Resumo
Este artigo trata da recomposição identitária pela qual passou a luta de Okinawa durante a primeira metade do Século XX. O Karate é amplamente praticado em todo o planeta, mas seu processo de difusão mundial só ocorre após a mudança para a denominação atual. O objetivo desta pesquisa histórica é identificar os elementos do processo de ruptura e as renegociações identitárias que culminam com a adoção do nome Karatedō. Para isso, foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa baseada nos pressupostos da história cultural. A coleta de dados ocorreu em fontes primárias como jornais e manuscritos de Okinawa e de Tóquio da primeira metade do século XX. Este estudo revela uma drástica quebra no paradigma atual, removendo de Funakoshi Gichin a autoria no estabelecimento do nome Karatedō e apontando o protagonismo de outros uchinānchu nessa mudança, além desse processo ter ocorrido em meio a muitas resistências e disputas de poder.
Palavras-chave
História; Esporte; Karate; Japão
Abstract
This paper deals with the reconstitution of identity that the Okinawan martial art underwent during the first half of the 20th century. Karate is widely practiced throughout the planet, but its process of global diffusion only occurred after the change to its current name. The objective of this historical research is to identify the elements of the process of rupture and the identity renegotiations that culminated in the adoption of the name Karatedō. A qualitative study was developed based on the assumptions of cultural history. Data collection took place in primary sources such as newspapers and manuscripts from Okinawa and Tokyo in the first half of the 20th century. This study reveals a drastic break in the current paradigm, removing from Funakoshi Gichin in the establishment of the name Karatedōand, and pointing to the leading role of other uchinānchu in this change, in addition to this process having occurred amidst much resistance and power struggles.
Keywords
History; Sport; Karate; Japan
Résumé
Cet article traite de la recomposition identitaire qu’a connue la lutte d’Okinawa au cours de la première moitié du XXème siècle. Le Karaté est donc largement pratiqué à travers la planète mais son processus de diffusion mondiale ne se produit qu'après le changement pour son nom actuel. L’objectif de cette recherche historique est d’identifier les éléments du processus de rupture et des débats identitaires qui aboutissent à l’adoption du nom Karate-dō. Pour cela, une étude qualitative a été développée sur la base des hypothèses de l’histoire culturelle. La collecte de données a eu lieu à partir de sources primaires telles que des journaux et manuscrits d'Okinawa et de Tokyo pour la première moitié du XXème siècle. Cette étude révèle une rupture radicale dans le paradigme actuel, supprimant ainsi la paternité fondatrice de Funakoshi Gichin dans l'établissement du nom Karatedō soulignant le rôle principal d’autres uchinānchu dans ce changement en s'étant produit au milieu de nombreuses résistances e de luttes de pouvoir.
Mots clés
Histoire; Sport; Karaté; Japon
INTRODUÇÃO1
O Karate (ou Karatedō2) é divulgado como uma forma de Budō3 com origem nos Ryūkyū - atual prefeitura4 de Okinawa. Essa luta teve seu registro oficializado no Japão em 1933 como uma adição às formas modernas de lutas japonesas tais como: Judô, Kendō e Aikidō (McCarthy; Enkamp, 2011).
Ao longo do desenvolvimento do Karate, há fases marcantes com rupturas drásticas que são acompanhadas pela mudança da forma de se praticar, mudanças na forma de ensinar e até mesmo mudanças que envolvem o próprio nome usado para referir-se a essa prática. Ou seja, até apresentar o formato voltado ao desenvolvimento do caráter e civilidade, da definição do Nippon Budō Kyogikai5 (1987), o Karate percorreu um longo caminho de mudanças e se apresenta como um fenômeno cultural, reinventando-se como tradição (Hobsbawm; Ranger, 2012) e como prática, alterando inúmeros aspectos que o caracterizam. Isso ocorre toda vez em que há recomposições identitárias na sociedade de Okinawa, e depois no Japão.
Vale destacar que o território que atualmente identificamos como a prefeitura japonesa de Okinawa, até recente período era um reino independente. Esse reino, então denominado Ryūkyū, jogou por séculos um jogo diplomático arriscado. No período referente ao início do Xogunato Tokugawa até a Restauração Meiji, do século XVII ao XIX, os Ryūkyū eram um reino vassalo da China, mas que pagava tributos ao Japão, inicialmente como forma de negociação para manter sua cultura e organização social estabelecida com o mínimo de influências vindas de Tóquio (Koyama; Wada; Kadekaru, 2021; Tan, 2004). Essa situação termina na Restauração do Imperador Meiji de 1868, quando então o rei de Ryūkyū, estabelecido em uma dinastia patrocinada pelos chineses, precisa se curvar ao Imperador japonês (Cramer, 2018; Kerr, 2000). Assim começa o processo para a incorporação das ilhas e estabelecimento da atual Prefeitura de Okinawa. Isso muda drasticamente o modo de vida mais ligado aos padrões do sul da China, para que se incorpore uma série de práticas e representações para atender expectativas japonesas. Isso ficaria evidente na tentativa de se exportar o modelo de praticar Karate para o Japão Continental, não mais apenas dentro das famílias, mas nas escolas, como forma de educação física (Nakazato et al., 2003). Essa tentativa frustrada de valorizar a cultura ryukyuana através da sua luta típica teve seu auge na escrita dos famosos dez artigos sobre o Karate por Itosu Ankō6. Após esse episódio, o Karate só voltaria a receber maior atenção em Tóquio na década de 1920, quando finalmente foi ali introduzido por Funakoshi Gichin.
A partir desse ponto, através do trabalho de Funakoshi (um professor das escolas de Okinawa e nativo dessa ilha)7, o Karate faria sua jornada de niponização e modernização que culminariam com a adoção dos padrões impostos pela Associação das Virtudes Militares Japonesas, também conhecida como Dai Nippon Butokukai (Koyama; Wada; Kadekaru, 2021). Esse processo de quinze anos influenciou fortemente as representações e práticas em Okinawa, a ponto de os mestres locais decidirem em assembleia pela mudança do nome dessa luta (Nakazato et al., 2003; Toyama, 1960). Essa ruptura não ocorreu, todavia, sem muitas resistências e disputas de poder (Kim; Kim, 2022).
Uma parcela substancial dos fatos históricos introduzidos até aqui é ignorada pelo senso comum e pela oralidade compartilhada pela maioria dos grupos de Karate no Brasil, como evidenciado em estudos recentes (Oliveira, 2020). De fato, uma série de falácias povoam o imaginário dos praticantes brasileiros (Frosi; Mazo, 2011), entre elas o paradigma de que o nome Karatedō fora estabelecido pelo próprio Funakoshi. Isso é uma das justificativas para o aprofundamento nos estudos e pesquisas concernentes à história do Karate.
Frente a esse contexto e ao crítico estado de desinformação sobre a história do Karate, surgem as questões de pesquisa: como a luta de Okinawa, introduzida no Japão, passa por apropriações nesse novo contexto, renegociando sua identidade e assumindo representações identitárias nipônicas? Como viria a surgir o nome moderno Karatedō8?
Sendo assim, o objetivo desta pesquisa histórica é identificar nas fontes os elementos do processo de ruptura e as renegociações identitárias que culminam com a adoção do nome Karatedō para designar a luta de Okinawa. Para isso, foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa baseada nos pressupostos da história cultural (Burke, 2008; Pesavento, 2008; Chartier, 2000), a qual considera fundamental o contexto social dos acontecimentos a partir de uma prática produtora de representações que elucidam as bases culturais do fenômeno estudado. Os dados foram obtidos consultando fontes primárias, como jornais e manuscritos de Okinawa e de Tóquio da primeira metade do século XX, que continham ocorrências sobre Tōde (唐手 - mão chinesa), Karate (空手 - mão vazia) ou Karatedō (空手道 - caminho da mão vazia). Esses materiais foram garimpados presencialmente, através de consulta às edições digitalizadas e de acesso aberto ao público no acervo do Karate Kaikan toshokan (図書館 - biblioteca do museu do Karate Hall de Okinawa) e do Okinawa-ken kōkai ākaibu (沖縄県公開アーカイブ – arquivo público da Prefeitura de Okinawa). A busca resultou em edições de 1924 a 1936 dos jornais Ryūkyū Shinpō (2022), Asahi Shimbun (2022) e Yomiuri Shimbun (2022) que indicavam matérias com a presença dos termos selecionados. As consultas realizadas foram feitas nas edições do ano de 1893 até 1936. Essas datas foram escolhidas como recorte por se tratar do ano de lançamento do mais antigo jornal de Okinawa (Ryūkyū Shinpō9) até o ano da realização da reunião em que se oficializou o uso do termo Karatedō. O sistema digital de busca, nesses locais de memória, tinha seu funcionamento em idioma japonês (nihongō), porém os documentos encontrados além do japonês, por vezes, apresentaram termos e expressões no idioma de Okinawa (uchināguchi - 沖縄口).
As fontes primárias foram cruzadas e comparadas com a literatura corrente que versa sobre a história do Budō e em especial a do Karate. A análise ocorreu conforme as técnicas da análise documental (Cellard, 2008) e da metodologia visual (Rose, 2007), a qual consiste em realizar operações de desmembramento do texto e das imagens em unidades de significado, buscando desvendar seus diferentes sentidos, para então reagrupá-los em tópicos norteadores da pesquisa. Na sequência, apresentamos os tópicos que resultaram da revisão na literatura e da análise documental e visual das fontes.
A QUESTÃO OKINAWA
Kerr (2000) identifica diferenças significativas nos padrões culturais das ilhas em relação ao restante do Japão, com forte capacidade de adaptação aos novos contextos. Descreve os habitantes do Ryūkyū (ryūkyūjin) como pessoas mais desprendidas e menos rígidas do que identificamos como o japonês das ilhas principais (yamatojin). Esse autor, ao retratar o passado do Ryūkyū, também identifica que há evidências arqueológicas para a realização de viagens marítimas comerciais dos navegadores do Ryūkyū para outros países asiáticos na mesma época da produção dos primeiros vasos ornados no Japão do período Jōmon (cerca de 10.000 anos atrás).
Menzies (2006) aponta que, já no período do Império Ming (1368 a 1644), os navegadores do Ryūkyū recebiam a alcunha de navegadores ferozes e de melhores piratas da Ásia. A ponto de serem usados pela marinha chinesa como batedores em embarcações mais leves e rápidas durante suas expedições. Uma cultura fortemente ligada ao comércio marítimo, com traços guerreiros e que atuava como ponte entre vários países (especialmente regiões que hoje são China, Coreia e Japão).
Não é surpreendente que tenham desenvolvido técnicas de combate e autodefesa adaptadas a espaços pequenos, como guarnições, portos e navios. Essas técnicas foram renomeadas ao longo do tempo conforme diferentes períodos históricos provocaram mudanças e apropriações por diversos grupos sociais. McCarthy (1995) identifica as mais antigas manifestações de luta em Okinawa como Tī (expressão local para “mão”), ou seja, “luta com mãos”. Há posteriormente também o uso da expressão Uchinadī ou Okinawa-te (mão de Okinawa em uchināguchi e nihongō respectivamente) para designar essa mesma forma de luta. Durante o período de forte relação com a China houve também o emprego do termo Tōdī (uchināguchi) ou Tōde (nihongō). Esse último é normalmente traduzido como “mão chinesa”, porém o caractere para “chinesa” não é aquele atualmente usado para designar esse país, e sim aquele antigamente usado para identificar a Dinastia Tang (Cramer, 2018, p. 44). Ou seja, há aqui uma referência a um período histórico muito claro da China, quando afloraram muitas formas de lutas. Em especial, podemos identificar aqueles estilos do sul da China que parecem ter uma grande influência na formulação do Tōde de períodos mais recentes.
Sobre isso, Yoshimura Chōgi (1866-1945) do Udun (linhagem real) afirmou: “as pessoas costumavam dizer que Matsumura era Okinawa-te e Higaonna era Tōde” (Yoshimura, 1941, p. 22). O autor aqui se referia aos dois grandes nomes do Karate de Okinawa: Matsumura Sōkon10 e Higaonna Kanryō11, a quem são conectadas comumente as linhas Shōrin e Shōrei, respectivamente. Segundo Motobu (2022a), Yoshimura Chōgi começou a estudar com Matsumura quando tinha por volta de 18 anos, e com Higaonna quando tinha aproximadamente 23 anos. Podemos então supor que se trata da percepção do público na época em que ele tinha 23 anos, ou seja, em 1888 (Motobu, 2022a, p.1). O autor ainda explica que naquele tempo a pronúncia Karate para mão chinesa ainda não estava em uso. Em vez disso, a palavra mão - Tī (uchināguchi) ou Te (nihongō) era comum. As palavras Okinawa-te e Tōde foram adotadas posteriormente como variações do Tī.
Isso parece ser confirmado na transcrição do relato de Hanashiro Chōmo: “Nos velhos tempos, nós, uchinānchu, costumávamos chamá-lo Tōdī ou Tōde, não Karate. Nós também chamamos simplesmente de Tī ou Te. Que significa lutar com as mãos e punhos” (Toyama, 1960, p. 378). Ou seja, Tōde provavelmente veio a se referir às novas artes marciais desenvolvidas com influências chinesas. O termo kamite (mão dos deuses) de Yabu Kentsū12 parece ter se referido a uma arte marcial quase idêntica a Okinawa-te. Se era uma arte marcial indígena de Okinawa, uma versão local de uma arte marcial chinesa mais antiga, ou uma mistura de ambas com mais artes marciais japonesas, não sabemos, mas em qualquer caso, “Tōde e Okinawa-te foram distinguidos e opostos no final da década de 1880” (Motobu, 2022a, p. 2).
Na década de 1900, a conceituação acima muda para algo diferente. No chamado “Dez Artigos” (de 1908), escritos por Itosu Ankō, há a seguinte frase: “Karate (mão chinesa) não se origina do confucionismo ou do budismo. Nos tempos antigos, duas escolas, Shōrin-ryū e Shōrei-ryū, foram introduzidas da China”. Nessa interpretação, o termo Tī desaparece e Shōrin-ryū e Shōrei-ryū passam a ser identificados como suas origens. Isso aponta para o alto nível de aceitação que havia naquela época, de toda sorte de coisas ligadas à China com a representação de serem práticas ou artefatos altivos e de bom gosto (Motobu, 2022a; Cramer, 2018).
Talvez ainda mais importante seja perceber que o termo Okinawa-te também desaparece, e que a pronúncia chinesa foi alterada para a japonesa – de Tōde para Karate, sendo a identidade da luta reinventada a partir daquela inteiramente de origem chinesa. À medida que o Karate bélico foi reinventado no Karate educacional ensinado nas escolas, Te foi usado para significar Koryū Karate (estilo antigo) ou como luta indígena dos Ryūkyū, que estava fora do escopo do Karate escolar. Assim, Tōde e Karate (ambos significando mão chinesa) diferem em suas representações e práticas. “No período pós-guerra, foi ainda interpretado que Shōrin-ryū é um estilo do norte chinês de kenpō e Shuri-te segue esse estilo, enquanto Shōrei-ryū é um estilo do sul de kenpō e Naha-te segue esse estilo” (Motobu, 2022a, p. 3).
A questão problemática aqui é que nem Shōrin-ryū nem Shōrei-ryū eram conhecidos durante o período do Reino Ryūkyū, e tampouco são conhecidos na China. Isso se deve ao fato de os chineses não usarem o ideograma ryū para designar estilos de lutas. Especula-se que Itosu tenha encontrado palavras que pudessem ser interpretadas como Shōrin-ryū ou Shōrei-ryū no chamado livro Bubishi13 que ele obteve durante a era Meiji (1868-1912), e as usou para tornar a história do Karate mais respeitável quando submeteu os “Dez Artigos” ao governo de Okinawa (Motobu, 2022a, p. 3). É compreensível que ele tenha evitado o termo do idioma provincial Tī e usado o novo termo Karate com a mesma intenção, buscando renegociar a identidade da luta de Okinawa ao fazer uso de um vocábulo nipônico. Essas modificações e substituições do nome também se apresentam como reinvenções que desafiam nossa compreensão da história e evolução das lutas de Okinawa antes do século XX.
Patrick McCarthy (1995), ao pesquisar o que seriam Shōrin e Shōrei, identifica a forte influência de dois estilos na formação do Tōde. O primeiro seria o estilo da Garça Branca, um estilo do sul da China criado pela mestra Fāng Qīnián de Yongchun (Enkamp, 2020). A segunda influência marcante viria do que genericamente chama-se “Shaolin do Sul” ou “Punho do Monge”. Essas trocas culturais eram possíveis pois havia intercâmbio entre pessoas da aristocracia e da classe guerreira dos Ryūkyū com a China no período da vassalagem (a partir do Império Ming), assim como assentamentos de famílias chinesas em Okinawa e visitas regulares de fiscais e militares chineses (冊封使 - sappūshi) aos Ryūkyū (Nakazato et al., 2003).
Com o aporte de inúmeras técnicas de luta para os Ryūkyū através das visitas de emissários chineses, o intercâmbio com a China por parte de aristocratas e membros da casta guerreira de Okinawa (anji e peichin) e a instalação de trinta e seis famílias chinesas na ilha principal dos Ryūkyū, ocorre uma profunda modificação na maneira de praticar o Karate. Nessa fase, a luta de Okinawa era predominantemente denominada Tōde e foi altamente desenvolvida como forma de técnica de defesa pessoal e uso por militares e profissionais de segurança na proteção de portos, embarcações navais e nos palácios e mansões da aristocracia dos Ryūkyū (Nakazato et al., 2003; McCarthy, 1995). Como já vimos, todas essas mudanças enfraqueceram mesmo o uso do nome Tī (Motobu, 2022a).
Mudanças maiores vão ocorrer no século XIX, quando finalmente o rei Shō de Okinawa precisa se curvar ao Imperador japonês devido aos desdobramentos da Restauração Meiji (Kerr, 2000). É nesse momento que começa uma série de negociações identitárias em que o rei de Okinawa, ligado ao símbolo do Sol, perde seu status em favor do Imperador japonês, identificado como descendente direto da deusa solar Amaterasu. A Dinastia Shō, que surgiu patrocinada pela China, é dissolvida em 1879 e os Ryūkyū se tornam oficialmente uma prefeitura japonesa (McCarthy; Enkamp, 2011, p. 11). Okinawa resistiu desde os anos 1600 a essa incorporação pelo império japonês pagando ao governo do Xogum o mesmo tipo de imposto que pagava aos chineses. A Restauração Meiji impetrou o final dessa manobra geopolítica para preservar uma série de tradições locais (Kerr, 2000). Pouco depois, com o ultranacionalismo e o fascismo se aprofundando no Japão, acontecem as incursões na Manchúria e Coreia, transformando a China no inimigo a se fazer oposição mais direta (Abe; Kiyohara; Nakajima, 1992). Buscando a aceitação do governo central, os ryukyuanos foram aos poucos buscando maior alinhamento com essa visão, se apropriando de uma série de costumes vindos do Japão continental e chegando até mesmo a realizar revisionismo histórico de suas tradições na virada do século XIX para o XX, para se alinhar com a visão de Tóquio (Cramer, 2018; Kerr, 2000).
A reinvenção do Tōde nesse período inclui o fim da tradição do direito exclusivo do primogênito (一子相伝 – isshisōden) das famílias proeminentes de aprender a luta (Nakazato et al., 2003). O fim desse costume dá início a uma série de iniciativas para difusão e popularização do Tōde, incluindo sua sistematização como Educação Física Escolar. Os entusiastas da luta de Okinawa da época sofrem então um grande golpe nesse momento, com a negativa do Ministério da Educação japonês em introduzir essa mesma forma de Educação Física nas escolas das ilhas principais (Koyama; Wada; Kadekaru, 2021; McCarthy, 1995). Somente no início dos anos 1920 é que o Karate chegaria à Tóquio através da demonstração na I Exibição Atlética Nacional liderada por Funakoshi Gichin a convite do Imperador (Koyama; Wada; Kadekaru, 2021; Funakoshi, 1999).
3 O NASCIMENTO DO KARATE
Muitos acreditam que o povo japonês é exageradamente conformista. Essa percepção estereotipada foi construída com fortes influências de estudos enviesados patrocinados pelo governo estadunidense e que encontramos, por exemplo, em Benedict (2009). Todo o discurso tendencioso de autores no período Pós-Guerra trouxe ao imaginário de muitos integrantes da comunidade de praticantes do Karate a ideia de que a obediência quase servil era um traço da cultura desse povo, sendo por vezes reproduzida no Dōjō14 (Frosi, 2012). E ainda pior, que a humilhação imposta ao Imperador, de ordenar a rendição japonesa em 1945 pelo rádio, com a única intenção tática de remover-lhe o poder simbólico de descendente dos deuses e a consequente obediência da população, eram na verdade a evidência dessa característica de seu padrão cultural conformista (Benedict, 2009). Característica que teria facilitado a emergência do fascismo no país asiático (Sakaue, 2019; McCarthy; Enkamp, 2011; Abe; Kiyohara; Nakajima, 1992).
Alinhado a esse pensamento, por décadas, houve aqueles que pensaram que outros fenômenos acompanhariam esse padrão. Seguindo essa representação, a mudança do nome do Karate teria sido acatada assim que a proposta de alteração fosse trazida à luz. Para confirmar ou negar essa hipótese procuramos evidências nas fontes históricas. Se não percebêssemos resistências significativas a essa proposição, poderíamos acreditar na tese do típico padrão japonês conformista, vendida pela antropologia ocidental. Contrariamente, encontramos grupos extremamente resistentes ao abandono de algumas ideias que emergiram na primeira metade do século XX, como é o caso da Japan Karate Association (McCarthy; Enkamp, 2011, p. 26; Figueiredo, 2006, p. 369), assim como temos grupos no mesmo estilo trabalhando intensamente pela popularização de um Karate mais plural junto à World Karate Federation e ao Comitê Olímpico Internacional, como é o caso das Universidades Keio e Teikyo (Koyama; Wada; Kadekaru, 2021, p. 3).
Encontramos disseminada no senso comum a representação de que o mestre Funakoshi Gichin teria proposto a mudança do nome Karate (mão chinesa) para o atual Karatedō (mãos vazias) (Cramer, 2018, p.44). Muitas vezes esse é um dos elementos elencados como legado do trabalho desse importante mestre para identificá-lo como o “pai do Karate moderno”. Apesar dessa representação povoar o imaginário popular, o próprio Funakoshi evita reclamar essa autoria em seus textos. Um exemplo é seu célebre livro Karatedō Nyūmon15, onde explica o significado da nova expressão “mãos vazias” e comenta ter escrito para jornais explicando o porquê de ter adotado o uso do novo nome (Funakoshi, 1999, p. 25-26). Explica ainda que havia pela primeira vez dado tal explicação em seu livro anterior: Karatedō Kyōhan16. Se analisarmos tanto as versões originais desses livros em japonês quanto suas posteriores edições em língua inglesa e portuguesa, vamos perceber que em nenhuma delas temos a afirmação desse autor acerca de ter sido o proponente da mudança do uso do nome Karate para Karatedō. Ou seja, não há nem a afirmação dessa proposição por Funakoshi e nem erros de tradução que levem a essa conclusão. Podemos deduzir que se trata apenas de discurso tendencioso para agregar valor simbólico a Funakoshi. Algumas organizações que identificam Funakoshi como ponto inicial de sua linhagem se beneficiaram enormemente de tal autoria para acumular capital simbólico e fortalecer sua identidade.
Definir o que seria “Karate moderno” e “koryū Karate” (ou Karate antigo) não é uma tarefa simples. Aparentemente, a estreia do termo koryū em documentos sobre o Karate está nos Contos Marciais de Itosu, publicado postumamente em 1915. Ali encontramos:
Havia um grande herói escondido. Ele era o Senhor Yabiku, um homem de Shuri que se mudou para o campo na aldeia Yabiku de seu domínio. Ele era muito mais velho que o Velho Matsumura e tinha herdado as artes marciais koryū, mas como se mudou para a área rural, era o que é chamado de recluso e eremita. Mesmo um homem como Matsumura, que até seus anos de maturidade tinha apenas experiência prática e não estava familiarizado com koryū karate, visitou o Senhor Yabiku e finalmente foi ensinado.
(Itosu, 1915)
Assim como a pronúncia que teria sido mudada pelo mestre Itosu de Tōde para Karate, o uso do termo koryū, comumente empregado nas escolas japonesas de Jūjūtsu, Kenjūtsu etc. demonstra sua tentativa de aproximar a identidade do Karate de representações nipônicas. Porém, se pudermos determinar quando o “Karate moderno” começou, podemos dizer que era koryū antes de começar.
É interessante observarmos exemplos do uso da palavra koryū no nome de kata (rotinas predeterminadas de movimentos através das quais as técnicas do Karate são transmitidas há séculos). Tōyama Kanken17 conta que o kata Koryū Gojūshiho foi transmitido de Matsumura Sōkon para Yabu Kentsū e depois para ele próprio (Toyama, 1956). Tōyama provavelmente usou a palavra koryū para representar ensinamentos anteriores a Itosu. Tōyama foi aluno de Itosu e Yabu na Escola Normal da Prefeitura de Okinawa e, portanto, é um mestre de Karate da primeira geração do Karate moderno. O fato de ele usar koryū para representar técnicas anteriores a Itosu é muito significativo. Esse fato também indica que existem exemplos de praticantes de Karate das linhagens de Karate moderno que também herdaram os koryū kata, e a situação tem mais nuances do que aparenta. Motobu Naoki afirma ainda que “alguns dos outros alunos de Itosu sensei também estudaram com outros professores e adicionaram koryū kata aos repertórios de seus estilos” (Motobu, 2022b, p. 3).
Se Funakoshi não é o proponente da mudança de nome, então quando essa alteração ocorreu e com quais atores históricos envolvidos? Obtemos uma pista disso na comemoração do Karate no Hi, ou seja, o Dia do Karate. Essa data comemorativa na Prefeitura de Okinawa ocorre todo ano em 25 de outubro e é alusiva à reunião dos mestres de Okinawa patrocinada pelo jornal Ryūkyū Shinpō, o mais antigo e tradicional jornal de Okinawa. Ryūkyū Shinpō (2022) teve como fundador Shō Jun, um ex-príncipe de Ryūkyū, logo após a Restauração Meiji. Vale destacar que essa data foi estabelecida em Okinawa por um decreto do governo local como mais uma ação de divulgação e popularização do Karate, entre os muitos esforços realizados para levar a luta de Okinawa aos Jogos Olímpicos (Koyama; Wada; Kadekaru, 2021, p. 3).
Nessa efeméride, realizada às dezesseis horas do dia 25 de outubro de 1936, reuniram-se os mestres: Miyagi Chōjun, Motobu Choki, Chibana Chōshin, Shinpan Shiroma, Hanashiro Chōmo, Kyan Chotoku, Kyoda Juhatsu e Oroku Chotei. Juntaram-se a eles, capitaneados pelo jornalista e karateka Nakasone Genwa, os seguintes convidados: Ota Choshiki, Sato Koichi, Fukushima Kitsuma, Shimabukuro Zenpatsu, Kita Eizo, Goeku Chōsho, Furukawa Gizaburo, Sei Ando, Yamaguchi Zensoku, Matayoshi Kowa, e o senhor Tamashiro (Toyama, 1960, p. 377). Debateram na época uma série de assuntos relacionados à reformulação identitária do Karate para evitar serem “marginalizados”, como os próprios afirmam na transcrição do diálogo, em comparação com os movimentos que vinham ocorrendo no Japão continental. Identificamos aqui preocupações com disputas de poder simbólico e institucional, podendo afirmar que os mestres de Karate em Okinawa percebiam que poderiam acabar em situação desfavorável caso não negociassem esse aspecto da identidade de sua prática e não se apropriassem de certos elementos do Budō. Ao abrir as discussões da assembleia, Nakasone Genwa faz a seguinte descrição:
Quando o Karate foi introduzido pela primeira vez em Tóquio, a capital do Japão, Karate foi escrito em kanji (caracteres chineses) como ‘mão chinesa’. Este nome soava exótico e foi gradualmente aceito entre as pessoas em Tóquio. No entanto, algumas pessoas pensaram que este kanji ‘mão chinesa’ não era adequada para escolas. Para evitar usar esse kanji, alguns Dōjō de Karate escreveram em hiragana (letras fonéticas japonesas) em vez de kanji. Este é um exemplo de uso temporário da palavra. Em Tóquio, a maioria dos Dōjō de Karate usa o kanji ‘Caminho da Mão Vazia’ para escrever Karatedō, embora ainda existam alguns Dōjō que usam o kanji ‘mão chinesa’. A fim de desenvolver uma arte marcial japonesa, acredito que o kanji para escrever Karate deve ser a ‘mão vazia’ em vez de ‘mão chinesa’, e Karatedō deve ser o nome padrão.
(Toyama, 1960, p. 377-378)
Após debater sobre vários pontos, o mestre Hanashiro Chōmo é arguido se teria sido o primeiro a utilizar o nome “mão vazia” e em que momento. Detalhe que confirma ao responder: “Nos meus cadernos antigos, me encontrei usando o kanji ‘mão vazia’. Desde agosto de 1905 eu tenho usado o kanji ‘mão vazia’ para escrever sobre Karate, como em Karate Kumite” (Toyama, 1960, p. 379). Recentemente o mencionado caderno foi localizado e comprovada sua redação na referida data (Quast, 2019).
Essa versão contradiz a hipótese mais aceita de que o termo Karate (mão vazia) teria aparecido primeiro no Japão continental. A hipótese da origem japonesa é inclusive divulgada pelo Museu do Karate Kaikan, que em uma recente exposição aponta em um painel:
Acredita-se que o Karate foi escrito pela primeira vez como ‘mão vazia’ em substituição à ‘mão chinesa’ em 20 de outubro de 1929, quando a equipe de Karate (mão chinesa) da Universidade Keio trocou seu nome para Clube de Estudos de Karate (mão vazia) no encontro de seu quinto aniversário. Até o início dos anos 1930 ‘Karate’ era escrito usando tanto com o ideograma 空 ‘vazio’ quanto 唐 ‘chinesa’.
(Nakamura, 2022)
Além do reconhecimento da maior entidade de pesquisa sobre a história do Karate em Okinawa sobre a origem do uso do novo nome em Tóquio, é interessante o apontamento para a Universidade Keio. Isso se deve a dois fatos. O primeiro deles é que Funakoshi Gichin ensinava nesse clube nessa época (apesar de não ser mencionado como autor da mudança de nome). Mais uma vez percebermos como esse clube foi importante e ao mesmo tempo invisibilizado. O segundo é que apesar de Keio ter formado o primeiro campeão mundial de Karate (Wada Koji), houve um intenso trabalho da Japan Karate Association18 e do clube de Takushoku para invisibilizar Keio e seus atores. Todos esses aspectos nos trazem um mais completo vislumbre de como a década de 1930 é o ponto chave da cronologia do uso do nome Karatedō tanto pela autoria dos universitários de Tóquio como pela vontade dos uchinānchu em reivindicar essa autoria e promover seu uso a partir da reunião de 1936.
Entendendo com mais precisão como se deu a origem do uso da palavra Karate e como foi estabelecido o início da campanha para uso desse nome, cabe questionar se de fato apenas Tōde (mão chinesa) era utilizado antes de 1936, o ano dessa reunião, ou se há registros do uso de Karate (mão vazia) anteriormente. Aparentemente a própria transcrição da reunião por Toyama (1960) aponta que realmente o nome vinha sendo usado de maneira incipiente. Jornais de Tóquio e Okinawa da primeira metade do século, disponíveis nos locais de memória consultados, apresentam poucas referências ao Tōde e apenas uma a Karatedō.
Ao garimparmos fontes disponíveis no museu do Karate em Okinawa e no arquivo público municipal, encontramos apenas sete ocorrências de 1924 a 1929 no jornal Yomiuri Shimbun (2022) de Tóquio; três ocorrências até 1936 no Ryūkyū Shinpō (2022) de Okinawa (incluindo uma coluna sobre Karate como a defesa pessoal feminina superior, escrita por Funakoshi Gichin e usando o ideograma de Tōde em seu título; além de uma única ocorrência até 1936 no jornal Asahi Shimbun (2022), também de Tóquio. Todas essas ocorrências utilizavam Tōde/Karate (mão chinesa) para designar o Karate e apenas em uma delas, sem data clara, aparece o uso de Karatedō, tornando inconclusivo se realmente esse termo foi empregado em publicações antes da reunião que viria a originar o Dia do Karate.
No primeiro exemplo de jornal da capital japonesa temos o Yomiuri Shimbun (2022) (Figura 1). Seus textos são mais resumidos e sua apresentação gráfica mais sóbria. A imagem central acima apresenta o detalhe marcado na imagem da direita. Chama atenção o título destacado na direita e apresentando ‘supootsu nooto’, ou seja, ‘sports note’, e somente na segunda linha de texto temos o termo Karate (mão chinesa) presente. Na matéria da direita temos Karate (mão chinesa) no próprio título, em grande destaque.
Nas notas do jornal local, Ryūkyū Shinpō (2022) (Figura 2), temos um padrão distinto ao do exemplo anterior. Os letreiros são mais estilizados e há presença de figuras. Em ambos, o karateka ou sua mão são representados como robustos e agressivos. Em ambos os casos temos o emprego da palavra Karate (mão chinesa) em destaque nos títulos.
Na matéria do Ryūkyū Shinpō (2022) (Figura 3), percebemos o uso de Karate (mão chinesa) em destaque no título, apesar do uso de Karate (mão vazia) em Tóquio ser anterior a essa matéria. Além disso, a foto de Funakoshi está em destaque devido ao fato de já ser uma celebridade na época. Na segunda página é apresentada uma série de figuras que reforçam uma representação que Funakoshi repete em seus livros: o uso preferencial do cotovelo como arma devido à sua forte constituição natural (Funakoshi, 1999; 1936).
No segundo exemplo de jornal da capital japonesa temos o Asahi Shimbun (2022) (Figura 4). Seus textos também são sintéticos e sua apresentação gráfica igualmente sóbria. Nesta nota também é empregado o termo Karate (mão chinesa) ao longo do texto.
Por fim, apresentamos a única ocorrência para o nome Karatedō (caminho da mão vazia) que aparece no acervo digitalizado do jornal Yomiuri Shimbun (2022) de Tóquio (Figura 5). Há, porém, uma dúvida desse recorte ser na verdade um erro de catalogação, pois não apresenta a data exata de sua publicação e seu padrão de diagramação mostra os ideogramas mais estilizados e destacando o título, aparentando ser na verdade uma publicação de período posterior, em que outras tecnologias de impressão estavam disponíveis.
Concluímos, assim, que nem o nome arcaico Tī, tampouco o nome moderno Karatedō pareciam ser comumente usados até 1936. O nome usado no Japão continental e em Okinawa era de fato Tōde (mão chinesa – posteriormente pronunciado Karate) e podemos identificar o reconhecimento da própria comunidade de mestres de Karate como tendo sido Hanashiro Chōmo, o pioneiro no uso do nome moderno “mão vazia”. As evidências que apontam para esse pioneirismo e a forma como se deu a escolha aclamatória do novo nome Karatedō contrariam o paradigma de que o autor do novo nome seria Funakoshi Gichin em sua estada inicial no Japão. Como explica Wada Koji:
Em 1929, o clube de Karate de Keio celebrou seu 5º aniversário. Funakoshi pediu a um membro do clube, Shimokawa Goro, que consultasse seu amigo Furukawa Gyodo (monge chefe do templo Engakuji de Kamakura) sobre um kanji adequado para a palavra Karate
(Koyama; Wada; Kadekaru, 2021, p. 121).
Após a sugestão do uso do ideograma “Kara”, o vazio, encontrado no Sutra do Coração do Budismo Mahayana, como um bom homônimo para Kara, este é aceito por Funakoshi e passa a ser usado como “mão vazia”. Nakamura (2022) corrobora essa descrição de Koyama, Wada e Kadekaru (2021) afirmando que o clube de Karate da Universidade Keio é conhecido como o primeiro a adotar o nome de “Clube de Karate” (mão vazia). Tudo isso ocorrendo pelo menos 15 anos após o primeiro uso do termo por Hanashiro Chōmo.
4 CONCLUSÃO
Karatedō é um fenômeno ímpar em que as disputas de identidade se fazem presentes com fortes influências de questões geopolíticas que se intensificam na atualidade, se considerarmos que essa luta é produto da cultura de uma nação duplamente ocupada. Citamos isso devido ao fato de Ryūkyū ser um território ocupado pelo Japão (desde 1601 e de forma mais drástica a partir de 1879) e que por sua vez é também ocupado pelos Estados Unidos (após 1945). Nessa imbricada relação, os uchinānchu resistem ao revisionismo e extinção de sua cultura em um conjunto de ilhas onde se encontra a maior base estadunidense da Ásia. Nesse contexto, o processo de mudança do nome Tī para Okinawa-te e Tōde/Karate e depois para Karatedō não foi um processo simples e pacífico. Antes disso se apresenta como reflexo de intensas disputas de poder simbólico entre diferentes povos em busca da preservação de sua cultura (uchinānchu) ou da hegemonia de dominador (japonês) através de um pretenso método pedagógico e de desenvolvimento moral superior (Shushin), jogando o jogo das disputas com os dominadores ocidentais no contexto mais amplo. O Karatedō passa assim a ser parte das disputas de narrativas como um elemento de soft power usado pelos agentes em disputa.
Ao longo do último século assistimos à niponização do Karate e depois à sua disseminação por todo o mundo. Nesse contexto os uchinānchu renegociaram tanto sua como a do próprio Karate apropriando-se de uma série de práticas e representações japonesas, como a adoção do sufixo Dō e uma série de rituais que faziam parte das propostas da Dai Nippon Butokukai. Mas engana-se quem pensa que o revisionismo histórico em Okinawa e a apropriação desses elementos foi trivial. Fica evidente pelos registros históricos que os uchinānchu têm consciência de sua marginalização. Fica também evidente que, para não serem colocados na posição de marginalizados, os mestres decidem pela apropriação da pronúncia japonesa e depois da mudança da grafia em si, passando posteriormente à adoção de elementos do Budō. Isso ocorre não por opção de uso de uma pedagogia aprimorada, mas sim pela dominação social imposta de maneira velada na fase do nacionalismo (Kokutai). Nossa pesquisa indica que a mudança de nome de Tōde/Karate (mão chinesa) para Karatedō (caminho da mão vazia), ocorrida durante essa fase de profundas transformações, não foi linear e nem monocromática, mas envolveu rupturas e resistências.
A elevada exploração da imagem dos estilos de Okinawa e a disseminação de um discurso de sua superioridade sobre estilos japoneses é outro elemento de resistência que emerge atualmente e merecerá mais estudos no futuro. Com uma compreensão cada vez maior dos diferentes tipos de Karate, conseguimos nos aproximar do desafiador trabalho de mapear com maior clareza a multiplicidade de representações dessa luta asiática.
Se galgarmos sucesso nesse mapeamento e na compreensão mais clara do processo de emergência e desenvolvimento do Karatedō, as marcantes rupturas históricas em seu percurso podem auxiliar na compreensão mais profunda desse fenômeno esportivo e cultural. Talvez nos ajude, igualmente, a entender mais profundamente o fenômeno do movimento humano e do esporte. Isso porque teremos mais elementos vindos da cultura e da história de outros povos que não aqueles da Europa e da Anglo América, aos quais a maioria das pesquisas ainda é restrita.
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FINANCIAMENTO
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
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COMO REFERENCIAR
FROSI, Tiago Oviedo; MONTEIRO, Joaquim Antônio Bernardes Carneiro; MAZZEI, Leandro Carlos. Reinventando o karatedo: a adoção do nome moderno da luta de Okinawa. Movimento, v. 31, p. e31012, jan./dez. 2025. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.139919
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1
Este artigo é um desdobramento de: FROSI, Tiago Oviedo et al. O nascimento do Karatedo: repensando o paradigma da adoção do nome moderno da arte marcial de Okinawa. ENCONTRO ESTADUAL HISTÓRIA DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA–SEÇÃO RIO GRANDE DO SUL, (ANPUH-RS) 16, 2022. Anais.... São Leopoldo: Unisinos, 2022. Disponível em: https://www.eeh2022.anpuh-rs.org.br/resources/anais/12/anpuh-rs-eeh2022/1661292063_ARQUIVO_7aa5fa20c5a636690fc211b858249287.pdf. Acesso em: 15 mar. 2024.
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2
(空手道) literalmente Caminho das Mãos Vazias.
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3
(武道) Budō é “[...] uma forma de cultura física japonesa que tem suas origens na antiga tradição do Bushidō – literalmente, o ‘caminho do guerreiro’. (Nippon Budo Kyogikai, 1987, p. 1)”.
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4
O termo prefeitura aqui empregado refere-se àquele que fez história e é popular em documentos e internet, mas difere em seu uso na maioria dos países ocidentais e como é usado no Japão. O uso de “prefeitura” para designar as regiões japonesas deriva do uso de “prefeitura” pelos exploradores e comerciantes portugueses do século XVI para descrever os feudos (e depois províncias) que lá encontraram. Seu sentido original em português, entretanto, era mais próximo de “município” do que “província”. Hoje, por sua vez, o Japão usa a palavra ken (県), que significa “prefeitura”, para identificar o que chamamos de distritos, enquanto no Brasil a palavra “prefeitura” é usada para se referir ao edifício sede do poder executivo de um município. Okinawa-ken é, portanto, uma das 47 províncias japonesas, composta por 5 distritos e 41 municipalidades.
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5
(日本武道競技会) literalmente “Conselho atlético de artes marciais japonesas”.
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Famoso mestre do Karate de Okinawa do séc XIX, líder do movimento de inclusão do Karate nas escolas ryukyuanas e instrutor de karateka como Funakoshi Gichin e Mabuni Kenwa. Disputa com Higaonna Kanryo e Funakoshi Gichin o “título” de pai do Karate moderno.
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Para além de sua origem e atuação inicial nas escolas de Okinawa, Funakoshi é mundialmente conhecido como o marco inicial das linhagens (ryūha - 流派) do estilo Shōtōkan de Karate. Disputa com Itosu Ankō e Higaonna Kanryō o “título” de pai do Karate moderno.
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8
Neste estudo utilizamos as transcrições fonéticas seguindo as regras de romanização do sistema Hepburn. Documentos de Okinawa e do Japão que tratam do Karate, por vezes, apresentam escrita em uchināguchi (idioma de Okinawa), em nihongō (idioma japonês) e até alguns termos em inglês. Há situações em que algumas palavras têm a mesma pronúncia, mas sua grafia se utiliza de ideogramas diferentes. Há também mais de uma pronúncia do mesmo ideograma japonês, sendo uma delas conhecida como on’yomi (leitura chinesa) e a outra como kun’yomi (leitura japonesa).
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9
Shinpō é a composição de termos em japonês para representar a palavra inglesa Newspaper (jornal). Literalmente “jornal do Ryūkyū”.
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10
Famoso mestre de Karate ryukyuano conhecido por ter sido instrutor e guarda-costas da família real residente no Castelo de Shuri.
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11
Famoso mestre de Karate ryukyuano conhecido por ter estudo artes marciais no sul da China e instruído Miyagi Chojun. Disputa com Itosu Ankō e Funakoshi Gichin o “título” de pai do Karate moderno.
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Famoso mestre de Karate ryukyuano conhecido por ter realizado a primeira demonstração de Karate no Havaí.
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(武備志) versão encontrada em Okinawa do clássico chinês de preparação militar Wǔbèi zhì.
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(道場) Local do Caminho, salão de treinamento da arte marcial japonesa.
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Publicado originalmente em 1988, após a morte de Funakoshi Gichin (1957).
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Publicado originalmente em 1935, recebeu a primeira tradução para o idioma inglês em 1973.
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Aluno de Itosu conhecido pela criação do estilo Shudōkan de Karate.
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18
(日本 空手 協会 - Nihon Karate Kyōkai) primeira Associação a representar o estilo Shōtōkan e uma das fundadoras da Japan Karatedo Federation - JKF.
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Editado por
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RESPONSABILIDADE EDITORIAL
Alex Branco Fraga* https://orcid.org/0000-0002-6881-1446Elisandro Schultz Wittizorecki* https://orcid.org/0000-0001-7825-0358Mauro Myskiw* https://orcid.org/0000-0003-4689-3804Raquel da Silveira* https://orcid.org/0000-0001-8632-0731* Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Jun 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
29 Abr 2024 -
Aceito
15 Jan 2025 -
Publicado
31 Maio 2025






Fonte: acervo da biblioteca do Karate Kaikan, Prefeitura de Okinawa
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