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DÉLÉAGE, Pierre. 2016. Répartir de zero . Paris: Mix. 91 pp.

O novo livro de Pierre Déléage foi concebido como um exercício de leitura crítica da obra de Jerôme Rothenberg, poeta e tradutor norte-americano conhecido por suas coletâneas, traduções, ensaios e manifestos em prol do que ele, juntamente com Dennis Tedlock e também Dell Hymes, batizaram de etnopoética. Em livros como Technicians of the sacred (1968), Shaking the pumpkin (1972), America a Prophecy (1973), Symposium on the whole (1983) e em revistas como Alcheringa: a journal of ethnopoetics (1970-1980), Rothenberg colocou em circulação uma grande quantidade de "textos" oriundos de outras tradições intelectuais e poéticas que geralmente eram relegados aos anexos de trabalhos etnográficos e linguísticos, desenvolvendo assim uma atividade literária que procurava simetrizar e conectar manifestações poéticas não ocidentais e modernas.

Interessado em investigar as técnicas formais empregadas por Rothenberg em suas inúmeras traduções e recriações de exemplares das artes verbais ameríndias em particular, o percurso de Déléage pela obra do autor norte-americano se organiza em torno de três pontos centrais, conforme ele próprio explicita (:12): os procedimentos de retradução desenvolvidos por Rothenberg; suas experiências de tradução "total"; e a maneira como Rothemberg empregou técnicas semióticas não linguísticas e alfabéticas ao longo de sua experiência tradutória e poética. Dividido em três capítulos, além do prefácio e uma "cláusula" final a título de conclusão, o livro toma como fio condutor uma consideração do próprio Rothenberg a propósito de sua obra:

por meio de minhas colagens, eu fui um dos primeiros, creio, a sublinhar o valor de uma tradução total, que considere, na medida do possível e do útil, elementos da respiração e do som, do gesto e da repetição. Foi também deliberadamente que eu chamei a atenção para toda uma gama de gêneros e modos que haviam sido negligenciados até então: poemas-sons, desprovidos de palavras, e poemas-imagens [...]. E foi porque eu já estava cansado do anonimato tribal que eu tentei, insistentemente, identificar os cantores e poetas por seus nomes (:86).

O primeiro capítulo do livro, dedicado à noção de tradução total - uma tradução "não só das palavras, mas de todos os sons conectados ao poema, incluindo, por fim, a própria música" (:40) - faz o interessante exercício de reconstrução do processo tradutório de Rothenberg, recuperando nas fontes originais consultadas pelo autor os textos por ele retrabalhados, assim como as primeiras traduções que antropólogos, linguistas ou os próprios ameríndios fizeram deles. Dessa maneira, Déléage mapeia as diferentes opções encontradas por Rothenberg em cada uma de suas traduções, revelando a pluralidade de soluções de tradução encontradas pelo autor norte-americano.

Acompanhamos, assim, a forma como foram retrabalhados por Rothenberg e seus colaboradores um fragmento de uma narrativa mítica dos índios Cahto da Califórnia, uma fórmula encantatória dos índios Cherokee do sudeste norte-americano, os cantos de abertura de uma sessão xamânica dos índios Sêneca de Nova York, os cantos femininos de um ritual de iniciação dos índios Osage das Grandes Planícies, uma narrativa mítica dos índios Zuni do Novo México, os cantos xamânicos dos índios Navajo do sudoeste norte-americano e, por fim, fragmentos de um diálogo cerimonial dos índios Shuar do Equador. A riqueza intertextual que é recuperada por Déléage por meio do cotejamento de fontes e versões revela o vasto terreno de experimentação em que estava engajado Rothenberg, assim como os diferentes desafios a que ele procurava dar soluções em suas traduções e compilações.

Valeria a pena destacar aqui as soluções encontradas por Rothenberg para traduzir dois cantos xamânicos sêneca, soluções estas que ainda foram pouco exploradas nos trabalhos que se dedicaram ao registro e à tradução das artes verbais ameríndias. Esses cantos se caracterizam pela concisão de seu conteúdo propriamente linguístico, sendo compostos de um único verso que, acompanhado de vocalises, são lentamente repetidos ao longo de toda a performance, sempre seguindo uma estrutura melódica fixa. Essa economia semântica do canto é trabalhada por Rothenberg por meio da disposição visual do canto no papel, que acaba por assumir ares dos calligrammes de Apollinaire. Como coloca Déléage,

sua lentidão [dos cantos] é apresentada por meio do agenciamento de um único verso por página; a repetição dos versos era indicada por um bloco de cinco linhas de sílabas desprovidas de significação, posicionado em uma coluna à direita; a conclusão do canto por meio da expiração de um "ugh" final aparecia no centro do bloco [...]. O resultado da tradução, em grande medida bem-sucedida, só pode ser avaliado de visu. Jerome Rothenberg procedeu assim a uma redisposição do texto, destinada, por um lado, a transpor o ambiente acústico e, por outro, a fazer de um canto ritual um poema ao gosto "sonoro", "minimalista", "concreto". O conceito de "tradução total" podia, assim, ser sinônimo de "experiência de apresentação da poesia ameríndia" (:24-26).

No capítulo 2, Déléage se aprofunda no exame do pensamento de Rothenberg acerca do que este chamava de poema-sons, "poemas" que seriam compostos apenas por sons destituídos de sentido. As traduções analisadas aqui vão desde cantos ameríndios kaingang, kaxinawa e fox a cantos da seita norte-americana dos Shaker, passando por poemas do poeta dada Hugo Ball. No entanto, se no capítulo 1 Déléage parece adotar um tom mais curioso e condescendente com as concepções manifestas de Rothenberg acerca das qualidades formais das artes verbais ameríndias e os pressupostos de seus regimes poéticos, a partir daqui sua consideração começa a assumir um viés mais crítico. Apesar de reconhecer todo o mérito da decisão de Rothenberg de não descartar a priori os elementos semanticamente vazios que são abundantes nas artes verbais ameríndias, e sim buscar soluções criativas que permitam valorizá-los em sua transcrição ao papel e em sua transposição a outras línguas, Déléage crítica Rothenberg por subsumir os distintos propósitos comunicativos e expressivos de cada um dos vários "poemas-sons" por ele analisados a uma suposta concepção comum a todas elas, qual seja, a de "abandonar as palavras para buscar uma nova definição da própria linguagem ou descobrir as fontes mais profundas de onde a linguagem brota" (:61). Déléage enxerga aqui uma projeção indevida de aspectos próprios a projetos estéticos ocidentais sobre concepções alheias a eles, preocupando-se em diferenciar o propósito musical da sucessão de vogais no canto kaxinawa da nova língua a que aspirava a poesia dada, assim como a linguagem ritual incompreensível, mas não por isso desprovida de sentido dos cantos kaingang e fox, da glossololia do pastor shaker.

No capítulo 3, Déléage analisa alguns exemplares daquilo que Rothenberg chama "poemas-imagens". Trata-se de transposições gráficas de cantos rituais feitas por populações ameríndias (Navajo, Azteca) e asiáticas (Naxi, do sudoeste da China), que Rothenberg tomava como exemplares de semióticas não linguísticas desenvolvidas por diversos povos não ocidentais. Ao longo de sua análise do material reunido por Rothenberg, Déléage reencontra aqui as questões e as conclusões a que havia chegado em seu livro anterior, Inventer l'écriture (2013), no qual investigou sistemas de escritura (isto é, técnicas de inscrição e estabilização) de discursos rituais xamânicos e proféticos ameríndios. Quanto a esse material, Déléage lembra que

o importante aqui é compreender que os caracteres dessa escrita designam palavras ou grupos de palavras que, eles próprios, designam referentes. Eles são signos de signos e não simples signos, e é isso que permite diferenciá-los de sistemas gráficos convencionais, como os pictogramas que se encontram nos aeroportos internacionais ou na sinalização rodoviária (:70).

Ao final do capítulo, ele apresenta ainda uma curiosa reinterpretação da famosa "Lição de escrita" que Lévi-Strauss recebeu de um chefe nambikwara e do documento que este produziu enquanto, conforme compreendeu Lévi-Strauss em Tristes Trópicos, tentava impressionar seu povo. O documento - reproduzido por Lévi-Strauss em O cru e o cozido (1964) e que também foi tomado por Rothenberg como um exemplo de "poema-imagem" - traz uma série de linhas tortuosas continuamente grafadas numa página, por meio das quais o chefe nambikwara, supostamente, teria anotado a lista de presentes que o antropólogo deveria dar aos índios em troca dos objetos que deles havia recebido. Ainda que evidentemente muito diferente dos documentos navajo, naxi e azteca, Déléage toma a sugestão de Rothenberg como um caminho possível de investigação. E comparando o documento nambikwara com um documento produzido por Fausto, um profeta akawaio das Guianas, acaba por produzir uma interpretação que vai ao encontro da intuição de Rothenberg. O documento akawaio registra as partes variáveis de um gênero específico de canto ritual de estrutura paralelística, o mayin, executado ao final das cerimônias de Aleluia. E o recurso formal utilizado para isso foram linhas tortuosas semelhantes às linhas nambikwara, que no quadro interpretativo proposto por Déléage passam, de fato, a poder ser compreendidas como escritura.

Por fim, ao encerrar o livro, Déléage questiona Rothenberg e sua obra do ponto de vista da autoria de suas retraduções e fontes. Reportando uma polêmica recente que envolveu uma retradução poética de cantos haida feita por um poeta canadense e que enfureceu a comunidade Haida da Columbia Britânica, que se sentiu desrespeitada em sua língua e direitos, Déléage aponta para a amplidão e a complexidade do problema para a antropologia e para a teoria da tradução, e critica a superficialidade e a inconstância da reflexão de Rothenberg a seu respeito. Deste ponto de vista, o juízo de Déléage é implacável: a obra de Rothenberg pertence definitivamente ao passado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2016
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