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BANAGGIA, Gabriel. 2015. As forças do Jarê: religião de matriz africana da Chapada Diamantina.

BANAGGIA, Gabriel. . 2015. As forças do Jarê: religião de matriz africana da Chapada Diamantina. Rio de Janeiro: Garamond. 344 pp.

As forças do Jarê: religião de matriz africana da Chapada Diamantina, de Gabriel Banaggia, não é apenas um livro sobre uma das menos conhecidas religiões de matriz africana do Brasil. É também sobre um lugar e suas durações. Já a partir das primeiras páginas o leitor é convidado a subir as serras da Chapada Diamantina, no interior da Bahia, e caminhar junto com o autor e seus amigos pelas ruas de pedra de Lençóis, garimpando histórias e personagens locais. Tal percurso parte da necessidade de “[...] considerar as dimensões não conspícuas da vida mística dos membros dos terreiros e do cotidiano de uma comunidade de culto nos momentos não necessariamente ligados aos rituais religiosos” (:14). Trata-se de um procedimento no qual as histórias montadas em uma trama complexa que perpassa vários domínios da vida das pessoas ligadas ao jarê, em contextos rituais ou não, tornam-se mutuamente significativas sem que a elas sejam atribuídas relações de causalidade, a todo momento sendo inseridas versões novas que apontam para outras versões. Lírico, mas sem deixar de lado o rigor metodológico, o autor busca “[...] aproximar a composição do texto à estrutura de um altar de jarê, uma construção da qual fazem parte elementos a princípio díspares mas que acabam sendo postos em contato de forma criativa e com determinados objetivos” (:300).

É também nesse registro que o livro se insere em um esforço coletivo de construção de um “[...] estudo sinóptico das religiões surgidas na diáspora negra” (:15), reconsiderando-se, assim, ainda que em novas bases, a iniciativa comparativa de Roger Bastide. Mas ao invés de procurar classificar as diferentes religiões afro-brasileiras como reminiscências de algumas matrizes privilegiadas, sugere-se que “as diferenças existentes entre elas podem ser pensadas enquanto transformações umas das outras” (:16). A principal contribuição de tal “perspectiva transformacional”, sugere-se, é deixar de pensar as diferenças como degradações de formas originais para vê-las como criatividade. Um exemplo disto é a centralidade das entidades denominadas caboclos, característica que insere o jarê na denominação “candomblé de caboclo”. No entanto, ressalta Banaggia, à diferença dos candomblés litorâneos, em que os caboclos tendem a ser englobados por outras entidades e subordinados aos orixás, no jarê os caboclos tornaram-se as entidades às quais outras foram sendo subordinadas ou mesmo subsumidas.

Nessa ótica, a etnografia se sustenta em dois eixos fundamentais: de um lado, conecta-se com outras etnografias, compondo com elas um “contínuo heterogêneo” em que as múltiplas versões “podem ser postas em contato e se iluminar mutuamente, cada atualização sendo encarada como uma versão de outras” (:16-17); por outro lado, os rituais religiosos são inseridos em um emaranhado de outras práticas que se cruzam e produzem uma densidade conceitual própria ao campo, minimizando, dessa forma, a necessidade de explicar os dados etnográficos. O principal esforço aqui é multiplicar as agências nas tramas do jarê por meio de uma experiência profunda com o campo etnográfico, sobretudo a partir das parcerias intelectuais que compõem coletivamente esta obra (:299).

O livro de Banaggia é uma versão revista de sua tese de doutorado defendida em 2012 no Museu Nacional (UFRJ). O primeiro capítulo elabora uma historiografia de Lençóis, passando pela centralidade econômica do garimpo de diamantes e chegando às novas configurações socioeconômicas da região. Tais histórias são elaboradas a partir de documentos primários e da bibliografia científica e romanesca, outrossim, da memória de moradores cujos caminhos foram cruzados com o do autor. O segundo capítulo retoma parte dessa história, apontando para o protagonismo da população negra. Aborda ainda os modos de criatividade afrodescendente, como os rituais tradicionais relacionados ao catolicismo popular, e introduz o universo religioso do jarê. O terceiro capítulo é dedicado aos diferentes tipos de associação do jarê. Passa também por uma instigante descrição das modalidades de agência centralizadas pelo “couro”, ou seja, o tambor ritual do culto. Por fim, fala de importantes lideranças religiosas. No capítulo quatro o autor elabora mais propriamente a ciência do culto, investigando as composições das diferentes forças místicas, a multiplicidade das entidades espirituais e a relação entre pessoas e caboclos. Por meio dessa jornada, Banaggia evoca temas que vão sendo saturados, ampliados e confrontados no desenvolvimento da narrativa e que, quando capturados pelo domínio do jarê, já se apresentam com suas cadeias antecedentes de significados.

É o caso, por exemplo, de como o modo de deslocamento das pessoas pela característica paisagem da Chapada Diamantina se relaciona com o universo religioso. Entre a atividade econômica predominante até anos recentes - o garimpo de diamantes - e a que veio substituí-la - o trabalho como guia turístico - incorporando garimpeiros e seus descendentes, as jornadas através de trilhas são transmitidas, embora as serras, os vales, os cânions e as cachoeiras sejam procuradas por diferentes motivos. Foi também andando com seus amigos que Banaggia notou a “atenção que se dá ao chão” (:71) e ao caminhar, tema que reaparece inúmeras vezes nos rituais do jarê, como na incorporação e na iniciação, e em eventos relacionados a ele, como nas visagens de Dona Valdelice, que descreve a semelhança aparente entre os espíritos e os vivos, com a diferença sutil de os primeiros não tocarem o chão com seus pés (:178). Ao passar por essas e outras referências ao solo, chega-se então àquilo que o autor chama de “telurismo místico do jarê” (:173).

Em outro movimento, ao discorrer sobre a relação dos garimpeiros com o jarê, a voz de Seu Gilson se destaca para falar da agência dos diamantes e como seus captores mais felizes eram aqueles que conseguiam antever seus movimentos pelas serras. Muito mais do que uma coleta, afirma o autor, a atividade se aproxima da caça, reaparecendo entre os guias turísticos, que disputam os turistas que melhor retribuam seus trabalhos. Em ambas as ocorrências, a caça passa por uma aproximação entre caçador e presa, seja pelas visões ampliadas do garimpeiro, seja pela leitura que fazem dos turistas os guias, de modo que a técnica se alia a uma espécie de sintonia. De modo implícito, a caça reaparece em inúmeras instâncias do universo do jarê, como no encontro das pedras de raio e outros objetos sagrados e na própria relação das pessoas com as entidades místicas.

Por meio de movimentos deste tipo, nos quais os fenômenos circulam por uma “cadeia reversível de transformação”, nos termos de Bruno Latour, as histórias vivenciadas tornam-se contribuições significativas não apenas para a compreensão do jarê, mas igualmente para o campo de estudos das religiões. Tal é, por exemplo, o lugar do debate sobre o conceito de crença. Na confluência entre a superação do “paradigma da suspeita” e o modo como as pessoas ligadas ao jarê utilizam retoricamente o termo, pareado com o de “fé”, “crença” deixa deslizar seu sentido relacionado a “acreditar” para incorporar o de “dar crédito” - “[...] no jarê a crença não passa do grau máximo da confiança” (:253). No que diz respeito às agências dos “entes que constituem o mundo”, “[...] não se trata simplesmente de existirem ou não existirem, mas de existir com mais ou menos intensidade, num gradiente que vai das forças mais potentes e perenes às que terminam por desaparecer, quiçá por completo” (:253). A questão é então desviada da crença em forças transcendentes para a confiança que se tem na incorporação de uma determinada entidade em uma determinada pessoa. Mas isso não é tudo.

Tocando em um assunto caro aos estudos das religiões de matriz africana, com um raro lance de teoria etnográfica, as entidades do jarê se apresentam como seres múltiplos, resultantes do cruzamento entre graus de especiação - a diferenciação das entidades entre si - densidade - em versões mais gerais ou mais singularizadas - e intensidade - a regularidade e a senioridade da relação com uma irmandade, “[...] sem ignorar o fato de que um espírito que exista de maneira mais intensa que outros geralmente acaba se tornando também mais diferenciado que os demais a ele semelhantes” (:259). Por outro lado, as pessoas ligadas às entidades são, também elas, responsáveis pela atualização de tais qualidades em determinados eventos, entre eles a incorporação. O conceito utilizado para falar das forças que habitam uma pessoa é, nesse sentido, revelador: “Da composição que participam, em diferentes graus, seres humanos e espirituais, diz-se que se trata de alguém que se encontra ‘atuado’, uma pessoa cujas ações são motivadas por vontades múltiplas sobrepostas” (:268).

Por fim, diria que é possível perceber a emergência da “caça” no domínio das relações entre pessoas e entidades no jarê, como a caça ao diamante ou como a caça ao turista, lembrando que não se trata aqui de uma “captura”, mas, de modo análogo ao que ocorre em outros contextos etnográficos, de mimetizar ou deixar-se afetar pela presa, com a ressalva de que pessoa e entidade oscilam entre as posições de caçador e presa: a entidade num devir-humano; a pessoa num devir-caboclo. Pode-se dizer, ainda, que se trata de uma busca por sintonia entre dois movimentos. E poderíamos apontar ainda uma última modalidade de caça, a do antropólogo. Como um garimpeiro, que sabe que a pedra preciosa não se presta à coleta, Banaggia se recusa a “levantar dados” em campo, compondo, em vez disso, um intrincado diálogo, um exercício necessário de simetria entre os saberes da antropologia e os do jarê.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016
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