaginar o que é possível fazer com cada uma delas (donde a longa lista pela qual me desculpo). Eu arriscaria dizer, entretanto, que em uma expressão como “virar branco” praticamente todos esses sentidos podem estar presentes e que isso poderia levar as análises do “contato” ou da “mudança” para direções bem diferentes das usuais. Como observou Jean Pouillon (1979POUILLON, Jean. 1979. “Remarques sur le verbe croire. In: Michel Izard & Pierre Smith (eds.), La Fonction Symbolique. Paris: Gallimard. pp. 43-51.) há quase quarenta anos,11 11 Trata-se de “Observações sobre o verbo crer”, texto publicado em uma coletânea em homenagem aos 70 anos de Lévi-Strauss. Em função da crítica que elabora da noção de crença, este texto foi muito importante quando escrevi minha tese de doutorado há 30 anos. É bem surpreendente que tenha voltado à minha cabeça (mais uma vez em um sonho…) quando comecei a pensar a conferência que deu origem a este texto. há algo mais do que uma simples polissemia aqui; há uma verdadeira ambiguidade, porque cada um dos sentidos do verbo parece repercutir os demais mesmo quando ditos em sentidos diferentes.

Aqui, limito-me apenas a apelar para nossa imaginação, especulando se o “virar branco” de um ponto de vista não branco não se tornaria ao menos um pouco mais inteligível se prestássemos atenção àquilo que, por exemplo, os Kisêdjê do Brasil Central ensinaram a Marcela Stockler Coelho de Souza (2017:205-206SOUZA, Marcela Stockler Coelho de. 2017. “Uma irritante duplicidade: breve nota sobre a contramestiçagem e os Kisêdjê”. R@U Revista de Antropologia da UFSCAR, 9 (2):201-212.): usando sempre a palavra mistura em português (“como se pressentissem nela uma potência sem equivalente nas de sua língua”, escreve a autora), eles explicaram a ela que “estamos virando brancos”, “já viramos brancos” e que “somos Kisêdjê” - sem que haja aqui nenhuma contradição. Ou no que os Karajá de Buridina ensinaram a Eduardo Soares Nunes (2012NUNES, Eduardo Soares. 2012. No asfalto não se pesca. Parentesco, mistura e transformação entre os Karajá de Buridina (Aruanã - GO). Dissertação de Mestrado, PPGAS, Universidade de Brasília.), explicando que, quando se sai de uma aldeia que fica praticamente na cidade para a cidade propriamente dita, é preciso trocar de chip (como com um telefone celular) sob pena de tentar ficar, como dizem, “pescando no asfalto”. Ou mesmo no sentido dos Maia contemporâneos, estudados por Pedro Pitarch (2013PITARCH, Pedro. 2013. La cara oculta del pliegue. Ensayos de Antropología Indígena. Ciudad de México: Artes de México/Conaculta.), que fazem da dobra uma infinita capacidade de aproximar-se do mundo dos brancos sem se converterem neles; ou mesmo, quem sabe, adotando um ponto de vista “afro” a partir do qual “virar branco” poderia ser aproximado do fato de que alguém que “vira no santo” nunca se torna o próprio santo. Em poucas palavras, penso que tudo se tornaria um pouco mais claro se concentrássemos nossa atenção no virar enquanto verbo, não naquilo que supostamente seria seu telos; se prestássemos mais atenção no fato de que, quando dito por afros, indígenas e afroindígenas, este verbo parece estar sempre sendo conjugado no gerúndio, um virando mais do que um virar.

Não é difícil adivinhar a estreita relação que esse modo de compreender o verbo virar mantém com o célebre conceito deleuzeguattariano de devir (ver Goldman 2016GOLDMAN, Marcio. 2016. “Prefácio”. In: Ana Cláudia Cruz da Silva. Devir negro. Uma etnografia de encontros e movimentos afroculturais. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. pp. 9-15.). Mas é curioso observar como este que é, sem dúvida, um dos mais belos conceitos da história do pensamento ocidental costuma encontrar algumas dificuldades quando se tenta aplicá-lo a situações como as que aqui abordamos. Essa aparente dificuldade deriva, creio, justamente da simplicidade e da beleza com que o conceito caminha na contramão das correntes dominantes do nosso pensamento. Se ele é tão fácil de desandar, no sentido culinário do termo, é porque não se refere principalmente ao substantivo ou ao adjetivo que sempre o seguem. Deleuze e Guattari (1980:315DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Mille plateaux. Paris: Éditions de Minuit., grifos meus) não se cansam de repetir que devir não é se assemelhar, imitar, identificar - ainda que um esforço para se assemelhar, imitar e identificar possa ser um momento decisivo do processo. Devir, dizem os autores, não tem nada a ver com transformações substanciais, ou seja, com simples passagens de uma forma substancial a outra. Trata-se, antes, de “uma composição de velocidades e de afetos” - o que significa que uma expressão como “devir negro”, por exemplo, não deve ser entendida apenas como “transformar-se em negro”, o que seria redundante para quem é negro e ridiculamente pretensioso para quem não o é.

Nesse sentido, virar será bem diferente de devir se o entendermos apenas como transformar-se. Por outro lado, se pensarmos em virar nos sentidos atribuídos nas religiões de matriz africana, pode ser que a própria noção de devir seja capaz de entrar em uma relação de “fecundante corrupção” (Rosa 1956:XXV-XXVIROSA, João Guimarães. 1956. “Pequena palavra”. In: Paulo Rónai (org.), Antologia do conto húngaro. Rio de Janeiro: Artenova. pp. XI-XXVIII.) recíproca com a de virar. Nessa direção, eu arriscaria mesmo dizer que o devir também pode ser pensado em uma certa vizinhança com o transe, com o ser possuído por uma força ao mesmo tempo estranha e familiar, externa e interna, de tal modo que alguém pode se tornar algo diferente do que é sem deixar inteiramente de se ser o que é. Reencontraríamos, assim, a formulação de Deleuze e Guattari de que devir é simplesmente o movimento pelo qual saímos da nossa condição por meio de uma relação com uma condição outra e compreendemos melhor por que os autores sempre insistiram no fato de que as mulheres também entram em devires mulheres, os negros em devires negros, e assim por diante. Mas, é preciso sublinhar, o fato de a experiência do devir estar aberta a todas e a todos não significa, evidentemente, que todas e todos a viverão da mesma maneira.

Porque essa “nossa condição” de que falam os autores é, por definição, a única de que temos que sair, e deve ser entendida como um certo estado de coisas: o conjunto dos traços que nos definem molarmente, nosso sexo, cor, classe, idade, história pessoal… - a nossa “identidade”, se quisermos. E é porque se trata de traçar linhas de fuga em relação a essa condição que os devires nada têm a ver com atingir algum objetivo ou alvo (negro, índio, mulher…), ao mesmo tempo em que sempre comportam um meio ou se dão através de um meio que, este sim, pode ser negro, índio, mulher, criança, animal… Escapar da “nossa condição” exige, pois, uma outra condição por meio da qual saímos, e essa condição é sempre a de uma minoria, entendida, evidentemente, em uma acepção não meramente quantitativa. Por isso não há devir homem, devir branco, devir heterossexual: porque homem-branco-heterossexual é a principal condição da qual escapar.

Os devires implicam, portanto, esse duplo movimento: uma linha de fuga em relação a um estado-padrão (maioria) por meio de um estado não padrão (minoria), sem que isto signifique necessariamente reterritorializar-se sobre uma minoria como estado, mas, bem ao contrário, ser capaz de construir novos territórios existenciais onde se reterritorializar de forma criativa. O devir, assim, é o que nos arranca não apenas de nós mesmos, mas de toda identidade substancial possível. Só assim seremos capazes de deixar de pensar a diferença em sentido estritamente identitário, como representação de traços molares característicos de pessoas e grupos, para poder pensá-la, também, como um “diferir” molecular, intransitivo e contínuo, que permite novas combinações criativas de forças.

Em outras palavras, se quando compreendido em conexão com o verbo virar o conceito de devir pode, por um lado, se tornar etnograficamente menos arriscado, por outro, pode alargar nossa concepção do que significa virar e, quem sabe, o que podem ser essas viradas de que tanto se fala. Porque muitos dos mal-entendidos em torno do conceito de devir derivam de sua assimilação apressada de alguns dos sentidos do verbo virar. “Virar branco”, por exemplo, não tem muito a ver com devir pois, como vimos, o devir está sempre associado a um movimento minoritário. Por outro lado, quando formulada pelos Kisêdjê, pelos Karajá e por tantos outros é bem possível que a aproximação possa ser feita, uma vez que, também o vimos, o verbo virar aqui - como no candomblé - é usado de modo bastante diferente. De toda forma, ao menos para os propósitos deste texto, é importante sublinhar a inextrincável conexão entre devir ou virar e a questão do movimento - desde que sejamos claros sobre a que tipo de movimento nos referimos ao falar de devir ou de virar. Afinal, como escreveu Deleuze, se as opressões são tão terríveis não é porque ofendem o eterno, mas porque “impedem os movimentos”. E se nosso trabalho tem ainda algum sentido, é nessa luta pelo movimento e ao lado dos movimentos que este deve ser buscado.

Deleuze distinguiu ao menos duas concepções do movimento: uma, mais clássica, que ele chama de “energética”, em que o movimento é pensado sempre a partir de um ponto de apoio original, ou então em que alguém ou algo é fonte do movimento - como em uma corrida ou no arremesso de peso. Deleuze acrescenta, contudo, que também é possível pensar o movimento como “inserção em uma onda preexistente”:

Por muito tempo viveu-se baseado numa concepção energética do movimento: há um ponto de apoio, ou então se é fonte de um movimento. Correr, lançar um peso etc.: é esforço, resistência, com um ponto de origem, uma alavanca. Todos os novos esportes - surfe, windsurfe, asa delta - são do tipo: inserção numa onda preexistente. Já não é uma origem enquanto ponto de partida, mas uma maneira de colocação em órbita. O fundamental é como se fazer aceitar pelo movimento de uma grande vaga, de uma coluna de ar ascendente, “chegar entre” em vez de ser origem de um esforço (Deleuze 1990:165DELEUZE, Gilles. 1990. Pourparlers 1972-1990. Paris: Éditions de Minuit.).

Virar, como devir, deve, claro, ser entendido na chave do movimento, mas muito mais na dos movimentos do surfe ou da asa delta do que daqueles do atletismo. Como bem sabem, entre outros, surfistas, praticantes de asa delta e praticantes do candomblé, esse tipo de movimento é muito mais perigoso, uma vez que envolve uma arriscada arte de composição com movimentos cósmicos que nunca podem ser totalmente controlados. Os praticantes desses esportes também sabem, e não se cansam de repetir, que o segredo para neles sermos bem sucedidos começa com o respeito com o qual é necessário tratar essas forças cósmicas. É preciso respeitar o mar, respeitar o vento, a doença, como não se cansaram de me ensinar meus amigos em Ilhéus. E como ensinam a tantos praticantes de antropologia os mais diferentes saberes afroindígenas.

Coda

Este texto também é um experimento de dupla captura: o que viram, ou podem virar, os saberes e as práticas afroindígenas em geral, e as religiões de matriz africana em particular, quando o perspectivismo passa por elas? E o que viram, ou podem virar, o perspectivismo e a virada ontológica quando esses saberes, práticas e religiões passam por eles? Para retornar ao léxico e à gramática que aprendi com minhas amigas e meus amigos no candomblé, o que ocorre quando o perspectivismo vira nessas religiões e estas viram no perspectivismo? A famosa virada ontológica da antropologia poderia então, quem sabe, ser compreendida - no sentido fraco que aventei acima - não como uma espécie de conversão à ontologia, mas como uma viração, como um virar na ontologia, ou como uma ontologia virando. Como o virar no santo, ou o santo que vira - o que sempre implica, como vimos, a possibilidade ou mesmo a necessidade de desvirar -, essa virada afeta tanto quem vira quanto aquilo em que vira. Seu segredo e seu risco são que as singularidades de cada elemento jamais podem ser apagadas, porque só assim, creio, se torna possível levar as potências do virar até suas últimas consequências.

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Notas

  • *
    Este texto retoma a conferência “‘Nada é Igual’: Modulação, Devir e Respeito nos Saberes Afroindígenas”, apresentada em Salvador, Bahia, no dia 8 de março de 2017, no Seminário “A Relação Afroindígena na Bahia e Alhures: Cosmopolíticas em Contato”, organizado pelo PPGCS, PPGA e Pós-Afro da Universidade Federal da Bahia. Agradeço aqui às organizadoras do evento, Miriam Rabelo e Marina Vieira Guimarães, bem como a todas e todos que dele participaram. Muita gratidão, também, às pessoas que leram cuidadosamente várias versões do texto: Barbara Cruz, Edgar Rodrigues Barbosa Neto, Helena Santos Assunção, Noshua Amoras de Morais e Silva e Vladimir Moreira Lima. Suas observações fizeram com que ele se tornasse bem melhor, os equívocos que sem dúvida permaneceram sendo evidentemente de minha inteira responsabilidade.
  • 1
    Texto que faz parte de um pequeno dossiê que reuniu textos da etnologia ameríndia (Macedo & Sztutman 2014MACEDO, Valéria & SZTUTMAN, Renato. 2014. “A parte de que se é parte. Notas sobre individuação e divinização (a partir dos Guarani)”. Cadernos de Campo , 23:287-302.; Santos 2014SANTOS, Rafael Barbi Costa. 2014. “Sobre cultura e segredo entre os Xakriabá de São João das Missões/MG”. Cadernos de Campo , 23:241-255.; Vanzolini 2014VANZOLINI, Marina. 2014. “Daquilo que não se sabe bem o que é: A indeterminação como poder nos mundos afroindígenas”. Cadernos de Campo , 23:271-285.) e da afro-brasileira (Barbosa Neto 2014BARBOSA NETO, Edgar Rodrigues. 2014. “Da feitiçaria como estética ritual nas religiões de matriz africana”. Cadernos de Campo, 23:303-318.; Mello 2014MELLO, Cecília Campello do Amaral. 2014. “Devir-Afroindígena: “Então vamos fazer o que a gente é”. Cadernos de Campo, 23:223-239.; Sauma 2014SAUMA, Julia F. 2014. “Entrosar-se, uma reflexão etnográfica afroindígena”. Cadernos de Campo, 23:257-270.).
  • 2
    Sublinho aqui o caráter de fato coletivo de todo esse trabalho porque ele é essencial em função das dificuldades que temos para descrever e compreender as potências em jogo na relação afroindígena por meio de nossos modos de pensar habituais e de nosso vocabulário conceitual tradicional. Além disso, é apenas esse trabalho conjunto que torna possível reunir, aproximar e combinar aquilo que aprendemos em diferentes coletivos. Nesse sentido, uma série de trabalhos fazem parte, direta ou indiretamente, desse esforço coletivo para pensar encontros e misturas fora da chave da unificação, da estatização e do branqueamento. Além de vários trabalhos citados no corpo deste texto, eu mencionaria: Assunção 2018ASSUNÇÃO, Helena Santos. 2018. Falar e guardar segredo: as capulanas de Nampula (Moçambique). Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ., Banaggia 2015aBANAGGIA, Gabriel. 2015a. As forças do Jarê. Rio de Janeiro: Garamond., Barbosa Neto 2012BARBOSA NETO, Edgar Rodrigues. 2012. A máquina do mundo: variações sobre o politeísmo em coletivos afro-brasileiros. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ.., Cruz 2018CRUZ, Barbara Pimentel da Silva. 2018. Confluências e transfluências no Terecô, religião de matriz africana de Codó, Maranhão. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ.., Fialho 2018FIALHO, Gustavo Ferreira. 2018. O Povo da cultura e as forças do barro no Quilombo Buriti do Meio - MG. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ., Flores 2013FLORES, Luiza. 2013. Os Comanches e o prenúncio da guerra: um estudo etnográfico com uma tribo carnavalesca de Porto Alegre/RS. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, UFRJ. , Flores 2018FLORES, Luiza. 2018. Ocupar: composições e resistências kilombolas. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ. , Marques 2016MARQUES, Lucas de Mendonça. 2016. Caminhos & feituras. Seguindo ferramentas de santo em um candomblé da Bahia. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ., Mello 2020MELLO, Cecília Campello do Amaral. 2020. “Aquém da possessão: a noção de irradiação nos estudos das religiões de matriz africana”. Anuário Antropológico, 45 (2):146-163., Meza 2014MEZA, Luis Guillermo. 2014. Etn ografando a “Red de Ananse”: política, pesquisa e espiritualidade afro-colombianas. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ., Pereira 2017PEREIRA, Anderson Lucas da Costa. 2017. A Cabocla Mariana e a sua corte ajuremada. Modos de pensar e fazer festa em um terreiro de Umbanda em Santarém, Pará. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ., Pinto Filho 2020PINTO FILHO, Olavo de Souza. 2020. A família nagô. Composições entre o sangue e o santo no candomblé do Recife. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, USP., Quiceno Toro 2016QUICENO TORO, Natalia. 2016. Vivir sabroso. Luchas y movimientos afroatrateños, en Bojayá, Chocó, Colombia. Bogotá: Editorial Universidad del Rosario., Reyes Escate 2018REYES ESCATE, Luis. 2018. Negros devires. Porto Alegre: Editora da UFRGS., Silva 2018SILVA, Noshua Amoras de Morais. 2018. Composição e metamorfose no Maracatu da Zona da Mata de Pernambuco. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ., Vasconcelos 2020VASCONCELOS, Kauã Favilla da Silva. 2020. Nas margens de lá: entre caboclos e caruanas na Encantaria Marajoara. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ., Velloso 2019VELLOSO, Natalia. 2019. O Mar e a Vovó Tartaruga: Variações políticas na luta da Associação Pilorinhu na Cidade da Praia em Cabo Verde. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ..
  • 3
    Agradeço imensamente a Vladimir Moreira Lima por ter chamado a minha atenção para o fato de que, ao contrário do que frequentemente se imagina, a sobrecodificação, tal qual pensada por Deleuze e Guattari (1972DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1972. L’Anti-Oedipe: capitalisme et schizofrénie. Paris: Éditions de Minuit. e 1980DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Mille plateaux. Paris: Éditions de Minuit.), não é simplesmente o oposto da descodificação. Ao contrário, a primeira - a submissão de códigos polívocos e complexos a uma regra ou lei que se pretende única - depende de uma profunda descodificação prévia dos códigos a serem submetidos. No caso da relação afroindígena, isso significa, por um lado, que a multiplicidade dos modos pelos quais essa relação é codificada nas práticas e nos pensamentos afro e indígenas (aquilo que lhe dá consistência e torna possíveis agenciamentos que mantêm as singularizações de que são feitos) é, primeiro, destituída de seu rigor e complexidade e, em seguida, reduzida à noção de uma mistura genérica cuja única finalidade e possibilidade seria produzir o Um - ou seja, a “mestiçagem”. Por outro lado, o próprio elemento sobrecodificador, o Branco, não pode deixar de ser resultado de um processo de descodificação, uma vez que, como estabelecido no platô sobre a “Rostidade” (Deleuze & Guattari 1980, Platô 7DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Mille plateaux. Paris: Éditions de Minuit.), todo padrão majoritário resulta da operação de uma laminação de singularizações e multiplicidades.
  • 4
    Creio que este ponto foi levantado por José Carlos dos Anjos (2008ANJOS, José Carlos Gomes dos. 2008. “A filosofia política da religiosidade afro-brasileira como patrimônio cultural africano”. Debates do NER, 9 (13):77-96.), ao demonstrar como a religiosidade afro-brasileira também é, ou pode ser pensada como, uma filosofia política que contesta os modos dominantes de pensar e de fazer política.
  • 5
    Sobre este parágrafo, ver Goldman (2014:213-214GOLDMAN, Marcio. 2014. “A relação afroindígena”. Cadernos de Campo , 23:213-222)), (2015:651-657GOLDMAN, Marcio. 2015. “‘Quinhentos anos de contato’: por uma teoria etnográfica da (contra)mestiçagem”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 21 (3):641-659).) e (2017:11-12; 20-22GOLDMAN, Marcio. 2017. “Contradiscursos Afroindígenas sobre Mistura, Sincretismo e Mestiçagem. Estudos Etnográficos”. R@U. Revista de Antropologia da UFSCar , 9 (2):11-28.).
  • 6
    A conceptualização de Pignarre e Stengers elabora uma formulação de Deleuze sobre o humor como uma “arte das consequências ou dos efeitos: está certo, está tudo certo, você me dá isso? Você verá o que sai daí” (Deleuze & Parnet 1977:83DELEUZE, Gilles & PARNET, Claire. 1977. Dialogues. Paris: Flammarion.).
  • 7
    Modulacionismo, vibracionismo, lateralismo, multilateralismo foram alguns desses termos. No entanto, e mesmo com a ajuda de Gabriel Banaggia, a quem agradeço muito, nada disso me pareceu muito satisfatório, nem mesmo “variacionismo”, baseado na sociolinguística variacionista de William Labov de que Deleuze e Guattari (1980DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Mille plateaux. Paris: Éditions de Minuit.) tanto gostavam.
  • 8
    No filme Ride with the Devil (Cavalgada com o Diabo), de Ang Lee, uma das personagens diz que o Norte não poderia deixar de ganhar a Guerra da Secessão norte-americana porque sequer imagina que outros modos de viver são possíveis. Este também é o sentido, creio, da profunda observação de Abdias Nascimento (1978:108) distinguindo um sincretismo falso, ou falseado, que “longe de resultar de troca livre e de opção aberta [...], decorre da necessidade que o africano e seu descendente tiveram de proteger suas crenças religiosas contra as investidas destruidoras da sociedade dominante” do único fenômeno que “merece o nome de sincretismo”, que, de modo simétrico, “envolveu as culturas africanas entre si, e entre elas e a religião dos índios brasileiros”.
  • 9
    A “associação entre o conceito de existência e aquele de uma consistência, portadora de heterogeneidade e de precariedade, implica uma renúncia às oposições massivas binárias do tipo: essência/existência, Ser/Nada etc.” (Guattari 1989:138GUATTARI, Félix. 1989. Cartographies schizoanalytiques. Paris: Galilée.. Ver, também, Lima 2019:320-321LIMA, Vladimir Moreira. 2019. A partir de Guattari 1: uma política da existência. Rio de Janeiro: Ponteio. - mais uma vez agradeço a Vladimir Moreira Lima por esta observação. Acredito que este mesmo ponto também é levantado por José Carlos dos Anjos (2006ANJOS, José Carlos Gomes dos. 2006. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS., 2008ANJOS, José Carlos Gomes dos. 2008. “A filosofia política da religiosidade afro-brasileira como patrimônio cultural africano”. Debates do NER, 9 (13):77-96.).
  • 10
    Dependendo dos espelhos, claro: “Os espelhos de Bacon são tudo o que quisermos, menos uma superfície que reflete. O espelho é uma espessura opaca, por vezes preta. Bacon não vive, de modo algum, o espelho à maneira de Lewis Carroll. O corpo passa para o espelho, nele se aloja, ele mesmo e a sua sombra. Eis o que é fascinante: nada há atrás do espelho, mas dentro dele. O corpo parece se alongar, se achatar, se esticar no espelho como se ele se contraísse para passar pelo buraco. Se for preciso, a cabeça se racha numa grande fenda triangular, que vai se reproduzir dos dois lados e espalhar a cabeça por todo o espelho, como um bloco de gordura numa sopa” (Deleuze 2002:25DELEUZE, Gilles. 2002. Francis Bacon: logique de la sensation. Paris: Seuil. - agradeço a Ovídio de Abreu por ter me mostrado este texto).
  • 11
    Trata-se de “Observações sobre o verbo crer”, texto publicado em uma coletânea em homenagem aos 70 anos de Lévi-Strauss. Em função da crítica que elabora da noção de crença, este texto foi muito importante quando escrevi minha tese de doutorado há 30 anos. É bem surpreendente que tenha voltado à minha cabeça (mais uma vez em um sonho…) quando comecei a pensar a conferência que deu origem a este texto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    18 Abr 2021
  • Aceito
    21 Jun 2021
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