Resumo
O ambiente escolar sofre, muitas vezes, de certa ausência de corpo presente que afeta diretamente as relações em sala de aula. A partir desta delimitação problemática, foi desenvolvida uma pesquisa com professores escolares que cederam entrevistas. Diários de campo foram produzidos pelo pesquisador. A produção dos dados se constituiu como um exercício de experimentação do pensamento, para tanto, buscou-se respaldo na Filosofia da Diferença, em composição com os estudos contemplativos. Observou-se que a realidade escolar coloca os professores face aos fatores distratores, que desencadeiam os circuitos reativos do professor, gerando adoecimentos. Verificou-se que esses fatores fazem parte da aula e, portanto, devem ser encarados a partir de uma atitude menos reativa – o que é um grande desafio para o professor. É nesta direção que se destacam o humor e a empatia, entendidos como princípios de ação que operam ações de enfrentamento potentes ao problema da ausência de corpo presente na escola.
Palavras-chave
Presença; Práticas Contemplativas; Filosofia da Diferença; Escola
Abstract
The school environment often suffers from a certain attendance without attention that directly affects classroom relationships. From this problematic delimitation, research was developed with schoolteachers who were interviewed. Field journals were produced by the researcher. Data production was constituted as an exercise of experimentation of thought, so it was sought to support the philosophy of difference, in composition with contemplative studies. It was observed that the school reality places teachers in the face of distracting factors, which trigger the teacher's reactive circuits, generating illness. It was found that these factors are part of the lesson and therefore should be viewed from a less reactive attitude, which is a great challenge for the teacher. It is in this direction that mood and empathy are highlighted, understood as principles of action that operate powerful actions to face the problem of attendance without attention at school.
Keywords
Presence; Contemplative practices; Philosophy of difference; School
Resumen
El entorno escolar sufre, a menudo, de una cierta ausencia de presencia corporal que incide directamente en las relaciones dentro del aula. A partir de esta problemática, se desarrolló una investigación con docentes que concedieron entrevistas. El investigador elaboró diarios de campo. La producción de datos se concibió como un ejercicio de experimentación del pensamiento. Para ello, se buscó apoyo en la Filosofía de la Diferencia, en combinación con estudios contemplativos. Se observó que la realidad escolar expone a los docentes a factores distractores que activan circuitos reactivos, generando malestares. Se constató que estos factores forman parte del aula y, por lo tanto, deben abordarse desde una actitud menos reactiva, lo cual representa un gran desafío para el docente. En esta línea, el humor y la empatía se destacan como principios de acción que permiten afrontar de forma potente el problema de la ausencia de cuerpo presente en la escuela.
Palabras clave
Presencia; Prácticas Contemplativas; Filosofía de la Diferencia; Escuela
1 INTRODUÇÃO
As demandas da vida contemporânea têm imposto a nós, sujeitos sociais, certa ausência de corpo presente (Castro, 2019; Carbonara; Zucco, 2023), que aliena a atenção, ou seja, que nos desconecta daquilo que nos passa no momento presente. Na esteira desta ideia, poderíamos dizer que essa mesma problemática aparece também no interior do ambiente escolar, afetando não só os(as) estudantes, como também os(as) professores(as) em sala de aula.
Ao colocar o problema da ausência de corpo presente nestes termos, acima esboçados, cabe observar o seguinte: o que está em jogo quando se pensa sobre a presença no contexto escolar, não é se os(as) estudantes estão ou não presentes fisicamente em sala de aula, pois nesta direção, a noção de presença é entendida como atributo e, nesta discussão, não há muito em que avançar em termos reflexivos. Assim, muito mais do que um atributo – nos ensina Ferracini (2014) – a presença deve ser vista como efeito compositivo que ressoa da relação entre os corpos em um dado encontro, no caso aqui, um encontro educativo escolar.
Neste sentido, ousa-se aqui dizer – inspirando-se em Ferracini (2014, 2017), Ferracini e Feitosa (2017), Ferracini, Hirson e Colla (2020) – que o tema da presença desloca a atenção para os modos por meio dos quais se intensifica qualitativamente a relação entre os corpos escolares, de modo a atenuar o problema da ausência de corpo presente aí instalado.
Desta forma, o tema da presença convoca a repensar todo um modo de organização das relações escolares, além de chamar a atenção também, para a dimensão imanente da experiência educativa que, por sua vez, aponta para certa postura ética de ocupação do espaço escolar, mais interessada nos encontros, isto é, nas interações afetivas concretamente desencadeadas entre os agentes escolares que, juntos, compõe o ambiente escolar.
É neste lugar produzido por interações afetivas que se situa a noção de práticas contemplativas. De acordo com Shapiro, Brown e Astin (2011), o campo de estudos das práticas contemplativas busca traçar relações entre o trabalho da contemplação1 – já conhecido há milênios pelas tradições filosóficas orientais – e o exercício pedagógico.2
Vale ressaltar também que as práticas contemplativas apresentam um campo difuso de saberes ao promover alianças teóricas, conceituais e metodológicas com diferentes áreas do conhecimento, dentre as quais se destacam a filosofia oriental – da qual se alimenta do legado das tradições contemplativas – e as filosofias pós-estruturalistas, dentre as quais se situam os estudos foucaultianos, particularmente o contexto da estilística da existência, de onde as práticas contemplativas vão buscar alianças interessantes para pensar os efeitos destas práticas na transformação e na elaboração ética, estética e existencial dos sujeitos que as praticam.3
Tais práticas se aproximam também do contexto das artes presenciais e performativas, além do campo da chamada Educação Somática. Neste sentido, as práticas contemplativas reafirmam seu perfil contra-hegemônico, na medida em que se esquivam de categorizações apressadas, em função de leituras de mundo mais abertas, heterogêneas, diferenciais e transversais.
Uma característica particularmente potente no contexto das práticas contemplativas é que chamam a atenção para os modos de ser e existir daqueles que as praticam (Plá, 2017). Na esteira desta ideia, Oliveira, Antunes (2014) e Ergas (2019) observam que, embora seja plenamente possível mapear as diferentes práticas que compõem o universo das práticas contemplativas, esse mapeamento nunca deve ser pré-estabelecido, pois o exercício da contemplação depende muito das interações, das necessidades e das forças envolvidas nos contextos onde são cultivadas, como exercício do próprio viver dos agentes que neles se envolvem.
É neste sentido, que as práticas contemplativas recorrem aos estudos da presença, pois encontram aí possibilidades reflexivas potentes para chamar a atenção para os modos singulares como os sujeitos se presentificam, ao cultivar em suas próprias existências ações de enfrentamento à ausência de corpo presente denunciada no início deste projeto.
Na esteira dessa ideia, pergunta-se: Que práticas contemplativas ganham viço na escola? Essa questão deu partida para um movimento investigativo que pretendeu verificar como tais práticas – chamadas aqui de contemplativas – oferecem espaços potentes para colocar em cena o problema da ausência de corpo presente na escola, ao apontar possibilidades de resolução negociadas e experimentadas, sempre e a cada vez, na consistência singular das relações escolares.
2 TERRITÓRIO DA PESQUISA, PROCEDIMENTOS E ANÁLISES
Para ecoar essas ideias acima pontuadas, essa presente pesquisa realizou um trabalho de campo focado no diálogo com professores(as) escolares da rede municipal e estadual de ensino da cidade de Rio Claro – São Paulo.4
Primeiramente o pesquisador instalou um espaço semanal de encontros com os(as) professores(as) escolares durante o HTPC (Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo) de duas instituições de ensino da cidade de Rio Claro - SP: Escola Estadual “Professora Heloísa Lemenhe Marasca” e Escola Municipal “Professor Elpídio Mina”. A instalação deste trabalho de campo ocorreu de Março a Novembro de 2023.
A constituição da amostra de pesquisa se deu por conveniência e adesão voluntária dos(as) professores participantes. Nesses encontros, foi possível operar um exercício de observação da realidade escolar concreta, que subsidiou a composição de anotações desenvolvidas em diários de campo do pesquisador.
Os referidos diários contribuíram no processo de sensibilização da atenção do pesquisador acerca das forças, isto é, aos afetos e às intensidades que atravessam as relações educativas escolares. Assim, com a escrita de diários, interessou abrir guias de escuta e acolhimento das singularidades e necessidades que permeiam o espaço escolar, de modo a dar viço às potências que atenuam o problema da ausência de corpo presente na escola.
Cabe considerar que a escrita diarística é uma prática potente para dar visibilidade para essa dinâmica interativa, na medida em que se deixa afetar pelas forças que atravessam os encontros, para compor os sulcos daquilo que pede passagem durante a ação do escrever (Barros; Passos, 2009; Nascimento; Silveira-Lemos, 2020). Neste sentido, o uso de diários de campo foi amplamente considerado nesta pesquisa, não apenas como instrumento de produção de dados, mas também, e principalmente, como dispositivo potente de produção da escritura da pesquisa, na medida em que apresenta vias mais múltiplas e transversais de condução do ato de escrever.
No que tange a tipificação dos(as) professores(as) escolares, cabe registrar que dos 20 participantes, 10 são homens e 10 são mulheres. Respeitando os critérios de inclusão definidos no projeto de pesquisa, todos(as) os(as) participantes têm mais de 10 anos de atuação como professores(as) escolares no contexto da Educação Fundamental e Ensino Médio. Os(as) participantes atuam nas seguintes disciplinas escolares: 07 na Educação Física, 03 na Geografia, 03 nas Ciências, 03 na História e 04 na Matemática.
Foram realizadas 20 entrevistas semiestruturadas com os(as) professores(as) escolares, para compreender como pensam a problemática relativa à ausência do corpo presente, e que ações de enfrentamento eventualmente realizam para amenizá-la.5
As análises foram constituídas como exercício de experimentação do pensamento (Deleuze, 2006; Deleuze; Guattari, 1995), buscando compor com a realidade estudada, ao invés de querer extrair pretensas verdades do contexto escolar. Para tanto, buscou-se respaldo nos estudos contemplativos, já situados na introdução deste manuscrito, pois se observou aí um campo de conhecimentos particularmente interessante para manter a atenção do pesquisador nas forças que atravessam as relações educativas escolares.
Buscou-se também pelas abordagens analíticas desenvolvidas no contexto das pesquisas participantes/participativas – particularmente a pesquisa-intervenção à luz da Filosofia da Diferença (Passos; Kastrup; Escócia, 2009; Passos; Kastrup; Tedesco, 2014) – para que a atenção interventiva pudesse estar sensível às forças que atravessam as intenções de trabalho investigativo aqui assumidas.
A escritura da pesquisa buscou tecer um movimento compositivo, de natureza heterogênea e diferencial acerca de questões relativas à presença no espaço escolar, que estivessem sensíveis às singularidades, mas também às tensões que aí transitam.
3 COMPOSIÇÕES ANALÍTICAS
Para a mobilização das discussões desta pesquisa foram geradas algumas frentes de análise, dentre as quais três serão aqui pontuadas: 1) Fatores Distratores, 2) O humor, 3). A empatia. A seguir, serão desenvolvidas as principais discussões constantes em cada um destes três dispositivos:
3.1 FATORES DISTRATORES
De acordo com a leitura de Barbezat e Bush (2013), os “fatores distratores” (p. 28) se referem a todo e qualquer estímulo, interno ou externo, que nos distraem do horizonte em movimento da contemplação, tornando rasa e, portanto, menos intensa, a relação de conexão e integração entre as partes que constituem um determinado encontro. Partindo deste pressuposto teórico, advindo dos estudos contemplativos, nos interessou verificar quais seriam os fatores distratores recorrentes no encontro educacional estabelecido entre professores(as) e estudantes na sala de aula.
Observou-se que a realidade escolar coloca os(as) professores(as) face a alguns fatores distratores, tais como, ruído excessivo dos(as) estudantes em sala de aula, “conversinhas” fora de hora, falta de diálogo e interação com o(a) professor(a), desânimo, dentre outros fatores relatados pelos(as) professores(as) escolares durante as entrevistas cedidas.
Em uma primeira análise, poderíamos dizer que esses fatores distratores revelam, no mínimo, direções dissidentes entre as partes que compõe o encontro educacional: de um lado o(a) professor(a) buscando defender uma certa intencionalidade educativa e dando certo encaminhamento interventivo à sua aula; do outro lado, os(as) estudantes que não só acompanham esse processo didático, mas que também intervêm nele, na medida em que se veem atravessados(as) por seus(suas) próprios(as) interesses e necessidades relacionados ao exercício do aprender.
É neste atravessamento, isto é, neste encontro tensional estabelecido entre intencionalidades educativas e questões situacionais que a ausência de corpo presente vez ou outra aparece, apontando certa dinâmica instável – e tensional – na conexão estabelecida entre professores(as) e estudantes em sala de aula.
Em uma entrevista realizada em 19886, o filósofo Gilles Deleuze fala um pouco sobre essa dinâmica instável que se constitui dentro de uma sala de aula:
para mim uma aula não tem como objetivo ser entendida totalmente. Uma aula é uma espécie de matéria em movimento. É por isso que é musical. Numa aula, cada grupo, ou cada estudante pega o que lhe convém. Uma aula ruim é a que não convém a ninguém. Não podemos dizer que tudo convém a todos. As pessoas têm que esperar. Obviamente tem alguém meio adormecido. Por que ele acorda misteriosamente no momento que lhe diz respeito? Não há uma lei que diz o que diz respeito a alguém. O assunto de seu interesse é outra coisa. Uma aula é emoção! É tanto emoção quanto inteligência. Sem emoção não há nada, não há interesse algum. Não é uma questão de entender e ouvir tudo, mas de acordar em tempo de captar o que lhe convém pessoalmente. É por isso que um público variado é muito importante. Sentimos o deslocamento dos centros de interesse que pulam de um para outro. Isso forma uma espécie de tecido esplêndido, uma espécie de textura (Deleuze, 2023).
Essa discussão contribui para olhar o problema da ausência de corpo presente dentro de uma direção mais interessante e potente, haja vista que não busca moralizar o problema da ausência de corpo presente, tampouco apregoar um pretenso discurso acerca da importância de minimizá-lo. Antes disto, Deleuze convida a pensar sobre a ausência de corpo presente como uma problemática constitutiva do próprio exercício da aula, uma vez que sua efetuação é marcada por emoções, isto é, de intensidades em constante processo modulacional, que faz deslocar os centros de interesse da aula a cada novo instante.
Ainda que essa dinâmica tensional, tão característica do ato de dar aula, seja uma dimensão constitutiva da ação educacional, o fato é que essas modulações, no nível de envolvimento e interesse dos(as) estudantes, nem sempre são experiências harmônicas e, não raras vezes, comportam certo nível de instabilidade que favorece a mobilização de atitudes reativas, tanto da parte do(a) professor(a), quanto dos(as) estudantes.
Nesta direção, segue a fala de um(a) dos(as) professores(as) entrevistados(as):
É por isso que eu penso que o professor, muitas vezes, tem que ser um artista, porque ele tem que avaliar a cada novo momento a sua abordagem, e perceber as recalculações que ele precisa adotar para trazer a atenção do aluno de volta para dentro da sala... Agora, imagine fazer isso seis vezes por dia, duas vezes por período, 32 vezes por semana! Faça as contas aí por mês... por ano... É algo que exige esforço! O que a gente faz não é brincadeira! Por isso que nós, professores, precisamos ser valorizados! Porque o que a gente faz, em sala de aula, ninguém mais pode fazer, pois envolve muito amor! (Entrevista realizada em 16 de Agosto de 2023).
O excerto acima aproxima a atuação do(a) professor(a) da atuação de um artista. Neste sentido, evidencia-se aquela parcela do trabalho interventivo que não pode ser calculada e metrificada, mas que está sempre à espreita dos acontecimentos, colocando o(a) professor(a) em diálogo direto com as demandas da imprevisibilidade e da adaptabilidade. Como diz o(a) professor(a) acima: “imagine fazer isso seis vezes por dia, duas vezes por período, 32 vezes por semana! Faça as contas aí por mês... por ano!”. Esse trecho, em especial, chama a atenção para a dimensão laboriosa do exercício educativo, que expõe as vísceras do trabalho do(a) professor(a) enquanto surfa na crista dos acontecimentos que atravessam a experiência de sala de aula.
Nas entrevistas cedidas, foi frequente a aproximação desta dimensão visceral da educação, com o progressivo processo de precarização e desvalorização da educação na atualidade. Na leitura de muitos(as) professores(as), a exposição a longo prazo a esses dois fatores somados gera efeitos negativos em suas saúdes e qualidades de vida. Seguem alguns excertos que apontam nesta direção:
a gente ama o que a gente faz, mas o amor, às vezes, dói! As vezes nos preocupa, e não tem como não levar essa preocupação pra casa! Não foram uma, nem duas nem três vezes que a gente levava aquela energia da sala de aula para casa, mas pra mim não tinha jeito.... o meu amor pela sala de aula era tanto que aquilo me trazia uma preocupação de vida também! E isso foi prejudicial para minha saúde em alguns momentos... Já tirei várias licenças, em mais de 20 anos de profissão, por estresse... por excesso de tensão... e não tem como, a gente adoece mesmo! Mas porque a gente se preocupa! A gente quer colaborar, a gente quer dar o nosso melhor, daí vem os problemas de saúde. (Entrevista realizada em 17 de Maio de 2023)
Eu tenho bastante dificuldades com conversinhas fora de hora. Isso me cansa! Mas, fazer o quê? Acho que a escola também tem essa função né?! De gerar socialização, mas o problema é que dentro da sala de aula a gente quer a atenção do aluno de outra maneira... É uma coisa, inclusive, de ter que sentir a classe. Tem dias que eles vão estar mais ruidosos mesmo! E tudo bem! Mas a longo prazo, sentir tudo isso não é fácil! Eu mesmo tô voltando agora de uma licença saúde... mais uma em 20 anos de professorado! Então não é fácil! (Entrevista realizada em 3 de maio de 2023).
Tais excertos mostram que, quando em excesso, a dinâmica tensional que reforça a ausência de corpo presente em sala de aula acaba fortalecendo as cadeias reativas, principalmente quando o(a) professor(a) reage negativamente às situações distratoras que atravessam a experiência de aula.
Além dos processos de adoecimento, essa atitude reativa traz também um outro problema: trata-se de uma certa anestesia, isto é, uma espécie de couraça que blinda o(a) professor(a) das situações distratoras que tanto precarizam seu potencial de ação e expressão em sala de aula. Encontramos indícios desta anestesia na fala de alguns(mas) professores(as), como segue:
Eu já cansei! Quando eu vejo que o aluno não tá nem aí pra aula, eu nem me esquento mais! Eu dou o que tem que dar e ponto! (Entrevista realizada em 28 de Junho de 2023).
Eu não dou chance para o acaso. O aluno não tá a fim de trocar comigo? É por isso que deixo a ponta sempre aberta! A porta da rua é a serventia da casa! Então, logo mando esse aluno pra fora! Mas não penso duas vezes! (Entrevista realizada em 19 de Setembro de 2023).
Olha, é bem difícil a gente ter o controle da sala, mas a gente pode controlar o nosso conteúdo. Então o que eu faço? Eu encho a lousa! Eu faço o que eu posso fazer que é ensinar! (Entrevista realizada em 03 de Maio de 2023).
Difícil viu! Eu perco a paciência fácil! Mas a diretoria serve pra isso né? Então, manda pra diretoria que amanhã ele volta mais quietinho. (Entrevista realizada em 17 de Outubro de 2023).
Os excertos acima apontam para um modo diretivo de condução da relação educacional, em meio ao qual, mediante a qualquer sintoma de fatores distratores em sala de aula já se institui uma reação específica da parte do(a) professor(a), que tende a encerrar a situação problema, demarcando a relação de poder deste(a) professor(a) perante seus(suas) estudantes. Geralmente, quando o(a) professor(a) chega neste nível de modulação da sua ação educacional é porque já tentou de tudo, mas nada deu certo. É nesta situação que se instala aquela certa anestesia da qual acima se falava e que revela, como efeito, uma atitude reativa por parte do(a) professor(a) que só acentua ainda mais o problema da ausência de corpo presente.
Cabe salientar, mais uma vez, que essa atitude reativa oferece uma espécie de blindagem, na medida em que desvia a atenção do(a) professor(a) das situações concretas que atravessam as relações educativas escolares, para aquilo que é preciso fazer. E o que é preciso fazer? Ou seja: o que se impõe enquanto dado imperativo, diretivo e contingencial que valida e legitima o ato do educar?
Em se tratando do contexto educativo – em seu contexto regimental – tudo aquilo que é preciso fazer define a ligação do(a) professor(a) com uma dimensão objetal, por meio da qual se institui, e se legitima, o exercício educativo. Muito desta dimensão objetal está relacionada aos conteúdos de ensino já previamente estipulados na grade curricular, que orientam, por força contingencial, as diretrizes daquilo que é preciso ensinar. Quando essa força contingencial se impõe de maneira excessiva em sala de aula, as relações educativas escolares são muitas vezes colocadas em segundo plano, em função de um conteúdo prévio que precisa ser dado e legitimado a qualquer preço. O grande problema desta força contingencial é que a presença do(a) estudante não está aí, senão na versão de uma ausência... de corpo presente (Carbonara; Zucco, 2023).
Mediante essa injunção, pergunta-se: Como os(as) professores(as) assumem uma atitude menos reativa frente à eminência destas situações distratoras dentro da sala de aula? Eis aqui, portanto, uma nova leitura da nossa questão de partida, a saber: Que práticas contemplativas ganham viço na escola?
De acordo com as discussões mobilizadas nesta pesquisa, uma estratégia potente que vem sendo utilizada por muitos(as) professores(as) é a prática do humor e da empatia. É sobre essas práticas, portanto, que iremos discorrer nas seções a seguir.
3.2 O HUMOR
Na leitura de Foucault (2010), o humor é um discurso que guarda em si, o poder de fazer rir. Mas rir de que, ou de quem? Os efeitos do humor são direcionados para àquelas situações que pretendem diminuir nosso potencial de ação e expressão. Neste sentido, os efeitos do riso recaem sobre aqueles que se posicionam sob a égide de poderes instituídos – tais como, o discurso científico, em sua versão mais binária, moral e disciplinar – e que, portanto, se colocam numa condição de superioridade que os fazem se reconhecer como peritos, isto é, especialistas que pretendem deter certo poder de verdade, através do qual reafirmam relações de dominação e opressão.
Nesta perspectiva, os efeitos de verdade produzidos pelo humor se constituem a partir da desqualificação de quem os produz – é o que Foucault vai chamar de poder ubuesco (Dalmoro, 2023). A atitude humorada agencia uma imaginação ubuesca que, por sua vez, se expressa em meio ao desatar de um vocabulário irônico, que perambula nos limites da cientificidade.
De acordo com Dalmoro (2023), a imaginação ubuesca, própria dos discursos do humor, tem o poder de nos inquietar, isto é, nos provocar, na medida em que ri das disposições já consolidadas, em direção a outras possibilidades, outras experimentações do pensamento. Neste sentido, o humor sempre aparece como um convite à reinvenção e à modificação de si e dos outros, que exige por certo deslocamento para sermos diferentes do que somos. Na esteira desta ideia, o humor acolhe em si aquela potência vital que marca um lugar de resistência e existência sempre por vir através da atitude humorada.
Encontramos indícios desta atitude humorada nas entrevistas com os(as) professores(as). Quando questionados(as) sobre como lidam com os problemas que encaram dentro da sala de aula, dois(as) professores(as) assim se manifestaram:
Porque é isso! O cara é um ser humano... e eu preciso entender que estou lidando com seres humanos... então, se o aluno tá cansado... a atenção dele vai lá pro espaço... ele não fica presente aqui!... aí você me pergunta: como eu lido com isso? É aí que vem o humor... no meu caso, eu acho que é mais uma compaixão assim... eu vejo que o aluno tá com dificuldade de se atentar na aula, então eu vou lá... me aproximo... e pergunto: “Tá tudo bem?” Mas não faço isso pra repreender, ou pra chamar a atenção... eu tento trocar ideia... tento me conectar com o aluno de alguma forma... (Entrevista realizada em 15 de Maio de 2023).
...é algo muito frequente, na atualidade, dar aula para uma classe totalmente desmotivada... eles dormem durante a aula... dormem de se debruçar na carteira e roncar... [...] então, quando isso acontece, eu gosto de parar a aula pra tentar me conectar com o aluno de alguma maneira... mas eu tento fazer isso sempre com um tom bem-humorado... porque não vai adiantar nada eu levantar a voz... mandar para a diretoria... por que? Isso só dificulta ainda mais a nossa relação... então eu tento fazer um alerta bem-humorado como, por exemplo [coloca as mãos sobre a boca e começa a imitar o som de alguém falando no auto-falante], “atenção senhores, planeta terra chamando! Planeta terra chamando!”, ou então começo a bater palmas e cantar uma música bem conhecida que eles gostem... aí eles começam a rir e entram comigo na brincadeira... e com isso eu ganho um pouco mais de tempo e atenção... que logo passa e eles se dispersam de novo, mas enfim... é o que dá pra fazer... É uma luta, mas também um gosto! Porque vai te provocando... te desafiando a conquistar eles continuamente... (Entrevista realizada em 03 de Maio de 2023).
Nos excertos acima, os(as) professores(as) entrevistados se encontraram com a atitude humorada quando se depararam com a desmotivação e o desinteresse frequente dos(as) estudantes. Neste contexto, a atitude humorada abre um campo de possibilidades para a intensificação daqueles processos que se fazem por si mesmo nas interações.
Na leitura de Rudd, o humor é um ingrediente essencial para se alcançar estados contemplativos, pois contribui na mobilização de uma abertura perceptiva, de natureza não judicativa, por meio da qual “aprendemos a rir de nós mesmos e do nosso excesso de seriedade” (2018, p. 64). Seguindo neste entendimento, o autor argumenta também que, o que se torna mais importante quando agimos de maneira humorada “é se conectar com as pessoas, ouvir seus corações e desfrutar da companhia delas o máximo possível.” (2018, p. 64).
Somando-se a essa ideia, os excertos, acima apresentados, parecem apontar para o entendimento que o humor ganha viço na escola quando o(a) professor(a) permite relaxar suas intenções pressupostas, para lidar com aqueles processos que advém durante o exercício interventivo e que atravessam as relações educativas escolares, exigindo por uma certa ultrapassagem daquela relação neurotizada que, muitas vezes, estabelecemos com os conteúdos a serem ensinados que, em última análise, reafirmam os circuitos reativos do(a) professor(a) escolar.
Neste sentido, a atitude humorada afirma um trabalho educativo constituído às avessas, ou seja, que se faz e se refaz na contramão das convenções e, no principal, na contramão daquela dimensão imperativa e contingencial que tende a impor para os(as) professores(as) escolares uma lista de conteúdos e práticas pressupostas que precisam ser feitas e transmitidas a qualquer custo, apontando para outras possibilidades de composição do exercício educativo.
É neste sentido que a atitude humorada se aproxima do contexto das práticas contemplativas, na medida em que gera conexão e integração com as demandas em ato no momento presente da relação educativa, de modo a aproveitar, de maneira intensa e alegre – no sentido mais Espinozano do termo alegria (Espinoza, 2008) – todos aqueles fatores, inclusive os distratores, que atravessam as relações educativas escolares, em nome da ampliação da potência dos agentes envolvidos, a saber, professor(a) e estudantes.
Essa ideia, acima delineada, se aproxima do pensamento de Rudd (2018) acerca do humor no âmbito dos estudos contemplativos. De acordo com o referido autor, o humor nos dota de uma necessária leveza, com a qual damos encaminhamento às nossas relações de convivência com a alteridade. Enquanto pautarmos nossas relações de convivência a partir do humor, vamos sendo lembrados, continuamente, que “a vida possui uma maneira de resolver a si mesma” (2018, p. 66).
Neste sentido, quando permitimos dar vez a essa resolução que se faz por si mesma – sem impor aquela vontade indolente de fazer valer o nosso próprio jeito de resolver as coisas – damos vazão à dinâmica integrativa que, em última análise nos esvazia de nós mesmos, conectando-nos afetivamente com as situações que nos passam, de modo a compor com essas situações de maneira menos reativa.
3.3 A EMPATIA
Nesta seção, interessa apresentar uma outra prática que se destacou na fala dos(as) professores(as), durante as entrevistas por eles(as) cedidas: a empatia.
Para tanto, a fala de um(a) professor(a) pede aqui passagem, como segue:
Sempre que algo acontece na escola... e que me tira do prumo... eu tento entender melhor o ser humano... porque assim: a gente tá num mundo onde ninguém tem paciência com ninguém. Estamos sempre correndo e se fudendo... então a gente tem que tentar entender um pouco o que o outro deve estar passando... Eu sei que não dá pra gente fazer isso o tempo todo, mas ao menos tentar é uma forma importante para se conectar com as situações e poder lidar melhor com elas. E a gente não faz isso se a gente não se permite parar um pouco e olhar para o outro. Essa parada é fundamental... ela te faz vibrar em um outro nível... (Entrevista realizada em 19 de Setembro de 2023).
Ainda que o termo “empatia” não tenha sido citado no excerto acima, fica evidente que era sobre isso que o(a) professor(a) falava. De acordo com Sennett, a empatia denota um “sentimento de curiosidade sobre os outros e o que são realmente” (2012, p. 36) e demanda por uma atuação de fronteira que exige pelo despojamento das intenções pressupostas para o acolhimento aberto, curioso, gentil e generoso das alteridades.
Para Rudd (2018), a empatia abre caminhos para uma atitude de generosidade, por meio da qual vamos nos acostumando progressivamente, com a sensação de desconforto frente à alteridade, até ser capaz de aceitá-la e acolhê-la plenamente, sem dar chance para a atitude reativa. Neste sentido, não há conexão afetiva se a empatia não for acionada, pois é a atitude empática que azeita a trajetória de encontro afetivo com as alteridades, mobilizando a dinâmica tensional que amplia o potencial de ação das partes envolvidas.
Na esteira desta ideia, Rudd (2018) destaca que a atitude empática abre caminhos interessantes para se alcançar a integração que, na leitura deste autor, é o fim último das práticas contemplativas. Para compreender melhor essa ideia, faz-se necessário recuperar brevemente o percurso reflexivo desenvolvido por este referido autor, segundo o qual, a contemplação demanda por um ponto de ancoragem da atenção, por meio do qual se intensifica progressivamente na direção da expansão da percepção de si. Neste movimento expansivo, evidenciam-se três diferentes movimentos: “a pausa, o pivoteio e a integração” (2018, p. 16).
Enquanto a pausa oportuniza a ruptura com padrões já consolidados, o pivoteio orienta a atenção para outros caminhos que vão se intensificando progressivamente na direção da integração. Seguindo nesta direção reflexiva, Rudd (2018) pontua que a pausa é um movimento fundamental para ingressar nos domínios da contemplação e não se toca o movimento da pausa sem atitude empática.
De certa forma, o excerto de entrevista apresentado acima, dá algumas pistas que endossam essa direção reflexiva. Quando o(a) professor(a) pontua:
Eu sei que não dá pra gente fazer isso o tempo todo, mas ao menos tentar é uma forma importante para se conectar com as situações e poder lidar melhor com elas. E a gente não faz isso se a gente não se permite parar um pouco e olhar para o outro. Essa parada é fundamental... ela te faz vibrar em um outro nível... (Entrevista realizada em 19 de Setembro de 2023)
Observem que, intuitivamente, o(a) professor(a) entrevistado(a) sente o acossar da atitude empática, que o(a) convoca a ter que “parar um pouco e olhar para o outro”. A parada é fundamental para, minimamente, dar passagem para um outro domínio de composição das relações educativas escolares, ainda que provisoriamente. É por isso que, para avançar na discussão sobre a atitude empática, talvez seja interessante discutir um pouco mais a fundo sobre o movimento da pausa.
Rudd pontua que a pausa “nada mais é do que perceber as pausas naturais da vida e simplesmente saber desfrutá-las” (2018, p. 27). Ao encontrar e se permitir desfrutar das pausas, abrimo-nos à escuta e ao acolhimento das alteridades. Ao mesmo tempo, na eminência do encontro com o outro, a pausa “começa a criar um círculo de quietude dentro de nós” (2018, p. 41), que ajuda a romper com aquele ritmo neurotizado com o qual imprimimos nossas ações cotidianas corriqueiras. Neste sentido, a pausa é essencial para oportunizar em nós outras composições de mundo, diferentes daquelas já habitualizadas.
O essencial, na pausa, é romper com o limiar perceptivo habitualizado para permitir certo arrebatamento da sensibilidade, capaz de apontar nossa atenção para outra direção ainda não estabilizada e, por isso mesmo, mais aberta e suspensa para o acolhimento de coisas diferentes.
Na esteira desta ideia, pode-se dizer que a pausa oportuniza um momento de suspensão da percepção, que, por sua vez, torna possível o encontro com um “tempo largo da experiência” (Rudd, 2018, p. 30), isto é, um tempo delongado, em meio ao qual atravessam lampejos que nos fazem sentir-pensar-agir com maior abertura, acolhimento e receptividade frente aos processos que já estavam ali, virtualmente, mas que não enxergávamos, justamente porque nossa sensibilidade não estava atenta a elas.
É no bojo deste tempo largo da experiência que reside a empatia, na sua plena atitude de abertura, acolhimento, generosidade e compaixão. Em termos neurofisiológicos, os autores Barbezat e Bush (2013) salientam que a atitude empática abre possibilidades interessantes para a composição de novas conexões sinápticas, gerando novos circuitos neurais que ativam as relações entre o pensar e o agir de maneiras diferentes, gerando intensificação das relações neuro-músculo-esqueléticas que, em última análise, ampliam nossa capacidade adaptativa, tornando-nos mais criativos frente às demandas que nos passam e nos instigam a sentir-pensar-agir continuamente ao longo da vida.
No excerto a seguir, é possível encontrar alguns indícios desta discussão sobre empatia acima citada:
A gente precisa entender que antes de sermos professores, antes de sermos pais, filhos... somos pessoas... e, portanto, temos sentimentos, temos vontades, temos dificuldades... problemas pra resolver.... um dia estamos felizes, outro dia estamos tristes... então, quando a gente entende isso, a gente humaniza as nossas relações dentro da escola! E é aí que a gente passa a curtir melhor, a entender a importância da empatia, da brincadeira... a gente tem que aprender a brincar na escola! Quando eu falo “brincar” estou querendo dizer o seguinte: a gente precisa aprender a trocar com os outros... a interagir de maneira mais tranquila... de uma maneira menos neurotizada... Quando você se permite brincar um pouco, dar umas risadas com os alunos e se soltar um pouco daquilo que precisa ser feito...isso é extremamente importante, pois alivia o ambiente e leva pra longe a sensação do estress... [...]. Isso traz uma qualidade pra relação escolar. (Entrevista realizada em 28 de Junho de 2023)
É no bojo desta discussão sobre empatia que faz sentido falar de práticas contemplativas na escola, compreendendo-as não como uma categoria a mais de práticas, dentre outras tantas já consolidadas, mas sim como uma atitude atencional, isto é, como um princípio de ação que ajusta a percepção do(a) professor(a) para os problemas e para os casos de resolução sempre eventuais que, quando azeitados pelo humor e pela empatia, operam ações de enfrentamento sempre em processo de diferenciação ao problema da ausência de corpo na escola.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As discussões desenvolvidas neste manuscrito chamam a atenção para os modos, por meio dos quais, os(as) professores(as) escolares contatados(as) lidam com o problema da ausência de corpo presente em sala de aula, a partir da própria realidade concreta que experienciam diariamente em seus exercícios educativos.
Em um primeiro momento, o encontro com esse problema deixou à mostra os fatores distratores que desencadeiam os circuitos reativos dos(as) professores(as) escolares contatados(as), gerando, a longo prazo, adoecimentos. Verificou-se que esses fatores fazem parte da aula e, portanto, muito mais do que mitigá-los, a todo e qualquer custo, devem ser encarados de maneira menos reativa, o que é um grande desafio para os(as) professores(as). Foi na esteira deste desafio, que a questão de partida desta pesquisa pôde ser atualizada ao longo das análises, de modo que se configurou nos seguintes termos: frente à eminência implacável dos fatores distratores, que práticas contemplativas vicejam no contexto escolar?
Em resposta a essa questão, foi possível observar duas práticas associadas ao exercício da contemplação: o humor e a empatia. De acordo com os estudos contemplativos, tanto o humor, quanto a empatia são dinâmicas que concorrem a favor da intensificação qualitativa das relações que se organizam em um determinado encontro. Essa intensificação gera um efeito de presença, isto é, um efeito compositivo que amplia o potencial de ação e expressão das partes envolvidas, e é justamente neste efeito de presença que se localiza o exercício da contemplação (Rudd, 2018; Barbezat e Bush, 2013).
Ao analisar os diários de campo e as falas dos(as) professores(as) contatados(as), encontramos indícios do humor e da empatia na instalação deste efeito de presença em sala de aula. Observou-se que enquanto o humor traz certa atitude de leveza que favorece a intensificação das relações educativas escolares, a empatia abre caminhos para a generosidade que dota os(as) professores(as) não só de uma atitude mais ampla de acolhimento, como também de plena aceitação da realidade escolar concreta que esses(as) professores(as) vivenciam cotidianamente.
Cabe considerar ainda que, de acordo com as discussões geradas nesta pesquisa, as práticas do humor e da empatia não podem ser pré-estabelecidas, pois estão diretamente relacionadas com os efeitos de presença, isto é, com a dinâmica compositiva que está sempre por vir na relação constituída entre professores(as) e alunos(as) durante a experiência da sala de aula. Isso significa dizer que as soluções operacionais para lidar com o problema da ausência de corpo presente em sala de aula devem ser sempre moduladas caso a caso.
Neste tocante, talvez fosse prudente trazer aqui o seguinte contraponto: à luz de leituras educacionais mais tradicionais, essa sugestão pela modulação caso a caso parece se configurar como uma estratégia pouco prática, que reduz sua força persuasiva perante soluções mais diretivas e operacionais. Para se antecipar a essa crítica, é preciso lembrar que, aos olhos do exercício da contemplação, o que garante a concretude do trabalho educativo e, consequentemente a sua solução concreta, é justamente essa preocupação com aqueles processos que advém nas relações educativas escolares e que, portanto, só aparecem como efeito deste exercício compositivo traçado entre professores(as) e alunos(as) em sala de aula (Oliveira; Antunes, 2014; Shapiro; Brown; Astin, 2011).
Isso significa dizer que a solução concreta encontrada em um determinado encontro nunca pode ser replicada sem se tornar outra, pois ainda que o protocolo de ação seja o mesmo, as intensidades que atravessam um outro eventual encontro tangenciará sempre caminhos diferenciais, que se movimentam seguindo os rastros por vir da composição tecida entre as partes envolvidas neste encontro.
É claro que o(a) professor não só pode como deve partir de funções referenciais (como, por exemplo, a ideia geral de que ele deve imprimir em seu exercício educativo certas doses de humor e de empatia), pois essas funções de referência dão, minimamente, uma direção de partida na orientação do trabalho didático-pedagógico. E essa orientação, por sua vez, é essencial para afirmar certa intencionalidade educativa em curso durante as aulas.
O que a abordagem contemplativa nos fará ver é que essa intencionalidade vai sendo transformada e, ao mesmo tempo singularizada, na medida em que o(a) professor(a) se abre aos interesses e necessidades dos(as) alunos(as). E é justamente aí que a solução efetivamente encontrada sempre ultrapassa as fórmulas operacionais mais diretivas, apontando para produções singulares que não podem ser reproduzidas em larga escala sem antes de tornarem outra coisa, outra produção resultante de um efeito compositivo em curso em um determinado encontro.
Por fim, para encerrar essa discussão sem a pretensão de esgotá-la indefinidamente, cabe reiterar que, quando se fala aqui da necessidade de ter que lidar com o problema da ausência de corpo presente, a intenção não é extirpar esse problema da realidade escolar – até porque ele é constitutivo do exercício educativo – mas sim direcionar melhor a energia, isto é, os modos através dos quais se organiza a atividade educativa, para responder ao problema de maneira mais compassiva, bem-humorada, empática e, portanto, mais afeita ao acolhimento de tudo aquilo que se diferencia na relação educativa escolar, e que amplia, como efeito, o potencial de ação e expressão não só dos(as) estudantes, como também do(a) próprio(a) professor(a).
Mas, para se acessar esse outro domínio de composição das relações educativas escolares, mediado pelo humor e pela empatia, será preciso pausar – ainda que provisoriamente – as demandas regulares e contingentes, que exigem o cumprimento a todo e qualquer custo. E é justamente aí que reside o grande martírio dos(as) professores(as), pois muitos(as) parecem não enxergar mais saídas, frente à imperiosa e indolente lista das mil e uma coisas que se tem para fazer.
Nesta direção, os achados desta pesquisa parecem apontar para o seguinte: quando a imperiosa e indolente lista de coisas pra se fazer começar a pesar demais sobre os ombros dos(as) professores(as), trazendo reatividades, conflitos permanentes e adoecimentos, o desafio será, sempre que possível, lançar mão do humor e da empatia, não como práticas mágicas que resolvem o problema da ausência de corpo presente na escola, mas sim como estratégias de modulação da atividade atencional do(a) professor(a) que garantem, ao menos, uma pausa, ainda que provisória, para o relaxamento dos circuitos reativos que tão mal fazem ao(à) professor(a).
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O trabalho da contemplação abre caminhos para uma forma peculiar de conhecimento alcançada não por meio do pensamento cognitivo e intelectivo, mas sim pela intuição que dá passagem para uma modalidade de conhecimento sempre situacional, perene e provisória (Wallace, 2009).
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Surge destas relações o contexto das Pedagogias Contemplativas que se referem a um modo de composição da prática educacional que coloca tanto o(a) professor(a) quanto o(a) estudante em uma posição de abertura e de acolhimento dos processos que atravessam e intensificam as relações educativas escolares, qualificando o exercício das aprendizagens (Oliveira; Antunes, 2014; Shapiro; Brown; Astin, 2011).
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Na esteira dessas aproximações com os estudos foucaultianos, as práticas contemplativas são entendidas como tecnologias de si, isto é, como práticas de elaboração ética e estética da existência, que comportam uma dimensão ascética (relacionada à preparação) e erótica (relacional) que escapa aos domínios do conhecimento teórico, justamente porque desloca a atenção para as práticas, por meio das quais, os sujeitos constituem seus modos de ser e existir (Foucault, 2006; Plá, 2017).
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Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética do Instituto de Biociências, Unesp, Campus de Rio Claro. Seguem os dados da aprovação: CAAE: 67305323.3.0000.5465.
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5
No que concerne aos procedimentos de coleta de dados, cabe aqui um esclarecimento. Considerando que essa presente pesquisa buscou pensar questões relativas à presença no contexto escolar, entendendo-a como efeito compositivo constituído nas relações educativas escolares, estamos cientes de que talvez tenha faltado reservar um instrumento de coleta de dados exclusivo para cobrir o ponto de vista dos(as) estudantes, assim como foi feito com os(as) professores(as) escolares a partir das entrevistas, no entanto, em nosso entendimento, a prática da escrita diarística conseguiu suprir parte desta demanda, justamente por conta do perfil desta modalidade escritural que se ocupa com um domínio de organização do registro mais compositivo e, portanto, menos rendido aos pontos de vistas individualizados (Barros; Passos, 2009; Nascimento; Silveira-Lemos, 2020). Assim, enquanto composição, os diários também acolheram as diferentes vozes expressadas pelos(as) estudantes, ampliando-as e diferenciando-as continuamente no curso das relações educativas escolares consideradas nesta pesquisa.
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O Abecedário de Gilles Deleuze é um documentário francês produzido entre 1988 e 1989 com entrevistas a Claire Parnet. Só foi disponibilizado em 1996, após a morte de Deleuze. Vários sites oferecem o conteúdo na íntegra.
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FINANCIAMENTO
O presente trabalho foi realizado sem o apoio de fontes financiadoras.
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ÉTICA DE PESQUISA
A pesquisa seguiu os protocolos vigentes nas Resoluções 466/12 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil e foi aprovado pelo Comitê de Ética de Pesquisa (CEP) do Instituto de Biociências, Unesp, Campus de Rio Claro. CAAE: 67305323.3.0000.5465.
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COMO REFERENCIAR
ALVES, Flávio Soares. Práticas Contemplativas e o problema da ausência de corpo presente na escola. Movimento, v. 31, p. e31039, jan./dez. 2025. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.143052
DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA:
Não informado o uso de dados.
REFERÊNCIAS
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Editado por
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RESPONSABILIDADE EDITORIAL
Alex Branco Fraga* https://orcid.org/0000-0002-6881-1446Elisandro Schultz Wittizorecki* https://orcid.org/0000-0001-7825-0358Mauro Myskiw* https://orcid.org/0000-0003-4689-3804Raquel da Silveira* https://orcid.org/0000-0001-8632-0731* Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
05 Out 2024 -
Aceito
07 Maio 2025 -
Publicado
03 Nov 2025
