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Maríyarapáxjis: língua, gênero e homossexualidade em Moçambique

Maríyarapáxjis: language, gender and homosexuality in Mozambique

Maríyarapáxjis: lengua, género y homosexualidad en Mozambique

Resumo

Maríyarapáxjis é um neologismo (proveniente da expressão portuguesa maria-rapaz) encontrado na língua materna de meus interlocutores moçambicanos (a língua changana) para dar conta, entre outros, de homens que a princípio demonstram certa afeminação, mas que nas últimas décadas passou também a nomear os homossexuais. Apesar de analisar outros vocábulos, escolho-o como título deste artigo porque, além de ser uma das palavras mais ouvidas no sul do país para nomear esses sujeitos, ela parece ser o epítome de uma série de processos históricos de institucionalização das homossexualidades masculinas nas classes populares do sul de Moçambique. O presente artigo, fruto de investigação etnográfica e linguística, busca analisar o léxico das línguas changana e portuguesa dentro do campo semântico da homossexualidade no sul de Moçambique e colocá-las em diálogo com as teorias feministas africanas.

Palavras-chave:
Linguística; Antropologia; História; Sexualidade; África

Abstract

Maríyarapáxjis is a neologism (derived from the Portuguese expression maria-rapaz) found in the mother tongue of my interlocutors (the Changana language). The expression is mostly applied to men who at first demonstrate some effeminacy, but in recent decades it has also come to name the homosexuals. Although I also analyze other expressions, I choose it as the title of this article because besides being one of the most heard words in the south of the country to name these subjects, it seems to be the epitome of a series of historical processes of institutionalization of male homosexualities in the popular classes of southern Mozambique. This article, the result of ethnographic and linguistic research, seeks to analyze the lexicon of the Changanan and Portuguese languages within the semantic field of homosexuality in southern Mozambique and put them in dialogue with African feminist theories.

Keywords:
Linguistics; Anthropology; History; Sexuality; Africa

Abstract

Maríyarapáxjis es un neologismo (proveniente de la expresión portuguesa maria-rapaz) encontrado en la lengua materna de mis interlocutores mozambiqueños (la lengua changanana) para dar cuenta, entre otros, de hombres que en un principio demuestran cierto afeminamiento, pero que en las últimas décadas también es utilizado para nombrar a los homosexuales. Aunque también analizo otras palabras, la elijo como título de este artículo porque además de ser una de las palabras más escuchadas en el sur del país para nombrar a estos sujetos, parece ser el epítome de una serie de procesos históricos de institucionalización de los varones homosexuales en las clases populares del sur de Mozambique. Este artículo, resultado de una investigación etnográfica y lingüística, busca analizar el léxico de las lenguas changanana y portuguesa dentro del campo semántico de la homosexualidad en el sur de Mozambique y ponerlas en diálogo con las teorías feministas africanas.

Palabras clave:
Lingüística; Antropología; Historia; Sexualidad; África

Introdução

[...] já Goethe não indicou que aquele que só conhece o seu próprio idioma não conhece nenhum? (Green & Trindade 2005GREEN, James & TRINDADE, Ronaldo (eds.). 2005. Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo: Editora Unesp.:52).

Em determinado momento de minha mais recente pesquisa de campo,1 1 Meu trabalho de campo para a tese doutoral consistiu em um período de seis meses contínuos, de março a setembro de 2018, na Província de Maputo. Ao total, foram realizadas 36 entrevistas formais, entre pessoas LGBT e pessoas não LGBT, brancos, negros e mestiços, moçambicanos e estrangeiros, ativistas sociais, acadêmicos, artistas, trabalhadores urbanos, e quem mais estivesse disposto a comigo conversar sobre sexualidade. Por fim, pude acompanhar, de forma mais sistemática, não apenas o dia a dia administrativo da LAMBDA, a principal organização LGBT do país, mas também o cotidiano de alguns de seus agentes comunitários e beneficiários LGBT em seus trabalhos na periferia da cidade, frequentar algumas de suas festas, seus cultos religiosos e conhecer alguns de seus lares e famílias. conheci a história de uma senhora do meio rural do norte de Moçambique, para quem parece nunca ter existido até então um termo para nomear os homossexuais. Quem me conta essa história é Luiz, um funcionário da LAMBDA, a maior organização LGBT de Moçambique, que no norte esteve para dar uma formação sobre diversidade sexual e doenças sexualmente transmissíveis.

E uma coisa que me marcou - acho que foi em 2009, não 2008 ou 9, não me lembro bem - nós fomos a um distrito no interior de Nampula falar sobre orientação sexual, falar sobre homossexualidade, e apareceu uma velha - entre aspas. E, quando eu falei do tópico, ela disse: “Epa, meu filho, agora estou a entender. Eu tive um irmão que nunca se casou. Nós tentamos forçar, forçamos, mas ele nunca aceitou. Disse que quando ficava próximo das mulheres se sentia mal, havia um espírito que vinha, lhe tomava, e fazia-lhe mal. Mas eu sempre vi ele com homens, até a morte dele. Nunca se juntou com mulheres, nunca teve este afeto. Mas eu não sabia. Só agora que meu filho tá a falar isso, começo a entender”. Por que me marcou? Me marcou porque nós não estávamos numa grande cidade. Estávamos lá no interior. E a pessoa que estava a falar era uma idosa, creio que não sabia ler nem escrever, mas ela se lembrou deste episódio... Depois eu acabei usando este depoimento em outras formações, inclusive em grandes cidades, porque havia uma corrente que dizia assim “Ah, é assunto das cidades. Isso é com os brancos, cá entre nós não existe”. Eu me lembro desta história que aconteceu lá no interior, eu sempre usei isto em outras formações (Entrevista com Luiz, Maputo, 27/06/2018).

Assim, a senhora do interior norte-moçambicano, segundo Luiz provavelmente analfabeta (e talvez não fluente na língua portuguesa), relatava ter tido um irmão que, para ela, se encaixava no perfil do sujeito homossexual que pela primeira vez na vida alguém lhe apresentava. Percebemos neste depoimento que naquele contexto até então não parecia haver um nome para identificar um sujeito que conjugasse celibato, aversão às mulheres e homoafetividade acima do comum. Para esse sujeito, por mais desajustado socialmente que o fosse, não havia nome na língua nativa, não havia uma identidade específica: ele simplesmente era, ao mesmo tempo, um celibatário, alguém que tem aversão afetiva/sexual às mulheres e alguém que anda com homens. O próprio - segundo a irmã - atribuía a causa aos espíritos. Mas a composição em uma subjetividade específica centrada na sexualidade não parecia existir. O novo sujeito que surgia no aparato cognitivo e linguístico de Luiz, através das organizações suecas para as quais ele trabalhava, iria - por uma cadeia facilmente demonstrável - despontar na realidade daquela velha senhora do interior do país, para dar conta de seu irmão, um sujeito até então apenas fora do comum. Situações como essa aparecem também na etnografia moçambicana sobre o assunto (Chipenembe 2018CHIPENEMBE, Maria. 2018. Sexual rights activism in Mozambique A qualitative case study of civil society organisations and experiences of “lesbian, bisexual and transgender persons” 2018. PhD Dissertation, Gender and Diversity Studies, Universiteit Gent.:117-8).

William Leap, em seu estudo sobre linguagens gays e lésbicas, aponta que

algumas fontes oferecem discussões genéricas sobre nomenclaturas identitárias e terminologia associada, mas as narrativas e outros dados textuais coletados de membros dessas categorias de sexo/gênero estão faltando para quase toda área fora do mundo ocidental (Leap 2002LEAP, William. 2002. “Studying Lesbian and Gay Languages: Vocabulary, Text-making, and Beyond”. In: LEAP, William & LEWIN, Ellen (eds.), Out in theory: the emergence of lesbian and gay anthropology. Chicago: University of Chicago Press. pp. 128-154.:144, tradução livre).

Mateveke, em seu estudo sobre as conexões entre linguagem e sexualidade entre os CiShona, do Zimbábue, observa que “não tem havido muita pesquisa sobre a linguagem diária que comunica o envolvimento com sexo e sexualidade em contextos de África” (Mateveke 2017:125, tradução livreMATEVEKE, Pauline. 2017. Language, Sex and Power Relations. In: BENNETT, Jane & TAMALE, Sylvia (eds.), Research on Gender and Sexualities in Africa. Dakar: CODESRIA. pp. 123-131.). Investigar o léxico na língua local, portanto, não serve apenas para saciar um projeto de “etnocartografia” da sexualidade (Boellstorff 2005BOELLSTORFF, Tom. 2005. The gay archipelago: sexuality and nation in Indonesia. Princeton: Princeton University Press.:27), mas também para compreender parcialmente aspectos culturais mais amplos, profundos e, particularmente, investigar sobre a existência ou não de uma outra episteme que presuma algo como uma subjetividade homossexual ou transexual, que hoje dispute significado com os termos em outras línguas em determinados territórios. No caso de Moçambique, com o português. Em outras palavras, investigar o processo histórico recente de agregação do “dispositivo da sexualidade” ao já existente “dispositivo da aliança” (Foucault 1988FOUCAULT, Michel. 1988 [1976]. História da sexualidade 1: A vontade de saber 19. ed. Rio de Janeiro: Graal.).

Ars Erotica

Na maioria de minhas entrevistas com interlocutores homo ou transexuais moçambicanos, jovens ou adultos, eu perguntava sobre como se deram as suas “descobertas” do próprio desejo erótico e o despertar de suas vidas sexuais. As perguntas procuravam principalmente apreender 1. a trajetória de cada sujeito, no intuito de poder compreender não apenas idiossincrasias, mas também certos padrões culturais; 2. como era o acervo simbólico relativo à homossexualidade à época da descoberta para cada um, inclusive para apreender as categorias correntes utilizadas; 3. se havia referências de sujeitos como eles nos quais pudessem se espelhar, se compreender e se constituir como sujeitos.

Um dos casos mais claros sobre como não só o desejo precede a linguagem, mas como a “homossexualidade” enquanto categoria do pensamento poderia não ser gramatical em certos nichos sociais moçambicanos é o de Amarildo. Ele é homem, falante de changana, quase imperceptivelmente afeminado, nascido em 1978 na província de Maputo. Amarildo está separado de sua segunda esposa, com quem teve quatro filhos, e atualmente vive com uma senhora, a quem tem como “namorada”. Isto, porém, não o impede, hoje, de se relacionar com outros homens. Amarildo, no entanto, confessa não saber se classificar dentro da terminologia LGBT por alegada “falta de conhecimento”. 2 2 Guambe e Chipenembe, em suas recentes pesquisas, trazem casos em que nem os ativistas pelos direitos sexuais-reprodutivos em Moçambique parecem conhecer o tema e o vocabulário da homossexualidade (Guambe 2017:78; Chipenembe 2018:85-6). Em minha tese doutoral demonstrei como a institucionalização da homossexualidade enquanto categoria nas classes populares moçambicanas é relativamente recente, tendo se consolidado apenas no final do século XX (Miguel 2019).

Eu próprio não sei como me detalhar porque... não aprendi... ainda não tive aquilo de aprender, saber que isto é isto, aquilo é aquilo. Eu só tenho desejo, às vezes eu encontro alguém, ficamos. Só. Ainda não tenho aquela experiência de “assim, que eu sinto assim, é porque eu sou assim”. Ainda não tenho (Entrevista com Amarildo, Matola, 23/08/2018).

Em seguida, ele relata a dificuldade que teve há alguns anos de iniciar-se homossexualmente:

- Sim. Tinha uns 34 anos. Mas falando sério, eu vinha, vinha até a... não sei como explicar... aquela coisa de eu querer! Mas não saber como fazer. Como fazer. Estás a ver? [...] porque eu... eu andava na rua. Eu via um outro, uma pessoa assim, um outro homem. Sim, mas eu apreciar, mas sem ter como eu me... como eu falar com ele ou tentar conversar. Eu tentar lhe... Estás a ver? Não ter como...

- Não sabia o que dizer pra ele?

- Não sabia o que dizer... Eu era só ver e eu querer... Epa, eu chegar em casa, beber um copo de água e ficar...

- E desde quando você sente essa vontade de ter com homens, assim? É desde a infância ou foi uma coisa que apareceu mais tarde?

- [...] Ah, comecei nos 17, 18 [anos]. Mas como eu sou de uma família, uma família muito, assim, muito, muito de baixo, [...] uma família muito pobre, então ali não tinha como eu saber que existia essas coisas.

- Você nunca tinha visto na rua?

- Não! Eu nunca tinha visto! Eu nunca nem tinha ouvido falar. Nem na rádio, nem televisão, nunca! Porque eu quase cresci sem assistir nem a televisão. Então aquilo foi coisa de eu ver, assim, se eu... de irmos com uns amigos, de irmos tomar banho num lago, assim, eu olhar e... Meu corpo precisa... Ah, aquela coisa de...! Mas sem, sem... não ter aquela iniciativa. “Como falar ou convidar alguém para conversar?”

(Entrevista com Amarildo, Matola, 23/08/2018, grifo meu)

Assim, apesar de sentir o desejo pelos homens com os quais cruzava nas ruas ou pelos amigos com os quais ia ao lago, a possibilidade de efetivação desse desejo em ato sexual com esses mesmos homens parecia fora de possibilidade. Não porque eles não quisessem - Amarildo nunca soube - mas porque isto não estava no acervo de possibilidades dadas no mundo para ele. Seria então, só aos 34 anos, que ele conheceria seu “iniciador”:

[...] Eu estava numa paragem, esperando um chapa.3 3 Nome dado em Maputo para transportes públicos, como “autocarros” e “ônibus”. De repente, apareceu um senhor. Ele era mais velho em relação a mim. Aquele senhor chegou ali de repente. [...] Ele foi e cumprimentou “Boa noite”, e eu, “Boa noite”. “Tudo bem?”, eu “Tudo bem”. “Eu já estive contigo numa festa”. “Comigo?”. “Sim, estivemos juntos numa festa. Não lembras?”. “Onde?”. “Na Matola”. “Não! Eu não sou das festas, eu não gosto das festas, de participar das festas! Não, está a me confundir”. “Epa, não, mas pode ser, mas... Só que, quando olho pra ti, parece mesmo a pessoa com quem eu já estive numa festa da Matola”. “Não”. Então, ele pegou a minha mão. Quando pegou a minha mão assim, ele começou a me... [Amarildo faz o gesto de coçar com um dedo, de forma secreta, a palma da mão do outro].

(Entrevista com Amarildo, Matola, 23/08/2018)

Havia sempre festas na Associação dos Músicos Moçambicanos, um ambiente boêmio perto de onde eu morava e que, apesar da frequência eventual de alguns sujeitos homossexuais, não se caracterizava como um espaço reconhecidamente LGBT em Maputo. Certa noite, um rapaz moçambicano - aparentemente da minha idade e com jeito masculino - veio me pedir um cigarro e, quando lhe dei, ele agradeceu com um aperto de mão. Enquanto nossas mãos estavam juntas, ele coçou com o dedo a palma da minha mão, olhando-me com um sorriso. Gramatical para mim desde o Brasil e aparentemente em outros lugares em África (Dankwa 2009DANKWA, Serena. 2009. “‘It’s a Silent Trade’: Female Same-Sex Intimacies in Post-Colonial Ghana”. NORA - Nordic Journal of Feminist and Gender Research, 173:192-205. Disponível em: https://doi.org/10.1080/08038740903117208
https://doi.org/10.1080/0803874090311720...
:198), o tal gesto era claramente um código secreto e não verbal de convite a práticas homoeróticas. Similar ao caso moçambicano, Dankwa demonstra, em sua pesquisa com mulheres ganenses que dirigem seus desejos para outras mulheres, como o conhecimento tácito sobre a sexualidade opera, por lá, na ausência de um discurso público sobre orientação sexual. Em outras palavras, como gestos, olhares, palavras e silêncios negociam relações sexuais e afetivas, sem que seja necessário que a sexualidade ganhe o arcabouço de uma “scientia sexualis” e mesmo a explicitação da linguagem verbal.

Quando Amarildo me contou, portanto, eu compreendi instantaneamente a comunicação silenciosa que ele narrara. Mas, na hora, Amarildo não compreendera o que seu iniciador estava insinuando.

[...] Então, eu não entendi nada. Ele, “Epa, não, mas... como te chamas?”. Eu, “Amarildo”. “Tá bom, Amarildo. Então podemos ser amigos. Não implica nada. Não estivemos juntos na festa e eu estou a te confundir. Mas assim quero ser seu amigo”. Eu, “Opa, não tem problema...” Ele, então, “Peço teu número”. E eu dei meu número do telefone. Aí ele “Tá bom, tá bom”. Chegou o chapa. Eu entrei no chapa. O chapa saiu. De repente, ele me mandou uma mensagem “Olha, Amarildo, eu gostei muito de ti. Eu gostei, eu quero estar contigo. Tem quer ser muito rápido. Eu quero estar contigo”. Eu vi aquela mensagem, e “Ih!” Meu coração bateu tão forte... “Será que já chegou a vez?” (gargalhadas) [...] Na hora, eu até pensei que era uma pessoa bêbada, porque ele veio com aquela alegria um pouco estranha. Sim, então eu pensava que ou ele bebeu... Só que, quando ele já me mandou aquela mensagem, [...] dali já é que eu comecei já... tudo ficar claro. Então, eu pensei a maneira como ele pegou a minha mão, já começou tudo na mente (Entrevista com Amarildo, Matola, 23/08/2018).

Daí em diante, eles marcariam um encontro na casa daquele que viria a ser o “iniciador” de Amarildo. Acontece que, uma vez lá, Amarildo não fazia ideia do que fazer sexualmente com o homem.

- Então eu cheguei, entrei, começamos a conversar, conversar, conversar, conversar, conversar. E ele... começamos a nos beijar. Só que eu não sabia que ao beijar, o que vou fazer depois? Estás a ver? Eu não sabia. Eu só tinha aquilo de... Estás a ver? Mas não sabia o que eu ia fazer.

- Você diz sexualmente...?

- [...] Sim. Sim, não sabia. [...] Então, ele, no primeiro dia, só foi nos beijos, e nos pegamos. E não chegamos de fazer sexo, sexo, sexo. [...] Não, não chegamos a fazer [penetração]. Porque daí eu não sabia o que que eu podia fazer. Então, ele já é que ligou pra mim. Ele me perguntou “Afinal, [Amarildo], você... você está em que posição?”. E eu, “Eu não sei” (risos). [...] Era a primeira vez. “Eu não sei”. Ele diz “Não, mas você tem que saber. Afinal, que posição?”. Ele, “Aqui [na frente] você dá, aqui [atrás] você levar”. Então daí, “você tem que ter posição”. Estás a ver? Então, aquele senhor quase... ele é que me [iniciou]. Sim, porque ele foi sentar comigo já assim... Ele me explicou como funciona. Yeah. “Assim, assim, assim. Então, você [Amarildo], deve você se sentir onde você se sente melhor, né?”. Sim, então daí eu tentei pra levar [ser passivo]. Mas só que eu fiquei... Não sentia nenhum prazer. Eu era só sentir dor, sem prazer nenhum. Então, ele disse que “epa, se é assim, você não pode levar mais. Você não pode levar mais porque uma coisa você tem que sentir prazer. Aquilo que você sente é aquilo mesmo que você quer”. Eu, “Sim”. Então eu parei daquele lado que chamam de “ativo” (Entrevista com Amarildo, Matola, 23/08/2018, grifo meu).

Assim, pudemos ver como Amarildo, que é um homem tímido, precisou ser abordado por um homem por ele interessado para que pudesse ter a sua primeira experiência homossexual aos 34 anos. E mais do que isso: seu iniciador não apenas o introduziria às práticas homossexuais em si, mas a uma certa gramática que a conforma. De forma semelhante ao que relata Foucault (1988FOUCAULT, Michel. 1988 [1976]. História da sexualidade 1: A vontade de saber 19. ed. Rio de Janeiro: Graal.) para o “dispositivo da aliança” em sociedades pré-burguesas, em que impera uma sexualidade iniciatória de transmissão do segredo, é somente nessa experiência concreta, vivida e corporificada que Amarildo e outros interlocutores meus de diferentes gerações (Miguel 2019MIGUEL, Francisco. 2019. Maríyarapáxjis: Silêncio, exogenia e tolerância nos processos de institucionalização das homossexualidades masculinas no sul de Moçambique. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília.) aprenderiam que em uma relação homossexual pressupunha-se que os homens deveriam se dividir em dois papéis, o que “leva” (que é passivo) e o que “dá” (o ativo).4 4 Se no português brasileiro o verbo “dar” frequentemente significa o ato de ceder - seja à penetração na vagina, seja no ânus - entre vários de meus interlocutores moçambicanos o “dar”, ao contrário, significa “penetrar”, enquanto a ação do passivo é a de “levar”.

Amarildo não é ingênuo, tais funções sexuais entre homens é que não são de conhecimento inato ou óbvias e precisam, como qualquer linguagem, ser aprendidas. Assim, é muito antes que Amarildo aprende as funções mais amplas de gênero, de homens e mulheres.5 5 Seja na cidade ou no campo, como trata Boellstorff alhures (2005:67, 102), a subjetividade gay não é, em vários contextos culturais, transmitida através da família ou de outras instituições tradicionais. Por exemplo, quando, em um episódio que ele guarda com certa mágoa, uma vizinha teria enfatizado nele características femininas, porque ele era dado às tarefas domésticas.

- [...] E, [Amarildo], você já sofreu alguma vez preconceito em relação a isso? Alguém já mexeu com você? Alguém meio desconfiado... alguém já falou alguma coisa, soltou alguma gracinha?

- [...] Eu ainda jovem, miúdo, houve uma vez em que uma senhora chegou a falar umas palavrinhas numa de “Hmm, esse aqui parece uma mulher. Nem vai casar este aqui. Eu estou a dizer que este aqui nem vai casar”. Estás a ver? [...] Mas essas palavras eu guardei. Até essa senhora já faleceu. Mas eu não esqueço essas palavras... [...] porque eu fazia trabalho de casa. Esse trabalho de casa. Ajudava a minha mãe, fazia... Então eu fazia tudo, tudo de casa. Então ela sempre olhava para mim, sempre olhava pra mim, até que nesse dia chegou, disse: “Esse aqui, tudo o que ele faz, esse aqui parece uma mulher. Esse aqui nunca vai casar" (Entrevista com Amarildo, Matola, 23/08/2018).

Como veremos ao longo deste artigo, as eventuais subversões (nem sempre voluntárias) do gênero, em contextos recentes nas classes populares da capital do país, não estão necessariamente conectadas à ideia de homossexualidade. E ainda que eu conhecesse um histórico vocabulário na África Austral para o campo semântico da homossexualidade, através de outras pesquisas (Junod 1927; Moodie & Ndatshe 1994MOODIE, Dunbar. T. & NDATSHE, Vivienne. 1994. Going for Gold: Men, mines and migration. Berkeley: University of California Press.; Epprecht 2004EPPRECHT, Marc. 2004. Hungochani: The History of a Dissident Sexuality in Southern Africa. Montreal: MCGill-Queen’s University Press.), sempre que eu perguntava sobre isso aos meus interlocutores nas cidades da Matola e Maputo, em sua maioria falantes de changana - fossem homossexuais ou não - eles me falavam que o termo mais antigo e conhecido que usavam era maria-rapaz. Tal expressão claramente advinha da língua portuguesa, mas somente depois eu entenderia que meus interlocutores se referiam ao neologismo maríyarapáxji, sobre o qual me debruçarei neste artigo e que acaba lhe dando título.

Língua e ativismo LGBT em Moçambique

Em campo, deparei-me também com uma cartilha-glossário produzida pela LAMBDA, em que todos os termos do campo semântico LGBT estavam apenas em português e em inglês (vide figura abaixo). Com seus respectivos textos explicativos, os termos do glossário dispõem-se na seguinte ordem: Bissexual, Desvio sexual, Drag queen, Gay, Gênero, GLS, Heteronormatividade, Heterossexismo, Heterossexual, Homofobia, Homossexual, HSH, Identidade de gênero, Lésbica, LGBTI, Minorias sexuais, MSM, No armário, Orientação sexual, Passivo/Activo, Simpatizante, Transgênero e Travesti. A cartilha, na seção Está errado!, condena o uso dos seguintes termos: paneleiro, panilas, larilas, rabietas, maricas e fufas.

Figura 1
Cartilha da LAMBDA com um glossário das categorias identitárias-sexuais e outras.

Em entrevista a mim, o diretor da LAMBDA, Danilo Silva, explicou que eles não haviam pensado em introduzir na cartilha os termos em línguas locais. Ele ressalvou, porém, que, apesar de alegar que eles não teriam como fazer a pesquisa necessária para descobrir os termos nas várias línguas locais, este seria um projeto interessante. Quando insisti sobre o porquê de se utilizarem prioritariamente palavras em português na cartilha, Danilo revelou um projeto de unidade nacional que atravessa diversas organizações governamentais e não governamentais em uma nação jovem e multilinguística como Moçambique: “Porque o português é a língua nacional. Não queríamos entrar em debates de favoritismo de uma língua em detrimento das outras”. Assim, fica evidente como projetos de institucionalização da nação e da homossexualidade se intercruzam e colaboram mutualmente, como aliás já fora registrado em outras paragens pós-coloniais (Boellstorff 2005BOELLSTORFF, Tom. 2005. The gay archipelago: sexuality and nation in Indonesia. Princeton: Princeton University Press.). E, mais do que isso, como o português se torna cada vez mais a língua franca das novas subjetividades LGBT que despontam neste território.

Uma espécie de “homonacionalismo” diferente daquele conceitualizado por Jasbir Puar (2007PUAR, Jasbir. 2007. Terrorist assemblages: homonationalism in queer times. Durham: Duke University Press.), pois construído não pelos Estados nacionais ocidentais como diacrítico aos países não ocidentais, supostamente fundamentalistas e homofóbicos (Butler 2015BUTLER, Judith. 2015. “3. Política sexual, tortura e tempo secular”. In.: BUTLER, Judith, Quadros de Guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira.:192), mas como política do próprio movimento LGBT africano pós-colonial, que tem como uma de suas características mais recorrentes a defesa do nacionalismo e da unidade nacional (Miguel 2014MIGUEL, Francisco. 2014 “Levam má bô”: homosexualidades entre os sampadjudus da Ilha de São Vicente de Cabo Verde. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília., 2020MIGUEL, Francisco. 2020. “Por uma Política com ‘Respeito’: A institucionalização da homossexualidade no programa radiofônico moçambicano Café Púrpura”. Caderno de Estudos Africanos, v. 40:141-166.).6 6 Há, porém, expectativas divergentes, que pretendem uma “africanização” dos discursos sobre a homossexualidade em África. Ver Tushabe (2013) e Chitando e Mateveke (2017). A aderência do movimento LGBT moçambicano ao léxico colonial-europeu para tratar a própria sexualidade não tem como intuito, porém, apenas o projeto de unificação nacional através de uma língua supostamente comum, mas também serve ao projeto de modernização e “globalização do queer” (Cruz-Malavé & Manalansan IV 2002CRUZ-MALAVÉ, Arnaldo. & MANALANSAN IV, Martin. F. 2002. “Dissident sexualities, Alternative Globalisms. Queerness is now global”. In: CRUZ-MALAVÉ, Arnaldo. & MANALANSAN IV, Martin. F., Queer Globalizations: Citizenship and the Afterlife of Colonialism. New York: New York University Press .), cuja linguagem e o termo “gay” parecem bem sucedidos globalmente (Leap 1996LEAP, William. 1996. Studying Gay English: How I Got Here from There. In: E. Lewin & W. L. Leap (eds.), Out in the Field. Urbana: University of Illinois Press. pp. 128-146.:139; Leap 2002:128; Valentine 2002VALENTINE, David. 2002. “We’re ‘Not about Gender’: The Uses of ‘Transgender’”. In: W. L. Leap & E. Lewin (eds.), Out in theory: the emergence of lesbian and gay anthropology. Chicago: University of California Press. pp. 222-245.:224), projeto este que, no entanto, por vezes se depara com importantes contradições internas em África (Lobo & Miguel 2015LOBO, Andréa. & MIGUEL, Francisco. 2015. “I want to marry in Cabo Verde”: Reflections on homosexual conjugality in contexts. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, 121:37-66.).

Tendo como axioma a universalidade do homoerotismo (Murray & Roscoe 1998MURRAY, Stephen & ROSCOE, Will. 1998. Boy-Wives and Female Husbands: Studies of African Homosexualities. New York: Palgrave.; Neill 2009NEILL, James. 2009. The Origins and Role of Same-Sex Relations in Human Societies. Jefferson: McFarland & Company.) e que ele precederia a língua portuguesa neste território, uma das minhas mais inquietantes buscas em campo era descobrir como na língua changana, falada por meus interlocutores tsonga no sul de Moçambique, eram nomeados os sujeitos que tinham esse tipo de desejo ou prática erótica (se é que o eram). Tsonga é uma categoria que engloba algumas etnias do sul de Moçambique (Moodie & Ndatshe 1990MOODIE, Dunbar. T. & NDATSHE, Vivienne. 1990. Migrancy and male sexuality on the South African gold mines. In: M. B. Duberman; Vicinus, M. & Chauncey Jr, G. (eds.), Hidden from History: Reclaiming the Gay and Lesbian Past. New York: Penguin Books. pp. 411-425.:419) e que tem ressonância inclusive na intelectualidade local (Loforte 2000LOFORTE, Ana. 2000. Género e Poder: Entre os Tsonga de Moçambique. Maputo: Promédia.). Há muita porosidade etnolinguística no sul de Moçambique (Moodie & Ndatshe 1994:121) e muitas pessoas ainda insistem em chamar as línguas locais, como o changana, de “dialeto”, dada a perversa herança colonial. Mas a língua changana é uma espécie de língua franca falada principalmente na Província de Maputo e é inteligível para outras línguas bantos locais. Escolho analisá-la por esta ser não apenas a língua materna da esmagadora maioria de meus interlocutores, mas também por ser usada por grande parte das classes populares no cotidiano da Província de Maputo.

Procurando pela categoria nativa

Em conversa com Paula, um/uma machangana de 36 anos que ora se identifica como “homossexual”, ora como “mulher”, eu descubro que o nome popular usado há décadas na capital de Moçambique para nomear os homens afeminados - e mais recentemente os homossexuais - é maria-rapaz ou maríyarapáxji. Isaías, homossexual de 28 anos de idade, meu principal interlocutor de campo e que foi quem me apresentou Paula, concorda. Ele afirma que, mesmo no “dialeto” local, maríyarapáxji é o nome realmente usual em Maputo: “No dialeto, nós chamamos assim mesmo”. Eu insisto com a pergunta e tanto Isaías como Paula confirmam que maríyarapáxji era o termo do próprio changana para se referir a pessoas como eles.

- Mas não tinha nenhuma palavra do changana?

- É changana sim. [...] Maríyarapáxji: que se faz de mulher. [...] É Maria, praticamente. É Maria.

- É maria, mas tem “rapaz”

- Mas tem “rapaz” sim. Estás a ver? Então... usavam muito essa expressão (Entrevista com Paula, Matola, 30/04/2018).

Como se verá adiante, a expressão maria-rapaz também é utilizada para lidar com mulheres masculinizadas. Mas neste trecho fica claro a partir da fala de ambos os interlocutores - que, vale dizer, não só são nascidos em Maputo e fluentes em changana, mas utilizam esta língua sempre que se encontram entre os seus - que o changana falado na região metropolitana da capital incorporou a palavra maria-rapaz para lidar com homens afeminados, que se supõe ou não terem práticas homoeróticas. Quem me confirma tal informação é Caetano, um rapaz bissexual que, vindo de um contexto rural do interior da Província de Inhambane, no sul de Moçambique, disse ter visto, aos 24 anos e pela primeira vez na vida, um sujeito assumidamente gay.

- E você nunca tinha visto nenhum gay?

- Não! Se eu vi, mas não sabia que ele era homossexual. Cresci sabendo que existe maria-rapaz. Geralmente, lá na província, chama assim: maria-rapaz. É tipo assim um homem que tem, assim, comportamentos meio afeminados. Maria-rapaz não que aquela pessoa tenha relações com pessoas do mesmo sexo. Então, por isso que eu digo nunca tinha visto um gay. Sei lá. O nome maria-rapaz eu já ouvia (Entrevista com Caetano, Maputo, 21/06/2018, grifo meu).

Tal fala parece corroborar um achado do antropólogo e missionário Henri Junod que, em sua clássica etnografia nesta mesma região, realizada na virada do século XIX para o século XX, conta um episódio de discussão e zombaria entre garotos de Mafumo contra os da Matola, no qual a acusação de afeminação como algo pejorativo parece já presente, mas nela não parecia haver necessariamente a conotação homossexual.

Os de terras diferentes insultam-se e batem-se. Os garotos de Mafumo gritam aos da Matola: “Vagabundos da floresta! Comedores de caracóis, jiboias, lagartos e cágados!” (todos são carnes duvidosas!) - em rhonga: Valala! Vadi va tihumba ni tihhlarhu ni makwuahlhe ni timfutro. Os da Matola respondem-lhes: “Seus maricas! Vestidos de pano!” (Vavasati matrimba mpela), pois os habitantes de Mafumo, vivendo nos arredores da cidade, substituíram há muito tempo o cinto de caudas dos selvagens por um pedaço de pano que prendem à cintura e desce até os joelhos (ladula) (Junod 1927 citado em Thomaz & Gajanigo 2009THOMAZ, Omar & GAJANIGO, Paulo (orgs.). 2009. In: Henri Junod, Usos e Costumes dos Bantu. Coleção Clássicos em Antropologia: Usos e Costumes dos Bantu. Campinas: IFCH/Unicamp.:92-3, grifos do autor),

A tradução de vavasati como maricas parece fazer mais sentido se considerarmos que a palavra maricas, naquele contexto tsonga, não acusaria homossexualidade, mas afeminação. O uso de pano na cintura pelos meninos de Mafumo, aos olhos dos meninos da Matola, estaria associado às mulheres adultas (vavasati). O próprio Henri Junod foi enfático ao defender que a homossexualidade era exógena àquele contexto banto (Junod 1927 citado em Mott, 2005MOTT, Luiz. 2005. “Raízes Históricas da Homossexualidade no Atlântico Lusófono Negro”. Afro-Asia, 332005:9-33.:10).7 7 Os discursos sobre a exogenia da homossexualidade em África e os debates teóricos que eles têm suscitado podem ser acessados em Mott (2005) e Kaoma (2009). Para uma síntese exaustiva da questão, ver Miguel (2019). Como veremos mais para a frente, no entanto, contemporaneamente, o termo maricas pode ser, a depender da geração, idade, o tom de voz, entre outras variáveis, associado à homossexualidade.

Mas se Paula me diz que maria-rapaz serve hoje para nomear aqueles que são maria, ou seja, mulher, Isaías adverte que a expressão contém a palavra rapaz, ou seja, são mulheres que são rapazes ou vice-versa. Assim, a expressão maria-rapaz também é usada em Moçambique para mulheres masculinizadas, tenham ou não elas relações homoeróticas. Em 1995, uma matéria do semanário Savana traz a figura de “Mimi: maria rapaz de Manjacaze”, que jogava basquetebol “com a mesma destreza e capacidade de encestar igualzinha à dos rapazes” (Jornal Savana, 08/05/1995, p. 20).

Figura 2
A ambiguidade da expressão “maria rapaz” aparece nos jornais (“Maria rapaz de Manjacaze”,Jornal Savana, 08/05/1995JORNAL SAVANA. 1995. “Maria rapaz de Manjacaze”, 08/05, p. 20.)

Maria-rapaz é uma ambígua expressão de origem portuguesa que, em meu trabalho de campo na Província de Maputo, vi adquirindo pelo menos dois significados: Ela pode tanto designar uma mulher que tem hábitos, trejeitos ou gostos masculinos (na maior parte das vezes, em um sentido elogioso quanto à força e à bravura daquela mulher), como pode ser usada para, pejorativamente, acusar um homem de ser afeminado. A reportagem acima parece claramente fazer o primeiro uso. Apesar de documentada (Timbana 2011TIMBANA, António. 2011. De “Maria-rapaz” a lésbicas: trajectórias identitárias de mulheres que fazem sexo com outras mulheres. Licenciatura em Antropologia, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique.; Nhassengo 2013NHASSENGO, Sérgio. 2013. Identidade Gay e Lésbica: estratégias e tácticas usadas pelos homossexuais para contrapor o estigma e marginalização social na cidade de Maputo. Trabalho de conclusão de curso de Licenciatura em Sociologia, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique.; Sitoe 2017SITOE, Bento. 2017. Dicionário Português-changana. Maputo: Texto Editores.), nunca vi a expressão ser usada para se referir a uma mulher assumidamente lésbica, mas o seu uso nesta situação estaria dentro do campo semântico de possibilidades, já que ela descreve, ainda que elogiosamente, uma certa subversão de gênero. No entanto, seu uso no dia a dia maputense - certamente pela minha inserção como pesquisador de temática LGBT e meu estímulo para assim percebê-la - sempre foi mais visto por mim, quando dirigido aos homens gays e às mulheres trans, principalmente como uma gíria antiga.

Mas, além destas, há outras palavras do changana que vi explicitamente serem acionadas no discurso de meus interlocutores, ainda que com pouca frequência. Ntombhíxingájaha é um exemplo. Ntombhí significa moça e jaha seria rapaz. Aglutinando - como é da natureza das línguas banto - ntombhíxingájaha seria algo como moça com comportamento de rapaz, uma fórmula aparentemente idêntica à expressão portuguesa maria-rapaz, quando utilizada em relação a mulheres masculinizadas. O uso de ntombhíxingájaha, assim como o seu contrário pouco ressonante jaha xingá ntombhí,8 8 Há uma série de outras palavras ou expressões changanas do campo semântico da homossexualidade encontradas no dicionário de Bento Sitoe que, talvez por minha pouca imersão no interior profundo da Província de Maputo, jamais ouvi. A mais poética talvez seja kurhandzána hí rimbewú, que significaria aquele(a) que gosta da mesma semente/gênero (Sitoe 2017:413, 679). que, de acordo com o dicionarista Bento Sitoe (2017SITOE, Bento. 2017. Dicionário Português-changana. Maputo: Texto Editores.:40), significaria afeminado, parece também exprimir a dúvida de certos falantes sobre se determinado sujeito é intersexual ou homossexual. A palavra poderia ter sido usada desde sempre para dar nome aos que hoje, de acordo com a nomenclatura médica e das ciências sociais, são chamados de intersexuais e apenas posteriormente associada aos homossexuais. Infelizmente não é possível saber se se trata de uma tradução changana da expressão portuguesa, ou se, ao contrário, se trata de simples coincidência, haja vista que fórmulas deste tipo (feminino-masculino ou vice-versa) para nomear sujeitos com gênero/sexualidade ambíguos são encontradas em muitas línguas, que por muito tempo estiveram incomunicáveis entre si (Cardín 1984CARDÍN, Alberto. 1984. Guerreros, chamanes y travestís: Indicios de homossexualidad entre los exóticos. Barcelona: Tusquets Editores.; Theron 2019THERON, Liesl. 2019. “Trans Issues in Africa”. In: Global Encyclopedia of Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender, and Queer LGBTQ History. New York: Charles Scribner’s Sons. pp. 1614-1619.).

Em sua já mencionada clássica etnografia no sul de Moçambique, Junod menciona um tipo de bruxaria, chamada kudambikela, que consistiria em enfeitiçar uma moça por ter rejeitado um pretendente. Um dos efeitos, segundo Junod, é de que a moça tivesse seus órgãos genitais femininos transformados em órgãos genitais masculinos (Junod 1927 citado em Thomaz & Gajanigo 2009THOMAZ, Omar & GAJANIGO, Paulo (orgs.). 2009. In: Henri Junod, Usos e Costumes dos Bantu. Coleção Clássicos em Antropologia: Usos e Costumes dos Bantu. Campinas: IFCH/Unicamp.:114). Na episteme machangana, que opera binariamente, mas que aparentemente presume esse sujeito que transiciona de gênero, parece haver uma ênfase na aparência e no comportamento externos e uma essencialização do corpo. Assim, no caso das mulheres lésbicas, a expressão maríyarapáxji denota que se trata de uma mulher (referindo-se ao corpo e ao sexo dela), mas que se comporta ou tem aparência de um rapaz; e no caso de homens afeminados, maríyarapáxji descreve que o sujeito se comporta ou tem aparência de uma mulher, mas biológica e anatomicamente é uma pessoa masculina, ou seja, em ambos os casos “É maria, mas é rapaz”.

Além de maríyarapáxji e ntombhíxingájaha, ditas serem pertencentes à língua changana (ainda que maríyarapáxji tenha maior ressonância entre os falantes), encontrei atualmente em Maputo ainda outra palavra para nomear os homossexuais: xintavana. De acordo com vários dos meus interlocutores, esta palavra seria uma importação da língua zulu, um povo também de origem banto que vive disperso por alguns países da África Austral. Contaram-me em entrevista que esta palavra seria mais comum entre os estrangeiros sul-africanos, os moçambicanos que vivem nas fronteiras da região Sul e aqueles que, ainda que não as habitem, têm uma certa circulação pelos países que fazem fronteira com Moçambique (em especial a África do Sul). Esta palavra parece ser semelhante às encontradas pelo historiador Marc Epprecht (2004EPPRECHT, Marc. 2004. Hungochani: The History of a Dissident Sexuality in Southern Africa. Montreal: MCGill-Queen’s University Press.) no vizinho Zimbábue.

Em sua pesquisa com os chiShona no Zimbábue, Epprecht encontrou o termo hungochani para a homossexualidade. Entre os tsonga do sul de Moçambique e da planície do Transvaal, encontrou os termos tintoncana e bukhonzana para meninos-esposas ou casamento das minas (Epprecht 2004:3). No dicionário de Sitoe (2017SITOE, Bento. 2017. Dicionário Português-changana. Maputo: Texto Editores.), afirma-se na Introdução que “as terminações -ana e -ani são usadas indiferentemente pelos falantes” (Sitoe 2017:V) e que para o termo sodomia a palavra em changana seria vunkoncana, enquanto para o praticante, o sodomita, seria nkonkana (Sitoe 2017:692). Ambas, porém, sem ressonância entre meus interlocutores falantes do changana na Província de Maputo.

Outra categoria do changana que também escutei em campo é núna, que significa marido (ou wanúna, que significa homem). Tal categoria foi registrada, já no início do século passado, por Junod (1927) para denominar, entre eles mesmos, os maridos dos meninos-esposas machangana nas minas da África do Sul (Harries 1990HARRIES, Patrick. 1990. “Symbols and Sexuality: Culture and Identity on the Early Witwatersrand Gold Mines”. Gender & History, 23:318-336. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1468-0424.1990.tb00103.x
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). A noção de marido dirigida a esses homens que se relacionam com os gays ou mulheres trans pelos próprios continua operante no sul de Moçambique, ainda que não seja dirigida exclusivamente a eles, mas aos maridos de forma geral.

Conversando com os amigos de Isaías, Pablo (22 anos) e Pedro (19 anos), ambos ainda estudantes, sobre suas experiências com a discriminação que sofrem na escola por serem homossexuais, eles me revelaram que xintavana, diferente de maria-rapaz é sempre uma categoria de acusação e, para eles, seria mais dolorido de ouvir do que gay. Eles me explicam o porquê.

Francisco (F): Mas esses xingamentos são sempre em português ou tem algum nome em changana?

Pablo (P1): Tem em changana! Até [seria] mais preferível [ser chamado em português]...

Pedro (P2): Xintavana (risos)

Isaías (I): [?] porque sabe que isso machuca mais do que chamar de “gay”.

P1: Nghwendzá

F: O que significa nghwendzá?

P2: Tipo impotente, tipo uma coisinha assim...

I: Uma pessoa que não tem função. Uma função sexual.

[...]

F: Que mais?

P2: “Maricas”, “maria-rapaz”, “princesa”, essas coisas...

F: Mas por que você falou que machuca mais? Alguém falou que machuca mais...

I: Machuca mais porque em português... Porque em changana é mais pesado para quem recebe, na verdade.

F: Por quê?

I: Porque as palavras não vêm leves. Tudo machuca.

P1: E é uma palavra pra chamar a atenção. Aquelas senhoras já conhecem aquele nome. Os novos têm alguns que não falam changana. Não conhecem essa palavra. Quando ouvem, estão a rir. Não sabem o que estão a rir. E a pessoa que sabe vai calar.

I: É assim. Uma coisa é: quando a pessoa, por exemplo, te chamar de “gay”, às tantas...

P2: Até não dói muito. [...] Às tantas, você está com a sua avó que não fala a língua portuguesa, mas quando já te chamam de xintavana, ela sempre vira: “Olha, depois quero saber o que está a acontecer”. É só isso...

F: Ela percebe...

P2: Mas “gay”... Ah, “gay” eu gosto (gargalhadas gerais). (Entrevista com Pablo e Pedro, Maputo, 07/05/2018).

Da conversa, eu destaco alguns pontos. Ao consultar tanto meus interlocutores quanto o dicionário de Sitoe (2017SITOE, Bento. 2017. Dicionário Português-changana. Maputo: Texto Editores.:192), percebo que nghwendzá, originada do changana, significaria solteiro sem qualquer tom pejorativo se dirigida a um rapaz novo, que ainda não teve a oportunidade de se casar. Mas adquire uma conotação bastante pejorativa de celibatário ou impotente se dirigida a um homem mais velho ou a um homossexual de qualquer idade, pela vergonha de sua situação perante a sua comunidade, que tem o casamento, mas principalmente a descendência, como um valor fundamental. Seu significado então revela de forma explícita a conotação culturalmente negativa de um sujeito que se supõe abdique de valores locais fundamentais como o da geração de descendentes.9 9 Isso também ocorreria na língua swahili, falada no norte de Moçambique. Nesta língua, hanithi, um termo derivado do árabe hanisi, foi descrito por Krapf e Madan como significando impotência sexual e era usado para nomear homens que se travestiam (citado em Bleys 1995:171). Fora do continente, também não é incomum a associação entre impotência e homossexualidade (Boellstorff 2005:112).

O segundo ponto é sobre meus interlocutores preferirem a categoria gay à categoria xintavana. A razão para isso, segundo alegam, é que xintavana, por ser uma palavra de uma língua local próxima, nomeadamente o zulu, seria de fácil compreensão para os mais velhos, especialmente os parentes, que muitas vezes não são fluentes em português ou em outras línguas e que, ao ouvirem-na, saberiam se tratar de algum termo depreciativo. Assim, perante os sêniores, é preferível ser chamado de gay, uma categoria estrangeira, mais recente e, portanto, mais desconhecida do que xintavana. O contrário seria verdadeiro entre os mais jovens. Serena Dankwa observa fenômeno semelhante entre mulheres homoafetivas em Gana.

os casais mais jovens do mesmo sexo muitas vezes se referem uns aos outros como “dears” ou “sweethearts”, palavras inglesas associadas à modernidade e ao amor romântico. Uma vez que esses termos são usados por casais heterossexuais júniores, eles são muito menos evidentes do que o termo “supi” (Dankwa 2009DANKWA, Serena. 2009. “‘It’s a Silent Trade’: Female Same-Sex Intimacies in Post-Colonial Ghana”. NORA - Nordic Journal of Feminist and Gender Research, 173:192-205. Disponível em: https://doi.org/10.1080/08038740903117208
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:198).

Por fim, meu interlocutor Isaías, em outra oportunidade, explicou-me a diferença entre operar com algumas categorias locais - segundo ele, “mais pesadas” - e categorias estrangeiras, supostamente “mais leves”. Tal classificação pode não ser um colonialismo linguístico internalizado - como sugere Matekeve (2017:128)10 10 Apesar de aventar a hipótese de um “colonialismo interno” na rejeição, principalmente das mulheres zimbabuanas, por categorias da língua Shona em suas práticas sexuais, Maketeve apresenta ao fim do seu texto uma outra hipótese instigante: “Eu defendo que a recusa [das mulheres] em usar expressões sexuais Shona pode, de fato, estar profundamente enraizada na necessidade de rejeitar serem categorizadas como objetos passivos no ato sexual. Chimhundu (1995) mostra como as ações dos verbos transitivos que indicam fazer amor só podem ser realizadas por homens como sujeitos. Por exemplo, as palavras ‘kusviira’ ou ‘kuisa’ que, quando traduzidas vagamente, referem-se ao ato de inserir; e apenas um homem pode 'inserir' e a mulher passa a ser aquela a ser inserida ‘kiuswa’ [...] Pode-se argumentar que, longe de desejar um ‘inglês respeitável’, as mulheres heterossexuais estavam interessadas em uma ‘subjetividade sexual liberada/não dominada’?” (Mateveke 2017:130, tradução livre). e alguns linguistas moçambicanos quando lhes coloquei a questão - mas pode tratar-se de algo bem mais singelo: o falante de uma determinada língua conhece e compartilha, pela experiência, o histórico de estigmatização e o uso discriminatório que uma determinada palavra ou expressão adquire. A palavra possui um “peso” que acaba por ser neutralizado quando traduzida para outra língua. A título de exemplo, para alguém exclusivamente lusófono, a expressão foda-se provavelmente será, aos ouvidos, mais “pesada” do que fuck you, ainda que geralmente signifiquem a mesma coisa. Para um machangana, Ku kunsana na wene (quero fuder com você) provavelmente será, para ele, mais “pesado” do que sua tradução em português ou o I wanna fuck you, do inglês.

Língua, gênero e sexualidade no sul de Moçambique

Com exceção de duas em inglês, as mais de trinta entrevistas que fiz foram conduzidas em língua portuguesa por, infelizmente, eu não ter conseguido, no curto tempo em que fiquei em Moçambique, ganhar fluência em changana.11 11 Em meus seis meses contínuos de campo, cheguei a fazer aulas com meu principal interlocutor, mas precisaria de uma imersão muito mais intensiva e prolongada para aprender verdadeiramente. No entanto, creio apresentar aqui uma contribuição ao campo. Mas mesmo nas entrevistas em português, fosse espontaneamente, fosse por sugestão minha, meus interlocutores soltavam palavras e frases em changana, em especial quando eu lhes perguntava como as pessoas falavam sobre homossexualidade nesta língua. Nesse sentido, cito dois diálogos que demonstram que os vocativos que demarcam identidades sexuais, no discurso ordinário de meus interlocutores, são na maioria das vezes preteridos às formas literais e descritivas que conectam pessoas a um gênero específico:

- Suponhamos que é um bar. E eu passo. Quando estou aí a passar - é uma coisa que acontece normalmente, no meu dia a dia. Passo. Ouço aqueles zum zum zuns... “I Alexiya! Alexiyani a Xingalavi Ku maha Wa nuna Axilava kuhamba Wa sati”. Digamos que, num sentido de uma linguagem que entendas, dizem que “Aquele ali não queria ser um homem, mas sim queria ser mulher” (Entrevista com Leandra, Matola, 13/04/2018, grifo meu).

- Tipo “Ege! Lechiya Xi yambala Ingui Wa nuna! Ege Xiti Elha Wa nuna. I Marikas. Marikas Uá ne AngaDani”. E tem um moço ao lado, que é gay. Também chamam assim. Só que ele tem mulher. Não sei se chamam de quê aqueles que têm mulher também. [?] Chamam de nomes, sei lá. [...] “A Wa nuna Waku Xonga Atitxintxa Aholhoka ahamba Wa sati Mina Aningue pfumeli. Mina nada”. “Um homem assim, bonito, tá tentar a se mudar, ser uma mulher. Não tem vergonha” (Entrevista com Céia, Matola, 15/08/2018, grifos meus).

No primeiro trecho, Leandra, que é uma pessoa em pleno processo de transição de gênero (masculino para o feminino), faz a tradução literal para mim da provocação que costuma ouvir de alguns homens nas ruas: “Aquele ali não queria ser um homem (Wanúna), mas sim queria ser mulher (Wasatí)”. A frase em changana seria comum em seu cotidiano, quando pessoas na rua a acusariam de não ser homem pelo seu jeito afeminado. Apesar do caráter ofensivo da sentença, não há aqui qualquer vocativo específico para nomear a homossexualidade ou a transexualidade, mas apenas a interpelação do sujeito e a sua inscrição dentro das categorias binárias de gênero preexistentes, denunciando a sua subversão.

Já no segundo trecho, quando há o uso de um vocativo específico, este é um neologismo. Assim, marikas, como em português, quer dizer homossexual ou simplesmente afeminado em changana. Mas nesta também se pode perceber claramente a ênfase na inscrição do sujeito a partir das noções binárias de gênero. Céia conta sobre um homem que, ainda que fosse casado com uma mulher, tinha práticas homoeróticas. Reproduzindo o que teria ouvido de pessoas a respeito, Céia diz: “Age! Aquilo veste como homem. Age! Se faz de homem! [Mas] é maricas (I marikas)!”. Depreendemos que o homem se fazia passar por homem, principalmente na forma como se apresentava socialmente, mas era sabido ser marikas. Então, ela reproduz o julgamento social que teria sido feito, quando o tal homem resolve largar a esposa e se apresentar de forma mais afeminada socialmente: “Não tem vergonha esse. Um homem bonito. Se transformou drasticamente e se fez mulher. Eu não posso aceitar. Eu não”.

O tal homem se fez mulher, não se fez homossexual. Assim, podemos ver como as formas descritivas e generificadas parecem, na prática discursiva cotidiana de meus interlocutores, ganhar mais preponderância do que propriamente os nomes, os vocativos e os adjetivos identitários específicos para uma subjetivação homossexual. O que parece é que, desde os tempos etnografados por Junod (1927), sempre foi mais uma questão de gênero do que de sexualidade. Mas isto parece cada vez mais se transformar à medida que há a adesão a uma episteme do “dispositivo da sexualidade”, apontado por Michel Foucault (1988FOUCAULT, Michel. 1988 [1976]. História da sexualidade 1: A vontade de saber 19. ed. Rio de Janeiro: Graal.), da ressonância do trabalho de organizações como a LAMBDA, de recentes pesquisas científicas locais sobre o tema (Bagnol 2009BAGNOL, Brigitte. 1996. Diagnóstico da Orientação sexual em Maputo e Nampula. Maputo: Embaixada do Reino dos Países Baixos.; Timbana 2011TIMBANA, António. 2011. De “Maria-rapaz” a lésbicas: trajectórias identitárias de mulheres que fazem sexo com outras mulheres. Licenciatura em Antropologia, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique.; Mugabe 2015MUGABE, Nelson. 2015. Marcadores de diferença e jocosidade entre sujeitos LGBT na cidade de Maputo. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Universidade Estadual do Rio de Janeiro., 2019MUGABE, Nelson. 2019. A graça da desgraça: socialidades e processos de engajamento no universo LGBT em duas experiências etnográficas no sul global Rio de Janeiro e Maputo. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Universidade Estadual do Rio de Janeiro.; Cambaco 2014CAMBACO, Olga. 2014. Fronteiras nas Relações com Homossexuais no Sector Privado: Um estudo sobre os discursos e práticas de discriminação no ambiente laboral. Trabalho de conclusão de curso de Licenciatura em Sociologia Universidade Eduardo Mondlane.; para citar algumas) e de certas legislações nacionais, tal qual o novo código penal moçambicano que retirou o crime de “vícios contra a natureza”, ou a nova lei do trabalho, que proibiu a discriminação por “orientação sexual” (Costa 2021COSTA, Gustavo. 2021. “Reflexões sobre o legado colonial português na regulação das práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo em Moçambique”. Anuário Antropológico, v. 46, n. 2:152-170. Disponível em: https://doi.org/10.4000/aa.8325.
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).

Mas os vocativos não eram e não são atualmente inexistentes. De um ponto de vista histórico, se a antiga palavra sokisi parece ter sumido, no século passado, do léxico dos machangana - pelo menos no de meus interlocutores - vi surgir no vocabulário local não apenas palavras estrangeiras como homossexual e gay, mas também os neologismos marikas e maríyarapáxji. Outras palavras do changana, como núna e nghwendzá, são há mais de um século ressignificadas para dar conta do campo semântico da homossexualidade. A primeira para nomear os maridos, entre outros, dos homossexuais; a segunda para, eventualmente, interpelar acusatoriamente um homossexual. Xintavana, por sua vez, surgiria como uma gíria depreciativa de homossexual, que seria ao mesmo tempo estrangeira e familiar para os falantes de changana. E o último modismo, dado o sucesso das produções audiovisuais e cinematográficas brasileiras, é chamar os homossexuais com os nomes de personalidades e personagens brasileiros, tais como Félix, Pablo Vittar etc.

Breves considerações sobre gênero como categoria analítica em África

O léxico é um fenômeno dado histórica e socialmente. Segundo Rudi Bleys (1995BLEYS, Rudi. 1995. The geography of perversion: male-to-male sexual behavior outside the West and ethnographic imagination, 1750-1918. New York: New York University Press.:20), a palavra bougre só passa a denotar homossexualidade no século XIV na Europa, assim como a palavra pederasta só foi associada a esta prática na primeira metade do século XVIII (Bleys 1995:83). Em África, o autor aponta como em várias línguas africanas não há uma palavra que traduza homossexualidade (Bleys 1995:168). Com o changana, podemos ver os significados que as palavras ligadas ao campo semântico sexual adquirem na história para um determinado grupo social, como essas palavras desaparecem e como novas surgem. Assim, não busquei aqui encontrar categorias nativas pré-coloniais que dessem conta de uma eventual subjetividade homossexual pretensamente pré-colonial, mas quis aferir como na atual episteme machangana - que pude parcialmente acessar através da língua - as pessoas instituíam o fenômeno do homoerotismo, da travestilidade e dos sujeitos que os incorporam. Nesse sentido, parece que há um privilégio das noções de gênero em face das noções de sexualidade. E aqui será preciso marcar uma posição na discussão contemporânea sobre gênero no continente africano, a saber, entre aqueles que veem a categorização de gênero como uma imposição colonial e aqueles que defendem que as distinções de gênero são universais em sua forma estrutural.

O changana faz parte do tronco das línguas banto, que não têm a obsessão generificadora que têm, por exemplo, as línguas latinas, como o português. Em outras palavras, não há nas línguas banto, como o changana, as flexões de gênero nos nomes, nos pronomes, nos adjetivos etc. De acordo com Junod, inclusive nomes próprios usados pelos tsonga no início do século passado, com exceção de dois - que significariam rapaz e moça - poderiam ser usados por ambos os sexos (Junod 1927 citado em Thomaz & Gajanigo 2009THOMAZ, Omar & GAJANIGO, Paulo (orgs.). 2009. In: Henri Junod, Usos e Costumes dos Bantu. Coleção Clássicos em Antropologia: Usos e Costumes dos Bantu. Campinas: IFCH/Unicamp.:73). Há de se lembrar, no entanto, que mesmo entre os tsonga havia desde o início do século XX a generificação de certos objetos rituais e armas de guerra (Junod 1927 citado em Thomaz & Gajanigo 2009:317, 366) e que o nomes com o prefixo Mi significariam filha de, só sendo empregados em mulheres (Junod 1927 citado em Thomaz & Gajanigo 2009:388). Assim, no caso tsonga, mesmo antes de serem fluentes em português - a divisão sexual do trabalho (e a divisão do trabalho sexual) criou os papéis sociais de homens e mulheres, ou seja, em termos ocidentais, papéis de gênero. Em razão disso, o universo banto (o poder político, o vestuário, as tarefas diárias, os contos, os tabus etc.) também já havia sido dividido e organizado em duas categorias do pensamento que se opunham e se completavam, e que claramente apresentavam hierarquias, ainda que relativas: homem (wanúna) e mulher (wasáti) (Junod 1927 citado em Thomaz & Gajanigo 2009).

Desta forma, não estamos autorizados a concluir que não haja uma noção nativa de gênero que preexistisse ao colonialismo ou que esta não seja uma categoria de análise aplicável aos povos africanos, como sugere Oyèrónké Oyèwúmí (2004)OYÈWÚMI, Oyèrónké. 2004. “Conceptualizing Gender: The Eurocentric Foundations of Feminist Concepts and the challenge of African Epistemologies”. In.: African Gender Scholarship: Concepts, Methodologies and Paradigms. CODESRIA Gender Series. Vol. 1. Trad. Juliana Araújo Lopes. Dakar: CODESRIA . pp. 1-8. a partir do caso yorubá. Faço aqui as mesmas críticas brilhantemente apresentadas às conclusões de Oyèwúmí tanto pela antropóloga argentina, Rita Segato (2003SEGATO, Rita. 2003. “Género, política e hibridismo en la transnacionalización de la cultura Yoruba”. Estudos Afro-Asiáticos, 252:333-363. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0101-546X2003000200006
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), quanto pela intelectual nigeriana Bibi Bakare-Yussuf (2003)BAKARE-YUSSUF, Bibi. 2003. “‘Yorubas’s don’t do gender’: a critical review of Oyeronke Oyewumi’s The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses”. African Identities, 11:121-142.. Particularmente no que concerne à análise feita por Oyèwúmí da cultura yorubá, concordo com Segato (2003) sobre 1. a falta de evidências empíricas pré-coloniais que sustentariam a tese de Oyèwúmí; 2. o argumento insustentável de compartilhamento de qualidades entre machos e fêmeas como evidência significativa de indistinção de gênero; além de 3. imprecisões na aplicação pela autora de conceitos como “dimorfismo” e nas contradições sobre “hierarquia” entre certas categorias de pessoas. Finalmente, concordo com aspectos epistemológicos mais gerais levantados por Bakare-Yussuf sobre 1. a impossibilidade de extrair apenas da língua uma verdade essencial e imutável sobre uma cultura; e 2. o falso isomorfismo entre língua e realidade social, em outras palavras, só porque a diferença (hierarquizada) de gênero não está inscrita na língua, isto não quer dizer que ela não esteja presente na realidade social.

Considerações finais

Espero ter demonstrado brevemente o que significam e como são operadas as principais categorias da língua materna de meus interlocutores para o campo semântico da homossexualidade. Sobre este acervo lexical changana, chegamos à conclusão de que a categoria mais usada é maríyarapáxji, um neologismo da língua portuguesa no changana. Como maríyarapáxji, marikas apenas recentemente teria agregado o sentido de homossexual, mas costumeiramente significava afeminação quando dirigida a um homem; maríyarapáxji também nomeia masculinização quando dirigida a uma mulher. Com menor frequência, ntombhíxingájaha e xintavana são duas outras categorias que ocorreriam no discurso de meus interlocutores. Porém, tentei demonstrar como, no geral, os falantes de changana, no discurso cotidiano, tendem a utilizar termos mais descritivos, associando os agentes não a termos identitários-sexuais, mas ao gênero a que pertencem ou a que deveriam pertencer (wanúna e wasatí). Isto revelaria não apenas a importância de manter a categoria analítica “gênero” em contextos africanos, mas também uma epistemologia outra para lidar com o fenômeno das práticas homoeróticas e da homossexualidade. Concluo demonstrando, no entanto, como o acervo lexical em língua portuguesa parece atualmente preferível não só no processo de institucionalização da homossexualidade promovido pela LAMBDA, mas como meus próprios interlocutores machangana preferem acionar as categorias estrangeiras ou os neologismos para se referirem à sua sexualidade e à dos outros, em um processo de agregação do “dispositivo da sexualidade” ao da “aliança” (Foucault 1988FOUCAULT, Michel. 1988 [1976]. História da sexualidade 1: A vontade de saber 19. ed. Rio de Janeiro: Graal.).

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Notas

  • 1
    Meu trabalho de campo para a tese doutoral consistiu em um período de seis meses contínuos, de março a setembro de 2018, na Província de Maputo. Ao total, foram realizadas 36 entrevistas formais, entre pessoas LGBT e pessoas não LGBT, brancos, negros e mestiços, moçambicanos e estrangeiros, ativistas sociais, acadêmicos, artistas, trabalhadores urbanos, e quem mais estivesse disposto a comigo conversar sobre sexualidade. Por fim, pude acompanhar, de forma mais sistemática, não apenas o dia a dia administrativo da LAMBDA, a principal organização LGBT do país, mas também o cotidiano de alguns de seus agentes comunitários e beneficiários LGBT em seus trabalhos na periferia da cidade, frequentar algumas de suas festas, seus cultos religiosos e conhecer alguns de seus lares e famílias.
  • 2
    Guambe e Chipenembe, em suas recentes pesquisas, trazem casos em que nem os ativistas pelos direitos sexuais-reprodutivos em Moçambique parecem conhecer o tema e o vocabulário da homossexualidade (Guambe 2017:78GUAMBE, Augusto. 2017. Dispositivos em Saúde: um olhar sobre equidade e direitos com homens que fazem sexo com homens em Moçambique. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.; Chipenembe 2018:85-6). Em minha tese doutoral demonstrei como a institucionalização da homossexualidade enquanto categoria nas classes populares moçambicanas é relativamente recente, tendo se consolidado apenas no final do século XX (Miguel 2019MIGUEL, Francisco. 2019. Maríyarapáxjis: Silêncio, exogenia e tolerância nos processos de institucionalização das homossexualidades masculinas no sul de Moçambique. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília.).
  • 3
    Nome dado em Maputo para transportes públicos, como “autocarros” e “ônibus”.
  • 4
    Se no português brasileiro o verbo “dar” frequentemente significa o ato de ceder - seja à penetração na vagina, seja no ânus - entre vários de meus interlocutores moçambicanos o “dar”, ao contrário, significa “penetrar”, enquanto a ação do passivo é a de “levar”.
  • 5
    Seja na cidade ou no campo, como trata Boellstorff alhures (2005:67, 102), a subjetividade gay não é, em vários contextos culturais, transmitida através da família ou de outras instituições tradicionais.
  • 6
    Há, porém, expectativas divergentes, que pretendem uma “africanização” dos discursos sobre a homossexualidade em África. Ver Tushabe (2013)TUSHABE, Caroline. 2013. “Decolonizing homosexuality in Uganda as a human right’s process”. In: Toyin N. Falola & Nana Akua Amponsah (eds.), Women, Gender, and Sexualities in Africa. Durham: Carolina Academic Press. pp. 147-154. e Chitando e Mateveke (2017)CHITANDO, Ezra. & MATEVEKE, Pauline. 2017. “Africanizing the discourse on homosexuality: challenges and prospects”. Critical African Studies, 91:124-140. Disponível em: https://doi.org/10.1080/21681392.2017.1285243.
    https://doi.org/10.1080/21681392.2017.12...
    .
  • 7
    Os discursos sobre a exogenia da homossexualidade em África e os debates teóricos que eles têm suscitado podem ser acessados em Mott (2005) e Kaoma (2009)KAOMA, Kaoma. 2009. Globalizing the Cultural Wars: U.S. Conservatives, African churches, and homophobia. Sommerville: Political Research Associates.. Para uma síntese exaustiva da questão, ver Miguel (2019)MIGUEL, Francisco. 2019. Maríyarapáxjis: Silêncio, exogenia e tolerância nos processos de institucionalização das homossexualidades masculinas no sul de Moçambique. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília..
  • 8
    Há uma série de outras palavras ou expressões changanas do campo semântico da homossexualidade encontradas no dicionário de Bento Sitoe que, talvez por minha pouca imersão no interior profundo da Província de Maputo, jamais ouvi. A mais poética talvez seja kurhandzána hí rimbewú, que significaria aquele(a) que gosta da mesma semente/gênero (Sitoe 2017:413, 679).
  • 9
    Isso também ocorreria na língua swahili, falada no norte de Moçambique. Nesta língua, hanithi, um termo derivado do árabe hanisi, foi descrito por Krapf e Madan como significando impotência sexual e era usado para nomear homens que se travestiam (citado em Bleys 1995:171). Fora do continente, também não é incomum a associação entre impotência e homossexualidade (Boellstorff 2005:112BOELLSTORFF, Tom. 2005. The gay archipelago: sexuality and nation in Indonesia. Princeton: Princeton University Press.).
  • 10
    Apesar de aventar a hipótese de um “colonialismo interno” na rejeição, principalmente das mulheres zimbabuanas, por categorias da língua Shona em suas práticas sexuais, Maketeve apresenta ao fim do seu texto uma outra hipótese instigante: “Eu defendo que a recusa [das mulheres] em usar expressões sexuais Shona pode, de fato, estar profundamente enraizada na necessidade de rejeitar serem categorizadas como objetos passivos no ato sexual. Chimhundu (1995)CHIMHUNDU, Herbert. 1995. “Sexuality and Socialization in Shona Praises and Lyrics” In: GUNNER, Liz & FURNISS, Graham (eds.), Power Marginality and African Oral Literature. Cambridge: Cambridge University Press. pp. 147-161. mostra como as ações dos verbos transitivos que indicam fazer amor só podem ser realizadas por homens como sujeitos. Por exemplo, as palavras ‘kusviira’ ou ‘kuisa’ que, quando traduzidas vagamente, referem-se ao ato de inserir; e apenas um homem pode 'inserir' e a mulher passa a ser aquela a ser inserida ‘kiuswa’ [...] Pode-se argumentar que, longe de desejar um ‘inglês respeitável’, as mulheres heterossexuais estavam interessadas em uma ‘subjetividade sexual liberada/não dominada’?” (Mateveke 2017:130, tradução livreMATEVEKE, Pauline. 2017. Language, Sex and Power Relations. In: BENNETT, Jane & TAMALE, Sylvia (eds.), Research on Gender and Sexualities in Africa. Dakar: CODESRIA. pp. 123-131.).
  • 11
    Em meus seis meses contínuos de campo, cheguei a fazer aulas com meu principal interlocutor, mas precisaria de uma imersão muito mais intensiva e prolongada para aprender verdadeiramente. No entanto, creio apresentar aqui uma contribuição ao campo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    13 Nov 2020
  • Aceito
    13 Out 2021
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