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Transmissão de patrimônio habitacional em favelas

RESENHA

WEBER, Alexandre de Vasconcelos. 2012. Transmissão de patrimônio habitacional em favelas. Niterói, RJ: Editora da UFF. 277 pp.

Tomás Henrique de Azevedo Gomes Melo

Doutorando no PPGA– UFF

O livro de Alexandre Weber é resultado de sua tese de doutorado, desenvolvida a partir de aproximadamente 10 anos de pesquisas dedicadas ao tema da transmissão de patrimônios habitacionais em favelas do município do Rio de Janeiro. Seu trabalho se insere na mesma direção de outros esforços recentes para o reconhecimento de patrimônios materiais e imateriais de grupos social e politicamente marginalizados. Já no prefácio escrito por Delma Pessanha Neves, assim como nas linhas introdutórias de Alexandre Weber, tornam-se evidentes as motivações de um olhar atento à transmissão de patrimônios de grupos populacionais costumeiramente identificados em função de seu acesso precário, ou mesmo desqualificado, a bens materiais e sua consequente transmissão.

O fato que delineia tal trajetória de pesquisa parte de esforços anteriores que tematizaram a vida de pessoas que habitam as ruas da cidade, seu convívio em uma instituição de acolhimento e as narrativas sobre as condições de possibilidade do seu viver. A partir desta experiência de pesquisa, aponta-se para o conteúdo variante das desqualificações e autodesqualificações morais como conteúdo explicativo dos motivos de exclusão e/ou autoexclusão das redes de convivência, solidariedade, herança, posse e vínculos parentais. O caso das pessoas em situação de rua é marcado por uma desqualificação moral que serve como fundamento explicativo para o afastamento das redes de pertença e sucessão, criando rupturas do indivíduo em relação aos projetos familiares, de tal maneira que, ainda que sejam herdeiros, passam a não ser necessariamente os sucessores de determinado patrimônio.

A partir desta inspiração nas formas de ruptura com os projetos familiares e sua transmissão patrimonial, o autor realiza uma análise das formas de constituição e transmissão do patrimônio materializado na construção da moradia, atento também aos diversos aspectos que atribuem valor a estes patrimônios e dinamizam disputas específicas.

As localidades em que foi realizado o trabalho de campo são três áreas de favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro, abrangendo seis localidades reconhecidas de modos distintos segundo a própria Prefeitura da cidade. São elas: São José, Sanatório, Candiru (ou Iguaçu 360), Travessa Henrique de Azevedo, Coricó e Sapê. A diferença entre as formas de nomear as localidades na Prefeitura e os modos de os moradores se referirem a elas é, de certo modo, parte do problema exposto ao longo do livro. Em sua análise da bibliografia sobre programas de intervenção urbanística por parte do estado nas regiões de favelas, em diversas fases de adensamento das ocupações ditas irregulares da habitação popular, o autor enfatiza o caráter intervencionista dessas ações, assim como a constância de estudos que privilegiam uma perspectiva reducionista. Tais pressuposições enfatizam a miserabilidade e a precariedade destas modulações, segundo um olhar excludente que perde de vista a complexidade das composições possíveis segundo critérios próprios de organização. Sobretudo, trata-se de formas de intervenção urbanística que privilegiam uma abordagem tecnicista, que legitima direta ou indiretamente uma organização socioespacial em detrimento de outra, criando uma tensão entre esta primeira forma de compreensão e as composições de um saber-fazer próprio dos moradores de favelas.

Esta tensão é notória, a exemplo de tantas outras políticas semelhantes, em virtude de um reiterado processo de intervenção e planejamento realizado de cima para baixo. Prática que insistentemente ignora os saberes locais, suas perspectivas e as características que modelam uma utilização específica de espaços, recursos e redes de sociabilidade, que estabelecem pertencimentos, padrões de colaboração e ajuda mútua e, ainda, carregam consigo ideais estéticos e padrões desejáveis de organização do espaço.

Em oposição a esta postura, o que a etnografia de Weber propõe como reflexão é o fato de que a inserção "precária" em redes de transmissão, uso, herança e posse de patrimônios não significa que tal precariedade seja absoluta. O autor evidencia justamente a existência de uma complexa teia que determina padrões de vinculação e pertencimento a redes que dinamizam a circulação do patrimônio, ou mesmo a exclusão destas. Tais formas de transmissão orbitam fundamentalmente em torno de formas de vinculação de acordo com os sentidos públicos, negativos ou positivos, atribuídos aos valores que inserem indivíduos e coletivos em redes de transmissão do patrimônio familiar de bens, particularmente habitacionais, em áreas de favelas.

Exemplo deste fato são os modos de composição de famílias chefiadas por mulheres, muitas vezes com a presença de agregados e coabitação de mais de uma família em uma mesma unidade residencial, que por vezes são compreendidos enquanto dinâmicas de rearranjos em face de uma situação desejável e idealizada do que deveria ser uma família nuclear. Mas uma importante diferença dos habitantes de favelas em relação a outros segmentos populacionais menos favorecidos – como no caso dos habitantes de rua – é justamente sua possibilidade de mobilização de recursos patrimoniais, que os insere de modo qualitativamente distinto nas redes de construção e posse de propriedades. Tal possibilidade estabelece condições diferenciadas de vinculação a um referencial de valores e regras morais, a partir das relações de parentesco e vizinhança, para fins de transmissão familiar de patrimônios.

Dentre os diversos valores em jogo no processo de transmissão dos patrimônios habitacionais, existem princípios e regras que estabelecem formas de pertencimento para a constituição de uma noção de comunidade. O autor analisa, portanto, aquilo que chama de trajetória habitacional, ou seja, os projetos individuais e coletivos que elaboram e organizam a sua inserção específica nos arranjos habitacionais e em suas formas de transmissão. Cabe ressaltar, entretanto, que tal análise não se fundamenta apenas em uma atenção atomizada nas trajetórias individuais em relação a casa e aos bens imóveis, ao contrário, trata-se de considerar o lugar desses bens no contexto das relações familiares e de vizinhança, assim como os elementos em jogo na construção da identidade dos habitantes e seus critérios estabelecidos como valores de uma moralidade, moralidade esta que dinamiza os processos de inclusão e exclusão nas próprias redes da transmissão do patrimônio.

A partir da constituição das trajetórias habitacionais particulares, o autor consegue apresentar diversos eventos e forças que, para além da própria materialidade da habitação e das inserções específicas nas relações familiares, são capazes de catalisar aspectos de valorização e desvalorização da habitação e das localidades em que ela se estabelece. Dentre estes fatores, o autor identifica: as condições geológicas dos lugares em que as casas são construídas, acarretando a possibilidade de deslizamentos de terra, perda da casa e risco da integridade física de seus habitantes; o risco de enchentes e perda de bens; o risco de remoções forçadas; a presença do tráfico de drogas e de conflitos violentos na região da habitação; e a ação de programas de reurbanização e regularização fundiária.

Mas se tais aspectos delineiam as dinâmicas de valorização e desvalorização possíveis, as combinações e as formas de organização dos projetos habitacionais e a subsequente transmissão intrageracional deste patrimônio, segundo estratégias particulares, se dão de forma ainda mais cambiante em face das possibilidades de cada trajetória específica. É curioso notar que, se tomada uma trajetória particular, percebe-se que seu início se dá mediante a continuidade daquilo que foi proporcionado pela geração anterior, até uma determinada idade em que se torna possível uma colaboração mais ativa, ou mesmo autônoma, do indivíduo de acordo com a sua inserção na rede familiar específica. A forma de construção deste projeto mais ou menos individualizado se estabelece também segundo combinações possíveis com os demais membros familiares, tais como irmãos e irmãs que se casam ou continuam na casa dos pais; a colaboração entre diversos membros para aumentar a casa e criar cômodos separados, para si ou para os outros; as mudanças em virtude de filiação, casamento e morte de algum membro familiar; as mudanças no que diz respeito ao emprego e às oscilações na rentabilidade do grupo. Estas são possibilidades, dentre diversas outras que, combinadas com as escolhas possíveis diante das valorizações e das desvalorizações do imóvel e da localidade, dinamizam as opções de habitação, coabitação, mudança e transmissão intrageracional.

Os diferentes aspectos que contribuem para o estabelecimento de escolhas possíveis nas formas de habitação e transmissão patrimonial são regulados por dois tipos combinados. São eles: os aspectos imateriais da sociabilidade que constituem os grupos domésticos e, ainda, os direitos reais aos bens materiais. Isto significa dizer também que o sistema de transmissão é regulado por um tipo de "fórmula" de distribuição dos bens entre irmãos, de acordo com seus posicionamentos no seio da família e a consequente divisão de acordo com uma lógica de perpetuação destes bens.

A crítica fundamental apresentada no livro trata da compreensão do patrimônio enquanto um valor que não se resume à reificação de determinados bens em detrimento de outros – sejam eles materiais ou não – segundo uma qualificação daquilo que pode ser identificado socialmente e reconhecido enquanto um bem. O pano de fundo que acompanha o raciocínio é justamente o seu oposto, a saber, o esforço de identificação dos bens e suas decorrentes formas de transmissão em grupos sociais subalternizados em diversas dimensões de seu viver.

O trabalho de Weber, portanto, é um ótimo exemplo do que uma etnografia bem feita pode nos oferecer de melhor. Trata-se, afinal, do esforço de refletir a sério sobre as formas de obtenção e transmissão dos patrimônios de grupos sociais tradicionalmente considerados apenas de acordo com um padrão de precariedade material de seu modo de vida. Aponta para o questionamento de tais interpretações ao salientar dimensões costumeiramente menos privilegiadas, rumo ao desafio metodológico, e mesmo temático, de reconhecer as lógicas e as formas próprias da transmissão de patrimônios de grupos sociais compreendidos como em situação de vulnerabilidade social ou pobreza.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jan 2014
  • Data do Fascículo
    Dez 2013
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