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A devoção vaishnava e os conceitos de ordinário e cotidiano: Comentário a partir de Textures of the Ordinary

Vaishnava devotion and the concepts of the ordinary and the quotidian: Comments from Textures of the Ordinary

La devoción vaishnava y los conceptos de ordinario y cotidiano: comentario a partir de Textures of the ordinary

Resumo

O objetivo deste comentário é visualizar aproximações de uma leitura sobre a prática da devoção na filosofia vaishnava e os conceitos de ordinário e cotidiano (everyday), tendo como base Textures of the Ordinary. Para tanto, analiso a noção de sacrifício e os desdobramentos do ordinário no actual everyday e eventual everyday. Uma das estéticas orientadoras da obra de Veena Das, mas não a única, pode ser a forma como os poemas épicos influenciam a vida das pessoas, oferecendo pistas na conformação conceitual do cotidiano (everyday) e do ordinário.

Palavras-chave:
Ordinário; Eventual everyday; Actual everyday; Filosofia vaishnava.

Abstract

The purpose of my commentary is to visualize approximations of a reading about the practice of devotion in Vaishnava philosophy and the concepts of the ordinary and the everyday, based on Textures of the Ordinary. To this end, I analyze the notion of sacrifice and the unfoldings of the ordinary in the actual everyday and the eventual everyday. One of the guiding aesthetics of Veena Das’, work - but not the only one - is perhaps the way epic poems influence people’s lives, offering clues to the conceptual conformation of the everyday and the ordinary.

Keywords:
ordinary; eventual everyday; actual everyday; Vaishnava philosophy

Resumen

El objetivo de este comentario es visualizar aproximaciones de una lectura sobre la práctica de la devoción en la filosofía vaishnava y los conceptos de ordinario y cotidiano, a partir de Texturas de lo Ordinario. Con ese objetivo, analizo la noción de sacrificio y el desdoblamiento de lo ordinario en lo actual everyday y eventual everyday. Una de las estéticas que guían la obra de Veena Das, pero no la única, puede ser la forma en que los poemas épicos influyen en la vida de las personas, ofreciendo pistas en la conformación conceptual de lo cotidiano y lo ordinario.

Palabras-chave:
ordinario; eventual everyday; actual everyday; filosofía vaishnava

Veena Das salientou em sua obra que a proximidade entre literatura e antropologia é recorrente, sendo a poesia, inclusive, uma forma que a autora utiliza para lidar com a violência (Das 2007DAS, Veena. 2007. Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary, Berkeley: University of California Press.). O objetivo deste comentário é visualizar aproximações de minha leitura sobre a prática da devoção na filosofia vaishnava e os conceitos de ordinário e cotidiano (everyday), tendo como base Textures of the Ordinary. Assim, procuro “trazer os conceitos para casa”, uma vez que a linguagem expressa não apenas uma forma de comunicação, mas os laços éticos com a vida cotidiana, mesmo que este movimento de retorno à casa não seja definitivo, isto é, sendo ele próprio instável.

Saliento que o interesse por essa conexão ocorre por razões pessoais em decorrência da leitura de poemas épicos, tais como o Mahabharata,1 1 Segundo o Instituto para a Consciência de Krsna (ISKCON), a tradição Vaishnava foi amplamente influenciada pela cultura do sul da Ásia através da música, da dança, do teatro e da arte. Filosofia genuína e textos poéticos sagrados do Vaishnavismo integram uma teologia profunda juntamente com um discurso social perspicaz. Os principais shastras, ou escrituras, do Vaishnavismo são a Bhagavad-gita (que contém os ensinamentos de Krishna, e é parte de uma obra mais longa, intitulada Mahabharata), o Srimad Bhagavatam (um dos dezoito Puranas), o Ramayana (que narra a história do Senhor Rama), e o mais recente, do Século XVI, Sri Chaitanya-charitamrita (que narra a vida e os ensinamentos de Chaitanya Mahaprabhu). e identificação como devota da consciência de Krsna, ainda que não iniciada ritualmente. Portanto, de certa maneira, vivencio e destaco o sacrifício manifesto pela devoção pessoal e a ênfase no ordinário como lugar de vivenciar o que é cotidiano, englobando o transcendental.

O Mahabarata é um poema épico, escrito em sânscrito clássico, fundamental para o contexto social na Índia e para a filosofia vaishnava. Ou dito em outros termos: “Mais do que um poema épico, é uma verdadeira enciclopédia, arquivo precioso do pensamento indiano e chamado o gigante dos poemas” (Stella 1955STELLA, Jorge Bertolaso. 1955. “A língua sânscrita e cultura”. Revista Letras, UFPR.:152). Maha significa “grande”; Bharata é um dos nomes indianos mais antigos, “o clã dos Bharata”, então, poderia ser traduzido como a “Grande História de Bharata”. O poema, constituído por cerca de 90.000 versos duplos, possui importância ética e estética para a sociedade indiana:

Além de servir como um guia completo para o conhecimento do próprio “eu” e do sentido da vida, contendo o que são considerados como todos os aspectos da sabedoria divina, o Mahabharata desempenha o papel de marco na história desta sociedade, constituindo uma base para a sabedoria do sagrado (Braatz & Dias 2021BRAATZ, João G. & DIAS, Carolina K. B. 2021. “’No clangor das conchas’: O som da guerra em Mahabharata”. Classica, v. 34, n. 1:187-204.:195).

Diferente do cristianismo ocidental, a devoção vaishnava, cuja base para a noção do sagrado está no Mahabharata, deve ser realizada não como um ato fruitivo. A vida é dedicada de forma pessoal às deidades,2 2 As divindades são uma característica-chave dos textos sagrados hindus. Os textos védicos descrevem muitos dos chamados deuses e deusas (devas e devīs) que personificam vários poderes cósmicos através de fogo, vento, sol, alvorada, escuridão, terra, e assim por diante. o que implica uma visão específica sobre o que é espiritual. O objetivo do devoto é chegar a um ponto em que se desligue dos sentimentos e das percepções que o ligam ao mundo, conduzindo à realização da unidade última das coisas. A vivência da filosofia vaishnava inclui a realização de princípios reguladores, bem como o exercício de rituais de adoração (puja) e admirar fazendo contato visual (darshan) com as deídades. Enquanto na maioria das outras tradições religiosas se acredita que as imagens apenas representam ou sugerem personagens sagrados, ou até mesmo são totalmente proibidas, na prática vaishnava acredita-se que as imagens pintadas e esculpidas encarnam genuinamente o divino.

Vivenciar o ordinário parece implicar uma austeridade cotidiana, no entanto, nada mais significativo do que o costumeiro para estabilizar o significado da vida social. A estabilidade pode ser encontrada na prática vaishnava que vive cotidianamente o dharma, a retidão das ações, de forma abnegada. Assim, essa estabilidade do ordinário inclui também o elemento transcendental (e possivelmente religioso) que é um código específico, um terceiro no sentido de Pierce (1998PIERCE, Charles. 1998. The Essential Peirce (EP). 2 vols. Edited by Nathan Houser, Christian Kloesel, and the Peirce Edition Project. Bloomington, Indiana: Indiana University Press..).

O elemento transcendental está conectado à noção de sacrifício. A noção acionada por Das é bastante distinta daquela proposta por Marcel Mauss. Mauss e Hubert (2013MAUSS, Marcel & HUBERT, Henri. 2013 [1899]. “Essai sur la nature et la fonction du sacrifice”.Année sociologique, n. 2, 1899 e republicado em MAUSS, M.,Oeuvres1. Les fonctions sociales du sacré. Paris: Éditions de Minuit, 1968 (Trad. Bras. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2013).) apresentam duas noções - uma de sacralização, em que se recebe o sagrado, e outra de dessacralização, em que é expiado o sagrado. Ainda que façam parte de um mesmo movimento, trata-se de uma espécie de barganha entre a deidade e o objeto desejado. Em Textures of the Ordinary, Das (2020DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary, Doing Anthropology after Wittgenstein. Nova York: Fordham University Press. ) demonstra que o sacrifício está encapsulado em sua abordagem do conceito de ordinário. Há uma ênfase da filosofia vaishnava naquilo que é transcendente, mas que pertence ao cotidiano (everyday) e à descida ao ordinário, isto é, uma moral estabelecida nas escrituras, mas não para atingir um determinado fim, como caridade ou barganha, ou seja, uma relação com o desejo de salvação que seja quase utilitarista. Em relação ao desejo, Das (2021DAS, Veena. 2021. “Two plaits ans a step in the world: A childhood remembered”. Sociologia e Antropologia, 11 (03), Sep-Dec.) afirma: “Como é que se pode ter esta relação desprendida com o desejo, que é também uma certa forma de se dedicar ao mundo?” (Ferreira et al. 2021FERREIRA, Leticia; VIANNA, Adriana; PIEROBON, Camila & SARTHI, Cynthia. 2021. “Anthropology, desire and textures of life: an interview with Veena Das”. Sociologia e Antropologia, 11 (03), Sep-Dec.:774).3 3 Tradução livre do original: “How are you supposed to have this detached relationship to desire, which is also a certain way of being devoted to the world?” Portanto, realizam-se atividades que são consideradas apropriadas, sem pensar nas consequências, estando expostos ao desejo constantemente no mundo material em que vivemos, o que torna a estabilidade da descida ao ordinário um exercício constante e incerto.

Ao mesmo tempo, os hindus creem que agora estão vivendo em Kali Yuga, uma era que perdura por 432 mil anos e representa a corrosão da existência e a impossibilidade de seguir o dharma. No entanto, a partir do contato com os outros, a ética permanece possível de ser realizada por meio das trocas - ajuda, correção, perdão (Das 2020DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary, Doing Anthropology after Wittgenstein. Nova York: Fordham University Press. ), isto é, a estabilidade do ordinário permanece como possibilidade, mesmo em um mundo imerso no desejo material, tal como a autora salientou acima. No entanto, o ritual hindu não pacifica por completo, assim como a linguagem, para Das, não abarca a totalidade e nem promove a estabilidade de maneira definitiva.

Em Textures of the Ordinary, no segundo capítulo, a autora explica que o conceito de everyday se liga tanto à rotina (actual everyday) que tem certa previsibilidade quanto ao espaço da possibilidade de mudança (eventual everyday) que se desenvolve na política do ordinário. “Parece que a "ética do cotidano" evidente em tais gestos tem o potencial de gerar um cotidiano eventual a partir das ruínas do cotidano atual, juntando os escombros e as ruínas, aprendendo a viver nesse mesmo espaço de devastação mais uma vez" (Das 2020DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary, Doing Anthropology after Wittgenstein. Nova York: Fordham University Press. :116).4 4 Tradução livre do original: “It seems that the ‘ordinary ethics’ evident in such gestures have the potential to generate an eventual everyday from the ruins of the actual everyday by putting together the rubble and ruins and learning to live in that very space of devastation yet once again”. A costura estética da escrita de Veena Das, tal como em poemas épicos em sânscrito, não pretende se relacionar com a realidade de forma absoluta. Assim, pode-se costurar a possibilidade de corrosão e instabilidade dentro do ordinário, o que, em termos conceituais, é o desdobramento do cotidiano atual (actual everyday) em um cotidiano eventual (eventual everyday).

O trabalho com o cotidiano (everyday) também sugere uma abordagem metalinguística, uma vez que os conceitos aplicados pela autora surgem da vida cotidiana e não são meramente aplicados na mesma, inclusive o próprio uso de everyday (Das 2015DAS, Veena. 2015. “Naming Beyond Pointing: Singularity, Relatedness and the Foreshadowing of Death. On Names in South Asia: Iteration, (Im)propriety and Dissimulation”. South Asia Multidisciplinary Academic Journal, 12.). Uma das estéticas orientadoras da sua obra, mas não a única, pode ser a forma como os poemas épicos influenciam a vida das pessoas, oferecendo pistas na conformação conceitual do cotidiano (everyday) e do ordinário. É uma parte de sua autobiografia e experiência com seus interlocutores no exercício etnográfico que como outras, tal como Das (2021DAS, Veena. 2021. “Two plaits ans a step in the world: A childhood remembered”. Sociologia e Antropologia, 11 (03), Sep-Dec.) comenta, por vezes retorna ao seu texto ainda que não de forma consciente.

Das comenta: "Noutro lugar, descrevo a forma como o vocabulário ritual que trata dos espíritos e o vocabulário jurídico que trata dos processos se influenciam mutuamente"5 5 Tradução livre do original: “Elsewhere I describe the way in which the ritual vocabulary dealing with spirits and the legal vocabulary dealing with trials are mutually inflected”. (Das 2020DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary, Doing Anthropology after Wittgenstein. Nova York: Fordham University Press. :86). Isto tendo em vista que as palavras não se tornam conceitos por repetição, mas por demonstrar a singularidade de uma experiência. Aproximo esta singularidade da era de Kali Yuga que, mesmo diante de um cotidiano eventual (eventual everyday), consegue se acomodar à corrosão dentro do ordinário e não o torna totalmente disruptivo. Este breve comentário, motivado pela leitura de conceitos a partir da filosofia vaishnava, pode ser uma pista no sentido de levar os conceitos para um dos pilares de fundação da casa.

Referências

  • BRAATZ, João G. & DIAS, Carolina K. B. 2021. “’No clangor das conchas’: O som da guerra em Mahabharata”. Classica, v. 34, n. 1:187-204.
  • DAS, Veena. 2007. Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary, Berkeley: University of California Press.
  • DAS, Veena. 2015. “Naming Beyond Pointing: Singularity, Relatedness and the Foreshadowing of Death. On Names in South Asia: Iteration, (Im)propriety and Dissimulation”. South Asia Multidisciplinary Academic Journal, 12.
  • DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary, Doing Anthropology after Wittgenstein Nova York: Fordham University Press.
  • DAS, Veena. 2021. “Two plaits ans a step in the world: A childhood remembered”. Sociologia e Antropologia, 11 (03), Sep-Dec.
  • FERREIRA, Leticia; VIANNA, Adriana; PIEROBON, Camila & SARTHI, Cynthia. 2021. “Anthropology, desire and textures of life: an interview with Veena Das”. Sociologia e Antropologia, 11 (03), Sep-Dec.
  • MAUSS, Marcel & HUBERT, Henri. 2013 [1899]. “Essai sur la nature et la fonction du sacrifice”.Année sociologique, n. 2, 1899 e republicado em MAUSS, M.,Oeuvres1. Les fonctions sociales du sacré. Paris: Éditions de Minuit, 1968 (Trad. Bras. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2013).
  • PIERCE, Charles. 1998. The Essential Peirce (EP). 2 vols. Edited by Nathan Houser, Christian Kloesel, and the Peirce Edition Project. Bloomington, Indiana: Indiana University Press..
  • STELLA, Jorge Bertolaso. 1955. “A língua sânscrita e cultura”. Revista Letras, UFPR.
  • 1
    Segundo o Instituto para a Consciência de Krsna (ISKCON), a tradição Vaishnava foi amplamente influenciada pela cultura do sul da Ásia através da música, da dança, do teatro e da arte. Filosofia genuína e textos poéticos sagrados do Vaishnavismo integram uma teologia profunda juntamente com um discurso social perspicaz. Os principais shastras, ou escrituras, do Vaishnavismo são a Bhagavad-gita (que contém os ensinamentos de Krishna, e é parte de uma obra mais longa, intitulada Mahabharata), o Srimad Bhagavatam (um dos dezoito Puranas), o Ramayana (que narra a história do Senhor Rama), e o mais recente, do Século XVI, Sri Chaitanya-charitamrita (que narra a vida e os ensinamentos de Chaitanya Mahaprabhu).
  • 2
    As divindades são uma característica-chave dos textos sagrados hindus. Os textos védicos descrevem muitos dos chamados deuses e deusas (devas e devīs) que personificam vários poderes cósmicos através de fogo, vento, sol, alvorada, escuridão, terra, e assim por diante.
  • 3
    Tradução livre do original: “How are you supposed to have this detached relationship to desire, which is also a certain way of being devoted to the world?”
  • 4
    Tradução livre do original: “It seems that the ‘ordinary ethics’ evident in such gestures have the potential to generate an eventual everyday from the ruins of the actual everyday by putting together the rubble and ruins and learning to live in that very space of devastation yet once again”.
  • 5
    Tradução livre do original: “Elsewhere I describe the way in which the ritual vocabulary dealing with spirits and the legal vocabulary dealing with trials are mutually inflected”.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Cunha Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2023
  • Aceito
    21 Jun 2023
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