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AS SEREIAS DA VILA NA TERRA DO REI: UMA ETNOGRAFIA DE SANTOS FC FEMININO

Resumo

Baseado em três meses de pesquisa de campo com o time feminino do Santos Futebol Clube, este artigo considera como as jogadoras negociam as tensões entre as inventadas tradições de gênero e a inclusão feminina no clube. Usando o conceito de Hobsbawm de Tradições Inventadas e adaptando a noção desenvolvida por Billig de Nacionalismo Banal para a ideia de Patriarcado Banal, o artigo explora as experiências de jogadoras com um dos mais emblemáticos clubes do Brasil. Enquanto os homens deixam de ter o monopólio dos clubes oficiais de futebol, esta pesquisa conclui que a incorporação do capital cultural acumulado do futebol feminino a clubes como Santos é imprescindível para desestabilizar a percepção de tradição e história somente masculina dos clubes.

Palavras chave:
Musculação; Corpo humano; Dieta; Exercício Físico

Abstract

Based on three-months ethnographic fieldwork spent with the Santos FC women’s team, this article considers how women players negotiate the tensions between the club’s invented gendered tradition and their formal inclusion into the club. Using Hobsbawm’s concept of Invented Traditions and adapting Billig’s banal nationalism to banal patriarchy, the article explores the experiences of women players within one of Brazil’s most emblematic clubs. Whilst men no longer have a monopoly on officialised club football, the article concludes that incorporating the accrued cultural capital of women’s football at clubs like Santos is vital to dislodge and de-stabilise the perceived masculine tradition and history of the club.

Keywords:
Football; Research report; Ethnography

Resumen

Basado en tres meses de trabajo de campo con el equipo femenino del Santos Fútbol Club, este artículo considera cómo negocian las jugadoras las tensiones entre las inventadas tradiciones de género y la inclusión femenina en el club. Utilizando el concepto de Tradiciones Inventadas de Hobsbawm y adaptando la noción desarrollada por Billig de Nacionalismo Banal a la idea de Patriarcado Banal, el artículo explora las experiencias de las jugadoras en uno de los más emblemáticos equipos de Brasil. Al paso que los hombres dejan de tener el monopolio sobre los clubes oficiales de fútbol, esta investigación concluye que la incorporación del capital cultural acumulado del fútbol femenino a clubes como el Santos es imprescindible para desestabilizar la percepción de tradición e historia eminentemente masculina de los clubes.

Palabras clave:
Fútbol; Informe de investigación; Etnografía

1 INTRODUÇÃO

Caminhando em direção ao campo de treinamento do Santos FC, vejo vários murais que comemoram a rica tradição do clube e sua importância no estabelecimento do Brasil como o país do futebol (HELAL; SOARES; LOVISOLO, 2001HELAL, Ronaldo; SOARES, Antônio Jorge Gonçalves; LOVISOLO, Hugo. A invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.; GOLDBLATT, 2014GOLDBLATT, David. Futebol Nation: A footballing history of Brazil. London: Penguin, 2014.; KITTLESON, 2014KITTLESON, Roger. The Country of Football: Soccer and the making of Modern Brazil. Berkeley: University of California, 2014.; BOCKETTI, 2016BOCKETTI, Gregg. The invention of the beautiful game: football and the making of modern brazil. Gainesville: University Press of Florida, 2016. DOI: https://doi.org/10.2307/j.ctvx06xmt
https://doi.org/https://doi.org/10.2307/...
). Estou particularmente impressionado com uma citação do grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade que diz: “o difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols como Pelé. É fazer um gol como Pelé”. Com Pelé inequivocamente em um pedestal acima de todos os meros mortais, eu me pergunto: que espaço pode haver para as mulheres controverterem essa mitologia e se firmarem na tradição discursiva desses clubes? A questão de como as contribuições femininas para o futebol de clubes brasileiros podem ser reconhecidas e incorporadas ao discurso e à tradição hiper-masculinizados dos clubes tem sido negligenciada até agora. Este artigo começa a abordar essa lacuna argumentando que o Santos FC é, na verdade, um bom exemplo de um clube em que o capital cultural do futebol feminino poderia ser incorporado de forma mais significativa à tradição discursiva do clube.

Após finalmente passar pelo controle da segurança, sou saudado por meu contato: Alessandro Pinto, o gerente geral para o futebol feminino. Ele me apresenta a algumas das jogadoras que chegaram cedo para treinar. Encontro Erikinha, Sandrinha e Kelly Rodrigues brevemente enquanto se aquecem para o treino. Pouco antes do início da sessão, também vejo Rosana dos Santos Augusto. Por um momento, fico um pouco comovido ao ver uma jogadora que disputou finais de mundiais e olímpicas. Ela, sem nenhuma reticência, me cumprimenta em um inglês confiante e imediatamente pergunta o que estou fazendo ali. Rosana desaparece rapidamente com o ar de quem não é dada a perder tempo. Percebo outros rostos conhecidos - Maurine, uma jogadora de igual pedigree. Em seguida, reconheço Ketlen, que, apesar de pouco alarde, desde então se tornou a artilheira de todos os tempos das Sereias da Vila e a primeira jogadora a marcar 100 gols. Essa conquista subestimada me lembra também o quão bem documentadas são as conquistas do Santos de Pelé, primeiro clube brasileiro a conquistar o título continental (em 1962 e 1963), enquanto bem menos conhecido é o Santos de Marta, o primeiro clube brasileiro ganhar o equivalente feminino em 2009 e 2010 (RIAL, 2013RIAL, Carmen. El invisible (y victorioso) fútbol practicado por mujeres en Brasil. Nueva Sociedad, n. 248, p. 114-126, 2013.)1 1 Marta Vieira da Silva é a única jogadora a ganhar o prêmio de Melhor Jogadora do Mundo pela FIFA seis vezes. Ketlen Wiggers, Maurine Gonçalves e Kelly Rodrigues fizeram parte da escola Santos FC Feminina em 2009 e 2010 que venceu o torneio Libertadores. .

1.1 A TERRA DO REI (CT REI PELÉ)

Quase no final da sessão de treinamento no campo do Rei Pelé (Centro de Treinamento Rei Pelé - CT Rei Pelé) ouço uma discussão animada, claramente ao alcance do ouvido, entre a equipe e as jogadoras. À espera da equipe, havia finais congestionadas e desarticuladas de competições regionais, nacionais e continentais. Em apenas uma semana elas enfrentarão o Corinthians em uma equilibrada final em ida e volta do Campeonato Paulista 2018. Mal podendo retomar o fôlego, as Sereias da Vila viajarão quase 4.000 quilômetros até Manaus para a Copa Libertadores em novembro, 20182 2 O Santos Feminino havia vencido o campeonato brasileiro em 2017 para ganhar o privilégio de representar o Brasil no torneio continental. .

Observando a alta tecnologia empregada em uma sessão de treinamento, fica claro que sua infraestrutura está em um nível diferente dos outros clubes que visitei. Disseram-me que as instalações correspondem a qualquer outra disponível no Brasil e provavelmente em todo o continente. Enquanto uma profusão de técnicas de ponta são utilizadas no treinamento, vários drones voam desconcertantemente acima de nossas cabeças ajudando os dispositivos computadorizados conectados a cada jogadora para monitorar seu desempenho diário individual em uma variedade de métricas. A superfície imaculada do campo de treinamento do Santos é condizente com o conjunto de futebolistas profissionais de alto nível do clube, muitas das quais aumentaram sua experiência nacional e internacionalmente. O Centro de Treinamento Rei Pelé tem três campos com dimensões oficiais. O primeiro é o menor deles, usado principalmente para jogos da categoria de base com espaço para até 5.000 espectadores. O segundo intencionalmente tem as mesmas dimensões da Vila Belmiro, enquanto o terceiro corresponde ao tamanho do Morumbi. A impressionante instalação inclui até um hotel cinco estrelas onde o time principal do Santos (masculino) costuma se hospedar antes dos grandes jogos, e um espaço considerável feito com o propósito de receber jornalistas para as entrevistas e conferências de imprensa com os jogadores em um ambiente profissional.

Para além das instalações de treinamento, ao longe vejo uma ladeira íngreme onde habitações precárias de estilo cortiço se empilham umas sobre as outras. A vista a partir das instalações confortáveis de um complexo guardado por inúmeros agentes de segurança tipifica a rígida divisão social que caracteriza o país e, de forma variada por vezes não reconhecida, põe em primeiro plano muitas de suas interações sociais.

Uma escalada na conversa que inicialmente era bem-humorada desvia minha atenção de volta para a discussão nos bastidores. A treinadora da equipe, Emily Lima, e algumas das jogadoras parecem um tanto irritadas. Ao que parece, depois de apenas três dias de treino no impecável campo do CT Rei Pelé, as mulheres serão realocadas para dar lugar aos guardiães discursivamente legítimos dos aposentos dos Reis - Santos FC. Por um momento, eu me pergunto se não estaria perdendo alguma coisa por causa do meu português hesitante. Confirmo que ouvi corretamente, enquanto me esforço para não parecer tão obviamente surpreso ou horrorizado. Com a qualidade das instalações e a quantidade de campos disponíveis, parece não haver uma razão plausível para que homens e mulheres não possam treinar simultaneamente neste campo ou, caso necessário, alternadamente. Entretanto o prevalecimento das relações de poder parece não só negar esta possibilidade, como também tornar a sugestão da igualdade absolutamente inconcebível.

É evidente que o futebol não é um mundo apartado desse em que vivemos, ainda balizado por diferenças de gênero. Não obstante, enquanto vemos avanços em relação à igualdade em outras áreas, no futebol a diferença ainda parece mais fortemente naturalizada. O futebol continua sendo uma área tão eminentemente masculina que esse tipo de discriminação de gênero frequentemente fica à vista de todos. Muitas vezes nem é mesmo reconhecido por aqueles que o praticam, embora possam ter consciência disso. O retorno a um status quo no qual as equipes femininas são subdivididas no mesmo nível que as crianças dentro do clube é um sintoma disso.

1.2 A TERRA DAS CRIANÇAS (CT MENINOS DA VILA)

Ao que parece, as jogadoras do Santos estão sendo removidas de volta para onde, segundo me disseram, elas passam a maior parte do tempo - o CT Meninos Da Vila, centro de treinamento dedicado às categorias de base. Embora algumas jogadoras reconheçam isso como uma clara afronta, banalizando seu status arduamente conquistado como jogadoras profissionais de futebol, há também um senso comum de resignação que é sustentado pela própria autoapresentação e pela organização insidiosamente patriarcal do clube. Muito tenho ouvido falar, confidencialmente, sobre essas instalações. A grama tende a ser alguns centímetros mais comprida e também me avisaram que a superfície estava cheia de desníveis, causando saltos imprevisíveis na bola, ou pior, uma maior probabilidade de sofrer lesões.

Ao chegar, percebi imediatamente que, na verdade, meus informantes haviam atenuado o caso. As instalações do Meninos da Vila são, no mínimo, rústicas. O campo de treinamento tem o tipo de superfície sobre a qual o treino técnico de passes rápidos e coesos está fora de questão. Isso inevitavelmente dificulta ainda mais o desenvolvimento das jogadoras, que muitas vezes já contam com a desvantagem de começarem mais tarde e com menor infraestrutura e menos instalações disponíveis do que seus colegas do time masculino. O toque de muitas das jogadoras parece um pouco mais irregular do que quando estavam treinando no campo de treinamento do Rei. As jogadoras excepcionais ainda são capazes de executar os toques mais difíceis - Maurine consegue um remate perfeito sobre a goleira e, depois, segue o jogo despreocupadamente, como se nada tivesse acontecido. Ela me disse mais tarde em entrevista que, como muitas de sua geração, ela cresceu jogando ao lado de meninos em superfícies muito piores em seu estado natal, o Rio Grande do Sul.

Emily Lima, notando meu semblante cabisbaixo, é rápida em fazer o que é o natural em seu cotidiano de trabalho. Ela transforma algo negativo em um desafio ou em algo que possa ter algum valor a longo prazo. Ela me disse que era bom que eu visse toda a realidade do Santos FC e não apenas uma experiência falsamente criada para impressionar um visitante. Lima, percebo então, está empenhada em garantir que isso aconteça e é sempre franca e sincera sobre as coisas que o clube faz bem e aquelas que mudaria o mais rápido possível se tivesse oportunidade.

A insatisfação com a situação no Santos se deve, sobretudo, pela consciência de que essa situação poderia ser diferente em um clube com tantos recursos. Estas são decisões políticas tomadas dentro do clube e poderiam ser contornadas imediatamente se houvesse vontade política suficiente para fazê-lo. As jogadoras fazem a sua parte, mantendo o clube, as hierarquias regionais e nacionais sob pressão de todo tipo, mas a decisão final continua desproporcionalmente a cargo de pessoas distantes da sua realidade. Apesar dos inegáveis avanços feitos pelo futebol feminino nos últimos anos, em termos de prioridade nos clubes, as jogadoras profissionais adultas são equiparadas a meninos de apenas onze anos. Eu me pergunto: quais são os significados e as relações de poder que naturalizaram e legitimaram essa óbvia diferenciação de gênero? Quais são as impressões e as experiências das jogadoras sobre este estado de coisas? Como elas contestaram isso até agora, nos levando aos avanços que observamos hoje?

2 QUADRO TEÓRICO

Em um momento mais tranquilo, algumas semanas depois, a técnica Emily Lima faria uma breve, porém incisiva, observação que permaneceu comigo. Lima observou que o futebol feminino é sempre visto como algo adicional e artificialmente inserido na tradição já profundamente enraizada, percebida e retratada como hegemônica. Meu argumento neste artigo leva isso em consideração, explorando uma tensão não reconhecida em jogo - a maneira pela qual a agenda para a igualdade é significativamente obstruída pelo enraizamento do patriarcado banal dentro dos clubes. Isso tende a diluir a igualdade em algo muito menos radical, mais semelhante à inclusão (ELSEY; NADEL, 2019ELSEY, Brenda; NADEL, Joshua. Futbolera: A History of Women and Sports in Latin America. Austin: University of Texas, 2019., p. 10).

2.1 PATRIARCADO BANAL

Ocorreu-me durante o trabalho de campo que muitas das atitudes e práticas enraizadas no clube frequentemente se manifestam de maneiras banais e muitas vezes imperceptíveis, semelhante ao conceito de Nacionalismo Banal introduzido por Michael Billig (1995BILLIG, Michael. Banal nationalism. London: Sage, 1995.). Um exemplo são as inúmeras referências ao fato do time ser bicampeão mundial em merchandise do clube ou à comemoração simbólica pela representação de duas estrelas acima do emblema do Santos.3 3 De forma semelhante, por muitos anos a seleção brasileira feminina jogou com cinco estrelas acima da insígnia da seleção em comemoração às cinco Copas do Mundo conquistadas pelo time masculino. No caso dos dois campeonatos “Mundiais” do Santos, trata-se na realidade da comemoração deum playoff de desempate intercontinental que inclui apenas a Europa. O conceito de Billig refere-se às representações cotidianas do simbolismo nacional que contribuem de maneiras muitas vezes não reconhecidas estabelecendo um sentimento compartilhado de pertencimento nacional. Este conceito se adapta bem ao fandom do futebol, que também está enraizado na identidade coletiva.

Nesse sentido, este artigo registra formas cotidianas menos visíveis, porém profundamente arraigadas e insidiosas, que podem contribuir mais para a manutenção de uma ordem social de gênero do que manifestações mais extremas ou abertas de sexismo. Essas expressões do que chamo de patriarcado banal alimentam uma tradição masculinizada, se não inventada pelo menos ornada, que visa à manutenção da ordem social de gênero. A participação feminina no futebol, por definição, subverte isso, mas os desequilíbrios provocados pela falta de representação feminina em posições de poder mostram que o patriarcado banal e a hegemonia masculina no futebol de clubes só pode ser corroídos gradualmente, principalmente por causa do não reconhecimento da presença feminina.

2.2 A TRADIÇÃO INVENTADA DO SANTOS FC

Para conceitualizar a longevidade e o enraizamento profundo que o clube apresenta discursivamente, a noção de hobsbawmiana de tradições inventadas é perspicaz como quadro teórico. O conceito ajudará a explicar omissões, inclusões e ornamentos seletivos na história do clube. Esse discurso está claramente sujeito à análise, contestação e remodelagem pelos atores envolvidos. Hobsbawm afirma: “tradições que parecem ou afirmam ser antigas são, muitas vezes, de origem recente”(2012, p. 1). Esse é, sem dúvida , o caso do Santos FC. O clube completa 108 anos em 2020, tendo nascido em 1912, poucas horas depois do naufrágio do Titanic. O conceito de Hobsbawm de tradições inventadas incorpora “tradições formalmente instituídas dentro de um período breve e datável que se estabelecem com grande rapidez”. Ele continua ao afirmar que elas são “muitas vezes de natureza ritual e simbólica, que procuram inculcar determinados valores e normas de comportamento por repetição, supondo automaticamente uma continuidade com o passado”.

Nesse sentido, grande parte da mitologia data apenas do período em que Pelé estrelou pelo clube, principalmente nas décadas de 1960 e 1970, e não vai para além de um século, como o discurso do clube pode nos fazer acreditar. Isso foi simultâneo e inter-relacionado ao estabelecimento do Brasil como o padrão-ouro do futebol masculino. Contando amistosos, muitas vezes contra adversários não profissionais em partidas inéditas, o Rei Pelé marcou mais de mil gols pelo Santos FC - um número redondo frequentemente invocado para provar sua superioridade sobre outras lendas do futebol (GOLDBLATT, 2014GOLDBLATT, David. Futebol Nation: A footballing history of Brazil. London: Penguin, 2014.; KNIJNIK, 2018KNIJNIK, Jorge. The World Cup Chronicles: 31 Days that Rocked Brazil. Sydney: Fair Play, 2018.).

2.3 A TRADIÇÃO OBSCURECIDA - FUTEBOL FEMININO NO SANTOS FC RESULTADOS E DISCUSSÕES

A seção anterior explicou como a tradição masculinizada no Santos FC está enraizada discursivamente em um período relativamente curto, embora se insinue ter uma história muito mais longa (HOBSBAWM, 2012HOBSBAWM, Eric. Introduction: The Invention of Tradition. In: HOBSBAWM, E.; RANGER, T. The invention of tradition. Cambridge: Cambridge University, 2012. p. 1-16.). Da mesma forma, a tradição de gênero é acentuada por sistematicamente obscurecer e/ou ocultar a já desconhecida história do futebol feminino no Brasil, encorajando assim o equívoco de que o futebol feminino é algo relativamente novo contra uma longa tradição do futebol masculino. Um crescente grupo de trabalho têm recuperado a história pouco conhecida do futebol feminino no Brasil (FRANZINI, 2005FRANZINI, Fábio. Futebol é “coisa para macho”?: Pequeno esboço para uma história das mulheres no país do futebol. Revista brasileira de história, v. 25, n. 50, p. 315-328, 2005.; GOELLNER, 2005GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 19, n. 2, p. 143-151, 2005.; SALVINI; MARCHI JÚNIOR, 2013SALVINI, Leila; MARCHI JÚNIOR, Wanderley. Uma história do futebol feminino nas páginas da Revista Placar entre os anos de 1980-1990. Movimento, v. 19, n. 1, p. 95-115, 2013.) e em outras partes do continente (ELSEY; NADEL, 2019ELSEY, Brenda; NADEL, Joshua. Futbolera: A History of Women and Sports in Latin America. Austin: University of Texas, 2019.), enfatizando essas históricas injustiças estruturais.

Por exemplo, em 1941, o Conselho Nacional de Desportos instituiu a Lei 3.199. Essa legislação foi fundamental para delimitar a ordem esportiva nas décadas seguintes. Um de seus artigos estabelecia a proibição da participação feminina em diversas modalidades esportivas, inclusive o futebol. Este decreto pernicioso durou até 1979. Desse modo, enquanto parte da tradição ornada do clube tenta alongar seu período de glória, de fato, o período áureo do Santos, no qual sua celebrada tradição se baseia, ocorreu enquanto o futebol feminino era proibido e sob a ditadura militar, depois de 1964.

No entanto, não é preciso ir muito a fundo para perceber que as jogadoras santistas acumularam grande capital cultural próprio que poderia facilmente ser mais destacado se houvesse vontade política por parte do clube. Ainda assim, um avanço significativo certamente seria reconhecer o protagonismo das jogadoras e a importância do Santos em dar à seleção brasileira uma base para construir um time competitivo nos campeonatos mundiais e Jogos Olímpicos. Da equipe que alcançou as finais olímpicas e mundiais, Marta, Cristiane, Maurine, Aline Pellegrino e Érika ganharam suas valiosas experiências competitiva e formativa com o Santos. Ou seja, o Santos conquistou a simetria ao ter os maiores jogadores, masculino e feminino, tendo jogado para eles. Marta chegou a receber honras importantes para o clube quando integrou o time santista que conquistou a primeira Copa Libertadores Feminina.

Tradições, imaginadas ou não, acumulam valor ao longo de um período de tempo. Em 2020, fica bem claro que o Santos FC ainda é imaginado dentro do clube como um espaço masculino, para o qual, como sugere Emily Lima, o time feminino é apenas um apêndice precário. Certamente, a história recente do clube conta com precedentes que sugerem que a análise de Lima não é uma opinião, mas um fato. Em 2012, o Santos feminino teve um bom desempenho em nível nacional e continental. Elas venceram a Copa Libertadores de 2009 e 2010 e terminaram em terceiro na edição de 2011. Elas eram as portadoras do título do Campeonato Paulista. A resposta do clube a esse sucesso foi produzir um calendário sensual da equipe feminina, claramente para tornar as jogadoras "mais vendáveis" (JORAS, 2015JORAS, Pamela Siqueira. Futebol e mulheres no Brasil: a história de vida de Aline Pellegrino. 2015. 128 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015., p. 84) antes de proceder à dissolução do time apenas três dias após o calendário terminar em 2012, coincidindo com os esforços para manter Neymar no time masculino (GOLDBLATT, 2014GOLDBLATT, David. Futebol Nation: A footballing history of Brazil. London: Penguin, 2014.; KNIJNIK, 2018KNIJNIK, Jorge. The World Cup Chronicles: 31 Days that Rocked Brazil. Sydney: Fair Play, 2018.).

Apesar da hierarquia do clube subestimar sistematicamente o futebol feminino, ele exerce uma influência particular na Vila Belmiro desde que a primeira Copa Libertadores foi realizada neste estádio em 2009. Eles afastaram rivais de todo o continente marcando 42 gols e recebendo apenas dois ao longo dos seis jogos. Um grande público acorreu para assistir a essas partidas, já que Marta, na época, era a jogadora mundial titular do ano, além de contarem também com Cristiane, indicada entre as três primeiras do mundo. É lamentável que esse capital social acumulado não seja mais comemorado. É também sintomático da subcategorização do futebol feminino e da ameaça que outro time vencedor de campeonato continental representa para a tradição inventada profundamente masculinizada do clube.

3 METODOLOGIA

Este artigo é baseado em três meses de trabalho etnográfico de campo realizado com o Santos entre outubro de 2018 e fevereiro de 2019. A secção de resultados apresenta vários episódios sintomáticos da força da tradição inventada masculinizada do clube e os coloca em tensão com as experiências cotidianas das jogadoras. Devido ao espaço limitado, este artigo oferece uma versão resumida de um relato etnográfico mais completo.

O artigo diferencia entre como as jogadoras em campo e no treino, por definição, são capazes de desafiar representações hegemônicas ao enfatizar o desempenho atlético. Fora do campo, as jogadoras ainda são empregadas para promover uma visão de gênero em consonância com a marca sexualizada da hierarquia do clube como Sereias da Vila. Cada episódio é narrado pela influência não reconhecida da tradição inventada do clube. Por exemplo, até a própria marca do clube tem procurado feminilizar o time como sereias, diferenciando-os da versão hegemônica masculina do time. A escolha de gênero de Sereias Como o nome do time é reveladora. O termo sereia é definido no dicionário como sendo proveniente “da mitologia nórdica, representada sob forma de metade peixe e metade mulher, com cantos muito suaves que atraíam os navegantes para a praia ou para os rochedos, com o objetivo de matá-los; sirena” (MICHAELIS, 2020) ou mais figurativamente como “qualquer mulher muito atraente” (MICHAELIS, 2020). Em ambas as definições, há um foco claro na aparência física da mulher, o que dá continuidade a uma longa tradição de objetificação das mulheres jogando futebol (BONFIM, 2019BONFIM, Aira. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941). 2019. 213 f. Dissertação (Mestrado) - Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais, Rio de Janeiro, 2019.).

4 RESULTADOS E DISCUSSÕES

A seção a seguir está dividida em duas partes - na primeira, explora como o clube representa as futebolistas, considerando como o clube organizou a final do Paulista feminino e dois compromissos fora de campo pelo Santos FC. Na segunda parte, considera como a agência das jogadoras, desde seu comportamento em treino até seu envolvimento no ativismo formal e informal, vai no sentido de questionar as representações de gênero acima mencionadas da primeira parte.

4.1 FINAL DO CAMPEONATO PAULISTA DE FUTEBOL FEMININO

Na minha chegada o time enfrentou um importante desafio de final de temporada - a final do Campeonato Paulista 2018, previsivelmente contra o Corinthians. As jogadoras deram especial importância a este jogo, pois marca o fim de um torneio complicado com duas fases de grupos, que eram rotineiramente descartadas como uma “guerra de araque”. A diferença de gols do Corinthians e do Santos de +36 e +37 em um grupo de apenas sete times sugere que houve muitos jogos que careciam de importância. As jogadoras reclamam disso porque percebem que a falta de jogos verdadeiramente competitivos é prejudicial ao seu desenvolvimento.

A tão esperada final foi disputada em dois jogos. A primeira partida foi disputada no estádio Vila Belmiro, do Santos, e a segunda no Parque São Jorge, que faz parte do centro de treinamento do Corinthians. Ambos os jogos foram gratuitos para o público, atraindo multidões consideráveis. O jogo santista atraiu o maior público, com 13.867. Foi um recorde para o Campeonato Paulista Feminino. As jogadoras sentiram que isso refletia o nível de interesse em jogos igualmente equilibrados e resultava dos melhores esforços por parte do clube para divulgar a final. Na semana anterior havia cartazes e bandeiras anunciando a partida por toda a cidade de Santos.

No intervalo, em vez de se concentrar no jogo, algumas das substitutas do Santos são obrigadas a atirar bolas numeradas para a multidão. Cada número ganha um prêmio. Os prêmios são ingressos para um jogo do Santos masculino, uma camisa do Santos masculino autografada pelos jogadores, três visitas ao campo de treinamento Rei Pelé, vários produtos do clube e depois, quase que incidentalmente, uma camisa autografada do Sereias da Vila. Em vez de aproveitar a oportunidade para promover o time feminino no jogo das Sereias, as jogadoras são lembradas mais uma vez de que são uma subcategoria do clube. Parece um pequeno detalhe - talvez passando despercebido por alguns fãs, mas os rostos das jogadoras contam uma outra história. Obviamente, com os jogos femininos estruturalmente obrigados a serem gratuitos, não é possível oferecer ingressos para os jogos femininos como prêmio. A ocasião poderia ter sido aproveitada para comemorar um torneio muito cobiçado pelas jogadoras do continente. Em vez disso, esse pequeno detalhe se concentrou na tradição com que os fãs estão mais familiarizados - com uma visita ao campo de treinamento do Rei e ingressos para ver os homens jogarem. A forma como o jogo feminino é usado como um espetáculo à parte para promover os próximos jogos masculinos diminui a importância de uma final. Mesmo assim, o Sereias da Vila viria a conquistar o quarto título paulista, recorde compartilhado com o Juventus da Mooca e o Ferroviária de Araraquara.

4.2 SEREIAS DA VILA NA COMUNIDADE

Como a maioria dos clubes brasileiros, o Santos está envolvido na comunidade em que se situa. A seção a seguir cobre duas iniciativas fora de campo - uma visita a uma ONG chamada Vidas Recicladas e um projeto chamado Meninas em Campo, que visa incentivar o futebol entre meninas.

4.2.1 Vidas Recicladas

No início da minha visita, fui convidado a acompanhar as jogadoras a um compromisso com a ONG Vidas Recicladas. Esta ONG acolhe crianças de rua, muitas vezes abandonadas, por um determinado período de tempo e oferece um amplo apoio psicológico, emocional, social e econômico. Várias jogadoras são convocadas para visitar um grande lar na cidade de Santos, onde serão feitas entrevistas para a televisão e fotos para a imprensa. Algumas jogadoras estão mais inclinadas do que outras a participar e dizer algumas palavras gentis. Outras parecem mesmo emocionadas com a experiência. A maioria dos grandes clubes brasileiros agora tem políticas ativas de RSC (Responsabilidade Social Corporativa) ou está ciente da necessidade de o clube assumir um papel social nas comunidades em que estão. Da perspectiva das jogadoras, por um lado, visitas como essa são sentidas em um nível pessoal, especialmente para as jogadoras que cresceram em circunstâncias difíceis.

Engajar-se em trabalhos comunitários dessa natureza tem claramente uma função de retribuir algo à comunidade, o que faz do Santos o grande clube que é. No entanto, eu me pergunto se essa atividade em particular está consciente ou inconscientemente enraizada no pensamento de gênero. Talvez as percepções dos papéis tradicionais de gênero tenham sido levadas em consideração ao escolher enviar as jogadoras mulheres para um lar de crianças órfãs. Da mesma forma, poderia ser a equipe masculina a realizar tal visita. No entanto, na ausência de exposição adequada que destaque as jogadoras como atletas, este tipo de trabalho talvez seja o único que os telespectadores ou leitores de jornais veem das jogadoras - e, portanto, inadvertidamente, pode reforçar os estereótipos de gênero em vez de desafiá-los. Em defesa do clube, as jogadoras também se envolveram em uma série de outros eventos que estavam mais diretamente relacionados ao seu desempenho atlético, portanto, fomentando a noção da mulher como futebolista.

4.2.2 Meninas em Campo

Nesse sentido, por exemplo, também participei de um evento em que o Santos FC assinou um convênio com a Universidade de São Paulo e o projeto Meninas em Campo. O projeto engaja o clube e seus parceiros no desenvolvimento de jovens jogadoras na faixa etária de 11 a 17 anos. Sem dúvida, isso coloca o Santos FC como um pioneiro na formação de jogadoras de base. Em outros lugares, este tipo de iniciativa permanece quase inexistente. Isso me lembra dos comentários de várias jogadoras, entre eles, o de Tayla, que afirmou casualmente ser ela um exemplo "típico" de uma jogadora que aprendeu seu ofício jogando nas ruas.

De um lado, estou recebendo uma versão “higienizada” do Santos FC, mas de outro, é visível que há uma força progressiva pressionando clubes maiores como o Santos a tomar algumas das medidas necessárias para desenvolver o futebol juvenil para meninas brasileiras. É possível que esse tipo de iniciativa tenha um efeito de bola de neve, já que os clubes concorrentes não desejam que o Santos tenha uma fácil vitória propagada. O instinto competitivo dos clubes, que não deseja permitir que seus rivais alcancem algo antes deles, pode causar outras ações positivas. A este respeito, Santos está de parabéns pela iniciativa - eles foram os primeiros a tomá-la e não foram bajulados ou chantageados para isso. Isso me lembra que cada clube, mesmo com suas celebradas tradições privilegiadamente masculinas, é influenciado pelo progressismo de atores dentro e fora que pressionam discretamente por esse tipo de progresso gradual. O projeto dá ênfase à formação social e também esportiva, aspectos que foram tradicionalmente negligenciados durante os períodos de crescimento do futebol masculino. Além disso, é uma área de fundamental importância, dadas as origens de muitos dos jogadores e muitas das jogadoras.

A carreira no futebol é relativamente curta e não há garantias de emprego depois de terminar a carreira de jogador - principalmente para mulheres, que até recentemente eram sistematicamente excluídas de funções técnicas como de treinadora. Novamente, o Santos usa as jogadoras para se promover como uma instituição progressista. Neste caso é louvável, não obstante, está fora da promoção do desempenho atlético das jogadoras - a área que realmente pode minar e/ou desestabilizar a hegemonia masculina. O tempo que passei com as jogadoras no campo de treinamento me mostrou as realidades plurais do futebol feminino, fora das representações clichês.

4.3 SEREIAS NO CAMPO DE TREINAMENTO

Cada manhã no campo de treinamento tem uma atmosfera de jovialidade. Até agora, os compromissos do clube apresentaram as mulheres como uma subcategoria da equipe masculina. De fato, mesmo em suas próprias partidas, as jogadoras distribuíam prêmios majoritariamente ligados ao time masculino.

Essas iniciativas claras de diferenciação apresentam a equipe feminina como qualitativamente divergente da equipe masculina, mantendo a masculinidade hegemônica (CONNELL, 1993CONNELL, Robert. Masculinities. London: Polity, 1993.). Nas palavras de Butler (2011BUTLER, Judith. Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. New York: Routledge, 2011., p. 17), “a matriz cultural através da qual a identidade de gênero se tornou inteligível requer que certos tipos de ‘identidades’ não possam ‘existir” - isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo e aquelas em que as práticas do desejo não ‘seguem’ nem o sexo nem o gênero. Isso explica a minimização da performatividade atlética das jogadoras. Isso explica por que o clube convida os torcedores, como um prêmio, para ver os homens e não as mulheres treinarem. Nesse sentido, as seções a seguir destacam como o comportamento cotidiano, a autoimagem e as aspirações das jogadoras apresentam um quadro mais heterogêneo na realidade, rompendo com narrativas clichês de gênero e, assim, se dada a devida atenção, têm o potencial de desestabilizar construções dominantes binárias de gênero.

Logo de início, várias jogadoras se divertem antes de começar o treinamento. Uma das jogadoras alegremente atira uma bola o mais forte que pode na parte de trás da cabeça de outra jogadora, causando uma gargalhada estrondosa. A falta de surpresa sugere que esse tipo de brincadeira juvenil acontece com bastante frequência. O Santos tem 34 jogadoras - um grupo diverso composto desde jogadoras experientes e reputadas nacional e internacionalmente a jovens talentos aspirantes a titulares e a fazer sólidas carreiras no futebol.

Muitas dessas jovens promessas se viram obrigadas a deixar seus estados de origem para tentar a sorte no Santos. São facilmente observáveis dinâmicas clichês dentro do grupo onde as mais estabelecidas exalam autoconfiança, enquanto outras sabem que seu futuro está longe de ser garantido. Algumas das jogadoras veteranas dedicam tempo para ajudar a integrar as mais novas, oferecendo-lhes conselhos e amizade.

Já na Copa Libertadores em Manaus o treinamento das jogadoras foi realizado nas instalações da equipe local, o 3B. Existe uma atmosfera um pouco diferente. A mudança de ambiente é uma faca de dois gumes. Cada jogadora tenta fingir a calma necessária para um grande torneio. Ao mesmo tempo, a equipe parece realmente gostar de estar fora de casa em um torneio continental. As jogadoras riem e brincam durante a sessão. Já no final, elas emboscam o assessor de imprensa do clube, Vitor Anjos. Quatro ou cinco jogadoras agarram Anjos antes de pegar uma navalha e raspar seu bigode à força. Anjos ri enquanto ensaia uma luta de defesa antes de perceber que tem poucas chances, sendo dominado por cinco ou seis jogadoras. Poucos minutos depois, ele foi deixado barbeado pela metade, o que lhe deu um ar um tanto cômico. As jogadoras explicam que se tratava de uma penitência combinada como resultado de uma aposta que fizeram (e ganharam) com Anjos. Anjos balança a cabeça e tenta parecer surpreso ou chateado. As jogadoras não são moscas-mortas e estão preparadas para se defenderem. Isso novamente parece mostrar o quão distante a realidade das jogadoras está das representações hiperfeminizadas que o clube faz das Sereias. Na verdade, a atmosfera cotidiana com as jogadoras é mais semelhante à descrição detalhada oferecida por Hunter Davies em seu texto seminal The Glory Game (1973DAVIES, Hunter. The glory game. London: Random House, 1973.), após passar um período com o Tottenham Hotspur nos anos 1970.

O desempenho do campo de treinamento é apenas isso - um desempenho. Não é necessariamente representativo de como as jogadoras se comportariam idealmente como indivíduos. No entanto, representa a maneira que elas escolheram se apresentar no campo de treinamento como um coletivo. Elas se apresentam como duronas, mas com senso de humor. No caso de algumas jogadoras, é apenas quando estão isoladas em um ambiente diferente para entrevistas que rompem com a matriz de comportamento esperada no campo de treinamento. No entanto, vale ressaltar que o tom para esse padrão de comportamento esperado é dado pelas próprias jogadoras.

4.4 LUTA COLETIVA DENTRO E FORA DO CAMPO

O futebol, por sua natureza, oferece diferentes níveis de estabilidade no emprego, dependendo da experiência anterior e da agência acumulada. A goleira e ativista Thais Picarte é a primeira a admitir que as condições do Santos são superiores às de muitos outros clubes do Brasil nesse aspecto. No entanto, ela continua trabalhando incansavelmente por melhores condições para jogadores de toda a região. Picarte é diretora da FENAPF (Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol) e também Vice-Presidente do SIAFMSP (Sindicato dos Atletas Profissionais de Futebol do Município de São Paulo). Além disso, está envolvida no Guerreiras Project. Guerreiras é um movimento internacional voltado para o fomento à igualdade de gênero, desafiando a discriminação por meio da união entre ativistas, acadêmicos e atletas (ANJOS et al., 2018ANJOS, Luiza Aguiar dos. et al. Guerreiras Project: futebol e empoderamento de mulheres. Revista Estudos Feministas, v. 26, n. 1, e44154, 2018. DOI: https://doi.org/10.1590/%25x
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
).

Em seu trabalho para a FENAPF, Picarte está engajada na luta pela profissionalizaçãodo futebol feminino brasileiro. Contra o discurso oficial, Picarte é rápida em sublinhar que o torneio brasileiro, ainda que esteja melhorando gradativamente, está longe de ser um torneio verdadeiramente profissional. Os torneios permitem que participem times amadores, alguns dos quais pagam mal as jogadoras, isso quando pagam. Picarte lamenta que apenas dois times - o Santos e o São Paulo - declaram o trabalho de suas jogadoras, permitindo-lhes acumular benefícios de aposentadoria e outros como FGTS, 13º salário e aviso prévio. Outros clubes tendem a registrar apenas algumas jogadoras de destaque e, em seguida, preencher o restante do elenco com amadoras. Esse tipo de prática é claramente separatista e tem o efeito de desviar as jogadoras de seu interesse comum. Picarte é precisa em afirmar que o interesse comum deve estar em primeiro lugar. Ela percebe que, embora as jogadoras de elite possam construir uma carreira mais confortável fora do Brasil, a grande maioria das futebolistas está sujeita às condições do país. Picarte acredita firmemente que o debate no Brasil avançou. Contudo, ela explica que o preconceito deixou de residir explicitamente no “ser lésbica ou não” e passou a se refugiar na lógica de mercado. Ela argumenta que as condições contratuais permanecem estagnadas por duas décadas com a justificativa de que o futebol feminino não gera renda suficiente, o que é um círculo vicioso, pois o futebol feminino nunca foi promovido o suficiente para torná-lo rentável.

No campo de treinamento há uma apreciação do tipo de trabalho que Picarte realiza, mas ao mesmo tempo há uma apreensão mal disfarçada relativa a como esse ativismo seria percebido caso jogadoras mais jovens se engajassem. Da mesma forma, as jogadoras costumam citar os avanços do torneio paulista sob o controle da ex-santista Aline Pellegrino. Em relação às lutas sindicais, é difícil construir o nível de solidariedade necessário entre as jogadoras, tendo em conta que estão competindo entre si por contratos flexibilizados e precários de curta duração. Por outro lado, dada a situação estabelecida de contratos divisionista, o senso de solidariedade existente é ainda mais admirável. Muitas das jogadoras sabem que, em última análise, estão lutando um longo combate e que a mudança real só virá com mais representação de ex-jogadoras e/ou mais aliados nos conselhos das federações e clubes.

5 CONCLUSÃO

Este artigo examinou como o enraizamento da hegemonia masculina afeta a prática cotidiana em um dos clubes de prestígio do Brasil, o Santos FC. Argumentou que a onipresença do patriarcado banal dentro do clube significa que a incorporação do futebol feminino sempre pareceu - nas palavras de Emily Lima - “como um apêndice enxertado na tradição masculina” do clube. A força da hegemonia masculina - em grande parte personificada pelo Rei Pelé - faz com que mesmo um time feminino pioneiro em nível nacional e continental, que conquistou importantes prêmios, quase não tenha espaço para ser incorporado à mitologia do clube. A força da tradição inventada pelo Santos FC é tal que usar as jogadoras para distribuir prêmios para assistir a jogos masculinos é visto como banal, em vez de abertamente discriminatório ou minimizante. Da mesma forma, reservar as melhores instalações de treinamento para a equipe masculina e enviar a equipe feminina para treinar com as crianças também é tido como algo naturalizado ao invés de claramente prejudicial. Por outro lado, as equipes femininas têm normalmente “oportunidades iguais” quando se trata de promover o Santos na comunidade. Inclusive, as tarefas envolvendo crianças parecem ser atribuídas de forma desproporcional às Sereias.

A segunda parte expôs os dois desafios que as jogadoras oferecem à hegemonia masculina - primeiro, por sua simples presença, ou seja, por meio de seu desempenho atlético que inerentemente desestabiliza a matriz. Por estarem inseridas em uma esfera ainda tida como masculina, eles inerentemente fragilizam certos limites de uma atividade tida como de exclusividade masculina ao mesmo tempo em que rompem com a imagem idealizada de feminilidade que o clube tenta apresentar como marca das Sereias. Em segundo lugar, ao continuar a campanha por mais reconhecimento por meio do ativismo, as jogadoras estão conseguindo representação em nível de federação, nos clubes e na equipe técnica de seus respectivos clubes.

Nas últimas duas décadas, as mulheres ganharam espaço nos clubes brasileiros, por meio da política de obrigatoriedade, da pressão social e dos esforços das próprias jogadoras. Para que essas conquistas se consolidem, os clubes precisarão ser mais ativos e incorporar as jogadoras em sua mitologia discursiva. Um dos clubes onde isso é mais viável é o Santos, que até certo ponto tem sido mais proativo do que outros clubes nas últimas décadas. Todavia, o papel significativo do Santos em fornecer jogadoras para a seleção brasileira finalistas das Olimpíadas e da Copa do Mundo tem sido significativamente subestimado. Em vez de enfatizarem as notáveis vitórias de uma geração que conquistou tanto com tão pouco, as jogadoras são ignoradas em detrimento da tradição hegemônica masculinizada.

Quando conversei com Angelina Costantino, uma jogadora prodígio de 18 anos que já é titular do Santos e titular na seleção sub-21 brasileira, ela inverteu o pessimismo habitual sobre o potencial do futebol feminino me pedindo para imaginar o quanto as Sereias havia conseguido apesar de todas as barreiras e se perguntando o quão mais longe elas poderiam ir com as condições corretas. Indicativo das barreiras que permanecem e do potencial do jogo feminino, Angelina perguntou retoricamente: “imagine o quão populares poderíamos ser se fôssemos tratadas com igualdade?”. De maneira reveladora, a questão retórica tinha em sua estrutura condicional a sugestão de que esse horizonte não estava presente em um futuro próximo. Ainda assim, parecia sintomática de um tipo de jogadora recém-encorajada e beneficiada pelas lutas da geração anterior.

A tempo de finalizar este artigo para publicação no Brasil, recebo duas notícias que parecem confirmar visões mais otimistas. No dia 5 de dezembro de 2020 o Santos FC divulgou em seus canais de comunicação sobre a inauguração do Campo Sereias da Vila, junto à notícia de fundação do Instituto Santos de Responsabilidade Social. Trata-se de um novo campo no Centro de Treinamentos Rei Pelé para que as jogadoras tenham local próprio de treinamento. Alguns dias depois o Santos homenageou a artilheira Ketlen colocando sua imagem no muro do CT Rei Pelé, ao lado de outros ídolos do clube.

AGRADECIMENTO

Agradeço imensamente a Francielly Rocha Dossin que fez a tradução deste texto que originalmente foi escrito em inglês. Sem sua contribuição esta publicação não seria possível.

REFERENCES

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  • FINANCIAMENTO

    O presente trabalho foi realizado com apoio financeiro da Bristol Brazil Fund.
  • 1
    Marta Vieira da Silva é a única jogadora a ganhar o prêmio de Melhor Jogadora do Mundo pela FIFA seis vezes. Ketlen Wiggers, Maurine Gonçalves e Kelly Rodrigues fizeram parte da escola Santos FC Feminina em 2009 e 2010 que venceu o torneio Libertadores.
  • 2
    O Santos Feminino havia vencido o campeonato brasileiro em 2017 para ganhar o privilégio de representar o Brasil no torneio continental.
  • 3
    De forma semelhante, por muitos anos a seleção brasileira feminina jogou com cinco estrelas acima da insígnia da seleção em comemoração às cinco Copas do Mundo conquistadas pelo time masculino. No caso dos dois campeonatos “Mundiais” do Santos, trata-se na realidade da comemoração deum playoff de desempate intercontinental que inclui apenas a Europa.

Editado por

RESPONSABILIBADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Ivone Job*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira*, Silvana Vilodre Goellner*
*Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2020
  • Aceito
    10 Dez 2020
  • Publicado
    05 Jan 2021
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Felizardo, 750 Jardim Botânico, CEP: 90690-200, RS - Porto Alegre, (51) 3308 5814 - Porto Alegre - RS - Brazil
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