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O trabalho que a festa dá. Etnografias do trabalho festivo

The work of the feast. Ethnographies of festive work

El trabajo de la fiesta. Etnografías del trabajo festivo

Resumo

O presente artigo baseia-se numa pesquisa sobre festas do Divino Espírito Santo que incluiu os Açores, a diáspora açoriana na América do Norte e o Brasil (São Luís - MA). O seu objetivo é olhar para o modo como a festa depende de um conjunto de pessoas que trabalham para a sua realização: desde os seus organizadores até os especialistas rituais, passando por muitas outras pessoas que ajudam na festa. Sublinho que este trabalho é caracterizado por três aspectos principais: é coletivo; é tendencialmente voluntário; e é um trabalho festivo. Na seção final sublinho os contributos que a análise do “trabalho da festa” pode trazer a discussões antropológicas sobre a festa: em particular, sobre a distinção entre backstage e frontstage e a oposição entre festa e trabalho. Sublinho, por fim, a importância de serem tomadas em consideração as múltiplas agencialidades de que a festa depende.

Palavras-chave:
Festa; Trabalho; Ritual; Performance

Abstract

The present article is based on research into the Holy Ghost feasts of the Azores among the Azorean diaspora in North America and in Brazil (São Luís MA). Its main objective is to analyze how feasting depends upon the work performed by many different people. These include the organizers of the feasts, ritual specialists, and people who are simply there to help. I stress three main characteristics of the “work of the feast”: it is collective; voluntary; and it is festive. In the final section, I address the contributions that analysis of the “work of the feast” can bring to anthropological discussion of topics such as the distinction between backstage and frontstage, or between work and feast. I also highlight the importance of the multiple agencies upon which the feast depends.

Keywords:
Feast; Work; Ritual; Performance

Resumen

Este artículo se basa en una investigación sobre las fiestas del Divino Espíritu Santo que incluye los Azores, la diáspora azoriana en América del Norte y Brasil (São Luís MA). Su principal objetivo es analizar cómo la fiesta depende del trabajo que realizan varias personas, desde los organizadores de las fiestas, hasta sus especialistas rituales y personas que simplemente están ahí para ayudar. Destaco tres características principales del “trabajo de la fiesta”: es colectivo; voluntario; y es festivo. En el último apartado, abordo los aportes que el análisis del “trabajo de la fiesta” puede traer a la discusión antropológica sobre este tema, como la distinción entre backstage y frontstage, o entre trabajo y fiesta. También destaco la importancia de las múltiples agencias de las que depende la fiesta.

Palabras clave:
Fiesta; Trabajo; Ritual; Performance

O foco deste artigo é constituído por aquilo a que chamarei o “trabalho da festa”.1 1 Parte da pesquisa que está na base deste artigo foi realizada no âmbito do projeto “Ritual, Etnicidade, Transnacionalismo: as Festas do Espírito Santo na América do Norte”, financiado pela FCT (PTDC/CS-ANT/100037/2008) e pela Direção Regional das Comunidades (Açores). Para a realização da pesquisa em São Luís (Maranhão), beneficiei-me, em 2014, de uma Bolsa de Professor/ Pesquisador Visitante do Exterior da Fapema. Até a sua transformação no presente artigo, este texto fez um longo percurso, através da apresentação de sucessivas versões ao “Seminário CRIA” (Lisboa, 2016), ao colóquio “Estudo das Religiões e Religiosidades” (São Luís, 2015), à mesa redonda “Os Bastidores da Festa: Trabalho, Performance e Experiência”, na 30ª RBA (João Pessoa, 2016) e à conferência “Feast as a Mirror of Social and Cultural Change” (Krakow 2017). Agradeço a todos(as) os(as) participantes nestes eventos os comentários e as sugestões. Agradeço particularmente a Emília Margarida Marques a leitura atenta do artigo e as inúmeras sugestões que me deu sobre o conceito de trabalho. Agradeço por fim aos/às pareceristas deste artigo os seus comentários e sugestões. O seu objetivo é olhar para o modo como a festa depende de um conjunto de pessoas que trabalham para a sua realização: desde os seus organizadores até os especialistas rituais, passando por muitas outras pessoas que simplesmente “ajudam” na festa. Como é que as pessoas tematizam esse seu trabalho? Quais são as suas principais características? Quem são os “trabalhadores” (adaptando uma expressão tomada de empréstimo de Anette Weiner) e qual a sua importância para o trabalho da festa?2 2 O conceito de “trabalhadores” (workers no original inglês) é empregado por Anette Weiner na sua monografia sobre os trobriandeses para caracterizar o trabalho ritual requerido pelos rituais de morte, que se encontra a cargo das mulheres (ver Weiner 1988). Qual é a natureza da relação entre trabalho e festa? Estas são algumas interrogações a que este artigo se propõe responder. O meu principal argumento é que deslocando o olhar da festa como produto final para o trabalho de montagem da festa podemos aprender algo mais sobre o que é e como é festejar. Esta perspetiva da festa, sendo rara, tem alguns precedentes. Encontra-se, por exemplo, na bibliografia sobre festas associadas ao sistema de cargos no México (e.g. Cancian 1995CANCIAN, Frank. 1965. Economics and Prestige in a Maya Community: the Religious Cargo System in Zinacantan. Stanford: Stanford University Press, ; Brandes 1988BRANDES, Stanley. 1988. Power and Persuasion. Fiestas and Social Control in Rural Mexico. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.). Reencontra-se na pesquisa de Maria Laura Cavalcanti (1994CAVALCANTI, Maria Laura. 1995. Carnaval Carioca. Dos Bastidores ao Desfile. Rio de Janeiro: Edições UFRJ - Funarte.) sobre os bastidores do carnaval carioca e, de forma mais pontual, está presente em autores como Tamara Hareven (1992HAREVEN, Tamara. 1992. “The Festival’s Work as Leisure: the Traditional Craftsmen of Gion Festival”. In: J. Calagione et al. (orgs.), Workers’ Expressions. Beyond Accomodation and Resistance. Albany: State University of New York Press. pp. 98-128. ), Reginaldo Gonçalves e Márcia Contins (2008GONÇALVES, José Reginaldo & CONTINS, Márcia. 2008. “Entre o Divino e os Homens: a Arte nas Festas do Divino Espírito Santo”. Horizontes Antropológicos, 29 (14):69-94.) ou Edson Farias (2015FARIAS, Edson. 2015. “O Saber Carnavalesco: Criação, Ilusão e Tradição no Carnaval Carioca”. Sociologia & Antropologia, 5 (1):207-243). Mas talvez o tema não tenha sido ainda tratado de forma suficientemente autônoma. É esta lacuna que procuro ajudar a preencher.

O artigo baseia-se numa pesquisa multissituada de longa duração sobre festas do Divino Espírito Santo que começou, nos anos 1980 e 1990, nos Açores (Leal 1994LEAL, João. 1994. As Festas do Espírito Santo nos Açores, Um Estudo de Antropologia Social. Lisboa: Publicações Dom Quixote.), se prolongou, nos anos 2000, junto da diáspora açoriana na América do Norte (Leal 2017aLEAL, João. 2017a. O Culto do Divino. Migrações e Transformações. Lisboa: Edições 70.) e culminou, já nos 2010, no Brasil, em particular em São Luís (Maranhão), onde as Festas do Divino - como são mais conhecidas no Brasil - têm lugar em terreiros de tambor de mina, a religião afro-brasileira dominante no Maranhão (Leal 2017aLEAL, João. 2017a. O Culto do Divino. Migrações e Transformações. Lisboa: Edições 70.). Em todos estes casos - e este ponto é importante para o meu argumento - as festas que me interessaram foram sobretudo festas de pequeno porte, realizadas em grupos de base popular caracterizados pelo interconhecimento e pela interação face a face, com audiências médias de 400 a 500 pessoas.

A primeira seção do artigo é dedicada a uma apresentação geral das festas do Espírito Santo e ao papel que elas desempenham tanto na produção de relações entre pessoas (e grupos) e divindades como na produção de relações de pessoas (e grupos) entre si (Leal 2016LEAL, João. 2016. “Festivals, Group Making, Remaking and Unmaking”. Ethnos, 81 (4):584-599.). Abordo de seguida mais detalhadamente o trabalho requerido pelas festas, argumentando que ele é caracterizado por três aspetos principais: é coletivo; é tendencialmente voluntário; e é um trabalho festivo. Na seção final sublinho os contributos que a análise do trabalho da festa pode trazer a discussões antropológicas sobre a festa (e, de uma forma geral, sobre o ritual). Um desse tópicos - particularmente relevante na reflexão de Richard Schechner (2006SCHECHNER, Richard. 2006 [2002]. Performance Studies. An Introduction. New York-London: Routledge. [2002]) - tem a ver com a distinção entre backstage e frontstage, entre bastidores e palco. O segundo relaciona-se com a distinção entre festa e trabalho, uma distinção que - pelo menos desde Johan Huizinga (2014HUIZINGA, Johan. 2014 [1938]. Homo Ludens. A Study of the Play-Element in Culture. Connecticut: Martino Publishing. [1938]) - foi tacitamente incorporada à reflexão antropológica sobre a festa.3 3 O ponto de partida de Homo Ludens é a oposição entre o homo faber e o homo ludens (2014 [1938]). Esta distinção é retomada várias vezes ao longo do livro e aplicar-se-ia tanto ao jogo como ao rito. Numa das passagens mais esclarecedoras a esse respeito, Huizinga escreve que “para nós o oposto de jogo é a seriedade, também usada no sentido mais geral de trabalho” (Huizinga (2014 [1938]:44, minha tradução). Tentarei mostrar como um olhar sobre o trabalho da festa não só destabiliza essas distinções, como abre pistas interessantes para uma tematização renovada da festa, não tanto como “fato”, mas, como sugere Léa Perez (2012PEREZ, Léa. 2012. “Introdução”. In: L. Perez et al. (orgs.), Festa como Perspetiva e em Perspetiva. Rio de Janeiro: Garamond. pp. 13-42), como “questão”.

Para esta autora, a festa é uma “questão” em dois sentidos. Por um lado, porque não é um dado à partida, mas algo que precisa ser problematizado. Por outro lado, porque essa problematização deve dar conta do seu caráter de excesso e transgressão, que a autora tematiza com recurso a autores como Roger Caillois ou Jean Duvignaud.4 4 As teorias transgressoras da festa - de Caillois e Duvignaud - foram muito influentes na antropologia e na sociologia francesas dos anos 1960 e 1970. Como tentei mostrar em duas outras ocasiões (Leal 2016, 2019), ao empurrarem a festa para o polo do excesso e da transgressão, não dão conta das conceções “nativas” de festa, que se aplicam tanto a festas colocadas do lado do excesso, como a festas em que os aspetos solenes e hierárquicos são dominantes, como, ainda, a festas - como as festas do Divino - em que estes dois polos se fazem presentes. É a primeira aceção da festa como questão que procuro seguir neste artigo. Como sugere a autora, meu intuito principal é indagar “sobre o que é o mundo festivo, qual é a ordem festiva” (2012PEREZ, Léa. 2012. “Introdução”. In: L. Perez et al. (orgs.), Festa como Perspetiva e em Perspetiva. Rio de Janeiro: Garamond. pp. 13-42:24). Faço-o, por um lado, dando mais visibilidade do que é usual aos bastidores da festa, vistos como parte integrante desta e, por outro lado, argumentando em favor de uma tematização mais ágil de duas categorias - festa e trabalho - que são geralmente vistas como antagônicas. Termino o artigo com uma discussão mais geral sobre um tema que a generalização da categoria de Patrimônio Cultural Imaterial (PCI) tornou mais urgente: de quem é a festa e a quem ela pertence? A resposta mais usual a esta questão tem sido que a festa pertence aos grupos - geralmente designados como “comunidades” - em nome dos quais ela é feita. Este vínculo entre festa e “comunidade” é sem dúvida importante. Mas, olhando para o trabalho da festa, é possível concluir que a festa depende de um conjunto de outras agencialidades sem as quais ela não existiria.

As festas do Espírito Santo

As festas do Espírito Santo são festas celebradas em honra e louvor do Divino Espírito Santo usualmente centradas numa coroa encimada por uma pomba, que representa o Espírito Santo. Esta forma de representação sui generis da divindade é responsável por um dos traços importantes do script ritual das festas: a sua associação a uma linguagem de poder inspirada na terminologia e na etiqueta ritual das monarquias europeias das épocas medieval e moderna. As festas requerem um grande número de cerimônias preparatórias, que têm lugar ao longo de um período que oscila entre três a sete semanas, e convergem mais generalizadamente para o domingo de Pentecostes - o sétimo domingo depois da Páscoa - ou - uma semana depois - para o domingo da Trindade. Mas em muitos casos podem realizar-se ao longo do período compreendido entre o domingo de Pentecostes e o final do verão, ou, em casos mais extremos, podem realizar-se ao longo de todo o ano.

As festas incluem um conjunto de cerimônias religiosas, como procissões, cortejos e sessões de canto e reza em louvor do Espírito Santo. A cerimônia religiosa mais importante consiste, entretanto, na coroação. Esta tem geralmente lugar no final de uma missa que se realiza no dia da festa e consiste na imposição solene da coroa a um ou mais devotos. Para além destas cerimônias religiosas, as festas do Espírito Santo envolvem a circulação e o consumo de largas quantidades de alimentos, organizadas de acordo com os princípios da dádiva e da contradádiva (Mauss 1983 a MAUSS, Marcel. 1983a [1923/24]. “Essai sur le Don: Forme et Raison de l’Échange dans les Sociétés Archaïques”. In: MAUSS, Marcel, Sociologie et Anthropologie. Paris : PUF. pp. 145-279. [1923/24]). Se algumas festas são, a este respeito, mais discretas, noutras, a circulação dos alimentos - que pode envolver o abate de dez ou mais cabeças de gado bovino - encosta as festas a uma lógica próxima do potlatch. As festas do Espírito Santo definem-se por fim pela sua autonomia em face da Igreja Católica. As suas soluções organizativas são diversificadas, mas, em qualquer dos casos, as festas são caracterizadas pelo princípio do controle da religião pelos agentes populares (ou laicos) em detrimento da igreja e dos agentes eclesiásticos (Brandão 1981BRANDÃO, Carlos Rodrigues. 1981. Sacerdotes de Viola. Rituais Religiosos do Catolicismo Popular em São Paulo e Minas Gerais. Petrópolis: Vozes. ).

As festas do Espírito Santo podem ser vistas como um ritual viajante. Nasceram em Portugal continental no século XIV, de Portugal continental viajaram no século XVI para os arquipélagos dos Açores e da Madeira, tendo adquirido - sobretudo nos Açores, onde se realizam anualmente mais de 400 festas - uma importância fundamental na vida social local. De Portugal continental e dos Açores, as festas viajaram, entre o século XVII e o século XX, para o Brasil, onde continuam a se realizar em vários estados, com destaque para Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Minas Gerais e Maranhão.5 5 Os números disponíveis para o Brasil são escassos, mas quando existem - como no caso de Santa Catarina (60 festas) (Nunes 2007) ou do Maranhão (200 festas) (Gonçalves & Leal 2016) - confirmam a sua importância na paisagem religiosa do Brasil. Para uma visão mais geral da importância das festas do Divino no Brasil - designadamente nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Bahia e Maranhão - ver Leal (2017a:38-48). No caso de São Luís, as festas do Divino teriam sido introduzidas por colonos açorianos na primeira metade do século XVII e foram cooptadas, a partir de finais do século XIX, pelos terreiros de tambor de mina, a religião de matriz africana predominante em São Luís. Esta apoia-se no culto - baseado na possessão, em sacrifícios animais e em outras ofertas - a divindades e entidades espirituais de diferentes origens: voduns (de origem jeje), orixás (de origem iorubá) e encantados. Estes últimos correspondem, na maioria dos casos, a espíritos de pessoas (reis e nobres europeus, turcos, caboclos, princesas) que, após sua existência terrena, se encantaram, isto é, passaram a viver em universos paralelos ao universo humano, localizados em rios, no mar ou debaixo da terra. Como tem sido sublinhado, a abertura sincrética do tambor de mina para o catolicismo é um dos seus traços relevantes (Ferretti 1995FERRETTI, Sérgio. 1995. Repensando o Sincretismo. Estudo sobre a Casa das Minas. São Paulo: Edusp/Fapema.; Leal 2017 a LEAL, João. 2017a. O Culto do Divino. Migrações e Transformações. Lisboa: Edições 70.) e é a essa luz que pode ser entendido o importante lugar que as festas do Divino ocupam no seu calendário ritual.

Por fim, com o desenvolvimento, a partir de finais do século XIX, da imigração açoriana para os EUA - e, a partir do final dos anos 1950, para o Canadá - as festas viajaram dos Açores para a América do Norte, onde 290 festas têm lugar todos os anos.6 6 Sobre as festas do Espírito Santo nos Açores, ver Leal (1994). Sobre as festas do Espírito Santo na América do Norte, ver - para a Califórnia - Goulart (2002) - e para a Nova Inglaterra e o Canadá, Leal (2017a, 2017b). A bibliografia sobre festas do Divino no Brasil é muito extensa e foi parcialmente sumariada em Leal (2017a). Para o caso de São Luís, ver Ferretti (1995) e Leal (2017a).

Nos Açores, entre a diáspora açoriana na América do Norte e em São Luís, as festas do Espírito Santo são rituais centrais para a construção de conexões entre as pessoas e os deuses, e para a produção de conexões entre pessoas e grupos. Comentarei rapidamente estes dois aspectos.

Nos Açores, na América do Norte e no Brasil, as festas do Espírito Santo são, antes do mais, essenciais para a construção de relacionamentos de pessoas (e grupos) com as divindades, em particular com o Espírito Santo. Em todos esses contextos as festas dependem quase sempre de promessas individuais que agradecem a graça divina concedida por meio da organização de uma festa em honra e louvor da divindade. Fornecem também o contexto para o pagamento de outras promessas menores. E em muitos casos podem ainda se basear numa devoção mais genérica, que intercambia a organização ou a participação nas festas pela proteção material e espiritual do Espírito Santo. Na maior parte das festas nos Açores e na América do Norte, a capacidade de elas construírem conexões entre os homens (e as mulheres) e a divindade esgota-se no Espírito Santo. Mas noutras festas, como no caso de São Luís, ela envolve outras entidades espirituais, como santos católicos, voduns africanos e encantados brasileiros ou europeus. De fato, muitas festas em São Luís são festas que homenageiam não só o Divino, mas também um santo ou santa católica (ou uma invocação de Nossa Senhora), em cuja data as festas têm lugar. Estão também envolvidos nas festas os encantados que - “baixando” nas filhas e nos filhos de santo, de forma a expressarem o seu pedido - pediram a festa e que de uma ou de outra forma participam nela (Ferretti 1995FERRETTI, Sérgio. 1995. Repensando o Sincretismo. Estudo sobre a Casa das Minas. São Paulo: Edusp/Fapema.; Leal 2017 a LEAL, João. 2017a. O Culto do Divino. Migrações e Transformações. Lisboa: Edições 70.).

Simultaneamente, as festas do Espírito Santo têm também a capacidade para juntar e conectar entre si pessoas e de fabricar coletivos. Nos Açores, por exemplo, as festas do Espírito Santo são muito importantes para a produção da “freguesia” com quadro central que organiza o relacionamento social entre as pessoas. Com o desenvolvimento da imigração para a América do Norte, generalizaram-se as festas promovidas por imigrantes e elas passaram a ter grande importância na reformatação desses coletivos como coletivos transnacionais, que juntam migrantes e não migrantes (Leal 1994LEAL, João. 1994. As Festas do Espírito Santo nos Açores, Um Estudo de Antropologia Social. Lisboa: Publicações Dom Quixote., 2017aLEAL, João. 2017a. O Culto do Divino. Migrações e Transformações. Lisboa: Edições 70.). As festas constituem, pois, nos Açores, dispositivos essenciais para a produção de “localidade”, no sentido em que Appadurai (1996APPADURAI, Arjun. 1996. “The Production of Locality”, In: APPADURAI, Arjun, Modernity at Large. The Cultural Dimensions of Globalization. Minneapolis: University of Minnesota Press. pp. 178-199.) usa esta expressão: espaços densos de interação social marcados por ideias de proximidade.

Nos EUA e no Canadá, reencontramos esta capacidade de produção de “localidade” das festas do Espírito Santo. As festas estão aí ligadas, por um lado, à emergência de contextos de sociabilidade étnica dos açorianos e, por outro, à produção dos “açorianos” como grupo étnico - ou como conjunto de grupos étnicos - assente num sentido de distintividade cultural (Barth 1969BARTH, Frederick. 1969. “Introduction”. In: F. Barth (org.), Ethnic Groups and Boundaries. The Social Organization of Cultural Difference. Oslo: Universitets Forlaget. pp. 9-38. ) que as festas justamente ajudam a construir. Essas conexões e identidades tanto podem abarcar açorianos originários de uma mesma freguesia dos Açores que vivem numa determinada área como juntar açorianos residentes num mesmo bairro ou pequena cidade dos EUA (ou do Canadá). Daí o fato de as festas acompanharem de forma tão minuciosa a geografia da imigração açoriana na América do Norte (Leal 2017 a LEAL, João. 2017a. O Culto do Divino. Migrações e Transformações. Lisboa: Edições 70.).

Em São Luís, a esmagadora maioria das festas do Divino tem lugar em terreiros de tambor de mina, onde se realizam todos os anos 60 festas (num total de 80). Aí, é menos forte o vínculo que as festas têm com unidades sociais de base territorial, como a freguesia nos Açores, ou étnica, como na América do Norte. Mas a sua capacidade de juntar e conectar entre si pessoas e de construir coletivos é de qualquer modo importante. De fato, se considerarmos os terreiros de tambor de mina e as redes de relações mais alargadas neles centrados como coletivos flexíveis caracterizados por algum tipo de proximidade e interação social, as festas do Divino são importantes para a sua produção. São também elas que projetam os terreiros para fora e os abrem para redes de relações sociais mais ampliadas. É por isso que elas são definidas pelos seus organizadores e participantes como “a festa maior dos terreiros” (Leal 2017 a LEAL, João. 2017a. O Culto do Divino. Migrações e Transformações. Lisboa: Edições 70.).

Isto é: ao lado da sua capacidade de construção de conexões entre as pessoas e as divindades, a festa define-se pela sua capacidade de produção de conexões entre pessoas e de construção de coletivos. Ela fabrica simultaneamente o divino e o social. E fabrica-os no quadro de uma experiência ritual marcada pelo movimento e o ajuntamento de pessoas, pela sua convivência numa chave festiva, em que a seriedade e a solenidade tropeçam a cada passo na animação e na brincadeira. Foi para designar este ambiente festivo que Durkheim - no seguimento do ensaio de Mauss sobre as variações sazonais entre os esquimós (1983 b MAUSS, Marcel. 1983b (1904/05). “Essai sur les Variations Saisonnières des Sociétés Eskimos. Étude de Morphologie Sociale”. In: Sociologie et Anthropologie. Paris: PUF . pp. 389-477. [1904)] - propôs a categoria de efervescência (Durkheim 1976 DURKHEIM, Émile. 1976 [1912]. Les Formes Élémentaires de la Vie Religieuse. Paris: PUF.[1912]). A expressão é talvez um pouco excessiva, mas não deixa de apontar para o caminho certo: o da festa como um tipo especial de ritual caraterizado, entre outros aspectos, pela natureza da experiência subjetiva que proporciona a quem nele participa (Perez 2012PEREZ, Léa. 2012. “Introdução”. In: L. Perez et al. (orgs.), Festa como Perspetiva e em Perspetiva. Rio de Janeiro: Garamond. pp. 13-42).

Essa capacidade festiva de fabricação de conexões repousa sobre (ou depende de) um trabalho. Este ponto é sublinhado pelos diferentes participantes na festa, que utilizam eles próprios a expressão de “trabalho” para falar da festa. Se nos EUA “working for the Divine” é uma expressão frequentemente usada (e.g. Sá 2014SÁ, Glória. 2014. “Working for the Divine: Ritual, Spectacle, Performance, and Identity (Westport)”. Comunicação apresentada ao Seminário Ritual, Ethnicity, Transnationalism, Holy Ghost Festas in North America”. Lisboa: CRIA.), no Brasil, como sublinharam José Reginaldo Gonçalves e Márcia Contins, usa-se a expressão “trabalhar para o Divino”: “Todas as ações que direta ou indiretamente venham a contribuir para a realização da festa (sejam realizadas por homens, mulheres, por jovens, crianças ou idosos) são classificadas como ‘trabalho para o Divino’” (2008GONÇALVES, José Reginaldo & CONTINS, Márcia. 2008. “Entre o Divino e os Homens: a Arte nas Festas do Divino Espírito Santo”. Horizontes Antropológicos, 29 (14):69-94.:79). Em São Luís, este é também um aspecto enfatizado por muitas mães e pais de santo dos terreiros de tambor de mina que organizam as festas. Para eles, a festa do Divino é não só a “festa maior dos terreiros”, mas a mais “trabalhosa”. Como me explicou Pai Wender (pai de santo do Ilê Ashé Obá Izô), o período consagrado à festa do Divino - que na casa é comemorado junto com a festa para São Luís - “acaba sendo um período ardoso, no sentido de quê? De trabalho, de fé, de devoção, de sincretismo” (os itálicos são meus). No mesmo terreiro, o filho de santo que supervisiona mais diretamente a festa também insistia na importância do trabalho para o Divino: “[uns] ajudam braçalmente, outros ajudam a fazer a comida, outros fazem tribuna, outros varrem, outros enxugam o chão, né? Todo mundo ajuda, de qualquer forma”. Precisamente por conta do trabalho requerido pela festa, alguns pais de santo preferem substituí-la por uma simples ladainha em honra e louvor do Divino. Como me afirmou um deles, justificando esta opção, “a festa do Divino dá muito trabalho”.

É este trabalho e os seus principais protagonistas que me proponho a abordar na próxima seção deste artigo.

Três etnografias do trabalho festivo

Nos Açores as festas têm à sua frente um imperador (ou mordomo, como também é conhecido). Para utilizar a expressão brasileira, é ele o “dono” da festa (ou o “festeiro”, para continuar a usar uma expressão corrente no Brasil). Na grande maioria dos casos - conforme sublinhei atrás - o cargo resulta de uma promessa feita ao Espirito Santo e a festa é o pagamento dessa promessa. Noutros casos, as festas são organizadas por irmandades constituídas expressamente para o efeito, e o cargo de imperador (ou mordomo) é exercido rotativamente por um dos irmãos. Em ambos os casos, o imperador (ou mordomo) é o organizador e o principal oficiante da festa.

É em sua casa que é instalado o altar do Espírito Santo e é nela que decorrem algumas das cerimônias preparatórias da festa. É ele que é coroado (ou uma criança por ele escolhida, geralmente um[a] filho[a] ou neto[a]). É também ele o principal financiador da festa e das elevadas despesas - sobretudo em alimentos - que esta requer. Mas é também ele que, por definição, mais trabalha para a festa. Durante duas ou três semanas todo o seu tempo é consagrado à festa. É geralmente auxiliado por sua esposa - que, por isso, é em muitos casos conhecida como “imperatriz” (ou mordoma) - e pela demais família chegada. Grande parte do sucesso da festa depende justamente do trabalho que o imperador, a imperatriz e a sua unidade doméstica investem nela.

Para ajudá-lo, o imperador (ou mordomo) recorre ainda a um grupo de cerca de 30 ajudantes, convidados geralmente entre parentes e vizinhos. Nem o imperador pode fazer a economia desses convites, nem os que são convidados têm como recusar: ajudar na festa faz parte da rede de obrigações mútuas entre parentes e vizinhos. Alguns dos ajudantes têm tarefas indiferenciadas: matar o gado, distribuir ou servir alimentos, ou ajudar nas decorações do altar montado na casa do imperador (ou mordomo). Mas outros têm tarefas mais especializadas. São, nesse sentido, especialistas rituais. É o caso - na ilha de Santa Maria - do chamado copeiro, para quem o imperador delega funções de coordenação do trabalho requerido pela festa. É o que se passa também com a mestra. Esta é não só responsável pela confecção do pão usado nas sopas do Espírito Santo e dos grandes pães doces servidos no dia da festa, como tem a seu cargo a decoração do altar. É também o caso dos cozinheiros, responsáveis pela confecção das sopas do Espírito Santo: numa das freguesias onde realizei trabalho de campo, apenas três ou quatro homens eram vistos com a experiência necessária à execução desta tarefa. E é finalmente o que acontece com as folias, grupos de três a cinco músicos responsáveis pela direção e o acompanhamento musical dos festejos, em particular pelas sessões de cantos em louvor ao Espírito Santo que se realizam em casa do imperador (ou mordomo).7 7 Embora em muitas freguesias açorianas as folias tenham sido substituídas por bandas filarmônicas, assiste-se nalgumas delas à sua revitalização.

Para além deste grupo mais restrito de ajudantes, o imperador é ainda o beneficiário do trabalho de dezenas de casas da freguesia. Muitas delas confeccionam também os pães doces que são distribuídos no dia da festa. Noutras freguesias (por exemplo, na ilha de São Miguel), essa ajuda pode fazer-se de outra forma: muitos criadores de gado criam uma ou mais vacas especialmente para o Divino. Além do trabalho específico dos ajudantes e dos especialistas rituais, existem, portanto, formas mais difusas de “trabalho para o Espírito Santo”.

Na América do Norte as festas do Espírito Santo inspiram-se em geral nos modelos açorianos. Envolvem por isso o tipo de tarefas rituais que acabei de evocar. Há, porém, uma grande diferença entre as festas nos Açores e na América do Norte. Na América do Norte, embora continue a haver o imperador (ou mordomo), a organização da festa é assegurada pela direção da irmandade que promove a festa. Estas irmandades tanto funcionam junto das “paróquias portuguesas” como operam como associações independentes que não só dispõem de personalidade jurídica, como possuem instalações próprias e organizam diversas outras atividades ao longo do ano. São justamente as direções dessas irmandades que têm a seu cargo a organização das festas. De um “dono” da festa individual - como nos Açores - passa-se, portanto, para um “dono” da festa coletivo.

Ao trabalho da festa associam-se vários outros membros da irmandade. Nos dias mais exigentes da festa, cerca de 40 a 60 pessoas podem estar envolvidas nesse trabalho. A maior parte das tarefas é indiferenciada. É este o caso da preparação das sopas do Espírito Santo e de outros alimentos requeridos pelas festas, geralmente a cargo de mulheres. É também o que se passa com as distribuições porta a porta de oferendas alimentares (que retribuem ofertas feitas pelos devotos à festa). Estas são geralmente realizadas por várias equipes de dois homens, que se deslocam de automóvel, percorrendo por vezes distâncias consideráveis. Noutros casos, a distribuição de alimentos é feita em regime de takeaway e envolve equipes que podem ter até 20 ajudantes. E é finalmente o que acontece com as decorações - em particular do altar do Espírito Santo instalado na sede da irmandade - e com a organização e a direção dos cortejos e das procissões. Há também todo um trabalho mais invisível: comprar carne ou foguetes, pedir as licenças necessárias às autoridades. Mas, mais uma vez, algumas dessas tarefas são mais especializadas, como é o caso do acompanhamento e da direção musical das festas pelas folias. Muitas irmandades passaram também a recorrer, a partir dos anos 2000, a software informático - folhas de excel, mapas yahoo e google - para as distribuições porta a porta de alimentos. A gestão desse software está a cargo de um novo tipo de especialistas rituais, geralmente constituído por jovens de 2ª geração com competências escolares e/ou profissionais na área.

Ao mesmo tempo em que apresentam algumas similitudes com as festas dos Açores e da América do Norte, as festas do Divino em São Luís caracterizam-se por algumas singularidades (com consequências para o “trabalho da festa”). Uma delas prende-se à importância que têm nos festejos os impérios. Esta designação aplica-se a um conjunto de crianças e pré-adolescentes de ambos os sexos que ocupam os cargos rituais de mais destaque nas festas: imperador e imperatriz, mordomo e mordoma régio(a), mordomo e mordoma mor e mordomo ou mordoma celeste. Estes cargos são “bancados” - isto é, patrocinados e pagos - por adultos. Estes são geralmente pais ou outros parentes próximos dos “meninos” e das “meninas”, que assumem o encargo em cumprimento de promessa ou satisfazendo o pedido de algum encantado. Os impérios, que podem ser vistos como uma espécie de monarquia em miniatura, vestem ricos trajes de gala inspirados em trajes de corte e ocupam um lugar de destaque nas festas.8 8 Embora haja exceções, o desempenho destes cargos é geralmente plurianual: a criança escolhida começa no cargo mais baixo e vai gradualmente subindo até o cargo mais alto. Outra particularidade que as festas apresentam tem a ver com a importância do mastro. Ora pintado, ora profusamente decorado com murta, frutas e refrigerantes, o mastro - com cerca de quatro a cinco metros de altura - ao mesmo tempo que sinaliza o local dos festejos, é também considerado “a morada do Divino durante a festa” (Barbosa 2006BARBOSA, Marise. 2006. Umas Mulheres que dão no Couro. As Caixeiras do Divino no Maranhão. São Paulo: Empório de Produções e Comunicações. :34) e o seu buscamento, levantamento e derrubamento assinalam o início e o termo da fase mais densa dos festejos.

Independentemente destas particularidades, as festas do Divino em São Luís, dependem - tal como as suas congéneres açorianas e norte-americanas - de um conjunto variado de tarefas, tanto rituais como práticas. Estas são coordenadas pelo dono da festa, que é geralmente o pai ou a mãe de santo do terreiro de tambor de mina que a promove. Nalguns casos, porém, o pai ou a mãe de santo delega essa responsabilidade para uma filha ou filho de santo mais familiarizada[o] com a festa.

Tal como nos Açores e na América do Norte, o dono da festa conta com o trabalho de dezenas de pessoas. É o que se passa desde logo com as pessoas que “bancam” os impérios. Elas não só são responsáveis por “vestirem” as crianças para a festa, como acompanham a par e passo as crianças, velando pelo cumprimento dos seus desempenhos rituais. São também elas as responsáveis pela confecção e decoração de uma mesa de bolos e lembranças que, no final da festa, são distribuídos entre familiares, filhas e filhos de santo e outras pessoas que ajudaram na festa. O mastro, pelo seu lado, requer um padrinho e uma madrinha, que têm um papel ritual de destaque no seu levantamento e derrubamento. As festas contam também com diversos especialistas rituais, com destaque para as caixeiras, grupos de seis a oito mulheres que - com recurso às caixas - dirigem e acompanham musicalmente os festejos.

Entre esses especialistas estão também as pessoas encarregadas das decorações rituais, com particular ênfase para a tribuna, onde é exposta durante a festa a coroa do Espírito Santo e onde se sentam as crianças dos impérios. A par destes desempenhos mais especializados, as festas exigem por fim um conjunto de tarefas indiferenciadas, que vão desde a confecção do almoço do dia da festa até as tarefas de limpeza, passando pelo buscamento, o levantamento e o derrubamento do mastro. Enquanto os segmentos rituais relacionados com o mastro mobilizam as energias de rapazes e homens que, dotados de alguma força física, se voluntariam para o efeito, as restantes tarefas ficam geralmente a cargo das filhas e filhos de santo da casa. No caso da confecção do almoço do dia da festa, alguns terreiros, confrontados com a falta de experiência das dançantes para cozinharem para grandes quantidades de pessoas, podem recorrer a ajudas exteriores ao terreiro.

Três pontos sobre o trabalho da festa

Então - como mostram estes exemplos - não só se pode falar do “trabalho da festa”, como, mais radicalmente, se pode afirmar que “a festa dá muito trabalho”. Quais são as características principais desse trabalho?

Ele é, em primeiro lugar um trabalho a várias mãos. Existe o dono da festa - o imperador, o mordomo, o diretor da irmandade, a mãe ou o pai de santo (ou o seu representante) - mas sem muitas outras pessoas não haveria festa. Há os ajudantes. Ou os foliões. Ou as caixeiras. Ou as filhas e os filhos de santo. Há as pessoas que se investem intensivamente no trabalho da festa e há as pessoas que dão colaborações mais ocasionais: aparecem só quando é preciso distribuir alimentos porta a porta, ou quando é necessário levantar ou derrubar o mastro. Na América do Norte, há os que ajudam só no dia da festa e há os que ajudam nas atividades da irmandade realizadas ao longo do ano. E assim sucessivamente. O trabalho da festa é um trabalho coletivo, envolvendo dezenas de pessoas, umas dando uma colaboração mais pontual, outras trabalhando de forma mais contínua.

Um dos aspectos que ressaltam nesse trabalho coletivo é a sua divisão sexual. Há tarefas desempenhadas exclusivamente por homens e outras por mulheres. Por exemplo, a preparação dos alimentos distribuídos no decurso da festa está geralmente a cargo de mulheres, ao passo que a sua distribuição pública é uma tarefa masculina. São também as mulheres que tendencialmente assumem maior protagonismo na preparação das decorações e das roupas rituais associadas às festas. Pontualmente, porém, esta distribuição sexual do trabalho segue caminhos menos previsíveis. Em Santa Maria (Açores), como vimos, são cozinheiros os homens que preparam as sopas do Espírito Santo. E em São Luís, são também os homens que têm a seu cargo a decoração do salão onde decorre parte significativa dos festejos.

Quanto ao desempenho de cargos cerimoniais, se, em muitos casos, se dá mais relevo aos homens, são também muitas as festas em que as mulheres ocupam posições de grande destaque. Por exemplo, nos EUA - em particular na Califórnia - as personagens centrais dos festejos são as rainhas (e as suas damas de honor), adolescentes do sexo feminino, vestidas luxuosamente (Carty 2002CARTY, Maria da Ascensão. 2002. “Festa Queens”. In: T. Goulart (org.), The Holy Ghost Festas. A Historic Perspective of the Portuguese in California. San Jose CA: Portuguese Chamber of Commerce. pp. 451-462.; Leal 2017 a LEAL, João. 2017a. O Culto do Divino. Migrações e Transformações. Lisboa: Edições 70.).9 9 Iniciada na Califórnia nas primeiras décadas do século XX, esta inovação espalhou-se depois para muitas festas da Nova Inglaterra e do Canadá e acrescentou uma feição marcadamente norte-americana aos festejos. Por influência direta dos imigrantes, as rainhas foram também introduzidas nalgumas freguesias dos Açores, em particular na ilha do Pico (Silvano 2015; Leal 2017a). De igual modo, em particular no Canadá, tem-se assistido recentemente a uma tendência para que os cargos de mordomo(a) - passem a ser ocupados por mulheres. Como escreveu Ilda Januário, “várias mulheres assumem, discretamente, o papel de liderança nas tarefas e até na mordomia, pois é reconhecido terem tanto ou mais sentido de organização, responsabilização e orientação do que os maridos” (2014JANUÁRIO, Ilda. 2014. “Bandeira e coroa: homens e mulheres nas festas do Espírito Santo no Canadá”. In: Rosa N. Simas (org.), A Vez e a Voz da Mulher: Relações e Migrações. Lisboa: Edições Colibri. pp. 153-167.:159). Mas o exemplo mais expressivo desta tendência é o das caixeiras de São Luís. De fato, enquanto nos Açores e na América do Norte são homens os foliões que dirigem e acompanham musicalmente as festas, em São Luís este encargo é desempenhado por mulheres. A importância desta solução deve ser destacada. As caixeiras - majoritariamente mulheres negras e de baixa renda - não apenas dirigem e acompanhem musicalmente os festejos, como são uma espécie de “sacerdotisas laicas” (Brandão 1981BRANDÃO, Carlos Rodrigues. 1981. Sacerdotes de Viola. Rituais Religiosos do Catolicismo Popular em São Paulo e Minas Gerais. Petrópolis: Vozes. ) sobre as quais repousam as tarefas de intermediação entre os devotos e o Divino. Para elas, a caixa é não apenas um instrumento musical, mas, mais radicalmente, um instrumento do seu empoderamento (Leal 2022LEAL, João, 2022. “Caixas e Caixeiras do Divino Espírito Santo”. Etnográfica, 26 (número especial):79-84.).

Esse trabalho é, em segundo lugar, um tipo especial de trabalho. É um trabalho tendencialmente voluntário, tematizado através de expressões como “ajudar na festa” (ou equivalentes). Enfatizo o “tendencialmente” porque na realidade há algum trabalho da festa que foge a essas características. De fato, em certos casos, há tarefas que os festeiros (ou outros protagonistas da festa) subcontratam a especialistas pagos. O ponto comum a esses processos de outsourcing (chamemo-lhes assim) é o fato de requererem trabalho que não só é muito especializado, como envolve um considerável dispêndio de tempo.

Assim, em São Luís, os trajes dos impérios são muitas vezes confeccionados por costureiras pagas. Se essas costureiras são parentes ou amigas dos adultos que “bancam” os impérios - ou se são filhas de santo no terreiro em que se realiza a festa - o preço beneficia-se de um desconto. Mas, noutros casos, os preços praticados são os preços de mercado. Ainda em São Luís, os doces e as lembranças que são oferecidas no final da festa pelos adultos que “bancam” os impérios são também encomendados em lojas especializadas.10 10 Sobre as lembranças das festas do Divino em São Luís, ver Leal (2019a). Lá mostro - entre outros pontos - como as encomendas junto de lojas especializadas de São Luís se combinam com o trabalho de montagem artesanal das lembranças, realizado em casa pelas devotas que “bancam” os impérios. De igual modo, nos EUA - em particular na Califórnia - a confeção do vestuário das rainhas é subcontratado a costureiras ou adquirido em lojas de vestuário especializado, como aquelas que na Califórnia se especializaram na confecção de vestidos para as quinceañeras mexicanas.

Mas, tendencialmente, o trabalho da festa é um trabalho organizado de acordo com princípios de gratuitidade. Esse fato não obvia a que ele não possa envolver algumas contrapartidas, geralmente sob a forma de agrados feitos pelo dono da festa às pessoas que o ajudaram. Nos Açores, por exemplo, os ajudantes da festa recebem um conjunto de oferendas alimentares, por intermédio das quais o imperador (ou mordomo) retribui a sua contribuição para a festa. Estas ofertas são feitas proporcionalmente ao tempo e ao empenho que cada ajudante colocou no trabalho da festa. Assim, na ilha de Santa Maria, a mestra e os cozinheiros recebem em geral oferendas alimentares mais elevadas do que aquelas que beneficiam os ajudantes que só mais ocasionalmente ajudaram na festa. Por vezes, alguns imigrantes insistem mesmo em entregar aos ajudantes um envelope com “dólas” (isto é, dólares). Há, entretanto, que notar que essas ofertas em “dólas” são um comportamento mais generalizado entre os imigrantes que visitam os Açores ou que se correspondem regularmente com parentes (e vizinhos). De igual modo, em São Luís, as caixeiras recebem do dono da festa um vestido confeccionado especificamente para a festa - que pode depois ser usado na vida cotidiana - e tanto o dono da festa como os adultos que “bancam” os impérios oferecem-lhes, no final da festa, um conjunto de doces e lembranças feitas propositadamente para a ocasião. Nalguns casos - aparentemente menos frequentes - o dono da festa pode também oferecer envelopes com dinheiro a algumas caixeiras, com destaque para a chamada caixeira régia (que dirige o grupo).

Mas não é por conta desses agrados que as pessoas trabalham para a festa. Elas estão lá por várias outras razões, que têm a ver com a natureza mesma da festa. Algumas estão lá por razões de natureza religiosa. É o caso do dono da festa e de outras pessoas que participam na festa para pagar promessas. Muitos estão lá por devoção. É o que se passa, em São Luís, com as caixeiras, ou, na América do Norte, com as muitas pessoas que todos os anos se voluntariam para ajudar na festa. Ajudar o santo é uma forma de garantir a sua proteção. Como as pessoas dizem, é “uma devoção que eu tenho”. Ou, como algumas também referem, justificando o tempo que despendem com a festa, “o Espírito Santo dá o pago”. Como escreveram José Reginaldo Gonçalves e Márcia Contins a propósito das festas do Divino realizadas por descendentes de açorianos no Rio de Janeiro,

A relação [com o Espírito Santo] é interpretada por meio das categorias da dádiva e da contradádiva, estabelecendo-se simbolicamente uma relação permanente com o Espírito Santo. O trabalho individual e coletivo envolvido no conjunto das atividades de preparação e realização das festas deve ser interpretado como parte desse intenso e permanente circuito de trocas (2008GONÇALVES, José Reginaldo & CONTINS, Márcia. 2008. “Entre o Divino e os Homens: a Arte nas Festas do Divino Espírito Santo”. Horizontes Antropológicos, 29 (14):69-94.:79, os itálicos são meus).

Mas outras ou as mesmas pessoas podem estar lá por razões de outra natureza. Porque são parentes ou vizinhos do imperador (ou do mordomo), como no caso dos ajudantes das festas açorianas, ou porque são parentes dos diretores da irmandade, como na América do Norte. Porque são filhos ou filhas de santo do terreiro e da pertença ao terreiro faz parte da obrigação de ajudar na festa, sobretudo nos casos em que essa participação é também solicitada por uma das entidades espirituais da(o) dançante. Mas pode haver outras razões. Por exemplo, muitos dos especialistas rituais estão lá porque a festa - com toda a sua elaboração estética - lhes permite exercer um dom e encontrar uma audiência para os seus dotes. É este o caso das folias (nos Açores e na América do Norte) e das caixeiras (em São Luís): tocar para o Espírito Santo é uma forma de fazerem algo que gostam e sabem fazer. Mas é este também o caso das pessoas que asseguram tarefas especializadas de decoração. Para eles e para elas, “fazer” um altar (nos Açores e na América do Norte) ou montar uma tribuna (em São Luís) é produzir uma obra de arte, que - embora efêmera (Salvador 1985SALVADOR, Mari Lynn. 1985. “Symbolism and Ephemeral Art. An Analysis of the Aesthetic Aspects of the Festas do Divino Espírito Santo”. Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, XLIII:243-289.) - não deixa de ser uma obra de arte.

O apelo estético que move estes especialistas rituais é de resto correspondido pelos frequentadores da festa, que avaliam muitas vezes o seu sucesso pela qualidade dos desempenhos musicais ou artísticos que ela mobiliza. Em São Luís, por exemplo, um dos rituais mais concorridos é o encerramento da tribuna, em que as caixeiras, depois de investirem as crianças nos cargos que irão desempenhar no próximo ano e aceitarem - em nome do Espírito Santo - as promessas dos adultos que “bancaram” a festa, dão esta por encerrada. Trata-se de uma sequência longa e complexa, em que o menor erro pode comprometer a eficácia do ritual. É também a sequência da festa em que a perícia musical das caixeiras - em particular da caixeira régia - e a sua capacidade de combinar cantos convencionais com cantos improvisados são mais postas à prova. Como me afirmou Dona Jacy, uma das mais conhecidas caixeiras régias de São Luís,

[fechar a tribuna] é um dom da pessoa, porque na hora que vai fechar aquela tribuna ali, pedir as coisas pros meninos, aquilo tudo é improvisado. É a [parte] mais difícil, tá vendo... Porque fechar o sacrário, fechar a tribuna é tudo mais difícil… É aí que a festa é aceita. É muita responsabilidade... Nem toda caixeira sabe. Faz um pé quebrado, mas nem toda sabe!

É justamente por conta destas dificuldades e “responsabilidades” que o encerramento da tribuna tem uma tão grande assistência: o que está em causa é a apreciação estética dos dotes e da perícia das caixeiras. E se elas estão na festa - como os foliões, as pessoas que fazem as decorações ou os cozinheiros - é também porque a festa fornece um quadro em que esses seus dotes podem ser exercidos e apreciados.

Mas de todas as razões por que as pessoas ajudam, uma das mais importantes tem a ver com a atração que muitas delas têm pela festa como experiência vivida a partir de dentro.

O que se prende com uma terceira caraterística do trabalho da festa. Este trabalho é um tipo especial de trabalho porque ele próprio é visto como uma festa. Essa característica pode ser surpreendida por referência a duas qualidades que - como indiquei antes - caracterizam a festa. A primeira prende-se à capacidade de criação de relacionamentos entre pessoas e de produção de coletivos que a festa tem. Isto aplica-se também ao trabalho da festa. Entre as pessoas que participam no trabalho da festa criam-se conexões que frases como “aqui somos todos como uma família” reforçam. A natureza coletiva do trabalho da festa é também muitas vezes valorizada como uma forma de criar sociabilidades. Enquanto se trabalha, sociabiliza-se, tecem-se laços de proximidade entre as pessoas. Quando as pessoas dizem que é um “trabalho com gosto”, é muitas vezes a esse lado festivo do trabalho da festa a que elas se referem. O que se prende com uma segunda qualidade do trabalho da festa: ele é festivo, no sentido de que o ambiente em que decorre - não obstante as responsabilidades que o rodeiam - é também ele festivo: as pessoas tiram prazer desse estar juntas e movimentam-se à vontade entre a seriedade e a brincadeira, entre o fazer bem e o sentirem-se bem.

Uma das expressões desse caráter festivo do trabalho da festa pode ser surpreendida nos almoços e nos jantares que pontuam os bastidores das festas. De fato, ao longo dos trabalhos preparatórios de uma festa, os seus ajudantes são geralmente alimentados pelo dono da festa. Algumas das refeições são mais restritas, mas outras - quando as tarefas desempenhadas necessitam de mais ajudantes - são refeições com um largo número de comensais. O tom festivo em que elas decorrem é uma regra: em torno de uma refeição geralmente servida com bastante largueza, as pessoas convivem, falam da festa e do que fizeram ou vão fazer para ela, falam de outras coisas, vê-se que gostam de estar em conjunto e depois regressam às suas tarefas.

Nesse sentido uma festa nunca é só uma festa: existem pelo menos duas festas. Existe a festa que se vê e existe a festa que se faz. Existe a festa propriamente dita e existe a festa dentro da festa. Que também ela cria conexões entre pessoas e é formadora de coletivos. E que também ela decorre num ambiente festivo, que alia eficácia ritual a brincadeira.

Maria Laura Cavalcanti, no seu livro O Carnaval Carioca: dos Bastidores ao Desfile (1995CAVALCANTI, Maria Laura. 1995. Carnaval Carioca. Dos Bastidores ao Desfile. Rio de Janeiro: Edições UFRJ - Funarte.), ao mesmo tempo em que resgatou a importância dos bastidores da festa, colocou em evidência dois aspectos: a importância do trabalho de que a festa depende; o caráter festivo desse trabalho. Como ela escreveu,

Uma das alegrias do carnaval, e uma das suas múltiplas subversões, é certamente a dissolução da oposição entre trabalho e lazer, ou trabalho e festa […]. Aqui, nesse mundo que vive para a festa, todo o trabalho é pontuado por festas […]. Trabalha-se em festas e fazendo festas (1995CAVALCANTI, Maria Laura. 1995. Carnaval Carioca. Dos Bastidores ao Desfile. Rio de Janeiro: Edições UFRJ - Funarte.:186, os itálicos são meus).

Não poderia estar mais de acordo com Maria Laura Cavalcanti: os bastidores de uma festa são eles próprios uma festa.

Por isso, as fronteiras entre bastidores e festa são, por vezes, muito difíceis de traçar. Por exemplo, as festas do Espírito Santo da ilha de Santa Maria terminam com a chamada ceia dos ajudantes, um almoço que reúne todos os ajudantes da festa e que se realiza no dia imediatamente a seguir ao dia da festa. Dado o caráter restrito dessa ceia, seria lógico considerá-la - como as outras refeições que têm lugar durante o período preparatório das festas - como se pertencesse aos bastidores da festa. Mas, na realidade, para todas as pessoas com as quais falei, a ceia dos ajudantes é um segmento ritual com um estatuto idêntico ao de outros segmentos rituais da festa, como procissões, cortejos ou sessões de reza e de canto em louvor do Espírito Santo. Difere deles porque, em contraste com a seriedade emprestada a esses outros segmentos rituais, é marcado pela descontração e pela brincadeira: libertos dos constrangimentos da festa pública, os ajudantes podem agora comer e beber à vontade e toda a refeição decorre num ambiente ruidoso e animado.

Nas Ribeiras (uma freguesia da ilha do Pico, também nos Açores), essa tendência para subverter as fronteiras entre trabalho e festa é ainda mais saliente. No domingo e na 2ª feira de Pentecostes realizam-se duas festas do Espírito Santo na freguesia. Na 3ª feira, uma vez terminadas ambas as festas, é preciso limpar os salões de cada uma delas, lavar e arrumar louça e realizar um conjunto de outras tarefas práticas relacionadas com a “desinstalação” da festa. Algures a meio da tarde, os(as) ajudantes de uma das festas visitam a outra festa. Registrei assim uma dessas visitas do meu diário de campo:

[o cortejo tinha] acompanhamento de alguns elementos da Filarmônica, voluntariamente desafinados, com músicas a abandalhar, hino do ES [Espírito Santo] a brincar etc. Três rainhas com toalhas em vez de vestidos de rainhas, um quadro em que as varas foram substituídas por toalhas e uma rainha mascarada de chinesa, várias outras mulheres com atavios burlescos - uma com uma caixa de happy meal enfiada na cabeça, outra com roupa berrante de tipo palhaço a pedir esmola com um chapéu de cores berrantes. Um cortejo descomposto, de risota, ritmos brasileiros etc. Um verdadeiro mock império.

Trabalho e festa conjugam-se aqui, como se conjugam nas festas do Divino de São Luís. O caso mais relevante é o relativo ao buscamento, levantamento e derrubamento do mastro. Como vimos, o mastro é simultaneamente uma forma de sinalização do lugar onde a festa tem lugar e um dos símbolos do Espírito Santo. O seu buscamento, levantamento e derrubamento poderiam ser encarados como uma tarefa prática, como muitas outras que as festas requerem (cozinhar, aprontar as decorações etc.). Nalgumas festas brasileiras é isto que acontece. Mas noutras - como nas festas do Divino em São Luís - o buscamento, o levantamento e o derrubamento do mastro, não deixando de ser trabalho - trata-se afinal de contas de levar o mastro para terreiro, de levantá-lo e de derrubá-lo - é também festa. Uma festa que envolve centenas de pessoas, é acompanhada por uma pequena banda, pela circulação abundante de bebidas alcoólicas, pela dança e pelo divertimento (Leal 2019 b LEAL, João. 2019b. “Os Encantados nas Festas do Divino: Estrutura e Antiestrutura”. Sociologia & Antropologia, 9 (2):431-451.). É, mais uma vez, trabalho transformado em festa.

É esta mesma lógica que parece também presidir os “giros” das folias do Divino em muitos estados brasileiros. Em São Luís, esses peditórios deixaram de se realizar, mas, fora da capital, sobretudo no sul do Maranhão, continuam a ter lugar (Gonçalves & Leal 2016LEAL, João. 2016. “Festivals, Group Making, Remaking and Unmaking”. Ethnos, 81 (4):584-599.). O que é interessante em muitos desses giros é que o seu objetivo é simultaneamente prático e festivo. Prático, porque visam recolher ofertas para a festa do Divino. Festivo, porque em cada etapa da caminhada é uma festa do Divino que tem lugar, marcada pela reza e pela dança, pela devoção e pela reativação de sociabilidades locais.11 11 A bibliografia sobre folias e giros associados a festas populares no Brasil é muito extensa. Entre os estudos mais recentes destaco os de Luzimar Pereira (2010), Daniel Bitter (2010) e Wagner Chaves (2013).

De formas diferentes, o que estes exemplos mostram é a porosidade de fronteiras entre a festa e os bastidores da festa, entre “trabalho da festa” e festa. É como se a festa tivesse uma espécie de capacidade inata de domesticar festivamente o trabalho que ela requer. Sem que ele deixe de ser trabalho, é também festa.

O que o trabalho da festa permite questionar

Esta porosidade entre festa e trabalho convida, por um lado, a revisitar criticamente esquematizações talvez geométricas demais da festa (vista como um tipo especial de performance) como as propostas por Richard Schechner, que distingue entre “proto-performance” (os ensaios e outros preparativos), a performance propriamente dita (aquecimento, performance pública, arrefecimento) e o “aftermath” (o que sucede depois da performance) (2006 SCHECHNER, Richard. 2006 [2002]. Performance Studies. An Introduction. New York-London: Routledge.[2002]:225). Para ele, a performance pública seria o ponto alto da festa e os ensaios, o aquecimento e o arrefecimento - de alguma forma situados nas margens da festa - são vistos como a entrada e a saída da festa. Não é que estas distinções não guardem a sua utilidade. Desde que elas não nos impeçam de ver que ensaios, aquecimento e arrefecimento têm fronteiras indecisas e que são uma parte central da performance que a festa é, e não algo situado nas suas margens. É na mesma linha que pode ser também matizada a distinção estabelecida por Goffman (1956GOFFMAN, Erving. 1956. The Presentation of Self in Everyday Life. Edinburgh: Edinburgh University. ) - entre “região de fachada” (o espaço da performance pública) e “região de fundo” (o espaço dos bastidores). No caso da festa, estas duas “regiões” não estão de fato tão rigidamente separadas.

Simultaneamente, as fronteiras indecisas entre festa e trabalho que temos evidenciado ao longo deste artigo convidam-nos a refletir sobre os limites de uma outra distinção binária que rodeia a tematização antropológica da festa: a oposição entre o trabalho e a festa. A festa é de fato muitas vezes vista - como recordámos no início deste artigo - como o reverso do trabalho. Subjacente a esta distinção encontra-se uma dupla ideia, herdada da teoria econômica e social clássica. A primeira é que o trabalho é produtor de utilidade (Smith 2012SMITH, Adam. 2012 [1776]. The Wealth of Nations. An Inquiry Into the Nature and Causes of the Wealth of Nations. Chicago: The University of Chicago Press. [1776]; Marx 2004MARX, Karl. 2004 [1867-1894]. Capital: A Critique of Political Economy. London: Penguin Books. [1867-1894]). A segunda é que o trabalho pertenceria ao domínio da racionalidade (Weber 1978WEBER, Max. 1978 [1922]. Economy and Society. Berkeley: University of California Press . [1922]). A festa seria o inverso de ambas as coisas: gratuitidade em vez de utilidade, emoção em vez de racionalidade.

Acontece que se olharmos para a festa do ponto de vista do “trabalho da festa”, perceberemos que as coisas são mais complicadas. Compreendemos desde logo que esse trabalho está colocado também ele sob o signo da utilidade. Ele produz algo tão ou mais importante que as mercadorias produzidas pelo “trabalho”. Produz laços das pessoas com a divindade e laços das pessoas entre si. Em ambos os casos esses laços, sendo gratuitos, são também algo utilitários. De fato, como mostrou Mauss acerca da reciprocidade, as dádivas e as contradádivas em que esta repousa possuem um “caráter voluntário […], aparentemente livre e gratuito, mas entretanto forçado e interessado” (Mauss 1983a MAUSS, Marcel. 1983a [1923/24]. “Essai sur le Don: Forme et Raison de l’Échange dans les Sociétés Archaïques”. In: MAUSS, Marcel, Sociologie et Anthropologie. Paris : PUF. pp. 145-279. [1923/24]:147, minha tradução; os itálicos são meus). No caso das festas do Divino, essa mistura de gratuitidade e interesse é muito evidente na promessa e no modo como esta troca é uma graça divina concedida com a organização de uma festa em louvor da divindade. Mas estende-se - como nos Açores - ao modo como a participação nos grupos de trabalho das festas se insere em mecanismos mais vastos de intercâmbio de serviços e favores entre parentes e vizinhos.

Não há também dúvida de que a emoção está na festa: ela pode não ser - como queria Durkheim - efervescência, mas é uma experiência associada a um conjunto de emoções e estados de espírito que lhe são próprios (Perez 2012PEREZ, Léa. 2012. “Introdução”. In: L. Perez et al. (orgs.), Festa como Perspetiva e em Perspetiva. Rio de Janeiro: Garamond. pp. 13-42). Mas o trabalho que subjaz à produção dessas emoções e desses estados de espírito - ou a essa atmosfera, como diria Erika Fischer-Lichte (2019FISHER-LICHTE, Erika. 2019 [2004]. A Estética do Performativo. Lisboa: Orfeu Negro.) - é um trabalho organizado racionalmente. Por isso não é de estranhar que muitas festas recorram a soluções muito próximas das recomendadas pela “organização científica do trabalho”. O outsourcing, por exemplo. Ou a reciclagem, de um ano para o outro, de objetos rituais. Mas o exemplo mais claro da racionalidade do trabalho da festa é o dos registros que, tanto nos Açores como na América do Norte, orientam a distribuição porta a porta de alimentos. Nos Açores, nos anos 1980 e 1990, esses registros - conhecidos como róis - eram feitos à mão: numa coluna ficava anotado o nome da pessoa que havia feito uma oferta ao imperador (ou mordomo), na segunda coluna especificava-se o valor dessa oferta, e na última coluna era registrado o valor da contradádiva. Mais recentemente - tal como na América do Norte - esses registros passaram a ser feitos com recurso a folhas excel. Em qualquer dos casos, eles podem ser vistos como uma forma de contabilidade racional da economia das emoções subjacente à festa.

Se, na festa, as fronteiras entre trabalho e festa são indecisas, o mesmo acontece no trabalho - como mostrou Weber a propósito do bittearbeit (trabalho a pedido) (Weber 1978WEBER, Max. 1978 [1922]. Economy and Society. Berkeley: University of California Press . [1922]:361-362). Assim, no meio rural português - incluindo nos Açores - tinham lugar (e nalguns casos ainda têm) os chamados “trabalhos coletivos” ou “trabalhos gratuitos e recíprocos” (Oliveira 1955OLIVEIRA, Ernesto Veiga de. 1955. “Trabalhos Gratuitos e Recíprocos”. Revista de Antropologia, 3 (1):21-43., 1966OLIVEIRA, Ernesto Veiga de. 1966. “Trabalhos Coletivos”. In: Joel Serrão (org.), Dicionário da História de Portugal (vol. VI). Porto: Livraria Figueirinhas. pp. 189-191.). Estes foram definidos por Veiga de Oliveira como relativos às

fainas rurais que, requerendo numeroso pessoal, são feitos, não por assalariados recebendo uma remuneração pecuniária, mas gratuitamente pelos vários vizinhos do lugar. Esses trabalhos […] podem ser de interesse geral ou individual; neste último caso, eles são pagos por uma retribuição não quantitativa, mas qualitativa, fundada no princípio da reciprocidade social (1966OLIVEIRA, Ernesto Veiga de. 1966. “Trabalhos Coletivos”. In: Joel Serrão (org.), Dicionário da História de Portugal (vol. VI). Porto: Livraria Figueirinhas. pp. 189-191.:189).

Uma das características principais desses trabalhos é o sentido festivo que encerram, que, além da euforia resultante da comida forte e melhorada, com vinho à descrição, se manifesta por várias formas: o tom de verdadeira competição desportiva dos trabalhos; e sobretudo a festa final, que se apresenta como um acontecimento essencialmente lúdico, uma ocasião de diversão conjunta, com músicas e danças (Oliveira 1966OLIVEIRA, Ernesto Veiga de. 1966. “Trabalhos Coletivos”. In: Joel Serrão (org.), Dicionário da História de Portugal (vol. VI). Porto: Livraria Figueirinhas. pp. 189-191.:191).

É a mesma lógica de dissolução das fronteiras entre trabalho e festa, que se encontra no mutirão brasileiro. Este, segundo Câmara Cascudo, é o “nome genérico [de origem indígena] atribuído ao trabalho cooperativo entre as populações rurais” (2001 CASCUDO, Câmara. 2002 [1954]. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global Editora.[1954]:408). No final, é a festa: “é indispensável a música. Na véspera um animal doméstico é sacrificado. Aguardente em profusão. À noite, no terreiro da casa, danças regionais” (2001 CASCUDO, Câmara. 2002 [1954]. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global Editora.[1954]:409).

A estes exemplos poderiam ser acrescentados outros, mais contemporâneos (e.g. Jardel & Loridon 2000JARDEL, Jean-Pierre & LORIDON, Christian. 2000. Les Rites dans l’Entreprise. Une Nouvelle Approche du Temps. Paris: Éditions d’Organisation.). Não obstante a distinção que tendemos a estabelecer - muitas vezes justamente - entre trabalho e festa, noutros casos - tanto de festas como de trabalhos - é frágil a fronteira entre umas e outros.

Esta é, entretanto, uma fronteira que pode a qualquer momento ser revista. De fato, como sublinhei no início deste artigo, as festas que me têm servido de referência são festas de pequeno porte, realizadas em grupos de base popular caracterizados pelo interconhecimento e pela interação face a face, com audiências médias de 400 a 500 pessoas. Quando se passa para festas maiores e com audiências mais largas, em muitos casos estas são festas mais mercantilizadas e turistificadas (e.g. Guss 2000GUSS, David. 2000. The Festive State. Race, Ethnicity and Nationalism as Cultural Performance. Berkeley: University of California Press. ), cuja montagem envolve a crescente profissionalização e assalariamento do trabalho da festa. Não é - como demonstrou Maria Laura Cavalcanti (1995CAVALCANTI, Maria Laura. 1995. Carnaval Carioca. Dos Bastidores ao Desfile. Rio de Janeiro: Edições UFRJ - Funarte.) para o carnaval carioca - que os seus bastidores não continuem a ter algo de festivo e que muitas delas não combinem trabalho profissionalizado com trabalho voluntário, mas a conjunção entre festa e trabalho que tematizamos neste artigo toma outras formas. Não é por acaso que se assistiu nas últimas décadas à emergência de campos disciplinares conhecidos pela designação de event management ou festival studies (e.g. Getz 2010GETZ, Donald. 2010. “The Nature and Scope of Festival Studies”. International Journal of Management Research, 5 (1):1-17.) associados à formação acadêmica de gestores profissionais de eventos (incluindo festas). O que está em causa - aqui mais radicalmente - é a reformulação neoliberal do laço entre festa e trabalho que tratamos neste artigo.

Conclusão

Não era, entretanto, este ponto que eu queria sublinhar na conclusão deste artigo. O aspecto que gostaria de enfatizar tem a ver com o modo como a perspetiva da festa que desenvolvemos ao longo deste artigo nos ajuda a recolocar uma questão clássica da discussão antropológica sobre ritual e que se tem tornado ainda mais urgente com a difusão da categoria do Patrimônio Cultural Imaterial (PCI): de quem é a festa e a quem ela pertence? Claro que a festa é, antes do mais, do seu “dono”. Mas ela envolve também outras pessoas e outros coletivos. Para trabalhar essa dimensão da festa, o atalho mais utilizado pela antropologia e retomada pelo PCI consiste em dizer que a festa é do grupo - ou da “comunidade” - em nome da qual ela é realizada. Em última instância isto é verdade. Mas o acento na festa como trabalho mostra-nos que esta resposta é incompleta. Na festa estão incorporadas múltiplas agencialidades (Leal 2015LEAL, João. 2015. “Património Cultural Imaterial, Festa e Comunidade”. In: Yussef Campos (org.), Património Cultural Plural. Belo Horizonte: Arraes Editores. pp. 144-162. ; Tavares 2012). Há o dono da festa - ou festeiro - e há a “comunidade”. Mas no meio tem todo o tipo de outros agentes: especialistas rituais, pessoas que ajudam, umas que ajudam mais, outras que ajudam menos, pessoas que estão a pagar promessas. E simultaneamente a isso há espectadores atentos, espectadores ocasionais, participações empenhadas, participações distraídas (Piette 2003PIETTE, Albert. 2003. Le Fait Religieux. Une Théorie de la Religion Ordinaire. Paris: Economica.). A tarefa para os antropólogos é dar conta dessas múltiplas agencialidades, algumas das quais assentam justamente no resgate da festa como trabalho.

Nesse sentido, fazer etnografia de uma festa é tudo menos simples. Por isso se pode dizer que, para o etnógrafo da festa, a festa é também um trabalho e um trabalho que - tal como a festa - “dá muito trabalho” (embora festivo). Mas essa parte, o trabalho que a festa dá para o etnógrafo, fica para outra ocasião.

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Notas

  • 1
    Parte da pesquisa que está na base deste artigo foi realizada no âmbito do projeto “Ritual, Etnicidade, Transnacionalismo: as Festas do Espírito Santo na América do Norte”, financiado pela FCT (PTDC/CS-ANT/100037/2008) e pela Direção Regional das Comunidades (Açores). Para a realização da pesquisa em São Luís (Maranhão), beneficiei-me, em 2014, de uma Bolsa de Professor/ Pesquisador Visitante do Exterior da Fapema. Até a sua transformação no presente artigo, este texto fez um longo percurso, através da apresentação de sucessivas versões ao “Seminário CRIA” (Lisboa, 2016), ao colóquio “Estudo das Religiões e Religiosidades” (São Luís, 2015), à mesa redonda “Os Bastidores da Festa: Trabalho, Performance e Experiência”, na 30ª RBA (João Pessoa, 2016) e à conferência “Feast as a Mirror of Social and Cultural Change” (Krakow 2017). Agradeço a todos(as) os(as) participantes nestes eventos os comentários e as sugestões. Agradeço particularmente a Emília Margarida Marques a leitura atenta do artigo e as inúmeras sugestões que me deu sobre o conceito de trabalho. Agradeço por fim aos/às pareceristas deste artigo os seus comentários e sugestões.
  • 2
    O conceito de “trabalhadores” (workers no original inglês) é empregado por Anette Weiner na sua monografia sobre os trobriandeses para caracterizar o trabalho ritual requerido pelos rituais de morte, que se encontra a cargo das mulheres (ver Weiner 1988WEINER, Annette. 1988. The Trobrianders of Papua New Guinea. New York: Holt, Rinehart & Winston.).
  • 3
    O ponto de partida de Homo Ludens é a oposição entre o homo faber e o homo ludens (2014 HUIZINGA, Johan. 2014 [1938]. Homo Ludens. A Study of the Play-Element in Culture. Connecticut: Martino Publishing.[1938]). Esta distinção é retomada várias vezes ao longo do livro e aplicar-se-ia tanto ao jogo como ao rito. Numa das passagens mais esclarecedoras a esse respeito, Huizinga escreve que “para nós o oposto de jogo é a seriedade, também usada no sentido mais geral de trabalho” (Huizinga (2014 HUIZINGA, Johan. 2014 [1938]. Homo Ludens. A Study of the Play-Element in Culture. Connecticut: Martino Publishing.[1938]:44, minha tradução).
  • 4
    As teorias transgressoras da festa - de Caillois e Duvignaud - foram muito influentes na antropologia e na sociologia francesas dos anos 1960 e 1970. Como tentei mostrar em duas outras ocasiões (Leal 2016LEAL, João. 2016. “Festivals, Group Making, Remaking and Unmaking”. Ethnos, 81 (4):584-599., 2019LEAL, João. 2019a. “As Lembranças nas Festas do Divino Espírito Santo (São Luís, Maranhão)”. Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, 67:27-35.), ao empurrarem a festa para o polo do excesso e da transgressão, não dão conta das conceções “nativas” de festa, que se aplicam tanto a festas colocadas do lado do excesso, como a festas em que os aspetos solenes e hierárquicos são dominantes, como, ainda, a festas - como as festas do Divino - em que estes dois polos se fazem presentes.
  • 5
    Os números disponíveis para o Brasil são escassos, mas quando existem - como no caso de Santa Catarina (60 festas) (Nunes 2007NUNES, Lélia Silva. 2007. Caminhos do Divino. Um Olhar sobre a Festa do Espírito Santo em Santa Catarina. Florianópolis: Editora Insular.) ou do Maranhão (200 festas) (Gonçalves & Leal 2016GONÇALVES, Jandir & LEAL, João. 2016. “As Festas do Divino Espírito Santo no Maranhão: uma Aproximação de Conjunto”. Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, 60:10-17.) - confirmam a sua importância na paisagem religiosa do Brasil. Para uma visão mais geral da importância das festas do Divino no Brasil - designadamente nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Bahia e Maranhão - ver Leal (2017aLEAL, João. 2017a. O Culto do Divino. Migrações e Transformações. Lisboa: Edições 70.:38-48).
  • 6
    Sobre as festas do Espírito Santo nos Açores, ver Leal (1994LEAL, João. 1994. As Festas do Espírito Santo nos Açores, Um Estudo de Antropologia Social. Lisboa: Publicações Dom Quixote.). Sobre as festas do Espírito Santo na América do Norte, ver - para a Califórnia - Goulart (2002GOULART, Tony (org.). 2002. The Holy Ghost Festas. A Historic Perspective of the Portuguese in California. San Jose CA: Portuguese Chamber of Commerce .) - e para a Nova Inglaterra e o Canadá, Leal (2017aLEAL, João. 2017a. O Culto do Divino. Migrações e Transformações. Lisboa: Edições 70., 2017bLEAL, João(org.). 2017b. Festas do Espírito Santo. Nova Inglaterra. Canadá (website http://festasdoespiritosanto.pt/).
    http://festasdoespiritosanto.pt/...
    ). A bibliografia sobre festas do Divino no Brasil é muito extensa e foi parcialmente sumariada em Leal (2017aLEAL, João. 2017a. O Culto do Divino. Migrações e Transformações. Lisboa: Edições 70.). Para o caso de São Luís, ver Ferretti (1995FERRETTI, Sérgio. 1995. Repensando o Sincretismo. Estudo sobre a Casa das Minas. São Paulo: Edusp/Fapema.) e Leal (2017aLEAL, João. 2017a. O Culto do Divino. Migrações e Transformações. Lisboa: Edições 70.).
  • 7
    Embora em muitas freguesias açorianas as folias tenham sido substituídas por bandas filarmônicas, assiste-se nalgumas delas à sua revitalização.
  • 8
    Embora haja exceções, o desempenho destes cargos é geralmente plurianual: a criança escolhida começa no cargo mais baixo e vai gradualmente subindo até o cargo mais alto.
  • 9
    Iniciada na Califórnia nas primeiras décadas do século XX, esta inovação espalhou-se depois para muitas festas da Nova Inglaterra e do Canadá e acrescentou uma feição marcadamente norte-americana aos festejos. Por influência direta dos imigrantes, as rainhas foram também introduzidas nalgumas freguesias dos Açores, em particular na ilha do Pico (Silvano 2015SILVANO. Filomena. 2015. “As Costureiras, as Queens e os seus seus Mantos Desterritorialização, Cultura Material e Construção do Lugar”. Finisterra, L (100):133-142.; Leal 2017aLEAL, João. 2017a. O Culto do Divino. Migrações e Transformações. Lisboa: Edições 70.).
  • 10
    Sobre as lembranças das festas do Divino em São Luís, ver Leal (2019aLEAL, João. 2019a. “As Lembranças nas Festas do Divino Espírito Santo (São Luís, Maranhão)”. Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, 67:27-35.). Lá mostro - entre outros pontos - como as encomendas junto de lojas especializadas de São Luís se combinam com o trabalho de montagem artesanal das lembranças, realizado em casa pelas devotas que “bancam” os impérios.
  • 11
    A bibliografia sobre folias e giros associados a festas populares no Brasil é muito extensa. Entre os estudos mais recentes destaco os de Luzimar Pereira (2010PEREIRA, Luzimar. 2010. Os Giros do Sagrado. Um Estudo Etnográfico sobre as Folias em Urucaia, MG. Rio de Janeiro: 7 Letras .), Daniel Bitter (2010BITTER, Daniel. 2010. A Bandeira e a Máscara. A Circulação de Objetos Rituais nas Folias de Reis. Rio de Janeiro: 7 Letras.) e Wagner Chaves (2013CHAVES, Wagner. 2013. Na Jornada dos Santos Reis. Conhecimento. Ritual e Poder na Folia do Tachico. Maceió: Edufal.).

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

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Editora Associada:

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2021
  • Aceito
    29 Ago 2023
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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