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COVID-19 NA AMAZÔNIA LEGAL

COVID-19 EN LA AMAZONIA LEGAL

Resumo

O trabalho objetiva demonstrar que a dependência de um centro local como Xambioá (TO) de duas cidades médias, a saber, Araguaína (TO) e Marabá (PA), localizadas na Amazônia Legal, oferece consequências graves durante a pandemia. Nesse sentido, apesar do município se encontrar fora do fluxo do capital, sua proximidade com as outras duas cidades o coloca entre os mais afetados pela COVID-19 no estado do Tocantins. Para compreender tal contexto, foram realizadas discussões teóricas acerca da inter-relação entre as três cidades na região amazônica. Utilizaram-se dados dos boletins epidemiológicos das secretárias de saúde e do Monitora-COVID (FIOCRUZ, 2020FIOCRUZ (Fundação Oswaldo Cruz). Monitora-COVID. Disponível em: <https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/>. Acesso em 24/07/2020.
https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br...
). Os resultados mostram que a disseminação do vírus em Xambioá se comportou de forma semelhante à da cidade de Araguaína, com alta incidência e picos mais elevados que os das duas urbes de médio porte. Os resultados alertam para a gravidade da situação, uma vez que o município não dispõe de equipamentos de saúde capazes de atender à demanda provocada pela complexidade dos casos, chamando para um debate acerca das reorganizações das cidades com foco na melhoria da qualidade de vida e do bem viver das pessoas e da coletividade.

Palavras-chave:
COVID-19; Amazônia Legal; Xambioá-TO; Cidades médias

Resumen

El trabajo tiene como objetivo demostrar que la dependencia de un centro local como Xambioá (TO) en relación a dos ciudades medianas, a saber, Araguaína (TO) y Marabá (PA), ubicada en la Amazonia Legal, ofrece graves consecuencias durante la pandemia, porque a pesar de ella se encuentrar fuera del flujo de capital, su proximidad a las otras dos ciudades la hace entre las más afectadas por COVID-19 en el estado de Tocantins, Brasil. Para comprender este contexto, se llevaron a cabo debates teóricos sobre la interrelación entre las tres ciudades de la región amazónica y se utilizaron datos de los boletines epidemiológicos de los respectivos departamentos de salud y el Monitora-COVID (FIOCRUZ, 2020FIOCRUZ (Fundação Oswaldo Cruz). Monitora-COVID. Disponível em: <https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/>. Acesso em 24/07/2020.
https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br...
). Los resultados muestran que la propagación del virus en Xambioá se comportó de manera similar a la de la ciudad de Araguaína, con una alta incidencia y picos más altos que los de las otras dos ciudades. Los resultados alertan sobre la gravedad de la situación, ya que el municipio no cuenta con equipos de salud capaces de satisfacer la demanda causada por la complejidad de los casos, lo que llama a un debate sobre las reorganizaciones de las ciudades con un enfoque en mejorar la calidad de vida y el bien vivir de las personas y de la comunidad.

Mots-clés:
Mondes plus-que-humaines; Anthropocene; Habiter

Abstract

The work aims to demonstrate that the dependence on a local center like Xambioá (TO) in relation to two medium cities, namely, Araguaína (TO) and Marabá (PA), located in the Legal Amazon, offers serious consequences during the pandemic, because despite the city is outside the flow of capital, its proximity to the other two middle sized cities places it among the most affected cities in the state of Tocantins by COVID-19. To understand this context, theoretical discussions were held about the interrelationship between the three cities in the Amazon region and data from the epidemiological bulletins of the respective health secretaries and the Monitora-COVID (FIOCRUZ, 2020FIOCRUZ (Fundação Oswaldo Cruz). Monitora-COVID. Disponível em: <https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/>. Acesso em 24/07/2020.
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) were used. The results show that the spread of the virus in Xambioá behaved similarly to that of the city of Araguaína, with a high incidence and higher peaks than those of the other two bigger cities. The results alert to the seriousness of the situation, since the municipality does not have health equipment capable of meeting the demand caused by the complexity of the cases, calling for a debate about the reorganizations of the cities with a focus on improving the quality of life and the good living for people and the community.

Keywords:
COVID-19; Legal Amazon; Xambioá-TO; Medium cities

INTRODUÇÃO

No final de 2019, o mundo recebeu a notícia da descoberta de uma doença que se disseminava rapidamente na China e se espalhou provocando uma crise sanitária global. O COVID-19 é classificado por rápida transmissibilidade, necessitando que governos organizem medidas preventivas e remediativas para contenção e mitigação de mortes. Apesar de ser uma doença nova e pouco conhecida, algumas questões vêm se mostrando como intervenientes do processo na atual pandemia: fatores políticos, capacidade econômica, sistemas e suprimentos de saúde e de prevenção, características regionais, entre outras (FREITAS; NAPIMOGA; DONALISIO, 2020FREITAS, A. R. R.; NAPIMOGA, M.; DONALISIO, M. R. Análise da gravidade da pandemia de COVIS-19. Epidemiologia e serviços de saúde. v. 29, n. 2, pp. 1-5, Brasília, 2020. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/ress/v29n2/2237-9622-ress-29-02-e2020119.pdf>. Acesso em 29/07/20.
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).

A superação da noção de doença como vinculada apenas ao campo biológico se faz desde que a geografia da saúde demonstrou que seu aparecimento e sua disseminação têm relação com aspectos físicos do local, climáticos, sociais e econômicos (JUNQUEIRA, 2009JUNQUEIRA, R. Geografia Médica e Geografia da Saúde. Hygeia: Revista Brasileira de Geografia Médica e da Saúde. v. 5, n. 8, pp. 1-10, 2009.). Neste momento de emergência internacional, decretada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), fica notório que disputas ideológicas e geopolíticas acontecem na esfera das relações entre países, em suas concorrências por pesquisas, insumos e vacinas, demonstrando a extensão da influência de um vírus (VENTURA et al., 2020VENTURA, D. F. et al. Desafios da pandemia de COVID-19: por uma agenda brasileira de pesquisa em saúde global e sustentabilidade. Cadernos de Saúde Pública. v. 36, n.4, pp. 1-5, 2020. Disponível: https://www.scielo.br/pdf/csp/v36n4/1678-4464-csp-36-04-e00040620.pdf . Acesso em 29/07/20.
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).

Observamos uma crise da contemporaneidade e do domínio da vida pelo capital evidenciada pela pandemia: dificuldades de isolamento social em regiões periféricas, moradias inadequadas, falta de acesso a saneamento, frágil padrão educacional dificultando a incorporação de novas etiquetas sanitárias. Assim, o COVID-19 configura-se como um catalisador de denúncias das mazelas sociais, instauradas por marcos reguladores econômicos que permitem a circulação de bens e vírus, mas não a de riquezas de forma equitativa (SENO; POCHMANN, 2020).

Nessa perspectiva, Becker (2013BECKER, B. A urbe Amazônida. Rio de Janeiro: Garamond, 2013.) demonstra que o capital como regulador da Amazônia estruturou poucas cidades-chave como forma de controle e exploração da região. Assim, Araguaína, no Tocantins, e Marabá, no Pará, configuram-se como estratégicas para exploração agromineral, estabelecendo-se como cidades médias pelo seu porte e funcionalidade. Entre as duas, encontra-se a cidade de Xambioá, no Tocantins, com poucos atrativos econômicos e de serviços, que se configura como um centro local (IBGE-REGIC, 2020IBGE. Regiões de influência das cidades: 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.).

Caso seguíssemos a tese de Guimarães (2020GUIMARÃES, R. B. et al . O raciocínio geográfico e as chaves de leitura da COVID-19 no território brasileiro. Estudos avançados, v. 34, n. 99, pp. 119-140, 2020.) sobre a pandemia no Brasil, que considera que o caminho do vírus é o mesmo percorrido pelo capital, Xambioá estaria fora da rota e deveria ser menos atingida pela crise sanitária. Contudo, verificamos no estado do Tocantins que a cidade é a terceira em incidência de casos, sendo a primeira Araguaína e a segunda a capital do estado, Palmas. Dessa forma, traçamos como hipótese que a sua proximidade e a dependência com duas cidades médias, com forte atividade econômica, favorecem a disseminação do vírus na localidade.

Consideramos os dados dos boletins epidemiológicos do Tocantins, das respectivas prefeituras e do Monitora-COVID (FIOCRUZ, 2020FIOCRUZ (Fundação Oswaldo Cruz). Monitora-COVID. Disponível em: <https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/>. Acesso em 24/07/2020.
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) para verificar o comportamento da pandemia nas duas cidades médias (Araguaína e Marabá) e no centro local (Xambioá). Além de introdução e considerações finais, os resultados são apresentados da seguinte forma: a primeira parte com a configuração e a interdependência entre as cidades, abordando sua localização e o aparato de saúde; a segunda debate sobre a cidade como produto do capital e a cidade humanizada; em seguida, na terceira parte, são apresentados os resultados da pesquisa.

CONFIGURAÇÕES E INTERDEPENDÊNCIA ENTRE AS CIDADES

O campo de estudos sobre rede urbana apresenta considerável trajetória tanto teórica quanto empírica, possuindo interseção com órgãos de apoio ao desenvolvimento de políticas públicas acerca do ordenamento das cidades brasileiras. Vieira (2011VIEIRA, A. A. et al. Estudos recentes sobre a rede urbana brasileira: diferenças e complementaridades. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. v. 13, n. 2, pp. 55-70, 2011.), Conte (2014CONTE, C. H. Rede urbana: uma breve abordagem teórica. GEOATOS: Revista Geografia em Atos. v. 14, n.1, pp. 76-93, 2014.) e Alvim (2017ALVIM, A. M. M. et al. Proposta metodológica para estudo de hierarquia e rede urbanas: o caso do Tocantins. Anais... ENANPUR. 17. Sessão Temática 8 - Técnicas e Métodos Para Análise Urbana e Regional. Pp. 1-18. São Paulo: ANPUR, 2017.) referenciam a Teoria dos Lugares Centrais, proposta por Christaller (1933)CHRISTALLER, W. Central places in Southern Germany. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1966 [1933]., como um dos marcos iniciais para o debate acerca daquilo que Alvim (2017, p. 3)ALVIM, A. M. M. et al. Proposta metodológica para estudo de hierarquia e rede urbanas: o caso do Tocantins. Anais... ENANPUR. 17. Sessão Temática 8 - Técnicas e Métodos Para Análise Urbana e Regional. Pp. 1-18. São Paulo: ANPUR, 2017. aponta como “uma teoria urbana e regional, que permitiu a identificação de níveis distintos de lugares centrais pautados na importância relativa dos lugares em sua região”. O debate em torno das discussões sobre a rede de cidades brasileiras é fortalecido com a Série Caracterização e Tendências da Rede Urbana do Brasil (IPEA; IBGE; UNICAMP, 2001IPEA; IBGE; UNICAMP. Configuração Atual e Tendências da Rede Urbana (6 v.), Série Caracterização e Tendências da Rede Urbana do Brasil. Brasília: IPEA, IBGE, NESUR, Universidade Estadual de Campinas, 2001.). Tais discussões nos possibilitam a seguinte definição:

[...] rede urbana em que é possível se notar a existência de uma hierarquia urbana, afinal, algumas cidades por serem melhor equipadas, dispondo de estrutura funcional diferenciada e mais diversificada, ocupam posições hierárquicas superiores tornando-se referência na região. (ALVIM, 2017ALVIM, A. M. M. et al. Proposta metodológica para estudo de hierarquia e rede urbanas: o caso do Tocantins. Anais... ENANPUR. 17. Sessão Temática 8 - Técnicas e Métodos Para Análise Urbana e Regional. Pp. 1-18. São Paulo: ANPUR, 2017., p. 3)

A delimitação das três cidades para este estudo pressupõe tipologias hierárquicas distintas. Araguaína (TO) tem população estimada, para 2019, de 180.470 e Marabá (PA) de 279.349 pessoas, ambas consideradas cidades médias e Capitais Regionais C (IBGE-REGIC, 2020IBGE. Regiões de influência das cidades: 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.), tanto por seu contingente populacional como pela função que desempenham em suas respectivas regiões. A terceira cidade focalizada, Xambioá (TO), classificada como Centro Local (IBGE-REGIC, 2020IBGE. Regiões de influência das cidades: 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.), tem população estimada para 2019 de 11.540 pessoas, e está a 140 km de distância de Araguaína e 164 km de Marabá.

Como hipótese, entendemos que a hierarquia urbana e a dinâmica regional impetrada pela BR-153, que corta as três referências, fazem com que Araguaína, o segundo município mais populoso do Tocantins, e Xambioá, o vigésimo terceiro, ocupem no ranking de contaminação pelo COVID-19, observável nos Boletins do Tocantins, respectivamente o 1° e o 3° lugares (o 2º lugar é ocupado pela capital Palmas). Fortalece nossa hipótese o entendimento observado em estudo do IPEA dedicado às redes urbanas ao considerar que o rodoviarismo “contribuiu para a criação e a consolidação de novos vetores de penetração e de circulação no interior e entre os espaços regionais” (IPEA, 2001IPEA; IBGE; UNICAMP. Configuração Atual e Tendências da Rede Urbana (6 v.), Série Caracterização e Tendências da Rede Urbana do Brasil. Brasília: IPEA, IBGE, NESUR, Universidade Estadual de Campinas, 2001., p. 41).

As duas cidades médias, Marabá e Araguaína, encontram-se na chamada fronteira mineral-agrícola, que lhes confere destaque regional. Cabe dizer que têm parte de sua dinâmica atribuída ao programa implementado pelo governo federal no ano de 1974 intitulado POLAMAZÔNIA (Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia), fortalecendo a expansão da agricultura e mineração para mercados nacional e global, praticada a partir de parâmetros baseados em ciência de ponta, como a classifica Santos (2000SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.). Nesse sentido,

[...] a chamada nova fronteira agrícola do Brasil constitui-se pela região formada por parte dos Estados do Maranhão, Piauí e Bahia, e por todo o território do Tocantins, sendo conhecida pelo acrônimo de MAPITOBA. Esta região é formada por 31 microrregiões. Além deste território, o Sudeste do Pará também vem sendo foco da expansão agrícola do país, sendo que inclui sete microrregiões, fazendo divisa com Tocantins. (BECKMANN; SANTANA, 2019BECKMANN, E; SANTANA, A. C. Modernização da agricultura na nova fronteira agrícola do brasil: MATOPIBA e sudeste do Pará. Revista em Agronegócio e Meio Ambiente, v. 12, n. 1, pp. 81-102, 2019., p. 84)

Tal contexto regional confere àquelas cidades centralidade, sendo que para Araguaína há a seguinte observação:

[...] podemos considerar que a cidade de Araguaína, além de exercer centralidade em sua região de influência imediata, por meio de processos ligados tanto à expansão agrícola da fronteira quanto a processos propriamente relacionados a serviços e comércio, ainda se coloca como principal interligação dessa região entre os fluxos de outros centros econômicos no Brasil e no mundo. (GOMES JR., 2014GOMES JR., E. A centralidade do município de Araguaína-TO na Amazônia oriental. Anais... Seminário Internacional RII. 13. Taller de Editores RIER. 6. Salvador: RII, pp.1-15, 01 a 04 de setembro de 2014., p. 13)

Por sua vez, Marabá exerce centralidade em razão dos chamados grandes projetos mineradores, postos em prática nas décadas de 1970 e 1980 na Amazônia, o Projeto Grande Carajás ou PGC. Resulta dessa política a instalação da Companhia Aços Laminados do Pará, a ALPA, e o crescimento nos censos demográficos dos anos de 1991, 2000, 2010 acima dos padrões estadual e nacional (CARVALHO; SOUZA, 2018CARVALHO, M. R. S.; SOUZA, M. V. M. A produção do espaço urbano em Marabá- PA e sua relação com as ocupações urbanas: o caso do Bairro Nossa Senhora Aparecida. Caminhos de Geografia. v. 19, n. 66, pp.116-132, 2018.; MONTE-CARDOSO, 2018; MONTEIRO, 2005MONTEIRO, M. A. Mineração industrial na Amazônia e suas implicações para o desenvolvimento regional. Novos Cadernos NAEA. v. 8, n. 1, pp. 141-187, 2005.).

As cidades médias ocupam lugar de relevância no ordenamento político urbano brasileiro, sendo que, de acordo com proposição do IBGE (2017)IBGE. Divisão regional do Brasil em regiões geográficas imediatas e regiões geográficas intermediárias: 2017. Rio de Janeiro: IBGE, 2017., tanto Araguaína quanto Marabá nomeiam regiões geográficas imediatas e intermediárias. Ainda de acordo com o IBGE (2018)IBGE. Regiões de influência das cidades: 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020., ao parametrizar os deslocamentos populacionais em busca de serviços de saúde de baixa e média complexidade, o Tocantins e, particularmente, Araguaína possuem dinâmica distinta daquela observada na região Norte do Brasil.

A rede urbana das Regiões Norte e Centro-Oeste, com médias de deslocamento igualmente elevadas (276 km no Norte e 256 km no Centro-Oeste), são marcadas pelo fluxo direcionado às capitais, quase sem existência de polos secundários. A exceção é o Tocantins, cujas cidades são atraídas tanto por Palmas (TO) quanto por Araguaína (TO), e ainda pelo arranjo populacional de Imperatriz/MA, cuja influência alcança o sudoeste do Maranhão, norte do Tocantins e sudeste do Pará. (IBGE-REGIC, 2018IBGE. Regiões de influência das cidades: 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020., p. 111)

A Figura 1 espacializa o contexto mencionado, em que as três cidades são cortadas pela BR-153 e se localizam na confluência das regiões norte do estado do Tocantins e sudeste do Pará.

Figura 1
Araguaína, Xambioá e Marabá no corredor da BR-153.

Vinculada às contextualizações acima, a gestão pública de Xambioá emitiu parecer a um portal de notícias local, em 06/06/2020, atribuindo 4 fatores ao crescimento de 2.110% dos casos de COVID-19 na cidade num período inferior a 30 dias. Dois deles sustentam nossa hipótese: Xambioá faz fronteira com o estado do Pará e tem a incidência de uma rodovia federal, a BR-153; e o polo administrativo de referência da população de Xambioá é Araguaína (AFNOTÍCIAS, 2018).

Cabe dizer que, naquela data, Xambioá era o terceiro município tocantinense em número de casos de infectados por COVID-19, entre os 139 do estado.

Como sustentação, mencionamos a gestão da saúde pública no estado do Tocantins a partir da Lei 8080 (BRASIL, 1990), que institucionaliza sua regionalização como um dos eixos organizacionais do Sistema Único de Saúde.

Araguaína e Xambioá integram a Região de Saúde Médio Norte Araguaia, que abrange 17 municípios, tendo a primeira cidade como referência. A população estimada pelo IBGE para a referida região em 2019 é de 301.862 habitantes, o que corresponde a 19% da população do estado. Destaca-se que a distância média para a referência de saúde regional é de 95 km (IBGE-REGIC, 2020IBGE. Regiões de influência das cidades: 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.). A distância entre Araguaína e Xambioá é de 118 km. A figura 2 nos mostra a espacialização de tais informações:

Figura 2
Equipamentos de saúde em Araguaína e Xambioá.

Verificamos que os equipamentos de saúde de média e alta complexidade se concentram em Araguaína, enquanto Xambioá possui apenas um hospital de baixa complexidade com 28 leitos, sem UTI (SESAU-TO, 2020bSESAU-TO. Hospitais estaduais. 2020b. Disponível em: <https://saude.to.gov.br/atencao-a-saude/gestao-hospitalar/gestao-hospitalar/hospitais-estaduais/>. Acesso em 31/07/2020.
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), o que agravou a falta de acesso da população a leitos de alta complexidade nessa época de pandemia. Segundo a SESAU-TO (2020b)SESAU-TO. Hospitais estaduais. 2020b. Disponível em: <https://saude.to.gov.br/atencao-a-saude/gestao-hospitalar/gestao-hospitalar/hospitais-estaduais/>. Acesso em 31/07/2020.
https://saude.to.gov.br/atencao-a-saude/...
, o Hospital Regional de Xambioá (HRX) proporciona atendimento às cidades tocantinenses de Araguanã, Carmolândia, Piraquê, Wanderlândia, Darcinópolis, Angico, Cachoeirinha, Ananás, além de cidades do Pará, como São Geraldo e Piçarra. Ser referência para cidades ainda menores agrava a situação de precariedade nos serviços públicos xambioaenses.

Nesse sentido, quando a população de tais localidades necessita de assistência de alta complexidade, precisa recorrer em massa à cidade de Araguaína. Cabe contextualizar a cidade, que se configura como Centro Local, sendo sua influência restrita a si mesma (IBGE-REGIC, 2020IBGE. Regiões de influência das cidades: 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.). Apesar de ter uma aparência prazerosa, Xambioá é uma cidade com alta vulnerabilidade social, onde, dos quase 12 mil moradores, somente 11,9% (equivalente a 1.371 pessoas) têm ocupação, sendo a renda per capita de meio salário-mínimo mensal. Localizada no bioma Amazônia, a arborização chega a mais de 93%, porém, a urbanização das vias públicas é de apenas 1,1% (IBGE-CIDADES, 2018IBGE. Regiões de influência das cidades: 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.). Trata-se de uma cidade pequena, com poucos equipamentos urbanos, mas que na atual pandemia sofre influências de cidades-médias estratégicas para o capital.

CIDADE HUMANIZADA X CIDADE DO CAPITAL

A pandemia trouxe para o centro do debate a relativização dos supostos benefícios de uma economia liberal com foco no livre comércio e na diminuição da mediação do estado. Observam-se os seguintes aspectos: (1) o trabalho reafirma a centralidade nas relações sociais, bastando os trabalhadores permanecerem em casa para se instalar crise econômica considerável; (2) a severidade da crise atual é dada pela má distribuição dos recursos e não pela doença, uma vez que os agravantes são as condições de vida da maior parte das pessoas; (3) o mercado precisa da regulação do Estado, pois em momentos de emergência como a atual paradoxalmente recorre ao poder público para se manter. Em outros termos, a crise sanitária institui um momento de reflexão sobre a necessidade de o capital se submeter à política, devendo esta, por sua vez, submeter-se à vida humana (OLIVEIRA; MACHADO; SORRENTINO, 2020OLIVEIRA, A. F.; MACHADO, J.; SORRENTINO, M. A utopia pós-pandemia de COVID-19: dignidade humana e a transição ecológica como paradigma de reconstrução social. In: CASTRO, D.; SENO, D. D.; POCHMANN, M (orgs.). Capitalismo e a Covid-19: um debate urgente. São Paulo: [s.n], 2020, pp. 178-188. Disponível em: <http://abet-trabalho.org.br/wp-content/uploads/2020/05/LIVRO.CapitalismoxCovid19.pdf>. Acesso em 29/07/20.
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; POLANYI, 2000POLANYI, K., A grande transformação. Rio de Janeiro: Campus, 2000 [1944].[1944]).

Nessa lógica das contradições capitalistas, há que se pensar na visão de cidade que queremos. O debate gira em torno da discussão sobre qual desenvolvimento econômico necessitamos num momento crucial em que a pauta neoliberal mostra sua inépcia:

O coronavírus promoveu a falência múltipla do sistema capitalista. O muro de defesa de suas ações caiu. A necessidade de reformas, de corte de gastos, a meritocracia e o empreendedorismo como alternativas ao trabalho regulado e justo, a falta de prioridade no combate às desigualdades - como ter um sistema de saúde público -, entre outras teses, deram lugar a pautas até então ‘socialistas’, como renda básica, um Estado forte e atuante [...]. (CASTRO; SENO; POCHMANN, 2020, p. 8)

O resultado das políticas neoliberais, apresentado pela televisão na materialização de caixões sendo carregados por caminhões do exército da Itália, foi a demonstração do que Castro, Seno e Pochmann (2020) chamaram de “terra arrasada”: a falta de investimentos em saúde e a impossibilidade de parar as atividades econômicas, sob pena de desestruturação do sistema, mostraram que o ser humano é secundário no processo econômico. Souza (2020SOUZA, J. N. COVID-19 e capitalismo: uma visão. In: CASTRO, D.; SENO, D. D.; POCHMANN, M (orgs.). Capitalismo e a Covid-19: um debate urgente. São Paulo: [s.n], pp. 11-18, 2020. Disponível em: <http://abet-trabalho.org.br/wp-content/uploads/2020/05/LIVRO.CapitalismoxCovid19.pdf>. Acesso em 29/07/20.
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) dirá que serão justamente os mais pobres, fruto das desigualdades, os mais afetados pelo coronavírus. Nessa lógica, faz-se necessária uma diferenciação entre a cidade como produto para atender os interesses inerentes ao mercado e a cidade humanizada.

É necessário lembrar que os Planos de Integração Nacional, como os implementados no período da ditadura civil-militar para a região amazônica, tinham o intuito de constituir redes de cidades estratégicas, atraindo mão de obra e empresas através de incentivos fiscais. As escolhas por parte do Estado de quais cidades e quais empresas seriam instaladas fazem parte da estratégia de controle. Na região que apresentamos, tal interferência ficou marcante, posto que havia a necessidade, num primeiro instante, de combater a Guerrilha do Araguaia (1972-1975) e, num segundo momento, evitar que novos grupos de contestação ao regime se levantassem (CAMPOS FILHO, 2013CAMPOS FILHO, R. P. Araguaia: depois da guerrilha uma outra guerra. A luta pela terra no sul do Pará, impregnada pela ideologia da segurança nacional (1975-2000). Tese de Doutorado em Geografia: Universidade Federal de Goiás, 2013.).

Por necessidade de controle de território e exploração de riquezas, a região que tinha uma ocupação espontânea passa ter forte domínio estatal. Becker (2013BECKER, B. A urbe Amazônida. Rio de Janeiro: Garamond, 2013.) dirá que se forma fronteira urbana muito antes da fronteira agrícola. A utilização dos núcleos urbanos para exploração dos recursos naturais e a sua forte expansão fizeram com que a autora denominasse a região como “floresta urbanizada” (BECKER, 2013BECKER, B. A urbe Amazônida. Rio de Janeiro: Garamond, 2013.).

Becker (2013BECKER, B. A urbe Amazônida. Rio de Janeiro: Garamond, 2013.) ainda apresenta a ideia de que o trabalho realizado pelos povos originários, como os indígenas, de uso da terra e seus recursos foi apropriado por aqueles que chegaram à região, acoplando apenas novas formas de exploração e de exportação para o mundo, o que gerou um esgotamento dos recursos naturais. Além disso, cabe enfatizar que, mesmo com as riquezas produzidas, tais núcleos urbanos continuam pobres, uma vez que não se organizam a fim de se tornarem independentes de produtos externos: “Historicamente, a economia dos núcleos foi dominada pelo monopólio econômico e pelo poder público das grandes cidades da economia-mundo” (BECKER, 2013BECKER, B. A urbe Amazônida. Rio de Janeiro: Garamond, 2013., p. 39).

As características postas pelas urbes amazônidas e, especificamente, pelas três cidades estudadas não foram promotoras de justiça social e oferta de serviços básicos como o de saúde, para a maior parte da população. O fato de Xambioá não portar os equipamentos necessários ao capital não a torna isolada. Pelo contrário, a cidade é parte do fluxo de exploração de recursos, numa troca desigual, em que seus bens saem sem retorno para a população residente, sendo que seu acesso a serviços fica a centenas de quilômetros, assim como é para quase toda a população amazônida. Os centros locais, como Xambioá, são marcados por alto índice de trabalho informal, tendo, consequentemente, alta vulnerabilidade social e dependência de repasses de recursos da união (BECKER, 2013BECKER, B. A urbe Amazônida. Rio de Janeiro: Garamond, 2013.).

O vírus na pandemia seguiu o caminho do capital, como demonstrado na tese de Guimarães (2020GUIMARÃES, R. B. et al . O raciocínio geográfico e as chaves de leitura da COVID-19 no território brasileiro. Estudos avançados, v. 34, n. 99, pp. 119-140, 2020.), chegando com intensidade às cidades de Araguaína e Marabá. Ambas tiveram os primeiros casos de COVID em seus respectivos estados após as capitais, sendo que, no caso da Araguaína, mantém a dianteira na pandemia, à frente da capital Palmas. Por sua vez, Xambioá, fora do grande fluxo do capital, tem trocas e fluxos expressivos com as duas cidades médias próximas e, por conta disso, foi altamente impactada pelo coronavírus. Destarte, o vírus atingiu a todos, mas as especificidades das cidades constituem maneiras muito desiguais de enfrentamento. Nessa ótica, há que se pensar numa cidade humanizada.

Maricato (2015MARICATO, E. Para entender a crise urbana. São Paulo: Expressão popular, 2015.) e Gehl (2015GEHL, J. Cidades para as pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2015.) estabelecem como debate a superação do planejamento urbano voltado para atender a demanda de grupos específicos, limitados e representantes da elite. Em seu lugar, defendem uma cidade para as pessoas, na qual alguns valores seriam soberanos. A cidade não pode ser mercadoria a ser vendida para as forças do capitalismo. Deve se organizar para a promoção da vida, o que deve ocorrer a partir das políticas urbanas estruturais de transporte, habitação e saneamento (MARICATO, 2015MARICATO, E. Para entender a crise urbana. São Paulo: Expressão popular, 2015.), somadas às políticas de transição agroecológica que permitam uma sustentabilidade ambiental (VENTURA, 2020VENTURA, D. F. et al. Desafios da pandemia de COVID-19: por uma agenda brasileira de pesquisa em saúde global e sustentabilidade. Cadernos de Saúde Pública. v. 36, n.4, pp. 1-5, 2020. Disponível: https://www.scielo.br/pdf/csp/v36n4/1678-4464-csp-36-04-e00040620.pdf . Acesso em 29/07/20.
https://www.scielo.br/pdf/csp/v36n4/1678...
).

Nesse sentido, a partir da configuração de uma saúde global que envolva os objetivos de planejamento das cidades e de uso dos recursos naturais, pensa-se ser possível compor uma sociedade em que as pessoas e o meio ambiente estejam em primeiro lugar.

APRESENTAÇÃO METODOLÓGICA E DE RESULTADOS

Nesta seção, serão apresentadas comparações e possíveis causas para o alto número de casos de COVID-19 em Xambioá. Todos os dados relativos à COVID-19 foram obtidos em Monitora-COVID (FIOCRUZ, 2020FIOCRUZ (Fundação Oswaldo Cruz). Monitora-COVID. Disponível em: <https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/>. Acesso em 24/07/2020.
https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br...
) e nas secretarias municipais e estaduais de saúde.

Como primeira forma de aproximação, tem-se na Tabela 1 uma comparação pareada por data entre médias do número de novos casos de COVID-19. Nesse caso, foi realizada uma comparação entre frequências absolutas envolvendo pares com as três cidades. Como parâmetro para avaliar se as médias podem ser consideradas diferentes ou não, foi utilizado o nível de significância de 5%, considerado padrão para estudos estatísticos em ciências sociais (HAIR et al., 2009HAIR, J. F. et al. Análise multivariada de dados. São Paulo: Bookman, 2009.).

Tabela 1
Histórico da regionalização da saúde no estado do Tocantins.

Na Tabela 2, pode-se perceber que há semelhança entre os números de novos casos para as cidades de Araguaína-TO e Marabá-PA. Possivelmente, isso se deve à funcionalidade exercida por ambas, que são Capitais Regionais C e referência para deslocamento em busca de serviços, saúde, educação e fluxo nacional e internacional de negócios para commodities.

Tabela 2
comparação entre médias (Teste-T para dados pareados) até 18/07/2020 - comparação de frequências absolutas.

Na figura 3, a seguir, encontram-se as três séries de novos casos de COVID-19 comparadas em termos de frequência absoluta.

Figura 3
Casos novos de COVID-19 - frequência absoluta.

Pode-se perceber na figura anterior que o pico de novos casos foi muito superior em Marabá, por volta dos 80 dias de pandemia. Uma das possíveis razões para esse pico foi o déficit de saneamento existente no referido município. Segundo a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária (2020), Marabá teve a pior colocação em termos de saneamento básico entre as cidades brasileiras no conjunto amostral da pesquisa. Tal levantamento envolveu os 33,33% dos municípios que forneceram todos os indicadores necessários ao cálculo do índice de saneamento básico.

Na Tabela 2, a seguir, encontram-se comparados de forma pareada por data os números de casos por 100.000 habitantes nas três cidades citadas.

Tabela 3
comparação entre médias (Teste-T para dados pareados) até 18/07/2020 - comparação de casos por 100.000 habitantes.

Pode-se depreender do quadro anterior que há uma relação mais próxima da cidade de Xambioá com Araguaína, pois o crescimento proporcional do número de casos ocorre aproximadamente no mesmo ritmo nesse par de cidades. Segundo Guedes e Brito (2018GUEDES, L. S.; BRITO, J. L. S. Caracterização socioeconômica da microrregião geográfica de Araguaína (TO) Observatorium: Revista Eletrônica De Geografia, v. 6, n. 17, pp. 91-103, 2018.), a cidade de Araguaína funciona como um polo econômico e logístico para a sua microrregião, que contém Xambioá, comprovando nossa tese de que a influência de cidades para o capital é alta na relação entre os dois municípios.

Na figura 4, a seguir, constam as séries temporais de novos casos de COVID-19 por 100.000 habitantes, desde o início da pandemia.

Figura 4
Casos novos de COVID-19 por 100.000 habitantes.

Pode-se perceber na figura anterior que proporcionalmente Xambioá teve um pico de casos muito superior ao das duas cidades médias em suas proximidades, o que pode ser compreendido a partir de alguns pontos. O indicador de emprego e renda no índice de desenvolvimento humano municipal de Xambioá está num patamar crítico, com 0,3271, tendo sofrido queda significativa desde 2006, quando tinha o valor de 0,5205 (FIRJAN, 2018aFIRJAN (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro). Evolução do IFDM emprego & renda: 2005 a 2016. Disponível em: <https://www.firjan.com.br/data/files/2E/F3/1F/87/F1B8461049FF6646A8A809C2/Evolu__o%20do%20IFDM%20EmpregoRenda%20-%202005%20a%202016.xlsx>. Acesso em 24/07/2020.
https://www.firjan.com.br/data/files/2E/...
). Essa queda no índice de emprego e renda leva a relações mais precárias de trabalho, com ocupações informais. Nessas ocupações, é praticamente impossível a realização de distanciamento social efetivo. Em compensação, o indicador de saúde do IDH municipal está num patamar elevado (0,6582) desde 2014 (FIRJAN, 2018bFIRJAN (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro). Evolução do IFDM saúde: 2005 a 2016. Disponível em: <https://www.firjan.com.br/data/files/04/04/CC/97/F1B8461049FF6646A8A809C2/Evolu__o%20do%20IFDM%20Sa_de%20-%202005%20a%202016.xlsx>. Acesso em 24/07/2020.
https://www.firjan.com.br/data/files/04/...
), o que pode ter amortecido o impacto da pandemia no município.

Em termos de saneamento básico, a cidade de Xambioá não consta no Ranking Brasileiro de Saneamento Básico da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária (ABES, 2020). No entanto, uma iniciativa conjunta da FIOCRUZ, FUNASA (Fundação Nacional de Saúde), UFMG e da cooperativa EITA (Educação, Informação e Tecnologia para Autogestão) mapeou indicadores de saneamento básico em pequenos municípios brasileiros. Os dados levantados encontram-se no portal INFOSANBAS (Informações de Saneamento Básico) (2020), nos quais observamos informações sanitárias relativas ao município de Xambioá. Em primeiro lugar, ressalta-se que 64,9% da população vive em área urbana. Em termos de abastecimento de água, 35% da população rural obtém sua água de poços ou nascentes existentes na propriedade, enquanto 11% relataram obter de fonte alternativa à rede geral de abastecimento. Segundo Scorsafava et al. (2010SCORSAFAVA, M. A. et al. Avaliação físico-química da qualidade de água de poços e minas destinada ao consumo humano. Revista do Instituto Adolfo Lutz, v. 69, n. 2, pp. 229-232, 2010.), o abastecimento por poços ou nascentes não possui indicadores confiáveis de potabilidade da água, o que pode ocasionar danos à saúde da população. Sobre a coleta, apenas 58% do lixo de propriedades rurais é coletado por serviço de limpeza, indicando, por esse motivo, que 38% são queimados dentro das propriedades. Segundo Pereira et al. (2017PEREIRA, A. R. et al. Estudo de caso dos impactos na saúde e bem-estar da população, provocados pela queima dos resíduos sólidos do lixão no município de Xique-Xique, Bahia. Anais… Congresso de educação ambiental interdisciplinar. 3. Juazeiro, Bahia: UNIVASF. 21 a 24 de novembro de 2017.), a queima de resíduos sólidos provoca efeitos deletérios na saúde dos moradores do entorno.

Em relação à situação dos banheiros residenciais no município, 5% dos domicílios urbanos e 18% casas nas áreas rurais não possuem banheiro de uso exclusivo dos moradores. Além disso, o esgotamento sanitário é realizado por meio de fossa rudimentar em 77% dos domicílios urbanos e 65% dos rurais. No caso dos domicílios urbanos, 8% do esgotamento era por vala e 7% por fossa séptica, enquanto que no caso dos domicílios rurais 10% eram por vala e 5% por fossa séptica. Além disso, o esgotamento sanitário das 14 escolas de Xambioá é por meio de fossa séptica. Segundo Conforto (2000CONFORTO, G. A regulação e a titularidade dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário no Brasil. Revista de Administração Pública, v. 34, n. 5, pp. 165-180, 2000.), o esgotamento sanitário realizado de forma adequada é preponderante para a prevenção de doenças na população em geral.

Segundo SESAU-TO (2020c)SESAU-TO. Boletim epidemiológico notificações para COVID-19. n. 137. 30 de julho de 2020. Disponível em: <https://central3.to.gov.br/arquivo/520839/>. Acesso em 31/07/2020.
https://central3.to.gov.br/arquivo/52083...
, o número de casos acumulados em Xambioá em 31/07/2020 era de 552, com notificação de apenas 8 óbitos no total até o momento. Essa taxa de mortalidade (1,4493%) é ligeiramente superior à de óbitos em relação aos casos notificados em nível mundial (1,3825%) (WORLDOMETER, 2020WORLDOMETER. Coronavirus (COVID-19) Mortality Rate. Disponível em: https://www.worldometers.info/coronavirus/coronavirus-death-rate/. Acesso em 31/07/2020.
https://www.worldometers.info/coronaviru...
), o que pode significar subnotificação de COVID-19 no município. Além disso, há indícios de baixa testagem no Brasil inteiro, prejudicando a tomada de ações em tempo hábil contra a pandemia (BOMFIM, 2020BOMFIM, C. O que os números dizem sobre o novo coronavírus e a COVID-19 no Brasil. 28/07/2020. Viva Bem - UOL. Disponível em: <https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/07/28/o-que-os-numeros-dizem-sobre-o-novo-coronavirus-e-a-covid-19-no-brasil.htm>. Acesso em 31/07/2020.
https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/...
).

CONCLUSÃO

O objetivo do trabalho foi demonstrar que uma cidade local como Xambioá (TO) sofreu impactos de propagação do vírus de forma intensa a partir da influência de duas cidades médias próximas. Contudo, os dados demonstraram que seu comportamento se assemelha somente ao da cidade de Araguaína, evidenciando seus fluxos, trocas e a dependência com relação a uma cidade com mais equipamentos urbanos. Isso não significa que Marabá não tenha contribuído com a propagação do vírus no município, pois a Figura 4 mostra picos alarmantes da doença, mas que em Xambioá e Araguaína o vírus se comportou de maneira semelhante.

Os resultados nos levam a afirmar as consequências da organização das cidades na Amazônia a partir de redes a serviço do capital, com poucas urbes pujantes, pensadas para atender elites locais e necessidades da cadeia produtiva, gerando, com isso, efeitos colaterais que são agravados durante a pandemia. No caso específico da cidade de Xambioá, sua proximidade com Araguaína a expôs de maneira severa à pandemia, sem a contrapartida de geração de melhorias das condições de vida e de mitigação dos problemas básicos da cidade.

Há uma contradição posta pelo momento: enquanto o capital foca somente no lucro, é dependente de “processos e instituições de produção da vida”, ou seja, está sujeito a seres humanos saudáveis que trabalhem, os quais são dependentes de habitação, alimentação, transporte, entre outros elementos. Por outro lado, o capital precisa voltar seu olhar para a organização das cidades, lócus de vida e de trabalho, e pensar sua reorganização para garantir o próprio fluxo de geração de mais-valia. Não se pode negar a força que o capital tem para a organização da vida, mas é necessário constituir uma nova hierarquização de prioridades, na qual o direito à manutenção de uma boa existência esteja alocado como prioridade.

Para novas pesquisas, sugere-se a inclusão de outras cidades ao longo da BR-153 e ainda as cidades onde a pandemia demorou mais a chegar, observando sua relação com o transporte rodoviário. Outra análise importante seria de uma relação entre as decisões políticas locais relacionadas ao isolamento social e seus reflexos no número de casos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2020
  • Aceito
    14 Nov 2020
  • Publicado
    15 Mar 2021
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