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Comendo com(o) Caipora: Encontros que “encantam” o sertão na Bahia1 1 A pesquisa de campo etnográfica, que me permitiu elaborar este artigo, foi financiada pelo Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet, Argentina) e levada adiante entre os anos de 2015 e 2020. Agradeço aos dois pareceristas anônimos por suas sugestões aguçadas que muito me ajudaram a melhorar o artigo, bem como à Sonia Sarra e minha então orientadora Florencia Tola por seus comentários à primeira versão do mesmo.

Eating with (as) Caipora: Meetings that “enchant” the sertão in Bahia

Comiendo con (como) Caipora: Encuentros que “encantan” el sertão en Bahia

Resumo

Na caatinga da Bahia, os encontros cinegéticos entre Caipora, a “mãe-das-caças”, e caçadores têm como relação privilegiada uma diplomacia cosmopolítica (prestar atenção, doar, respeitar, negociar, ser advertido). No entanto, um encontro solitário com Caipora exprime relações sociais que implicam tanto uma diferença como uma luta de perspectivas. Ou seja, na primeira (diferença), a comensalidade, iniciada pelos sedutores e enganadores sons (“ariar”) que afetam o sujeito (“idear”), é tomada como captura, pelos nativos, e como familiarização, por Caipora, pois ao comer com ela, a pessoa “se encanta”, desaparece “das vistas” da humanidade como a conhecemos e vira-Caipora; na segunda (luta), há uma disputa entre dois sujeitos para ocupar o ponto de vista, posto que a posição dêitica do “eu” não está dada de antemão, gozará dela quem for capaz de amedrontar o outro, que se tornará o “tu” neste encontro.

Palavras-chave:
Caipora; Caatinga; Virar-outro; Captura; Metafísica

Abstract

In Bahia’s caatinga, cosmopolitical diplomacy (paying attention, donating, respecting, negotiating, being warned) is a privileged relationship in cynegetic encounters between Caipora, the “mãe-das-caças” (mother-of-game) and hunters. However, a solitary encounter with Caipora expresses social relationships that imply both a difference and a struggle of perspectives. That is, in the former (difference), a commensality, defined by the seductive and deceiving sounds (“ariar”) that affect the subject (“idear”), is taken as capture by the natives and as familiarization by Caipora, since by eating with it, a person “becomes enchanted”, disappears das vistas (from sight) of humanity as we know it and becomes Caipora; in the latter (struggle), there is a dispute between two subjects as to which occupies the point of view, since the deictic position of the “I” is not pre-given and whosoever is able to frighten the other will accede to it, while that other will become the “you” in this meeting.

Key Words:
Caipora; Caatinga; Becoming-other; Capture; Metaphysics

Resumen

En la caatinga de Bahia, los encuentros cinegéticos entre Caipora, la “mãe-das-caças”, y cazadores tiene como relación privilegiada una diplomacia cosmopolítica (prestar atención, donar, respetar, negociar, ser advertido). Sin embargo, un encuentro solitario con Caipora exprime relaciones sociales que implican tanto una diferencia como una lucha de perspectivas. Es decir, en la primera (diferencia), la comensalidad, iniciada por los seductores y engañadores sonidos (“ariar”) que afectan al sujeto (“idear”), es tomada como captura, por los nativos, y como familiarización, por Caipora, pues al comer con Caipora la persona “se encanta”, desaparece “das vistas” de la humanidad como la conocemos y vira-Caipora; en la segunda (lucha) hay una disputa entre dos sujetos para ocupar el punto de vista, puesto que la posición deíctica del “yo” no está dada de antemano sino que gozará de ella quien sea capaz de amedrantar al otro, que se volverá el “tú” en este encuentro.

Palabras Clave:
Caipora; Caatinga; Virar-otro; Captura; Metafísica

[...] Aqui, os mais velhos contavam, Gabriel, que tinha a dona do mato, chama Caipora. Ela faz o cabra se perder e ela é a dona das caças, ela é a vaqueira das caças. (Seu Raimundo, 87 anos, pastor de cabras)

Uma espera tão boa… e um encontro

O vaqueiro Seu Mario andava pelas serras do povoado Barrinha, mas não foi trabalhar como de costume no encalço de alguma vaca, senão que foi à floresta de caatinga a temperar o espírito na solidão das serras, um dos bons efeitos provocados pela arte da caça. Entre as árvores e o entardecer nesta terra de uso comum para o pastoreio e para a atividade cinegética (ainda que alguns caçadores cacem às escondidas em propriedades privadas), ele chegou em sua bicicleta com uma espingarda, uma faca e uma corda. Pôs-se cômodo no tronco de uma árvore, esperou que baixasse mais o sol, que as cores se misturassem, pois essa era a hora das cutias (Dasyprocta leporina). Havia três ou quatro. “Aí eu tô lá, só esperando a cutia entrar… o sol baixando, baixando… ô meu deus, essa cutia não vem? Uma espera tão boa!”.2 2 Utilizo aspas duplas (“ ”) e itálico para sinalizar as afirmações literais e mais extensas dos nativos, acessíveis por meio de gravações de áudio. As aspas simples (‘ ’) são empregadas para minhas recriações do discurso nativo, sempre a partir de notas de campo; estas também servem para anunciar a fala de uma pessoa no interior do relato de outra mais extenso (recuado mais ao centro da página). Nada. Estava por ir-se, quando, de repente, “um cabra deu três machadadas numa árvore: ‘pa pa pa’!”, onde, de acordo com sua memória, havia uma colmeia de abelhas mandassaias (Melipona quadrifasciata).

Enquanto imaginava estar saboreando um delicioso mel em suas papilas, meu amigo lamentou-se de não o ter recolhido antes. Tudo por esperar a cutia! Em parte, arrependia-se e chegou a pensar que o homem do machado tinha levado todo o mel consigo. Logo, pensou melhor e julgou que era bastante improvável que um homem, àquela hora, que ele não viu chegar, tenha dado três golpes de machado e que esse “pa pa pa” tenha sido suficiente para derrubar a árvore “que caiu… ahhh...”. Era verdadeiramente insólito: “mas meu Deus, uma hora dessas, esse cabra derrubar esse pau aqui com três machadadas?! Minha nossa senhora! E foi a imburana [Commiphora leptophloeos] da mandassaia!… e eu lá em cima da espera, né… chega fiquei… aquilo… me arrepiando daquele negócio”.

Por que o espanto do hábil rastejador, paciente caçador e valente vaqueiro? Não seria a primeira vez que um caçador sozinho no mato se deparava com algo fora do comum, com algo que se lhe escapava o entendimento, pois, como dizem os nativos, a ‘caatinga tá cheia de pantim’, anda povoada de desconhecidos. Desceu da árvore, sua vista já não podia com a escuridão, pegou um caminhozinho que apenas via “varedinha varedinha velha”, até chocar-se com sua bicicleta e nela montou. “Toquei no mundo. Cheguei em casa, contei à mulher. Amanhã de madrugada eu vou pra espera”. Caçar também é esperar e “a espera” é um lugar em que o pressuposto nativo determina como o ponto de um encontro que acontece, inclusive antes de efetuar-se pragmaticamente.

Antes que o amarelo chegasse a tingir o horizonte com seu tom, Seu Mario já estava surcando com sua bicicleta os estreitos caminhos de terra novamente. Reconheceu o lugar por uma grande árvore que havia perto da espera, um velho angico (Anadenanthera colubrina), tão grosso que muitos braços seriam necessários para rodeá-lo. “Cheguei lá, subi na espera”, dali mesmo escutou um “erhhh erhhh...”, era uma grande cutia roendo a mandioca, alcançou com um disparo e com uma cutia. Princípio de suficiência, uma das regras-Caipora, como veremos mais adiante. Carregava no lombo a curiosidade, “agora vou olhar onde o cabra derrubou o pau”. E? O senhor encontrou a árvore caída?, perguntei-lhe. “Ô! Ainda hoje eu caço!”. Nem marca do machado, nem da árvore no chão, nem em outras árvores, nem sequer rastros na terra.

O episódio do qual Seu Mario foi uma testemunha privilegiada não havia deixado registros materiais, tão só indícios sobre seu corpo. E o que foi isso então?, pergunto curioso. “Num sei que mistério foi aquele não. Num sei, num sei dizer. Lá caçador sempre vê”. O quê? Será Caipora?, digo. “Não, pantim assim né: bate cachorro que fica ‘câiâim câiâim...’ e corre pra onde tá o dono… o dono olha e não tem nada... E acontece mais quando tem cutia”. Claro, pergunta cândida de antropólogo, pois nenhum caçador deveria ver esta entidade conhecida como dona-do-mato, mãe-das-caças e vaqueira-das-caças. Melhor é registrar tão somente evidências de sua presença, de seus efeitos que entram no amplo leque sensitivo chamado “pantim”: sons estranhos, enganações, desorientação repentina e temporária, cachorros aturdidos, chorando, entre outros não saberes.

Esse estranho encontro de Seu Mario deu-se no interior do estado da Bahia, em algum lugar do território de fundo de pasto, perto das serras do munícipio de Jaguarari (10° 15’ 50’’ S / 40° 11’ 45” W), a 450 quilômetros da capital Salvador e a 100 quilômetros de qualquer cidade com mais de 80 mil habitantes. Desde agosto de 2015, ali estive durante onze meses realizando trabalhos de campo para elaborar uma etnografia para uma tese de doutorado em antropologia social, nas comunidades rurais Volta, Lagoa do Caldeirão, Arapuá e no distrito urbano de Pilar. As comunidades rurais são conformadas majoritariamente por pastores de cabras e de vacas, por pequenos agricultores e aposentados, que se autorreconhecem como comunidades tradicionais de fundo de pasto.3 3 A partir do ano 2013, o estado da Bahia (Lei 12.910/2013) passou a reconhecer aos povos tradicionais o direito ao uso comum da terra, através de contrato de concessão de uso real do solo por noventa anos renováveis, limitado aos interesses da União sobre o subsolo. Para uma revisão histórica ver Marques (2016) e Reis (2010). Todas foram certificadas como tal pelo governo da Bahia, com exceção de Lagoa do Caldeirão, que ainda espera a documentação oficial da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Governo do Estado da Bahia (Sepromi).

Ali, um visitante atento encontra-se com personagens conhecidos e respeitados por manipular grandes e diversos poderes, como os rezadores, que podem atuar como curandeiros e/ou feiticeiros; os raizeiros, especialistas nativos em beberagens curativas; os adivinhos de futuros próximos; e os vedores ou veeiros, pessoas que sentem e marcam a posição do encontro de várias veias de água subterrâneas, sua profundidade e indicam a quantidade de água por hora que sairia se, eventualmente, fosse perfurada uma cacimba ou um poço. É possível observar diferenças internas entre esses “catingueiros”,4 4 Utilizo o termo caatingueiro por ser um dos modos nativos de autoidentificação. Ainda que esses povos tradicionais da caatinga sejam conhecidos como sertanejos pelo senso comum nacional e que este termo possa ser de uso vernacular como atestam algumas etnografias, nenhuma das pessoas com as quais tive contato na caatinga, espontaneamente, autoidentificou-se como tal, seja porque o sertão sempre está em outro lugar, longínquo, como dizem, seja porque há outros termos com os quais se adscrevem, de acordo com outros critérios, como lugar, ofício, parentesco, relação com espíritos, entidades, com o dom etc. Com isso não estou desconsiderando os sentidos que o termo “sertão” possui, por exemplo, na obra de Guimarães Rosa e em outras etnografias que muito ressoam entre meus interlocutores (o que permitiria uma comparação entre os mundos sertão e caatinga): zona do desconhecido, do perigoso, povoado de agências etc. Meu foco está no fato de que os modos de vida desses nativos estão impregnados de diversas relações em que se vinculam feitiçaria e mercado de trabalho, xamanismo e agrotóxicos, relações de parentesco e devir-não-humano, axiomática capitalista e teorias epidemiológicas e escatológicas sobre o fim do mundo, de modo que apoiar-me no conceito sertanejo, estrangeiro demais para suas práticas e ideias, parece-me limitado para pensar o pensamento caatingueiro. Estes nativos da caatinga são “gente”, “povo-da-roça”, “povo-do-mato” que dorme, sonha, briga e se ama como qualquer outro povo, mas não como qualquer outro povo. pois os que rastejam indícios de animais, pessoas, chuva, seca, curas com plantas e veias d’água, futuros (adivinhos) e modos do fim das Eras diferem entre si e de si mesmos ao longo de sua vida por conta do dom que ‘trazem na carne’ e da força infinitesimal imanente a este. Ademais, distinguem-se dos caatingueiros que se metamorfoseiam em outros (árvore, cupinzeiro, pedra, laje, tronco, cobra, porco etc.) e dos que se relacionam apenas com espíritos aliados (guias) para curar e para enfeitiçar. O rezador Capuxo e seu espírito aliado resolveram dar um nome a este “coletivo intenso” (Almeida 2013: 23ALMEIDA, Mauro W.B. de. 2013. “Caipora e outros conflitos ontológicos”. Revista de Antropologia da UFSCar, 5 (1):7-28.): lapigado - um termo capaz de abrigar a diferença e ao mesmo tempo produzi-la e não turvar seu movimento (sobre este conceito, ver Lopes 2020LOPES, Gabriel Rodrigues. 2020. “Lapigados: la diferencia como antídoto al cautiverio de lo Uno”. Etnográfica [En línea] 24 (2):527-550.).

Diante de toda a diversidade da cosmo-prática nativa para rastejar5 5 Rastejar é uma relação entre humanos e agências sociais diversas que permite aos primeiros conectarem-se, relacionarem-se com e decodificar os modos de expressão dos segundos, e a estes existir nos primeiros através de uma afetação corporal. Rastejar é uma antropologia nativa, um modo de tornar inteligível a relação entre um variado espectro de seres que habitam o cosmos, deles entre si e com humanos; uma deontológica ou ética do coabitar, de como agir e atuar neste mundo (Goldman 2021), e um componente central na fabulação de um povo por vir diante do “fim das Eras”. indícios e evidências, me limitarei aqui a tratar especialmente das experiências nativas com Caipora, a vaqueira-das-caças, dona-do-mato e dos animais-de-caça.6 6 Até onde tenho conhecimento, nesta região da caatinga baiana não há relatos de outras entidades protetoras ou donas de determinados lugares, de animais específicos, somente sinais de vínculos diretos. Por exemplo, ao deparar-se com um redemoinho, recomenda-se não lhe gritar “cebo cebo”, posto que isso o incomoda e, molesto, o redemoinho perseguirá quem dele caçoa, algo análogo sucede com o zumbi (ver nota 10). Alguns nativos relataram-me que ouviam dos mais velhos histórias sobre uma sereia que cuida do rio São Francisco, porém, dada a distância do rio (100 km) de seu cotidiano, não sabemos muito sobre tal sereia. Para outros etnógrafos, Caipora também é considerada pelos nativos como dona ou dono dos animais de caça, seja entre os indígenas Xakriabá (Barbi 2010BARBI, Rafael. 2010. A cultura, o segredo e o índio: diferença e cosmologia entre os Xakriabá de São João das Missões/MG. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais.), Pataxó (Cardoso 2016CARDOSO, Thiago Mota. 2016. Paisagens em transe: uma etnografia sobre poética e cosmopolítica dos lugares habitados pelos Pataxó no Monte Pascoal. Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.), entre os seringueiros (Dias 2004DIAS, Carla de Jesus. 2004. Na floresta onde vivem mansos e brabos: economia simbólica de acesso à natureza praticada na Reserva Extrativista do Alto Juruá - Acre. Dissertação de Mestrado, Universidade de Campinas.; Almeida 2013ALMEIDA, Mauro W.B. de. 2013. “Caipora e outros conflitos ontológicos”. Revista de Antropologia da UFSCar, 5 (1):7-28.) ou entre os “sertanejos” do estado do Ceará (Teixeira 2019TEIXEIRA, Jorge Luan. 2019. Caçando na mata branca: Conhecimento, movimento e ética no Sertão Cearense. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.), que a(o) conhecem pelo nome de caboquinho ou caçadorzinho. Tendo esses trabalhos prévios em conta, será possível observar certos paralelos com o material dos caatingueiros aqui apresentado, especialmente no que se refere às duas primeiras-regras Caipora - no entanto, ao buscar privilegiar o relato nativo, prescindirei, por ora, de realizar comparações e análises exaustivas entre tais trabalhos -; bem como notar o que creio serem diferenças etnográficas sobre o tema, a saber: a relação de comensalidade com Caipora.

Veremos que o primeiro acordo-Caipora, vastamente conhecido pelos nativos implica doação: recomenda-se ao caçador oferecer-lhe fumo, deixá-lo no tronco de uma árvore e falar: “esse tabaco é p’ras Caipora mostrar as caças” (normalmente, tatu-bola, tatu-peba, cutia, merim ou furão, rebaçã, veado, caititu), esperando que Caipora, efetivamente, mostre-as; o segundo, um princípio de suficiência (não avareza) em relação aos animais de caça. A teoria nativa afirma que Caipora pode alterar a realidade sensível humana por sua própria realidade sensível extra-humana se, porventura, um humano passa a seguir alguns de seus sons enganadores (uma imitação de humanos e/ou animais, como pássaros, insetos). Tal pessoa não se cansará de caminhar, não terá sede, nem fome e não sentirá o passo do tempo até que, retornando a si e assustada, dirá: “Caipora me ariou”. No entanto, tal situação pode agravar-se, pois além desta instabilidade ontológica momentânea, estabelecer uma relação de comensalidade com Caipora implica familiarização e produção de identidade. Assim, diferentemente dos nativos da caatinga do Ceará, para os quais o perigo da relação com Caipora representa um “assombro” e não uma perda do estatuto de humanidade (Teixeira 2019:375TEIXEIRA, Jorge Luan. 2019. Caçando na mata branca: Conhecimento, movimento e ética no Sertão Cearense. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.), de acordo com os caatingueiros da Bahia, ao comer com Caipora, o humano “se encanta”, ou seja, desaparece “das vistas” da humanidade como a conhecemos e vira-Caipora.

A primeira regra-Caipora: doar

Se Seu Mario não tivesse seguido a recomendação dos antigos de levar consigo um pedaço de “fumo de corda na capanga” e falar-lhe diretamente a ela, “ó, aqui é pra você dona do mato!”, quiçá teria outra história para contar-nos.

Quando você for para o mato de noite, você pega um pedaço de fumo, quando entrar no mato, você bota num toco. “Isso aqui é pras Caipora pra me amostrar a caça!”. Destá que ela tá escutando, está por ali. Aí você remexe a caatinga todinha, não tem problema nenhum, o cachorro acua a caça. Se você entrar de noite para caçar e não levar um agrado pra ela lá, você vai apanhar: cachorro cai na chibata, você fica todo besta... aí você só vê um bocado de vaqueiro correndo, você escuta um chocalho..., porque o vaqueiro quando vai campear tem um chocalho na garupa da sela, aí eles botam uma correia no badalo do chocalho, e o chocalho fica: ‘tim tim…’ É bem assim quando ela idea a gente, você escuta direitinho o chocalho batendo... vê o cavalo batendo a sela... ‘tã tã...’... dixe que num é vaqueiro nem nada, é ela! Nessa hora aí pode voltar pra trás, num adianta.

Enquanto essa conversa vai se desenrolando, Seu Raimundo puxa com uma corda a água da cisterna para dar às cabras. E onde ela guarda esses animais de caça?, pergunto. “Quem sabe!? Ela não guarda não, idea tudinho, fica tudo ideado!”.7 7 Aqui a afirmação de que Caipora “idea” os animais de caça tem um sentido análogo àquele relatado por João Coloral na etnografia de Teixeira (2019:359), em que um mau dia para o caçador pode ser entendido como resultado de uma ação de Caipora que encanta as caças, guarda-as. Os relatos nativos dão conta de diferentes ações de Caipora sobre a agência humana e dos animais de caça. Ao perder-se de modo ridículo na caatinga, uma situação impensável para um caatingueiro, é comum escutar a expressão, “me ariei” ou “fiquei ariado”. No entanto, a noção ariado complementa-se com a de ideado para esclarecer que esta foi uma ação direta de Caipora para afetar tanto o caçador que a insulta, ao negar-lhe oferecer um pouco de fumo ou passar por alto a interdição da caça, regulada por ela, bem como a um desafortunado caatingueiro que cruza as matas sozinho sem qualquer intenção cinegética. Como discutirei mais adiante, há outro sentido para o termo idear, aquele relacionado à comensalidade e à predação metafísica.

Ninguém se pergunta o que come Caipora diariamente, sabe-se que lhe agrada fumo, mel e alho, e que é mais provável que uma saída à caça seja exitosa para o caçador se este anuncia a sua intenção de doação, ainda que isto não signifique necessariamente que o caçador poderá ver a presa e que sairá ileso de sua empresa. Trata-se mais de uma doação amistosa, em que se espera a reciprocidade da entidade, que de um intercâmbio mercantil. Oferecer-lhe fumo é o mínimo que Caipora espera de um caçador, logo ela decidirá se os animais de caça se encontram bem distribuídos na caatinga. De modo análogo a um vaqueiro que cuida, protege, rasteja e guia seus animais de criação, Caipora também o faz e, se o caçador é atento, saberá que ela o interpela a desistir de sua empresa ao “campear”, pois ao zoar o badalo do chocalho (“tim tim... tã tã...”), ela sinaliza que está regressando as presas a suas tocas (“idea[ndo] tudinho”) ou melhor, tornando-as imunes às habilidades cinegéticas do caçador. Este terá então que se posicionar diante da evidente intencionalidade de Caipora, se insistir em sua atividade pode “levar tapa na cara; ela bate cachorro. Oxe! Batia cachorro que se mijava todo nos pés do dono e ninguém via”.

A segunda regra-Caipora: princípio de suficiência

A questão para Caipora é a suspeita de que a empresa cinegética tenha sido apropriada pela perspectiva moderna e se tornado usura (uma generalização do consumismo e do valor-dinheiro) - “o cabra vai p’r’o mato e se ele levar um fuminho e colocar na cabeça de um toco, se não é um cara usurento, porque se for usurento, mesmo que bote não pega caça. Ela cheira, mas não dá nada pra o cabra. Mas se o cara é humilde, sem usura, ela dá a caça”, afirma Seu Mario. Diante deste indício, nenhuma oferta lhe parecerá suficientemente justa e, muito menos, representará uma equação de equivalência, isto é, se doar é a regra-caipora primeira, a permissão e a presença evidente de animais de caça são intermitentes: nem sempre, nem em qualquer lugar. Não é suficiente então ao caçador ter os instrumentos necessários para a atividade cinegética (espingarda, boa pontaria, armadilhas e cachorros treinados) e saber usá-los, pois as presas podem não se deixar caçar, já que ideadas por Caipora.

Os nativos relatam que insistentes caçadores, não contentes com o resultado de sua caça, tentaram negociar com Caipora, ofereceram-lhe fumo, mas foram repreendidos por ela, primeiro verbalmente, logo fisicamente. Ela disse a um caçador: “não pode mexer nas coisas do mato, só dessa vez lhe dou”. Dias depois, o insaciável caçador regressa, deixa-lhe fumo, mas Caipora ideou os animais, afetando a maestria do caçador e de seus cachorros em encontrá-los. Ele tenta negociar, “mas dona Caipora, quero uma cacinha”. “Você tá teimando, não se brinca com a natureza”, responde-lhe, “a caça tá limitada, não dá pra caçar toda semana”. Ainda que leve fumo, a segunda-regra Caipora sinaliza claramente ao caçador que é necessário preservar parte do território de “fundo de pasto” para a manutenção reprodutiva dos animais silvestres e ela, enquanto dona-da-mata, protegerá estes refúgios,8 8 Para além da permissão ou não de Caipora à atividade cinegética em seu território, os próprios nativos estabelecem a quaresma como um tempo no qual caçar é proibido, desde a Quarta-feira de Cinzas ao Sábado de Aleluia. Podemos ver nisso o encontro pragmático entre a ontologia da caça dos caatingueiros e o modelo fonte-sumidouro como observado por Almeida (2013) no Alto Juruá, onde diferentes metafísicas podem chegar a efeitos similares na realidade, a saber: a teoria nativa coincide pragmaticamente com a teoria fonte-sumidouro por suas ontologias pressupostas: estabelecer uma zona temporal | espacial de interdição da atividade cinegética produz o efeito positivo de preservar animais de caça. pois como recorda o antropólogo Mauro de Almeida, Caipora necessita de “território para fazer isso” (2013:18ALMEIDA, Mauro W.B. de. 2013. “Caipora e outros conflitos ontológicos”. Revista de Antropologia da UFSCar, 5 (1):7-28.). Claro que, sozinha, ela não dá conta de manter seus domínios para a existência de animais de caça, pois, como muitas vezes afirmam os nativos ao referir-se tanto à mudança climática quanto ao sumiço das caças: “o homem quis ser o Herói, está aí o tempo mudado”.9 9 Para uma análise mais detalhada sobre este aforismo, ver os ensaios 5 e 6 de minha tese de doutorado (Lopes 2021).

O efeito pragmático que Caipora pode aplicar ao caçador que se burla de suas regras será, além de influenciar suas habilidades cinegéticas e a de seus cachorros, sobre o corpo. Mais ou menos nestes termos relatou-me Lucinha os dizeres dos mais velhos:

Caipora disse àquele homem: “eu já lhe avisei para você não voltar!”. É que esse homem voltava sempre e ela já lhe havia dado caça - explica-me Lucinha. Então, ela armou um estaleiro de pau, dispôs alguns no chão, na vertical, e outros em cima destes, na horizontal e, abaixo de todos, acomodou capim seco para acender o fogo. “Amarrou o homem com cipó-do-mato e jogou ele em cima do fogo e ficou sapecando o cabra de um lado e do outro”. Quando ele não aguentou mais, ela tirou ele de lá, retirou os cipós e disse-lhe que fosse embora. “Você não venha mais!”. Assim foi, o homem já estava desaparecido fazia dois dias, já estavam buscando-o. “Levou surra de fogo” por não respeitar a palavra de Caipora. Chegou na sua casa e disse à mulher que dali em diante não ia querer saber mais de caçar. “Essa é a história daqui, é mito né, porque Caipora não fala”.

Uma entidade da floresta de caatinga recolhe madeiras, corta-as e as distribui em posições diferentes, faz fogo, rapta uma pessoa, amarra-a, ateia-lhe fogo, controla sua torra e logo a desamarra e a liberta, não sem antes lhe dar uma reprimenda verbal. Tudo isto é mito para nossa narradora, o que expressa certo esforço teórico de sua parte para diferenciar o que fará papel de história experiencial e de história dos antigos, de natureza e de sobrenatureza. Todas estas ações de Caipora existem, fazem parte da “natureza”, da ordem do “dado” para os caatingueiros, de modo que elas podem afetar um caçador avarento e não devem ser consideradas como da ordem do mito, do “sobrenatural” (ao menos no sentido dado a este termo pela cultura da História oficial). A sobrenatureza de Caipora não é a ilusão de sua existência, senão sua existência não evidente e a indicação de que metamorfoses transespecíficas ocorrem, o que nos remete a um possível ainda desconhecido, que nada tem a ver com o irreal. Com a dona-do-mato, a “História” na caatinga vê-se interpelada constantemente a ponto de sucumbir diante do mito (Sztutman 2012): existe a potência de que se inaugure um tempo em que Caipora esteja fora da ordem do Tempo.

Ademais, a “palavra” deve ser um atributo exclusivamente humano, ela é produzida como convenção nativa para diferenciar humanos de extra-humanos e não deve então ser outorgada a Caipora, ainda que todos saibam que ela possa falar. Isto porque falar com Caipora é um sinal indubitável da emergência de uma desordem e indeterminação ontológica no mundo-caatingueiro, ou seja, da irrupção da história dos antigos na história atual. Lucinha, assim, introduziu-nos a diferença entre o tempo da historicidade humana e o tempo-mítico-Caipora, no qual a história experiencial de um caçador que ingressa no mundo-caipora é mítico, por estar em um espaço-tempo outro, o que não implica deixar de ser histórico, pois se refere a um regime de temporalidade outro. Ali a dimensão temporal não é a priori histórica, até porque, como diria Lévi-Strauss, “a história não é, pois, nunca a história, mas a história-para” (Goldman 1999:58GOLDMAN, Marcio. 1999. “Lévi-Strauss e os sentidos da história”. In: Alguma antropologia. Rio de Janeiro: Relume Dumará. pp. 55-64.). Portanto, Caipora, enquanto relação, nos desafia a pensar uma ideia de história e de tempo em que seja possível e real a suspensão da linearidade temporal, bem como o retorno do tempo mítico, pois este, ao fim, nunca passou. Como veremos adiante, nem Caipora, nem humanos são tomados como essencialmente dados, como mônadas ontológicas fechadas sobre si mesmas.

A experiência entre os caatingueiros

Os mais velhos contavam que ela fazia as coisas, mas ninguém via ela não. Sim, e muitos caçadores às vezes via... Tinha a história de um caçador esperando um veado num lugar, aí vem aquele vaqueiro aboiando o gado, aí vem aboiando... ele sobe numa árvore e de lá pensa: ‘oxente! Num tem gado aqui!’. E ele em riba de um umbuzeiro né... quando deu fé: tatu, peba, veado, gambá, caititu... [risadas]. ‘Lá vem um vaqueiro’ [pensa o caçador], mas era ela montada num veado... ataiava um daqui, ataiava outro d’acolá e vai tocando sobre a varedinha. Quando ela foi passando ele, tum!, o coice da espingarda na cabeça. E ela olhou pra cima: ‘destá bicho do umbuzeiro que amanhã tu me paga!’. Aí quando foi no outro dia, ele disse, ‘eu vou de novo para eu ver’. Aí foi. Quando ele deu fé, o barulho de novo. Menino, quando chegou, [ela] veio com uma vara de ferrão... empurrou a vara de ferrão nesse homem, e ele foi pulando de um galho p’ra outro e ela ferrão!... e pula de um galho p’ra outro e ela ferrão!... e o homem se agoniou, pulou do umbuzeiro no chão e correu... e ela meteu o veado atrás... o veado caiu…

Suponhamos que fôssemos nós sentados naquela árvore. Notamos que aparece no horizonte um veado com uma pessoa no seu lombo, sons vão surgindo. No entanto, pela silhueta e pelo barulho, parece ser um vaqueiro comum e corrente, como tantos outros que deve haver pela região, que vem aboiando10 10 Aboiar faz parte do acervo polifônico da caatinga que muitos nativos manipulam para comunicar-se com cabras, ovelhas, vacas, pássaros e para reconhecer sons aos quais não se deve responder, como os do zumbi, ou seguir, como os de Caipora. Zumbi é um ente que habita a caatinga e é reconhecido por seu zumbido que anuncia a temporada de chuva ou de seca. No entanto, se uma pessoa decide imitá-lo, sofrerá uma desestabilização temporária, a ponto de não reconhecer quem é, nem onde está. o gado, falando com ele para que o sigam, no entanto, por ali não há gado. Que estranho! Ao aproximar-se, o caçador se dá conta de que não é um vaqueiro-caatingueiro, senão a vaqueira-das-caças: é Caipora, ela mesma. Esse caçador está sozinho na caatinga com ela e deseja averiguar de que está feita aquela vaqueira. Por sua aparência, é uma pessoa, cavalga sobre um veado, aboia uma soma considerável de animais de caça, agarra outros que estão por desviar-se do caminho e os enfileira novamente rumo a algum lugar.

Gente é, não há dúvida, mas é preciso comprovar a equivalência de seus sentidos e sua reação com os da humanidade como ele conhece. Sua ideia é arriscada, dar-lhe um golpe. Sentir dor e ameaçar tal qual nós fazemos, ela também sente e pode, agora já sabe o caçador. É preciso experimentar novamente, ela mesma marcou o dia e a hora. A cena se repete e Caipora vem com sua vara-de-ferrão11 11 Lança de madeira com ponta de aço, regulável, utilizada por muitos vaqueiros (hoje em dia, é mais raro). O vaqueiro, sobre seu cavalo, recebe de outro a vara-de-ferrão e crava-a no pescoço do animal tantas vezes sejam necessárias, até que a rês se dê por cansada ou por morta. Se portar consigo uma vara-de-ferrão é uma das marcas de um vaqueiro, bem como “assinar” ou “ferrar” um animal de criação (gado, cabra) é uma marca da posse de um criador sobre elas, podemos agregar às outras evidências-Caipora uma marca particular de seu domínio sobre seus animais, como nos relata um caatingueiro na etnografia de Teixeira: “Cê assina uma criação, né?, cê faz uma forquilha [...] e cê pega muito tatu, às vezes, bem assinado. E acredito que aquilo ali é ele [Caipora] que assina” (2019:357, grifos meus) e, tal qual os criadores humanos, Caipora o faz nas “orelhas” dos tatus mais velhos (:358). na mão, a mesma que os vaqueiros usavam para perfurar gado bravo a fim de amansá-lo, e ataca o caçador, também um “bravo”, um selvagem por não respeitar sua autoridade. Ele se desespera, amedrontado, e sai em disparada, como muitas reses também o fazem, pois ficar seria manter-se atado à agência da vaqueira. E ela é mais-que-vaqueira, de modo que, nesta luta de perspectivas, é mais provável que sobre para o caatingueiro a posição relativa de presa.

Com esse relato, é possível saber algo mais sobre uma entidade que é evidentemente humana, mas que ainda preserva seu mundo possível não evidente. Em outras palavras, se bem que em meu trabalho de campo e nos de meus colegas que falam diretamente sobre Caipora (Dias 2004DIAS, Carla de Jesus. 2004. Na floresta onde vivem mansos e brabos: economia simbólica de acesso à natureza praticada na Reserva Extrativista do Alto Juruá - Acre. Dissertação de Mestrado, Universidade de Campinas.; Almeida 2013ALMEIDA, Mauro W.B. de. 2013. “Caipora e outros conflitos ontológicos”. Revista de Antropologia da UFSCar, 5 (1):7-28.; Cardoso 2016CARDOSO, Thiago Mota. 2016. Paisagens em transe: uma etnografia sobre poética e cosmopolítica dos lugares habitados pelos Pataxó no Monte Pascoal. Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.; Teixeira 2019TEIXEIRA, Jorge Luan. 2019. Caçando na mata branca: Conhecimento, movimento e ética no Sertão Cearense. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.), eu não tenha registrado qualquer relato acerca de uma considerável vulnerabilidade de Caipora em face da agência humana (obviando neste argumento o fato de que a destruição das matas implica a aniquilação de seu território), poderia inferir que para ela o encontro com os humanos pode ser arriscado, em seus termos, ainda que não saibamos muito bem como. Ou seja, se para uma pessoa que se vincula com Caipora por meio da comensalidade a possibilidade de perder sua humanidade é potencial (como veremos na próxima seção), de que sua materialidade se torne tão invisível quanto a dela, Caipora poderia se ver afetada por uma pessoa a ponto de alterar sua caiporidade?

Voltarei a esta pergunta na última seção deste artigo. Antes, é necessário salientar que a experiência ocupa um papel central na vida dos caatingueiros, pois é um indicador da verdade, isto é, a pragmática da experiência expressa uma verdade para além do falso ou verdadeiro, é uma “verdade suficiente” (Costa 2020COSTA, Alyne. 2020. “Por uma verdade capaz de imprever o fim do mundo”. Revista de divulgação científica coletiva.org, Emergência Climática, 27: s/p.). Caipora existe e é, simultaneamente, gente e entidade, porque diversos relatos dão conta dessa experiência; experiência que, ademais, anuncia os pressupostos ontológicos que permitem a continuidade de um encontro potencial com ela na caatinga. O “existir” de Caipora não cerra o que ainda pode existir, pois o “encontro pragmático” com suas evidências “opera como uma corroboração pragmática da ontologia” (Almeida 2013:13ALMEIDA, Mauro W.B. de. 2013. “Caipora e outros conflitos ontológicos”. Revista de Antropologia da UFSCar, 5 (1):7-28.).

Se a experiência ocupa um papel central na vida dos caatingueiros, é possível afirmar que sua “religião” é antes “fenomenológica [e antropológica] que teológica” (Lienhardt 1986:41LIENHARDT, Godfrey. 1986. Divinidad y experiencia. La religión de los Dinka. Madrid: Akal.), pois é a experiência e o potencialmente experimentável que permitem interpretar as diversas relações com a natureza, os animais, o cosmos, sobre o acionar individual e coletivo, e os sinais da atividade de extra-humanos (Goldman 2016GOLDMAN, Marcio. 2016. Mais alguma antropologia. Ensaios de geografia do pensamento antropológico. Rio de Janeiro: Ponteio.). E não uma “doutrina acerca da natureza intrínseca dos Poderes por trás desses sinais” (:41), nem uma lei sociológica nativa imutável, um subsistema orientado e determinante que o etnógrafo supostamente “achou”. Ainda que os caatingueiros possam ser considerados pelo cristianismo, por conta do batismo, como “católicos não praticantes”, por não frequentarem Igreja, e que muitos, mas não todos, possam considerar-se a si mesmos como “católicos”, diante de uma pergunta muito ampla, do tipo “qual é a sua religião?”, isto não permite estabelecer um vínculo imediato com o mito cristão que retirou a divindade da matéria, nem que o Gênese é a história oficial - pois “antes do mundo, bicho falava”, recorda Seu Mario, para logo agregar que foi com Deus que começou ‘nossa História’. Assim, se queremos sustentar a noção “religião” com a finalidade de tecer diálogos com outras religiões, o que figura no centro dela é a relevância que a experiência de profundidade com alteridades possui na vida dos caatingueiros, e isto é por si só uma experiência religiosa, muito longe de uma profissão de fé teísta.

Caipora e a perspectiva

Olhe, aqui teve um menino, irmão de uma mulher casada com um tio meu, ele se perdeu e passou três meses no mato perdido e o povo caçando aí nessa caatinga. Porque, primeiro as fazendas eram de quatro léguas de uma p’ra outra, três, duas, só caatinga... e o povo caçando esse menino e caçava... até que abusaram e largaram. Sumiu. Morrer não morreu porque nunca acharam, era gente no mato direto caçando... aí quando foi um dia, um cabra, um pernambucano, andava no mato e, quando saiu, debaixo de um umbuzeiro estava sentado o menino. Quando [o menino] viu ele, levantou e correu. E os cachorros vieram atrás e ele gritou, e os cachorros botaram nele e acuaram... Ele virou... mas rapaz... era um trem que nem os cachorros encostaram para pegar... que os cachorros eram valentes, pegavam qualquer bicho e ele não pegaram. E aí o homem chegou, e pegou, e ele mordeu o homem... uma fera, magro, só o couro e o osso... aí levou pra casa dos pais... Aí os pais pelejavam para ele falar, davam de comer e ele não comia, não comia mais, nem bebia... pelejavam pra falar e ele não falava. Com... assim... passando uns dias que o pai mais a mãe ficavam procurando... ele falou que estava mais uma moça, de uma perna só, uma moçona bonita do cabelão, mas só tinha uma perna. E disse: ‘só me acharam porque a moça não estava mais eu na hora. Se tá, não tinham me achado’. E ela tinha ido pra onde, perguntaram, ‘ela foi caçar licuri pra quebrar pra eu comer’ (porque ele não quis comer os carrapatos que ela lhe oferecia). Estava vivendo só de quebrar licuri e comer licuri. Três meses, tava só o carangaço. E lá... com três meses morreu.

E ela o levou por quê?

- Ele foi buscar a criação e ela pegou ele. Ia encantar, ia encantar!!

Como assim, encantar?

- Ia se encantar, ia se virar assim... ninguém via mais. Ia ficar que nem ela. Porque ela ninguém vê né?!

... E como é Caipora?

- Ói, essa Caipora era loira, muito loira, uma galega do cabelo loiro, muito bonita!!

“No sertão o que não existe, acontece!” Já nos disse Guimarães Rosa.

Antes de esboçar algumas ideias sobre este relato de Seu Mario, será útil trazer o que parece ser o mito primigênio que narra a possibilidade de se encantar e se desencantar, de um tempo em que fronteiras ontológicas pareciam ainda não existir. O mito narra os caminhos feitos por uma mãe em busca de seu filho, é o relato de uma vida no tempo da zona de “pré-individuação” (Simondon 2015SIMONDON, Gilbert. 2015. La individuación a la luz de las nociones de forma e información. Buenos Aires: Cactus.), de um pré-cosmos em que se davam relações sociais com redemoinhos, astros e onde certas qualidades estéticas produziam o devir-invisível.

Dizque a mãe do príncipe Calango Verde foi à Lua... dizque que era um moço muito bonito. Vou na lua. A mãe foi. [Porque] o filho sumiu, se encantou. Era tão bonito que se encantou. Aí ela foi na lua, fazia muito frio, ficou toda engiadinha. Voltou, e não achou o filho. Agora vou no sol, aí… ela entrava no vento, ói!… o redemoinho é quem levava ela [a mãe do príncipe]. Aí quando chegou no sol, dizque queimou a pele que engiou todinha a pele queimada! … quando voltou, disse ‘eu não vou mais atrás de meu filho. Já fui na Lua, não aguentei o frio, fui no Sol, me queimei, agora vou me aquietar!’. Aí o filho chegou, o filho desencantou. Chegou aonde tá a mãe. [Risadas]

De onde vem esta história, Dona Vanda?, pergunto a esta anciã e ex-curandeira. “É as histórias dos Trancoso”, me responde. De quem? “Era o gentio, gente que vivia no mato que nem bicho, bravos, era os caboco-brabo’’.12 12 Em referência aos ameríndios autoisolados na caatinga antes da expansão da pecuária no século XIX. O povo que inventava antigamente essas histórias. Esta mulher era do mundo, era gente, era do começo do mundo”, agrega Fumaça, seu genro.

O mito narra que o dispositivo de transformação se encantar inclui seu reverso, o des-encantar, e que a condição de reversibilidade subjetiva do primeiro tempo, o mítico, é potencialmente atualizável. Esta relação metamórfica primordial a que alude o se encantar chama a atenção para um meio de pré-individuação onde aquela relação é indiferente aos termos, ou seja, como tudo ali parece ser relação intensiva, o humano se encanta apenas pelo fato de ser belo, prescindindo de xamanismo, da interferência de deuses, de comensalidade, pois a diferença é infinita, está dada. Não há forma dada como pressuposto, a única premissa parece ser a de que não haja uma premissa dada de antemão. No mito anunciado pelos caboco-brabo, o príncipe se encantou e se desencantou, ao que parece por sua própria vontade, de modo autossuficiente, tal qual um xamã o faria.13 13 Gente se encanta, mas Caipora não desencanta, sua aparência física apreensível não é concebida pelos nativos como um desencantar, tal como relatado no mito. Uma vez virado-Caipora, o caatingueiro não recupera sua posição de sujeito na humanidade como a conhecemos, apenas uma humanidade aparente, quase sempre relacionada à imagem daquela mulher bonita. O “quase” é uma pausa na certeza, pois há relatos de encontros com um ser, com um sujeito desprovido de cabeça e membros, um “bicho” desencorpado que violentamente ataca um caçador que eventualmente burle a interdição da caça na época da quaresma. Será Caipora? “Quem sabe?! Num sei que bicho era aquele”, respondem-me os caatingueiros deixando em aberto o mundo-caipora. Assim, a “sanidade ontológica” (Viveiros de Castro 2021) desse povo parece recusar qualquer totalização, seja em torno da imagem-forma de Caipora, da sua presença omnipresente e agência/influência total, do que é seu mundo e do que ela faz nele, isto porque, sempre restará algo indiscernível, uma exceção, um fora. Caipora, ao conter em si mesma o horizonte de sua própria diferenciação, aumenta a diferença no mundo, ao multiplicar os sentidos da humanidade; ela é, pois, uma aliada contraentrópica diante da aniquilação ontológica produzida pela frente de expansão modernizadora. Portanto, quando o filho se desencanta, marca-se a diferença entre o mundo dos que foram encantados14 14 O termo “encantado” não deve ser confundido com aquele empregado por diversas comunidades afro-indígenas, aquelas vinculadas às religiões de matrizes africanas e à pajelança ameríndia para referir-se a seres com poderes extra-humanos que foram atraídos para habitar o mundo do “encante” ou o “mundo dos encantados”, como Caipora entre os sertanejos cearenses (Teixeira 2019) e entre os Pataxó (Cardoso 2016), que se soma à sereia, à mãe d’água; como o Anhangá e o/a Curupira na pajelança amazônica (Wagley 1988). Para fins deste artigo, emprego o termo encantado para referir-me às pessoas que Caipora “encantou”, desse modo, tal termo refere-se a um “coletivo” e não necessariamente, ainda que isto possa ser inferido, que os que se encantaram passaram a habitar o mundo do “encante”, lugar em que se tem “livre acesso aos segredos da natureza” (Teixeira 2019:398, grifos do autor). por Caipora e o de seus congêneres, simbolizado pela figura de sua mãe que “era gente… do começo do mundo”.

Note-se que na caatinga não é necessária a presença de um xamã para operar de mediador e agenciador diplomata entre mundos e tempos, ver-se ariado, ideado por Caipora e, logo, pôr-se a comer com ela atualiza os efeitos do pressuposto se encantar nesse encontro: sua virtualidade é o mundo possível-Caipora. Se ariar e ser ideado são formas nativas para descrever o momento em que uma pessoa entra em contato com o nível cósmico do mundo-caipora, um lugar física e metafisicamente perigoso; a diferença entre elas se dá pelo grau de afetação logrado por Caipora sobre um humano. “Se ariar” termina onde “ser ideado” começa, se no primeiro a pessoa consegue perceber, ainda que tardiamente, que está desorientada, que desconhece o que antes era conhecido; na segunda, ela não terá conhecimento sobre seu desconhecer, sobre sua desmemória, a não ser por uma interferência externa (a do humano de seu mundo referencial), possível pelo afastamento temporário de Caipora; aí o ideado saberá que estava comendo licuris (Syagrus coronataz) com uma mulher bonita e loira do cabelão.

Que o ideado tenha fugido arredio do vaqueiro denota que o processo de aparentamento com Caipora já estava muito avançado, tanto que a humanidade lhe despertava desconfiança, susto e ele estava disposto a brigar com o vaqueiro, pois este já lhe era estranho, era outro. Foi apenas logo depois de uma breve convivência com o vaqueiro que o ideado se deu conta do quão era esquisito o fato de que uma pessoa estava a oferecer-lhe como alimento carrapatos e, diante de sua recusa, ela saiu para buscar licuris. Os ouvintes daquele relato souberam ali que essa é uma característica extra-humana daquela mulher estranha. Ao contrário de um xamã que poderia, em tese, reunir-se com Caipora e com ela comer junto e ter um diálogo cerimonial a fim de solicitar-lhe alimento (caça) para seus pares humanos, o ideado parece não ter qualquer ideia de que está diante da mãe-das-caças, nem parece aceitar resignado sua posição nessa relação de captura afinizante, ainda que reconheça que ela tenha poderes extra-humanos (“só me acharam porque a moça não estava mais eu na hora. Se tá, não tinham me achado”).

E porque ele não fugiu quando ela saiu para buscar licuri, e só o fez acompanhado do vaqueiro? Será que ali ficou porque se amedrontou ou porque, tal como o cativo de guerra entre os antigos Tupi da costa atlântica, reconheceu seu lugar naquela relação?15 15 Na relação de vingança entre os antigos Tupi, que findará com a predação do cativo de guerra, o cronista Abbeville, no ano 1614, comentava surpreso: “embora lhes seja possível fugir, à vista da liberdade de que gozam, nunca o fazem apesar de saberem que serão mortos e comidos dentro em pouco” (Viveiros de Castro 2002a:234). Ou, mais bem, comer com Caipora altera-lhe tão profundamente sua própria ideia sobre o que é o mundo, que ser convivas dela já é estar em um outro mundo possível, onde ele aceita e se agarra à perspectiva-Caipora como própria? Talvez as três sejam possíveis na metafísica caatingueira, ainda que, para os nativos, a relação de comensalidade com Caipora implique, quase sempre, o se encantar do caatingueiro, tenha ele consciência ou não, esteja ele de acordo ou não com o fato de que foi seduzido por seus sons, por sua beleza e/ou por sua presteza maternal. O problema é que justamente por isto ele perde agência e vira “presa”, assume o tu dêitico nessa relação dominada por Caipora e, nesta posição, a imposição da perspectiva-Caipora se vê enormemente facilitada.

Licuri | Carrapato: um repasto híbrido

Se no relato com que abri a seção anterior, o vaqueiro se assustou com a aparência famélica e as atitudes violentas do ideado, os sustos do antropólogo podem ser outros: a afirmação de que apenas o haviam achado porque Caipora não estava; de que ela tinha saído para buscar licuri para alimentá-lo e de que ele ia se encantar caso seguisse comendo com ela. Os sustos são legítimos, como pode uma pessoa viver comendo apenas licuri, se alguns nativos da caatinga o comem uma vez ao ano junto ao arroz e ao bacalhau na semana santa e, até onde sabemos, eles não são araras-azuis que o têm como alimento principal? E, se Caipora estivesse junto ao ideado, o vaqueiro poderia vê-la e também o garoto? Mas, e sobretudo, como dar conta e tirar as necessárias consequências do conceito se encantar?

O fato de que a dieta de seus convivas seja composta unicamente de licuri, em algumas versões, e por carrapatos, em outras, é reconhecido pelos nativos como os poderes não evidentes de Caipora. Licuri, enquanto comida, era o que dava Caipora ao garoto, no entanto, o ordinário repasto caatingueiro que lhe deu sua família humana deixou de ser comida para ele. O ideado não mais reconheceu sua antiga dieta alimentar (feijão, carne e farinha) como comida, rechaçou-a, pois já estava vendo o que era comida no mundo-caipora.16 16 Há relatos na caatinga que demonstram o uso da comensalidade como mecanismo de domesticação e familiarização. Dona Maria relatou-me que uma jovem indígena foi raptada por um vaqueiro enquanto andava sozinha na mata; ele a levou a um casebre, atou seus pés e alimentou-a... e ela assim ficou até o momento em que o vaqueiro considerou que a futura tataravó de Dona Maria havia sido “amansada”. Ademais, os modos de descrição do ideado sobre Caipora (bonita, loira, de cabelo longo, manca e mulher) não são uma apreensão subjetiva, representacional e relativista do tipo ‘Caipora é loira para ele’ ou ‘é mulher desde seu ponto de vista’, senão que a relação é objetiva, interna, genitiva e dêitica (Viveiros de Castro 2002aVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002a. “O mármore e a murta. Sobre a inconstância da alma selvagem”. In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify. pp. 183-264): Caipora é tal como descreve o ideado porque ele a viu como ela é em seu mundo, porque ele estava virando-Caipora. Comer com Caipora implica uma mudança de habitus corporal, logo, do próprio ponto de vista. Sobre essa alteração de perspectiva, o antropólogo Thiago Cardoso afirma que os Pataxó do litoral sul do estado da Bahia afirmam que Caipora habita buracos no subsolo e que, ao adentrar neste mundo, a pessoa corre severo “risco de mudar de perspectiva e de começar a ver as coisas de outra forma” (2016:148).

Sugiro então que tomemos a relação de comensalidade com Caipora como um operador cosmo-prático perspectivizante. Sobre isso, cabe dizer que não me interessa criar a imagem de uma caatinga à medida para que a teoria amazônica do “perspectivismo cosmológico ameríndio” (Viveiros de Castro 1996VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana, 2 (2):115-144., 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2015. Metafísicas Canibais. Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify .; Lima 1996LIMA, Tânia Stolze. 1996. “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi”. Mana, 2 (2):21-47.) seja ali depositada, posto que ela não é um modelo a ser verificado ou implantado alhures. Interessa-me retirar as consequências de considerar esta teoria indígena da alteridade como conceito ameríndio para dialogar com as práticas de sentido e de conhecimento nativas imanentes ao se encantar, tanto como poderia fazê-lo com os conceitos de mestiçagem, sincretismo ou fricção interétnica. Como já é de longo conhecimento, o “perspectivismo multinaturalista” afirma que um pressuposto fundamental de diversas socialidades indígenas é a ideia de que os não humanos com os quais se relacionam os nativos são potencialmente humanos; e que humano refere-se a uma relação e não a uma substância, é mais a posição de sujeito que se ocupa em uma relação (ocupar o ponto de vista) que uma designação anatômica do corpo humano, é mais então uma potencialidade ontológica que uma possibilidade lógica (Viveiros de Castro 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2015. Metafísicas Canibais. Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify .).

O perspectivismo propõe que em condições normais todos os entes que habitam o cosmos se apreendem a si mesmos como sujeitos ativos, protagonistas do mundo (humanos) e percebem as demais agências como presas ou como predadores não humanos, ou seja, o modo como eles se veem a si mesmos difere profundamente do modo como os vemos e como eles nos veem (Viveiros de Castro 1996VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana, 2 (2):115-144., 2002cVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002c. “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”. In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify . pp. 347-399.). Logo, os caatingueiros tomam-se a si mesmos como gente, mas Caipora também se vê como gente, ao passo que os veem como afins potenciais, já os porcos veem os caatingueiros como predadores e, ao que parece, ainda devem tomar-se a si próprios como gente, pois, segundo os nativos, “porco um dia foi gente” e, ao matá-los, deve-se evitar qualquer burla, senão eles irão encontrar e perturbar seu agressor no sonho. Portanto, se a posição subjetiva (ver-se como humanos) é distribuída no cosmos ameríndio e a seu modo está na cosmo-práxis caatingueira, podemos dizer que, em encontros intersubjetivos, a posição de humano na relação dêitica (“eu” e “tu”) se atualiza na comensalidade, isto é, a disputa pelo lugar de primeira pessoa na relação se faz presente no ato de comer com Caipora, e em um mal encontro na caatinga, como aquele entre a vaqueira-das-caças e o “bicho do umbuzeiro”, ou aquele entre o caçador e o “bicho” desencorpado na quaresma (ver nota de fim nº 13).

Não obstante o conceito se encantar entre os caatingueiros esteja relacionado a uma descontinuidade física e ao devir-invisível, como na religião de matriz africana tambor de mina (Shapanan 2004SHAPANAN, Francelino de. 2004. “Entre caboclos e encantados: mudanças recentes em cultos de caboclo na perspectiva de um chefe de terreiro”. In: Reginaldo Prandi (org.), Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas. pp. 318-330.), parece-me interessante ir além desse vínculo e explorá-lo melhor como uma variação daquela operação comum no perspectivismo ameríndio (cf. Viveiros de Castro 2002cVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002c. “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”. In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify . pp. 347-399.), a saber: sangue | cerveja; barro | casa cerimonial; vermes | peixe assado, assim como carrapato | licuri, existem ao mesmo tempo, o que atualiza sua forma é um corpo habituado a ela. A instabilidade ontológica provocada pelo encontro com Caipora e, logo, o hábito de alimentar-se com ela, com o que é comida para ela por determinado tempo, possui a implicação, o efeito de construir um corpo sensível outro, uma posição-relação, um mundo sensível constituído pelo e no ponto de vista, que será capaz de ver a relação carrapato | licuri. Se é justamente o encontro caipora-caatingueiro que cria os perceptos carrapato e licuri, não será então licuri a forma do carrapato nesta relação caipora-caatingueiro?

Até aqui, a narrativa local relatava apenas que ela havia saído para buscar licuris, quebrá-los e dá-los ao ideado para que os coma. E se esta operação fosse, no entanto: “carrapato -> esmagado = comida = quebrado <- licuri”? Isto porque o raizeiro Zé algumas vezes afirmou que o sujeito ideado por Caipora comia carrapatos como se fossem comida. Transcrevo abaixo um pequeno relato seu:

Uma mãe estava com a filha pequena debulhando feijão no terreiro da casa e a menina estava brincando. Aí entrou pra fazer alguma coisa e quando voltou a menina já não estava. Caipora carregou ela. A mãe quando voltou ficou agoniada e saíram no rastro dela e foram chamando pelo nome, até que acharam ela dentro de uma moita de macambira, bem lá no meio, tudo em volta era macambira, como é que ela entrou lá? Foi Caipora quem botou ela lá dentro, pra tirar tiveram que cortar a macambira com facão. Estava só comendo carrapato, porque ela dá carrapato para comer.

Relatei a Zé que Seu Mario tinha me dito que Caipora deu a um garoto licuri porque ele não queria comer carrapatos. É que “ela vira o carrapato num licuri”, e ‘se seguir comendo com ela, a pessoa se encanta, vira Caipora’, conclui. Será que aquele primeiro rechaço, do ainda “sujeito-ativo”, a comê-los, que incentiva a entidade a substituí-los por licuri, com o tempo de convivência na comensalidade o fará perceber a multiplicidade relacional licuri-carrapato (posto que licuri é, simultaneamente, carrapato)?

A relação de comensalidade entre caatingueiros e Caipora é uma relação entre perspectivas e, se o que conta é o regime de apreensão e suas condições, se normais ou alteradas (Viveiros de Castro 2002cVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002c. “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”. In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify . pp. 347-399.), comer com ela definitivamente não é uma condição que se diga “normal”. Tal situação nos faz recordar o mito yaminawa sobre o caçador Yawavide que, diante de diversos intentos fracassados em sua empresa cinegética, perdeu-se na floresta e encontrou algumas pessoas que o convidaram a sua aldeia e “le ofrecieron bebida, aunque era un cuenco de lama. ‘Yo no bebo eso [diz o caçador]: eso es lo que beben los pecaríes, no los seres humanos’” (Calavia Sáez 2001:193CALAVIA SÁEZ, Oscar. 2001. “El rastro de los pecaríes: variaciones míticas, variaciones cosmológicas e identidades étnicas en la etnología Pano”. Journal de la Societé des Americanistes, n. 87:161-176.). Diante de sua recusa, as queixadas deram uma solução, passaram uma planta nos seus olhos e ele pôde ver como era saborosa aquela bebida.

Tal qual esses anfitriões (queixadas que se mostram enquanto gente), que veem cauim quando o caçador vê lama, o sujeito ideado recusa a oferta de Caipora porque vê carrapato enquanto ela vê alimento. No entanto, ao cabo de certo tempo de convivialidade, aquele carrapato será apreendido como licuri, posto que assim o é para Caipora e ali há uma assimetria de poder relacionada à perspectiva (ver adiante). Tal apreensão é um índice evidente de que o sujeito ideado (um afim para ela) passou a habitar o mundo-caipora e, nesta transmutação de perceptos, há troca de perspectivas: o caatingueiro ocupa a posição de segunda pessoa (de tu, um outro de si mesmo diante do eu subjetivo) e apreende o mundo não só do ponto de vista de Caipora, senão que mostra ao mundo-caatingueiro que se encantar é uma relação social em que o par licuri | carrapato está implicado.

O que a perspectiva de Caipora apreende como licuri, a perspectiva do nativo, a princípio, toma como carrapato; porém, a comensalidade implica uma desestabilização ontológica do comensal que então comerá a “comida” que lhe foi oferecida, e carrapatos são os licuris de Caipora. Nesta “homonímia perspectiva” (Viveiros de Castro 2002bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002b. “O nativo relativo”. Mana, 8 (1):113-148.), dois sujeitos chamam pelo mesmo nome (comida) coisas diferentes; dois acontecimentos-perspectivas mutuamente cruzados e autoimplicados estarão assim postos em interação nesse encontro, ou melhor, o par de perceptos (licuri | carrapato) expressa uma relação social interespecífica. E será esse encontro intersubjetivo que atualizará uma de duas possibilidades, ou o caatingueiro será virtual para nós e atual para Caipora, ou o contrário.

Logo, a comum pergunta multiculturalista sobre o que era realmente aquilo que lhe ofereceu Caipora, se carrapato ou licuri, torna-se uma desnecessária folhagem relativista (estamos na caatinga e ali há mundos heterogêneos que mudam de sentido porque são constituídos a partir de pontos de vistas diferentes - não há realidade à parte que a relação entre Caipora e caatingueiros se remeta, isto é, o ponto de vista de Sirius é coisa do sertão!). O que interessa é a realidade sensível alterada por uma alteridade que vem a tornar-se a realidade apreendida pelo caatingueiro.

Virar-outro: comensalidade, afinidade e predação metafísica

Como vimos, Caipora é a maestra dos animais de caça na caatinga da Bahia e o gradiente relacional com esta entidade pode ser a oferta de fumo, sentir-se desorientado na mata, escutar sons familiares, mas estranhos, ver cachorros assustados e golpeados, ser agredido, golpeá-la, vê-la, escutar sua voz, falar, negociar e comer com ela, bem como ocupar a posição de presa em uma predação subjetivante. Caipora é assim uma individualidade diferencial, carrega consigo outras singularidades, como mãe, dona, vaqueira, protetora, sedutora e predadora. Uma questão, no entanto, se nos apresenta: quando então a doação deixa de ser a relação primordial, ou melhor, a ideal entre caatingueiros e Caipora, e dá lugar à predação?

Recordemos que se as duas primeiras regras têm como princípio e efeito uma doação (fumo e respeito, por parte dos caçadores, e animais de caça, da parte de Caipora), não necessariamente recíproca, é possível a emergência de uma reprimenda da mãe-das-caças (o caçador é queimado em um estaleiro) quando a regra-caçador se sobrepõe às dela (algo correlato ao efeito “panema”17 17 De acordo com Almeida, “panema é um conceito muito geral, como o conceito de gravidade [...] e conecta o ente, o domínio da natureza, ao tema moral do insulto” (2013:14-15) e está relacionado ao desrespeito do caçador a Caipora que termina por afetar toda a atividade cinegética e a própria integridade física daquele, como também reconhecem Teixeira (2019) e Almeida (2013). ), mas não diretamente uma predação metafísica do mundo-caatingueiro pelo mundo-caipora. Se estas não implicam diretamente a metamorfose transespecífica “se encantar”, restaria então à comensalidade o direito a ser o diferenciador.

Minha proposta neste último tópico é propor uma economia da predação como um modo de produção de afins para Caipora, de familiarização. Isto está orientado por um pressuposto ontológico nativo que observei em minha tese de doutorado: a cosmologia do virar-outro. Virar-outro é uma imagem metafísica do pensamento caatingueiro reconhecida por um trabalho de campo etnográfico dedicado às práticas nativas de rastejar diversas agências que povoam a caatinga baiana e suas evidências (alter) materiais (Lopes 2021LOPES, Gabriel Rodrigues. 2021. “Virar-otro”. Notas para una teoría de la alteridad. Una etnografía de los rastejadores en la caatinga de Bahia (Brasil). Tese de Doutorado, Universidad de Buenos Aires.). Este concepto etnográfico emana de um gradiente semântico diverso e relacional dos caatingueiros com humanos, extra-humanos e com/entre animais não humanos, e está ancorado em valores associados à exterioridade, à alteridade e à transformação metamórfica que o concepto nativo “se virar em” expressa, a saber: humanos podem “se virar em” bicho (jegue peludo, porco preto etc.), não humanos (pedra, árvore, charuto, porca parida etc.), extra-humanos (Caipora, besta-fera) e divindades (guias) - todos guardam uma forma não evidente de sujeito -, e/ou podem ser afetados por e afetar outras capacidades agentivas (como veias de água subterrâneas, zumbi, redemoinhos).

Por exemplo, há uma entidade híbrida (humano-animal) na caatinga conhecida como bicho, com uma “aparência” que se alterna entre jegue peludo, porco grande, negro e predador felino, segundo vários interlocutores, e que tem características estranhas, típicas de humanos, como enganar, perseguir, atacar, vingar-se etc. Tal caatingueiro-virado-bicho buscará atacar ferozmente determinados humanos (apenas aqueles violentos no convívio intrafamiliar), não para matá-los, senão para que traguem forçosamente sua urina a fim transformá-lo em um similar. Este modo de “predação”, de captura para fazer parentes, é análogo ao modo-Caipora de aparentar pela comensalidade, isto é, se se encantar implica virar-Caipora, um modo de outorgar características da “espécie” Caipora a outro, logo, se encantar é um modo de produzir afins e de tornar um parecido com o outro, de aparentar-se, como sugere Aparecida Vilaça (2002VILAÇA, Aparecida. 2002. “Making kin out of others”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 8 (2):347-365.), e isto por meio do ato de comer, de partilhar o alimento; análogo assim ao ato de “comer” a urina do bicho.

Se não sabemos claramente como somos vistos por Caipora, se desconhecemos nossa aparência desde seu ponto de vista, sabemos pelo menos que ela considera humanos como afins potenciais com os quais buscará tecer relações para aliciá-los. No entanto, “relacionar-se” para Caipora por meio da alimentação é muito diferente de nossa ideia sobre isto, ela (a comensalidade) indica “duas dimensões, dadas como acontecimentos simultâneos que se refletem um no outro” (Lima 1996:37LIMA, Tânia Stolze. 1996. “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi”. Mana, 2 (2):21-47.). Comer com Caipora implica uma metamorfose transindividual irreversível, daí a desconfiança e a insegurança dos nativos em torno de um possível encontro solitário na mata com a dona-das-caças, sem que ele a veja primeiro (sobre isto, conferir adiante). Portanto, a atividade cinegética abriga a possibilidade de conviver com a dona-do-mato por meio do comer, e esta é uma forma de captura para os nativos, de volver-se presa e um modo de socialidade transindividual afinizante, isto é, a maneira de Caipora para familiarizar, para produzir “pessoas-Caipora”.

Sobre isto, se, por um lado, eu não poderia afirmar, com base no material caatingueiro, que os nativos concebem sua “cosmologia como fechada e finita” (Rivière 2001:39RIVIÈRE, Peter. 2001. “A predação, a reciprocidade e o caso das Guianas”. Mana, 7 (1):31-53.) ou, em linguagem termodinâmica, como sintrópica / negentrópica, do tipo: “Caipora encanta humanos para transformá-los nas futuras presas que aqueles irão comer”. Por outro lado, a desaparição física de quem vira Caipora e sua continuidade metafísica com ela mantêm uma relação de implicação entre os dois mundos, entre diferentes modos de existência, ou seja, quem se encanta acederá a outro real possível, terá nessa realidade sensível outra, agência social e poderá afetar seu anterior “mundo”. Ao “virar-Caipora”, o caatingueiro (solitário, quase sempre jovem, solteiro e inexperiente caçador, de acordo com os relatos) poderá então proteger os animais de caça, afetar humanos e, potencialmente, fazê-los virar-outro.

Tendo em conta aquela disputa de perspectivas em torno do encontro intersubjetivo entre caatingueiro e Caipora, e no intuito de fugir de um dualismo que inventa, para se sustentar, uma essência à Caipora, vinculada unicamente à predação, e ao humano o lugar de vítima, parece-me importante sinalizar que em cada um desses sujeitos alternam-se em seu interior uma “parte-ativa” / predadora e uma “parte-paciente” / presa (Fausto 2002:31FAUSTO, Carlos. 2002. “Banquete de gente: comensalidade e canibalismo na Amazônia”. Mana, 8 (2):7-44.) em razão, penso, de quem viu primeiro quem. Nesse sentido, nem reciprocidade, nem predação podem ser consideradas como instituições totais capazes de orientar e organizar todas as práticas de um povo, como bem recordou Peter Rivière (2001RIVIÈRE, Peter. 2001. “A predação, a reciprocidade e o caso das Guianas”. Mana, 7 (1):31-53.), porém, elas “estão dispostas ao longo do mesmo espectro, diferindo não na forma mas no seu conteúdo e contexto” (:49). Minha observação é que Caipora possui uma “dupla potência” (Fausto 2002FAUSTO, Carlos. 2002. “Banquete de gente: comensalidade e canibalismo na Amazônia”. Mana, 8 (2):7-44.) relacionada a uma parte-sujeito e a uma parte-objeto, interna a ela mesma e característica de sua própria condição de existência, ou seja, em sua interação com humanos pode haver uma tensão em disputa entre Caipora e caatingueiros em torno da potencialidade de ocupar a posição de agente e a de paciente, pois há certa “abertura” de Caipora em ser objeto de golpes físicos por parte de humanos.

Ora, o caatingueiro escondido naquela árvore “viu” Caipora surgir no horizonte enquanto oficiava de vaqueira-das-caças, e não de dona-do-mato, nem de mãe-das-caças, de modo que nesta reorientação figura-fundo o caatingueiro pode lograr desferir um golpe na “parte-paciente” de Caipora, o que lhe causa efeitos. Dificilmente isso seria possível se Caipora o tivesse ariado para “ideá-lo”, dado que neste caso o protagonismo no mundo-caatinga seria dela. A perspectiva parece estar também no ato de olhar e em como se olha. É bem assim que em Meu tio Iauaretê (Rosa 2001ROSA, João Guimarães. 2001. “Meu tio o Iauaretê”. In: Estas Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.), o ex-onceiro vira-onça, posto que foi agarrado pelo ponto de vista de Maria-Maria na floresta ao falar com ela, ao responder como tu numa relação dêitica, passou a ver o mundo como o veem os jaguares: “Primeira que eu vi e não matei foi Maria-Maria. [...] Ela chega esfregou em mim, tava me olhando. Olhos dela encostavam um no outro, os olhos lumiavam - pingo, pingo: olho brabo, pontudo, fincado, bota na gente, quer munguitar: tira mais não. [...] Eh, ela falava comigo, jaguanhenhém, jaguanhém...” (:207).

É notório, claro, que a relação de poder entre humanos e Caipora é assimétrica, posto que a dona-das-caças está, na cosmologia nativa, hierarquicamente mais próxima da posição ocupada pelo jaguar ou pela anaconda nas cosmologias de diversos povos ameríndios do que daquela de porcos, que se debate entre suas capacidades de predador e de presa, ou da de vegetais, com pouca “capacidade agentiva” (Fausto 2002FAUSTO, Carlos. 2002. “Banquete de gente: comensalidade e canibalismo na Amazônia”. Mana, 8 (2):7-44.), com exceção da ayahuasca (Banisteriopsis caapi). Para a antropóloga Tânia Stolze Lima (1999LIMA, Tânia Stolze. 1999. “Para uma teoria etnográfica da distinção natureza e cultura na cosmologia juruna”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 14 (40):43-52.), por assimetria devemos entender a capacidade de determinados pontos de vistas (humanos, extra-humanos) de impor-se sobre o de outros e que, se bem a reversibilidade em tese não esteja dada de antemão, a captura do ponto de vista é confirmada a posteriori. Se “a realidade é o que o ponto de vista afirma” (:48) e o ponto de vista de Caipora está na comida e no comer com, este se imporá sobre o ponto de vista humano, caso não haja uma contingência (alguém para cortar a relação). Isto porque comer o que é comida para uma alteridade e comer com esta são formas de expressão de outra metafísica social.

Assim, se nos encontros cinegéticos entre a mãe-das-caças e caçadores a diplomacia (cosmo)política é a relação social concêntrica privilegiada (prestar atenção, ir sem intenção predatória sovina, doar, respeitar, negociar, ser advertido), um encontro solitário na caatinga com ela exprime relações sociais egocêntricas que implicam tanto uma diferença de perspectivas (dona-do-mato / caçador) como uma luta de perspectivas interespecíficas (vaqueira-das-caças / caçador e “bicho” desencorpado / caçador). Ou seja, na primeira (diferença), a comensalidade, iniciada pelos sedutores e enganadores sons (“ariam”) que afetam o sujeito (“ideam”), é tomada como captura pelos nativos, e como familiarização, isto é, como atualização da afinidade potencial por Caipora.

Diferença de perspectivas tributária da posição (pronominal) de humano, de primeira pessoa na relação, que imporá no encontro seu ponto de vista (o licuri de um é o carrapato de outro), logo, tal diferença se deve a uma apreensão corpo-sensível e não a uma representação relativista, o que muda é o indicador do conceito. Em um exercício de imaginação com base na etnografia, poderíamos dizer, em outros termos, que o caatingueiro, ainda em sua posição de sujeito-ativo, pensaria: “isto aqui é carrapato, eu sou gente e gente não come isso”. Já Caipora, enquanto sujeito-ativo que vai dominando a relação dêitica por meio da comensalidade, pensaria: “ele já está vendo e comendo licuri, logo será como eu”.

Na segunda (luta), há uma tensa disputa entre dois sujeitos para ocupar o ponto de vista, posto que a posição dêitica do “eu” (de predador18 18 O uso aqui do termo predação remete a uma zona tensa de disputa entre agências por certa capacidade de afetação, de influência e produção de efeitos sobre outro e não necessariamente à transmutação de perspectiva, pois não sabemos o que faria Caipora se tivesse agarrado aquele sujeito do umbuzeiro que lhe desferiu um golpe na cabeça. ) não está dada de antemão, gozará dela quem for capaz de amedrontar o outro, que se tornará passivo (o “tu”) neste encontro, ainda que, no caso da vaqueira-das-caças, isto seja momentâneo. Talvez porque sua vulnerabilidade ao humano seja proporcional à influência individual deste no mundo-caipora, pois estar face a face com Caipora não a afeta na mesma medida que a produção antropogênica de desertos na caatinga o faz.

A modo de fim

Os caatingueiros até hoje não sabem o que pode Caipora. A evidência dela desacelera certezas sobre o significado do mundo e, tal qual o “idiota” para a filósofa Isabelle Stengers (2014STENGERS, Isabelle. 2014. “La propuesta cosmopolítica”. Revista Pléyade, 2014.), indica-nos que é melhor ir devagar na caatinga, porque ela não é o sertão da mitologia do Estado que pressupõe uma continuidade ontológica entre os brasileiros, enquanto figura universal, e suas (pre-)supostas variações culturais (caipira, caboclo, sertanejo, ribeirinho, indígena, seringueiro etc.). Para os caatingueiros, se um nativo ou forasteiro traz consigo apenas a moderna ideia de “natureza”, aquela inerte e desprovida de entidades com intenções, agências e faculdades reflexivas, ele poderia simplesmente desaparecer na caatinga por não estar aberto à cosmopolítica que Caipora exige, a “um plano de multiplicidade e divergência entre mundos” (Valentim 2021:556VALENTIM, Marco Antonio. 2021. “Filosofía y entropía”. Anacronismo e Irrupción 11 (21):539-558.). Uma ideia lapidar de Eduardo Viveiros de Castro parece-me muito fértil também na caatinga, a saber:

se o multiculturalismo ocidental é o relativismo como política pública (a prática complacente da tolerância), o perspectivismo xamânico ameríndio [e a pragmática especulativa caatingueira] é o multinaturalismo como política cósmica (o exercício exigente da precaução) (2015:49-50).

Neste artigo, tentei traçar algumas linhas para debater acerca de uma teoria cosmo-prática caatingueira que informasse sobre os diferentes modos de relacionar-se com Caipora e as implicações disto sobre diferentes mundos sensíveis, o dela e o dos caatingueiros. Por intermédio destes, pudemos saber da existência de outros modos de existir como humanos, de uns que experimentam os efeitos materiais da presença de Caipora, de outros que tentam afetá-la e de alguns que comem com ela. Tendo em conta isso, se encantar não deve ser considerado uma metáfora que representaria uma síncope temporária, uma perda momentânea de consciência, senão um conceito nativo que expressa pressupostos ontológicos capazes de tomar os vínculos entre humanos e entidades extra-humanas como relação social e de situar na comensalidade e no corpo o ponto de vista do sujeito-ativo, da humanidade.

Como vimos, dar de comer ao caatingueiro parece ser um ato de produção de afinidade, de familiarização para Caipora e, para isto, antes, ela precisa reduzir o humano a um objeto passível de transformação ontológica, ela precisa tirar-lhe agência, pois humanos podem afetá-la. Como ver o invisível é estar em uma zona fronteiriça entre mundos, quando o caatingueiro a vê já é mais-que-caatingueiro e o desconhecido pode acontecer. Assim, se ariar e idear devem ser considerados os passos prévios fundamentais para desagentivar um humano a fim de transformá-lo em outra espécie de “pessoa”. Ainda que sua imagem-corpo desapareça, sua “pessoa” será incorporada à família Caipora, pois sendo a Vida o fundo de socialidade comum compartilhado entre nativos e dona-do-mato, a morte não opera como corte entre início e fim, pois Caipora ensina que há vida “póstuma”. Ser capturado na caatinga por Caipora significa que outra vida é possível.

Por fim, podemos dizer que a caiporidade do caatingueiro é correlata à personitude de Caipora, pois nem tudo está dado, natureza e cultura ainda podem estar em continuidade ontológica. Em outras palavras, a personitude de Caipora, nos termos caatingueiros, está atrelada a uma materialidade sensível e passível de sentir efeitos sobre si, a possuir qualidades próprias de um vaqueiro e capacidades humanas como enganar, seduzir, refletir, influir, ter intenção, astúcia etc.; assim, a humanidade ou a personitude é uma capacidade de Caipora porque, ao mesmo tempo, a caiporidade é potencial das gentes da caatinga (Viveiros de Castro 2002bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002b. “O nativo relativo”. Mana, 8 (1):113-148.). Logo, o devir-caipora é um devir-índio do caatingueiro, pois a relação de alteridade, antes que a identidade, é o esquema privilegiado não só no pensamento ameríndio (Viveiros de Castro 2012VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2012. “‘Transformação’ na antropologia, transformação da ‘antropologia’”. Mana, 18 (1):151-171.), mas também no pensamento caatingueiro. A caiporidade potencial é então um modo privilegiado da possibilidade de captura do “ponto de vista” na cultura caatingueira.

Desta forma, aquele que um dia se encantou passará a encantar outro, aquele que aceitou a comida dada por Caipora a oferecerá a um terceiro para que possam comer juntos e, quando a dona-do-mato observa o comer daquele caatingueiro, ela já está comendo-o. Temos assim na caatinga encontros de diferentes perspectivas de mundo, mas também de mundos-perspectiva, pois as experiências pragmáticas com Caipora produzem uma instabilidade e multiplicidade ontológica na “natureza” que, ironicamente, também se encanta e o, até então, unívoco e homogêneo “sertão” do Estado brasileiro vira-caatinga: uma força que sustenta o “possível”.

Agradecimentos

Alegra-me recordar a risada de Seu Mario quando lhe contei há uma semana que algumas de suas vivências poderiam agora ser lidas, pois estavam no papel como combinamos certa feita dentro de um curral. Dedico-lhe afetuosamente este texto porque sei, como sabem muitos na caatinga e como também o sabia Guimarães Rosa, “que as pessoas não morrem, ficam encantadas... a gente morre é para provar que viveu”.

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Notas

  • 1
    A pesquisa de campo etnográfica, que me permitiu elaborar este artigo, foi financiada pelo Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet, Argentina) e levada adiante entre os anos de 2015 e 2020. Agradeço aos dois pareceristas anônimos por suas sugestões aguçadas que muito me ajudaram a melhorar o artigo, bem como à Sonia Sarra e minha então orientadora Florencia Tola por seus comentários à primeira versão do mesmo.
  • 2
    Utilizo aspas duplas (“ ”) e itálico para sinalizar as afirmações literais e mais extensas dos nativos, acessíveis por meio de gravações de áudio. As aspas simples (‘ ’) são empregadas para minhas recriações do discurso nativo, sempre a partir de notas de campo; estas também servem para anunciar a fala de uma pessoa no interior do relato de outra mais extenso (recuado mais ao centro da página).
  • 3
    A partir do ano 2013, o estado da Bahia (Lei 12.910/2013) passou a reconhecer aos povos tradicionais o direito ao uso comum da terra, através de contrato de concessão de uso real do solo por noventa anos renováveis, limitado aos interesses da União sobre o subsolo. Para uma revisão histórica ver Marques (2016MARQUES, Leônidas de Santana. 2016. “As comunidades de fundo de pasto e o processo de formação de terras de uso comum no semiárido brasileiro”. Soc. & Nat. Uberlândia, 28 (3):347-359.) e Reis (2010REIS, Angélica Santos. 2010. Fundos de pasto baianos: um estudo sobre regularização fundiária. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia.).
  • 4
    Utilizo o termo caatingueiro por ser um dos modos nativos de autoidentificação. Ainda que esses povos tradicionais da caatinga sejam conhecidos como sertanejos pelo senso comum nacional e que este termo possa ser de uso vernacular como atestam algumas etnografias, nenhuma das pessoas com as quais tive contato na caatinga, espontaneamente, autoidentificou-se como tal, seja porque o sertão sempre está em outro lugar, longínquo, como dizem, seja porque há outros termos com os quais se adscrevem, de acordo com outros critérios, como lugar, ofício, parentesco, relação com espíritos, entidades, com o dom etc. Com isso não estou desconsiderando os sentidos que o termo “sertão” possui, por exemplo, na obra de Guimarães Rosa e em outras etnografias que muito ressoam entre meus interlocutores (o que permitiria uma comparação entre os mundos sertão e caatinga): zona do desconhecido, do perigoso, povoado de agências etc. Meu foco está no fato de que os modos de vida desses nativos estão impregnados de diversas relações em que se vinculam feitiçaria e mercado de trabalho, xamanismo e agrotóxicos, relações de parentesco e devir-não-humano, axiomática capitalista e teorias epidemiológicas e escatológicas sobre o fim do mundo, de modo que apoiar-me no conceito sertanejo, estrangeiro demais para suas práticas e ideias, parece-me limitado para pensar o pensamento caatingueiro. Estes nativos da caatinga são “gente”, “povo-da-roça”, “povo-do-mato” que dorme, sonha, briga e se ama como qualquer outro povo, mas não como qualquer outro povo.
  • 5
    Rastejar é uma relação entre humanos e agências sociais diversas que permite aos primeiros conectarem-se, relacionarem-se com e decodificar os modos de expressão dos segundos, e a estes existir nos primeiros através de uma afetação corporal. Rastejar é uma antropologia nativa, um modo de tornar inteligível a relação entre um variado espectro de seres que habitam o cosmos, deles entre si e com humanos; uma deontológica ou ética do coabitar, de como agir e atuar neste mundo (Goldman 2021GOLDMAN, Marcio. 2021. “‘Nada é igual’. Variações sobre a relação afroindígena”. Mana, 27 (2):1-39.), e um componente central na fabulação de um povo por vir diante do “fim das Eras”.
  • 6
    Até onde tenho conhecimento, nesta região da caatinga baiana não há relatos de outras entidades protetoras ou donas de determinados lugares, de animais específicos, somente sinais de vínculos diretos. Por exemplo, ao deparar-se com um redemoinho, recomenda-se não lhe gritar “cebo cebo”, posto que isso o incomoda e, molesto, o redemoinho perseguirá quem dele caçoa, algo análogo sucede com o zumbi (ver nota 10). Alguns nativos relataram-me que ouviam dos mais velhos histórias sobre uma sereia que cuida do rio São Francisco, porém, dada a distância do rio (100 km) de seu cotidiano, não sabemos muito sobre tal sereia.
  • 7
    Aqui a afirmação de que Caipora “idea” os animais de caça tem um sentido análogo àquele relatado por João Coloral na etnografia de Teixeira (2019:359TEIXEIRA, Jorge Luan. 2019. Caçando na mata branca: Conhecimento, movimento e ética no Sertão Cearense. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.), em que um mau dia para o caçador pode ser entendido como resultado de uma ação de Caipora que encanta as caças, guarda-as.
  • 8
    Para além da permissão ou não de Caipora à atividade cinegética em seu território, os próprios nativos estabelecem a quaresma como um tempo no qual caçar é proibido, desde a Quarta-feira de Cinzas ao Sábado de Aleluia. Podemos ver nisso o encontro pragmático entre a ontologia da caça dos caatingueiros e o modelo fonte-sumidouro como observado por Almeida (2013ALMEIDA, Mauro W.B. de. 2013. “Caipora e outros conflitos ontológicos”. Revista de Antropologia da UFSCar, 5 (1):7-28.) no Alto Juruá, onde diferentes metafísicas podem chegar a efeitos similares na realidade, a saber: a teoria nativa coincide pragmaticamente com a teoria fonte-sumidouro por suas ontologias pressupostas: estabelecer uma zona temporal | espacial de interdição da atividade cinegética produz o efeito positivo de preservar animais de caça.
  • 9
    Para uma análise mais detalhada sobre este aforismo, ver os ensaios 5 e 6 de minha tese de doutorado (Lopes 2021LOPES, Gabriel Rodrigues. 2021. “Virar-otro”. Notas para una teoría de la alteridad. Una etnografía de los rastejadores en la caatinga de Bahia (Brasil). Tese de Doutorado, Universidad de Buenos Aires.).
  • 10
    Aboiar faz parte do acervo polifônico da caatinga que muitos nativos manipulam para comunicar-se com cabras, ovelhas, vacas, pássaros e para reconhecer sons aos quais não se deve responder, como os do zumbi, ou seguir, como os de Caipora. Zumbi é um ente que habita a caatinga e é reconhecido por seu zumbido que anuncia a temporada de chuva ou de seca. No entanto, se uma pessoa decide imitá-lo, sofrerá uma desestabilização temporária, a ponto de não reconhecer quem é, nem onde está.
  • 11
    Lança de madeira com ponta de aço, regulável, utilizada por muitos vaqueiros (hoje em dia, é mais raro). O vaqueiro, sobre seu cavalo, recebe de outro a vara-de-ferrão e crava-a no pescoço do animal tantas vezes sejam necessárias, até que a rês se dê por cansada ou por morta. Se portar consigo uma vara-de-ferrão é uma das marcas de um vaqueiro, bem como “assinar” ou “ferrar” um animal de criação (gado, cabra) é uma marca da posse de um criador sobre elas, podemos agregar às outras evidências-Caipora uma marca particular de seu domínio sobre seus animais, como nos relata um caatingueiro na etnografia de Teixeira: “Cê assina uma criação, né?, cê faz uma forquilha [...] e cê pega muito tatu, às vezes, bem assinado. E acredito que aquilo ali é ele [Caipora] que assina” (2019:357, grifos meus) e, tal qual os criadores humanos, Caipora o faz nas “orelhas” dos tatus mais velhos (:358).
  • 12
    Em referência aos ameríndios autoisolados na caatinga antes da expansão da pecuária no século XIX.
  • 13
    Gente se encanta, mas Caipora não desencanta, sua aparência física apreensível não é concebida pelos nativos como um desencantar, tal como relatado no mito. Uma vez virado-Caipora, o caatingueiro não recupera sua posição de sujeito na humanidade como a conhecemos, apenas uma humanidade aparente, quase sempre relacionada à imagem daquela mulher bonita. O “quase” é uma pausa na certeza, pois há relatos de encontros com um ser, com um sujeito desprovido de cabeça e membros, um “bicho” desencorpado que violentamente ataca um caçador que eventualmente burle a interdição da caça na época da quaresma. Será Caipora? “Quem sabe?! Num sei que bicho era aquele”, respondem-me os caatingueiros deixando em aberto o mundo-caipora. Assim, a “sanidade ontológica” (Viveiros de Castro 2021VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2021. Fala do autor no curso “Ontologia e Política no Antropoceno”, Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 25 de novembro de 2021.) desse povo parece recusar qualquer totalização, seja em torno da imagem-forma de Caipora, da sua presença omnipresente e agência/influência total, do que é seu mundo e do que ela faz nele, isto porque, sempre restará algo indiscernível, uma exceção, um fora. Caipora, ao conter em si mesma o horizonte de sua própria diferenciação, aumenta a diferença no mundo, ao multiplicar os sentidos da humanidade; ela é, pois, uma aliada contraentrópica diante da aniquilação ontológica produzida pela frente de expansão modernizadora.
  • 14
    O termo “encantado” não deve ser confundido com aquele empregado por diversas comunidades afro-indígenas, aquelas vinculadas às religiões de matrizes africanas e à pajelança ameríndia para referir-se a seres com poderes extra-humanos que foram atraídos para habitar o mundo do “encante” ou o “mundo dos encantados”, como Caipora entre os sertanejos cearenses (Teixeira 2019TEIXEIRA, Jorge Luan. 2019. Caçando na mata branca: Conhecimento, movimento e ética no Sertão Cearense. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.) e entre os Pataxó (Cardoso 2016CARDOSO, Thiago Mota. 2016. Paisagens em transe: uma etnografia sobre poética e cosmopolítica dos lugares habitados pelos Pataxó no Monte Pascoal. Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.), que se soma à sereia, à mãe d’água; como o Anhangá e o/a Curupira na pajelança amazônica (Wagley 1988WAGLEY, Charles. 1988. Uma comunidade amazônica: estudo do homem nos trópicos. São Paulo: Editora da USP.). Para fins deste artigo, emprego o termo encantado para referir-me às pessoas que Caipora “encantou”, desse modo, tal termo refere-se a um “coletivo” e não necessariamente, ainda que isto possa ser inferido, que os que se encantaram passaram a habitar o mundo do “encante”, lugar em que se tem “livre acesso aos segredos da natureza” (Teixeira 2019:398TEIXEIRA, Jorge Luan. 2019. Caçando na mata branca: Conhecimento, movimento e ética no Sertão Cearense. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro., grifos do autor).
  • 15
    Na relação de vingança entre os antigos Tupi, que findará com a predação do cativo de guerra, o cronista Abbeville, no ano 1614, comentava surpreso: “embora lhes seja possível fugir, à vista da liberdade de que gozam, nunca o fazem apesar de saberem que serão mortos e comidos dentro em pouco” (Viveiros de Castro 2002a:234VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002a. “O mármore e a murta. Sobre a inconstância da alma selvagem”. In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify. pp. 183-264).
  • 16
    Há relatos na caatinga que demonstram o uso da comensalidade como mecanismo de domesticação e familiarização. Dona Maria relatou-me que uma jovem indígena foi raptada por um vaqueiro enquanto andava sozinha na mata; ele a levou a um casebre, atou seus pés e alimentou-a... e ela assim ficou até o momento em que o vaqueiro considerou que a futura tataravó de Dona Maria havia sido “amansada”.
  • 17
    De acordo com Almeida, “panema é um conceito muito geral, como o conceito de gravidade [...] e conecta o ente, o domínio da natureza, ao tema moral do insulto” (2013:14-15) e está relacionado ao desrespeito do caçador a Caipora que termina por afetar toda a atividade cinegética e a própria integridade física daquele, como também reconhecem Teixeira (2019TEIXEIRA, Jorge Luan. 2019. Caçando na mata branca: Conhecimento, movimento e ética no Sertão Cearense. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.) e Almeida (2013ALMEIDA, Mauro W.B. de. 2013. “Caipora e outros conflitos ontológicos”. Revista de Antropologia da UFSCar, 5 (1):7-28.).
  • 18
    O uso aqui do termo predação remete a uma zona tensa de disputa entre agências por certa capacidade de afetação, de influência e produção de efeitos sobre outro e não necessariamente à transmutação de perspectiva, pois não sabemos o que faria Caipora se tivesse agarrado aquele sujeito do umbuzeiro que lhe desferiu um golpe na cabeça.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2020
  • Aceito
    07 Fev 2022
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