Resumo
Este artigo buscou compreender de que forma as mulheres, enquanto protagonistas nos espaços públicos de lazer, percebem e atuam diante da (des)(re)organização provocada pelas políticas públicas de esporte e lazer. Através do trabalho etnográfico, observamos que a política adotada pela atual gestão municipal, baseada em princípios neoliberais, trouxe consequências para o cotidiano das mulheres que atuam no Parque Ararigbóia, levando-as a justificar e adaptar suas ações. Elas utilizam suas experiências anteriores no serviço público para criticar o desmonte das políticas e buscar soluções para a (des)organização do espaço. Por outro lado, voluntárias se apoiam na (re)organização da gestão como justificativa para suas intervenções no campo do lazer.
Palavras-chave
Políticas Públicas; Espaço público; Esporte; Lazer; Etnografia
Abstract
This article aims to understand how women, as protagonists in public leisure spaces, perceive and respond to the (dis)(re)organization brought about by public sports and leisure policies. Through ethnographic research, we observed that the policy adopted by the current municipal administration, based on neoliberal principles, has had consequences for the daily lives of the women working in Ararigbóia Park, leading them to justify and adapt their actions. They draw on their previous experiences in public service to critique the dismantling of these policies and to seek solutions for the (dis)organization of the space. Conversely, volunteers rely on the (re)organization of management as a justification for their interventions in the field of leisure.
Keywords
Public Policies; Public Space; Sport; Leisure; Ethnography
Resumen
Este artículo buscó comprender de qué formas las mujeres, en tanto protagonistas en los espacios públicos de ocio, perciben y actúan frente a la (des)(re)organización provocada por las políticas públicas de deporte y ocio. A través del trabajo etnográfico, observamos que la política adoptada por la actual gestión municipal, basada en principios neoliberales, ha traído consecuencias para la vida cotidiana de las mujeres que actúan en el Parque Ararigbóia, llevándolas a justificar y adaptar sus acciones. Ellas recurren a sus experiencias previas en el servicio público para criticar el desmantelamiento de las políticas y buscar soluciones a la (des)organización del espacio. Por otro lado, las voluntarias se apoyan en la (re)organización de la gestión como justificación para sus intervenciones en el campo del ocio.
Palabras clave
Políticas Públicas; Espacio público; Deporte; Recreación; Etnografía
1 INTRODUÇÃO1
A cidade de Porto Alegre vem afirmando um compromisso há quase 100 anos com sua população na prestação de serviços públicos de esporte, recreação e lazer. Durante este percurso, as políticas públicas destas áreas têm passado por processos de formulação, estruturação e negociação para adequar-se às mudanças nos modos de vida, nas transições governamentais e na ação participativa da população.
A ação governamental, iniciada em 1926, de criar espaços e atividades destinados ao lazer, vem produzindo nas comunidades relações de pertencimento aos espaços públicos da cidade e aproximando as relações entre poder público, entidades privadas e associações comunitárias. Essa relação tem se mostrado significativa na articulação de interesses e na construção de acordos entre os agentes governamentais e a sociedade civil, possibilitando a materialização das ações referentes ao esporte e lazer (Feix, 2003). Importante destacar que esses processos encontram-se em constante movimentação.
Entre os acordos firmados para a materialização deste serviço está a criação da Secretaria Municipal de Esporte, Recreação e Lazer (SME), no ano de 1993, na gestão da Frente Popular (FP)2. Durante o período em que atuou, a SME buscou oportunizar, incentivar e fortalecer a ação participativa da população através de diferentes dispositivos políticos focados no enfrentamento das desigualdades sociais. Segundo Tondin (2018), entre as estratégias para ouvir a população e proporcionar que a mesma participasse das tomadas de decisão, exercendo seu direito à cidadania, estavam os fóruns, as reuniões e o Orçamento Participativo (OP). Além disto, o autor afirma que a SME ampliou os espaços públicos para a oferta de atividades, Unidades Recreativas (UR), onde se fez possível a participação democrática da população, atendendo às particularidades das regiões, capacitando grupos sociais para uma ação política e promovendo o sentimento de pertencimento às ações e equipamentos públicos, através do trabalho de coletivização realizado pelas/os professoras/es.
O término das gestões da FP e o crescimento do movimento nacional, acompanhado de um aumento na adesão pública ao discurso de uma plataforma de governo neoliberal, causam modificações/rupturas no foco das ações políticas da prefeitura de Porto Alegre. Os argumentos políticos mobilizados pelos partidos situados nas plataformas de direita, que assumiram a prefeitura de POA nos anos seguintes, defendiam a necessidade de reduzir as responsabilidades do Estado e ampliar a atuação do setor privado, com a justificativa de incapacidade econômica para manter todos os serviços públicos que estavam em andamento, especialmente as políticas sociais (Santos, 2003; Montaño, 2010).
Esse processo foi aprofundado com as ações políticas do prefeito Nelson Marchezan Júnior (2017-2020), do Partido da Social Democracia Brasileira, dentre elas a redução do número de secretarias, incluindo a SME. Isso resultou na retirada do esporte, recreação e lazer do status de Secretaria, direcionando suas atividades para a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e Esporte (SMDSE). As consequências dessa ação resultaram em mudanças orçamentárias e estruturais nos serviços anteriormente ofertados, provocando a desmobilização de Centros Comunitários e associações, a redução de projetos, o fechamento de UR’s e a diminuição do número de professoras/es atuantes (Stigger et al., 2019).
Em 2021, com a gestão de Sebastião Melo (2021-atualidade), do Movimento Democrático Brasileiro, o esporte e lazer voltaram a ter uma secretaria própria: a Secretaria Municipal de Esporte, Lazer e Juventude (SMELJ). A criação da SMELJ foi resultado de mobilizações em arenas políticas compostas por atores heterogêneos que atuam no campo dos esportes e lazer da cidade (Myskiw et al., 2021; Silveira et al., 2023). No entanto, segundo Silva (2023), a retomada da pasta, conforme prometido em campanha, produziu novos desafios para a comunidade contestante, como o desinvestimento em ações destinadas à participação popular e a valorização de parcerias com as entidades esportivas, setor privado e agentes voluntárias/os.
Nesse sentido, Carneiro et al. (2018) argumentam que a estratégia neoliberal de descentralização da gestão em direção ao “terceiro setor” pode ser compreendida como uma medida de desresponsabilização do Estado pela garantia de direitos. Essa estratégia evidencia o distanciamento da proposta executada pela SME, vinculada a partidos alinhados à plataforma de esquerda, que visavam o fortalecimento da participação popular na cogestão dos serviços públicos de esporte e lazer, com o objetivo de atender às demandas e interesses das diferentes regiões, grupos e comunidades, em especial da população vulnerabilizada. Essa mudança de orientação política provocou novos momentos de instabilidade no campo do lazer.
Segundo Corrêa e Dias (2016), são nestes momentos de mudanças da ordem social que temos a possibilidade de seguir o fluxo das ações, à medida que colocam à prova um estado de coisas consideradas estáveis, proporcionando novos engajamentos e associações, assim como a simetria entre poderes e grandezas sociais. Entendendo que a materialidade das políticas públicas de esporte e lazer da cidade de POA está em constante construção e negociação, conforme Latour (2000), “em ação”, este trabalho tem como objetivo compreender de que formas as mulheres, enquanto protagonistas nos espaços públicos de lazer, percebem e atuam diante da (des)(re)organização provocada pelas políticas públicas de esporte e lazer.
2 METODOLOGIA
Esta etnografia foi realizada no período entre março e dezembro de 2022 no Parque Ararigbóia. A escolha do lócus deu-se devido à ação participativa de suas usuárias e funcionárias na gestão das políticas públicas de esporte e lazer de POA. Optamos em investigar as ações das mulheres, uma vez que elas foram as protagonistas no processo de retomada da SME (Silveira et al., 2023) no ano de 2017. Além disso, identificamos que elas são maioria tanto na gestão do Ararigbóia quanto no número total de usuários/as do parque. As observações participantes foram realizadas com aproximadamente 25 mulheres, com idade superior a 50 anos, nas aulas de Aero-alongamento, que ocorriam duas vezes por semana3. Também acompanhamos as reuniões realizadas entre a Associação de Usuários, representantes de turmas e coordenação do parque para a realização da festa Junina; escolha do tesoureiro da Associação; reformas no parque; e organização das atividades do ano letivo; reunião entre as/os representantes do bairro, coordenação do parque, Prefeita da Praça4 e SMELJ para decisões sobre o uso do campo de futebol; reunião entre a Prefeita da Praça e o adotante responsável pelo campo de futebol.
Optamos pela estratégia de seguir as ações e as agentes em diferentes tempos/espaços, atentas/os aos fatos relacionados à ação das políticas de esporte e lazer que estavam em debate no período da pesquisa. A partir da perspectiva de Latour (2000), passamos a olhar as políticas públicas como um objeto a ser seguido, algo em aberto, em movimento, que atravessava a prática de lazer dessas mulheres, proporcionando uma série de variações, instabilidades e incertezas referentes ao seu lazer. A partir deste processo, nosso olhar se deslocou para duas controvérsias e para as/os agentes humanos e não humanos (Unidade Recreativa, leis, campo de futebol, atas) que agiam para sua estabilização: o enfraquecimento do serviço público e da Associação de Usuários do Parque Ararigbóia, realizado por agentes governamentais e as novas possibilidades de organização e gestão deste espaço.
As redações dos diários de campo visaram organizar e sistematizar fatos, sentimentos, falas e críticas das mulheres atuantes no espaço, uma vez que compreendemos que elas têm a capacidade de produzir suas próprias críticas. As sistematizações dessas atuações demonstraram a forma como atores humanos e não humanos vão se colocando e, ao mesmo tempo, sendo colocados em ação (Latour, 2000), dada a capacidade de agenciamento das políticas públicas de esporte e lazer de POA. Os dados empíricos desta pesquisa também contam com duas entrevistas semiestruturadas com a professora e a prefeita de Praça do Parque.
Os preceitos que guiam esta pesquisa estão baseados na Sociologia Pragmática (Latour, 2000; Chateauraynaud, 2018; Boltanski; Thévenot, 2020), dada a possibilidade de olhar/seguir o social em construção em momentos de instabilidade. Conforme Boltanski e Thévenot (2020) é nesses momentos que as pessoas se colocam em ação sustentando denúncias públicas de ‘anormalidade’ em busca de acordos de normalidade. Segundo o autor, essa ação, oriunda de um conhecimento prático, exige uma coletivização, um reconhecimento sustentado publicamente através da produção de provas, mobilização de recursos, críticas e processos de comprovação que sustentam e justificam a necessidade de acordos coletivos baseados no senso de justiça. Para que isso fosse possível, foi necessário levar a sério as críticas das agentes e a forma como elas produzem seus repertórios, capazes de gerar associações e aproximar interesses, além de lidar com os processos de injustiça.
3 O ENFRAQUECIMENTO DO SERVIÇO PÚBLICO DE ESPORTE E LAZER: (DES)ORGANIZAÇÃO EM AÇÃO
O Parque Ararigbóia está localizado na cidade de POA e conta com um ginásio poliesportivo, salas para as práticas de atividades físicas e de musculação, pracinha, quadra externa, campo de futebol, vestiários e cancha de bocha. Conforme Flor (2013) e Forell e Stigger (2016), os primeiros indícios de uma ação política da comunidade do parque em prol dos seus direitos ao lazer ocorreu a partir da instalação do campo de futebol em 1940. As disputas e negociações referentes à utilização do espaço pela comunidade e prefeitura estabeleceram condições para o fortalecimento da participação comunitária através da Associação de Usuários do Ararigbóia.
A gestão da FP, a criação da SME e a mediação das/dos agentes da SME, que orientavam a participação em espaços democráticos como o OP, proporcionaram aprendizagens significativas para a população, como o ajustamento de discursos, ações, argumentos e estratégias para negociar e articular interesses garantindo, assim, acordos que dessem continuidade aos serviços públicos de esporte e lazer. Segundo Forell e Stigger (2016), a participação da comunidade na cogestão das políticas públicas de esporte e lazer desenvolvidas no Ararigbóia é um legado da longa trajetória política da cidade, uma vez que, neste espaço, a comunidade atua como usuária do serviço público, bem como nas atividades de manutenção e zeladoria do espaço e dos materiais. Entretanto, essa relação estabelecida entre a Prefeitura e a Associação é colocada à prova com a retomada das atividades, após o período de isolamento devido à COVID, no ano de 2022.
Com a transitoriedade das políticas públicas, produzida devido às trocas de gestões e as disputas de distintos coletivos, ocorrem movimentos de instabilidade e incerteza que atravessam os tempos e espaços de lazer das mulheres do Ararigbóia. Segundo Chateauraynaud (2018), esses momentos exigem das/dos agentes o ajustamento das ações, empreendidas em seus espaços e coletivos para estabilizar o cotidiano, a partir das vivências/experiências, conhecimentos práticos e técnicos adquiridos em situações anteriores, facilitando assim o contato com seus interlocutores.
Ao seguir e ouvir as mulheres no Ararigbóia foi possível observar as tentativas de ajustamento, acionando críticas referentes à atuação da SMELJ, onde, segundo elas, havia um distanciamento dos interesses da antiga SME, que destinava suas ações para uma política participativa e descentralizada. Com a SMELJ, a oferta de serviços passou a ser terceirizada e sustentada através de parcerias com o setor privado. Para Rosário, membro da Associação, usuária do parque e atualmente Prefeita da Praça, essa mudança de interesses fica evidente quando o Secretário da SMELJ faz a primeira visita no parque após sua posse.
Agora o Prefeito entrou e recriou a secretaria. O Secretário estava para se promover quando ele [Prefeito] assumiu em 2020/2021, ele não estava preocupado com os projetos e aulas. O Secretário na primeira visita no parque estava preocupado com o espaço e equipamento, para poder emprestar para a SOGIPA5. Com a atual Secretária da pasta o descaso com o serviço continua acontecendo (Entrevista Rosário, 15/02/2023).
Ainda segundo Rosário, os/a Secretários/a que assumiram a SMELJ utilizam o cargo como ‘palanque político’, beneficiando-se da relevância das ações e estruturas de esporte e lazer já constituídas para uma promoção política e aproximação com o setor privado. Essa instabilidade, causada pelo desalinhamento de interesses da ação governamental, também está presente nas críticas da coordenadora do parque, Fernanda, alinhada à perspectiva da antiga SME.
A Secretaria vinha de um partido que por muitos anos governou a cidade. Esse Governo pensou a Secretaria sempre do mesmo modo e as rupturas desta nova gestão vão causando danos na Secretaria. As pessoas que eram responsáveis pela Secretaria e que ficaram durante todo o tempo do PT, foram trocadas pelo Governo, e essas trocas estão cada vez mais frequentes. Essas mudanças vão tornando instáveis o funcionamento da Secretaria e as pessoas não sabem o que dizer e para quem dizer (Diário de Campo, 17/03/2022).
Para Fernanda, funcionária pública e coordenadora do parque, as rupturas causadas pela nova dinâmica política, destinando verbas aos Cargos Comissionados, dividindo o espaço em várias lideranças causando a desmobilização da comunidade, e as alterações constantes nos cargos da Secretaria, têm implicado em inseguranças e incertezas. Ao resgatar a trajetória das antigas políticas de esporte e lazer e o desconforto político gerado pela gestão do Governo Federal (2019-2022)6, Fernanda age com cautela ao explicitar suas críticas, visto que as ideias e as ações Municipais parecem estar alinhadas com a esfera Federal (2019-2022), dificultando a distinção de suas/seus aliadas/os.
A gente não fala hoje em dia porque a gente não sabe né, antes os funcionários públicos, as pessoas que trabalhavam lá com a gente, estavam lá na greve, mas a gente acreditava no partido e acreditava naquele governo [Frente Popular], hoje em dia eu tenho colegas meus que são bolsomínios7 e fica difícil (Diário de Campo, 17/03/2022).
Em suas denúncias cotidianas Fernanda ressalta que a desmobilização das ações associativas comunitárias, priorizando a concessão e privatização dos espaços públicos de lazer, a atuação do setor privado no planejamento e execução das atividades ofertadas e o encerramento de projetos construídos pela SME, insinuam o apagamento da história e do legado construído pelas/os antigas/os gestoras/es da FP, lugar esse onde a ação de professoras/es e gestoras/es públicos foi construída.
No entanto, para Manuela, professora da Unidade Recreativa, apesar das críticas sobre a atual gestão municipal, do seu lugar de professora entende que a Secretária atual da pasta tem se mostrado mais presente ‘na ponta’. Sua presença nos parques e nas Unidades Recreativas, reunindo os funcionários para debater sobre as possibilidades de reabertura das Unidades e atividades, encoraja a continuidade do exercício da função.
Eu sinto que a Secretária tem um olhar para os professores né, ela é professora, ela é filha de professor né! Tem todo o legado do Garcia, por mais que eu discorde politicamente de tudo sabe. O Garcia foi uma pessoa que, por exemplo, quando eu fiz concurso eles não chamaram a gente né, eu fiquei em segundo lugar no concurso e me chamaram na SMED e na SME nada, e nada, e a gente teve que ir para a câmara de vereadores para acionar e o Garcia foi quem comprou a nossa briga e pressionou para chamar na SME, sabe. Então eu acho que tem um legado que ela tem que dar conta também (Entrevista Manuela, 31/01/2023).
As novas relações oriundas da ação política mostram que a forma como essas interlocutoras se relacionam e percebem o espaço, assim como elaboram suas críticas, está ligada às diferentes trajetórias na ação política. A desvalorização do serviço de Manuela, com o encerramento do projeto ao qual estava vinculada durante o período da SME, e a atenção da atual Secretária da SMELJ ao serviço prestado ‘na ponta’, produz uma crítica positiva relacionada ao serviço da Secretaria. No entanto, Rosário e Fernanda, com sua caminhada na gestão da Associação e do parque, percebem as novas relações como um momento de alerta.
Compreendemos que essa divergência pode estar vinculada às atuações e às demandas de cada cargo. Se, em outros tempos, a Associação estava à frente da organização e manutenção do espaço, apoiada pelo setor público, atualmente essa relação tem se mostrado enfraquecida. Ao relembrar a participação na Associação, Rosário destaca a importância da cogestão para a qualificação dos serviços prestados no parque.
Quem conheceu o parque no passado sabe que o parque está 100% melhor, antes não tinha nada ali, era que nem o parque Alim Pedro, não tinha nada ali, só tinha o campo de futebol e nada mais. Aí depois veio uma casinha de madeira, a gente foi brigar lá no Orçamento Participativo para fazer o ginásio e aí a Associação entrou neste meio tempo porque não adianta fazer o ginásio e não ter nada. Nem produto de limpeza a prefeitura mandava. A prefeitura solta ali o ginásio e o povo que se vire, então a associação nasceu para isso (Entrevista Rosário, 15/02/2023).
A extinção da SME trouxe para o cenário político uma série de ações e justificações de ambos os lados. Na esfera municipal, a justificativa para a extinção esteve pautada na redução da máquina pública, argumentando que o custo reduzido com a extinção da Secretaria deveria alocar a verba para os projetos já existentes, e a nova forma de gerir a pasta facilitaria as parcerias com o setor privado, disponibilizando à população uma maior oferta de atividades (Silveira, 2020). Na prática a estabilidade organizacional é posta à prova com a extinção da Secretaria.
O atual cenário político impõe rupturas significativas na condução dos serviços ofertados pela SME em parceria com a população, passa-se a desmobilizar Centros e Associações Comunitários, há uma redução de projetos, um remanejamento de professores que desestabiliza vínculos e tensiona as ações. Segundo Manuela o desinvestimento no setor aconteceu de forma gradual:
A Secretaria que virou referência nacional, até mesmo mundial porque pensava na população de periferia em uma descentralização dos espaços de lazer, de trabalhar as autonomias das comunidades. Desde antes de deixarem de ser uma Secretaria (Fortunati e Marchezan), isso já foi diminuindo, as reuniões pedagógicas já estavam esvaziadas, já não se teve mais concurso para professor, para funcionário, a descentralização caiu por terra e se voltou a trabalhar nos espaços mais centrais da cidade (Entrevista Manuela, 31/01/2023).
A proposta deste trabalho pedagógico do qual a Manuela discorre buscava não só a descentralização dos serviços, mas um alinhamento de interesses entre todas/os as/os agentes, proporcionando um sentido de unidade e identidade entre elas/eles. As críticas de Rosário e Fernanda, sobre o desmonte da Secretaria apontam para essa virada de chave na política, da qual Manuela se referia. No entanto, elas ressaltam que a descaracterização de uma função educativa do esporte e lazer está associada ao que elas vêm nomeando como “palanque eleitoral”.
Essa mudança se faz perceptível no cotidiano do Ararigbóia, quando Rosário recorre a fatos passados para que possamos compreender seus atuais julgamentos. Segundo ela, as trocas constantes na gestão da Secretaria ligada ao esporte e lazer desde “a era Marchezan”, se caracteriza como um dos fatores para essa perda de unidade/identidade apontada por Manuela.
A era Marchezan ficou assim aquela coisa, o cargo era político, por exemplo, a Comandante Nadia8 nunca pisou em uma sala de aula e tava lá, era político o negócio, então ficou aquela grande bagunça. O Marchezan tirou tudo de nós, já tinha pouco e ele tirou tudo. O Marchezan foi aquela coisa que detonou, detonou completamente com a Secretaria, desestimulou os professores. Tem que gostar muito para trabalhar para o Marchezan (Entrevista Rosário, 15/02/2023).
No entanto, podemos perceber em sua fala que outros fatores vêm contribuindo para os ajustamentos de repertórios devido às ações governamentais no Ararigbóia como a desvalorização do serviço prestado pelas agentes públicas, com os ajustes salariais, deslocamentos para outras UR, perdas dos direitos trabalhistas e o investimento no setor privado. No cotidiano de suas atividades, esses fatores foram acionados pela professora e coordenadora para justificar suas ações, ao mesmo tempo que buscavam se distanciar dos ideais da plataforma de direita que o governo em voga estabelece. Isso pode ser visto no registro do diário de campo, em que a professora, ao ser questionada sobre a ausência do recesso de inverno afirma para a turma que:
Dada as últimas normativas do governo, ela não tinha mais direito nem de ir ao médico quem dirá de tirar férias. Para cada dia de recesso ela deverá pagar em horas extras posteriormente ou com uma licença premium, e ela não iria retirar a mesma se não fosse para viajar (Diário de Campo, 28/06/2022).
Em uma das reuniões para a organização da festa junina, Fernanda relata aos membros da Associação que a Secretaria havia retornado, mas o desmonte continuava, sem a oferta dos serviços de manutenção, materiais e funcionários.
Tudo foi rifado entre as outras praças. O evento pode acontecer, me mandaram uma lista para solicitar tudo o que precisava. Agora tudo vai ser terceirizado, tudo é contratado por fora e o processo leva de 2 a 3 meses para eles decidirem se vão contratar ou não (Diário de Campo, 16/04/2022).
Ao seguir a política “em ação” foi possível observar que a mesma tem agência sobre as ações das mulheres responsáveis pelas atividades no parque exigindo delas a formulação de críticas e justificativas de suas ações que passam por um processo de reajustamento. A participação histórica e potente da Associação dos Usuários do Parque no Ararigbóia, anunciada por Rosário, assim como as denúncias acionadas por Manuela e Fernanda sobre o enfraquecimento dos serviços de esporte e lazer, são parte de um trabalho de (de)singularização na formação de um coletivo capaz de lidar com os processos de injustiças, procurando assim mobilizar/agenciar novas agentes (Boltanski; Chiapello, 2009).
No entanto, as denúncias cotidianas e esse ajustamento de ações parecem ser percebidos pelas usuárias do parque como uma forma de desorganização do espaço, por se encontrarem distantes da gestão e dos cargos públicos. Desta forma elas, as usuárias, passam a elaborar suas próprias críticas, baseadas em suas próprias vivências, e as deixam explícitas verbalmente e/ou animicamente. O descontentamento com a instabilidade provocada pela política em ação, em especial com o desvinculamento de professores, estava presente nas aulas de ginástica da professora Manuela. Os registros feitos durante as aulas, nos diários de campo, mostram que a insatisfação das usuárias ocorre de múltiplas formas: interrupções das aulas por bocejos altos, abandono da atividade durante sua execução, trocas de turmas e questionamentos sobre as formas como as aulas eram ministradas.
Tú é a prof. E longe de nós querer dizer como é a aula, mas a gente queria um alongamento e depois o exercício (Queixa da representante de turma, Diário de Campo, 05/04/2022).
Hoje a Carla pediu para a Manuela baixar o volume do som porque estava muito alto na opinião dela, a professora baixou o volume, mas não gostou nada da intervenção. Na aula de hoje Carla saiu antes mesmo do relaxamento (Diário de Campo, 30/06/2022).
Manuela dedicou sua carreira às atividades com crianças e adolescentes vulnerabilizados. Com a extinção da SME e o encerramento do projeto Bonde do Brincalhão9, ela passa a integrar a equipe do Ararigbóia substituindo um professor referência do parque, que teve sua carga horária deslocada para outras atividades da SMELJ. Para Manuela esta troca de área foi desafiadora, pois não havia trabalhado com adultos e com a terceira idade.
A partir desses relatos é possível compreender como a política pública de esporte e lazer vem agindo sobre o cotidiano das funcionárias do parque e de suas usuárias. Durante o período da pesquisa, dado o momento de instabilidade, foi possível observar que as relações sociais já estabelecidas neste local, passam por um momento de transitoriedade, onde se faz necessário um novo processo de coletivização. O desmonte do serviço público prestado anteriormente, assim como a intenção de apagamento de uma história, construída coletivamente, atrelados ao discurso de incapacidade da gestão municipal para manter esse serviço, são acionados como provas tangíveis de que a política atual segue rumo distinto da anterior, colocando à prova, a ação das trabalhadoras ao mesmo tempo que é percebido pelas usuárias como um momento de crise.
3.1 POSSIBILIDADES DE (RE)ORGANIZAÇÃO: PARA GARANTIR O USO DO PARQUE ARARIGBÓIA
Para além das ações de desmonte da SME, outra controvérsia estava em debate, no momento da pesquisa: as novas possibilidades de organização e gestão dos espaços públicos de lazer de POA. Com a instauração da SMELJ um novo arranjo social passa a fazer parte da rotina do Ararigbóia, redesenhando a forma como as agentes articulam seus interesses, suas negociações frente às limitações locais e as políticas de funcionamento.
A proposta do governo de Sebastião Melo (2021-atualidade) relativa à participação comunitária nos espaços públicos de lazer dispõe de estratégias políticas que delegam aos cidadãos e empresas privadas a responsabilidade de cuidar, fiscalizar e manter os espaços através de programas como “Faça por você. Faça pela cidade”, “Adote uma praça” e “Prefeito da Praça”10. Essa terceirização do direito ao lazer vem sendo justificada pela incapacidade econômica do município de manter todos os serviços públicos que estavam em andamento e assim “repartir” com as empresas e sociedade os custos e cuidados com a cidade, possibilitando assim uma maior assistência aos espaços públicos. Esta prática está alinhada à perspectiva neoliberal do referido governo.
Esses novos atores trabalham voluntariamente e são responsáveis por cuidar dos equipamentos públicos assim como dos serviços de manutenção realizados pelos ‘parceiros’ da prefeitura, contribuindo com a conservação dos espaços. A mediação entre o poder público e os voluntários se dá através de um canal específico de comunicação via Equipe Central do Cidadão, que é responsável pelo recebimento e direcionamento das demandas para as demais Secretarias. Segundo Jorge Murgas, Secretário adjunto da Secretaria Municipal de Parcerias (SMP)11.
As parcerias entre poder público, iniciativa privada e sociedade hoje são o melhor caminho para que possamos oferecer serviços públicos de qualidade à população. Essa possibilidade faz com que as cidades se tornem mais eficientes, inteligentes, bem cuidadas, mais bonitas e mais agradáveis de se viver12
Essa possibilidade de (re)organização dos serviços e espaços públicos, exercida através da institucionalização dos cargos voluntários, resulta na ruptura de acordos anteriormente estabelecidos, criando novas regras, retirando o protagonismo da atuação das/os professoras/es, coordenadora e Associação e atraindo para o Ararigbóia dois novos agentes fiscalizadores: o adotante do campo de futebol e a Prefeita de Praça. Essa situação modifica uma ordem estável da realidade do parque, que visava mobilizar recursos através das ações e associações capazes de unir diferentes interesses em um único objetivo composto, a estabilidade. Importa dizer aqui que a relação entre a Associação e a Prefeitura, se dava através de fortes tensões entre os interesses das/dos agentes governamentais e não governamentais, e foram os processos de negociações e articulações de interesses que possibilitaram os investimentos estruturais, materiais e profissionais adquiridos no parque. Com o novo decreto as/os voluntárias/os passam a fazer parte destas negociações, distanciando-se de uma hierarquia estruturada possibilitando um novo arranjo entre poderes e grandezas sociais.
A possibilidade de (re)organização e as disputas de poderes em jogo, foi o estopim inicial para que Rosário avaliasse suas possibilidades de ação, de mediação e os riscos de assumir um novo cargo. A justificativa acionada por ela para atuar como Prefeita de Praça está alicerçada nos 40 anos de atuação na Associação. Seu maior objetivo é dar continuidade ao trabalho voluntário que realiza no parque, atendendo crianças vulnerabilizadas que residem em uma zona de tráfico. Segundo ela, a oportunidade de estar mais próxima das/dos agentes políticos, e garantir assim a continuidade de seu projeto, foi o que a motivou a se inscrever como candidata a prefeita deste parque.
Ao seguir Rosário percebemos que suas habilidades foram se construindo através das interações com diferentes agentes, e proporcionaram uma compreensão sobre a forma como a política age sobre essa comunidade. Assim, a Prefeitura da Praça, passa a ser entendida como uma estratégia, uma adaptação ao serviço que já vinha sendo prestado, por ela e pela SME, uma oportunidade de continuidade do trabalho. A relação entre a Associação e a coordenadora do parque, neste período, segundo Rosário, já estava enfraquecida devido às mudanças nas gestões governamentais e na gestão da Associação, fragilizando assim o atendimento do projeto social.
No entanto, a facilidade do acesso ao canal específico de comunicação via Equipe Central do Cidadão e o atendimento prestado pela SMP, é percebido de forma diferente pelas agentes. Enquanto Rosário percebe este atendimento como uma oportunidade de garantir o atendimento às crianças e a manutenção do parque, Fernanda identifica este canal como mais um elemento de desmonte do serviço público. Como podemos observar em uma denúncia realizada na reunião de gestão do parque, registrada em diário de campo. Segundo Fernanda:
A prefeita da praça parece ter mais força política que a coordenadora do parque, já que ela tem um acesso facilitado na SMELJ e as demais Secretarias. Como justificativa para essa crítica ela reclama que quando ela precisa solicitar alguma manutenção deve ligar para 156, como uma pessoa ‘comum’ e é atendida sem privilégios, enquanto a Prefeita tem acesso direto ao Whatsapp dos conselheiros que segundo elas têm dinheiro e poder para resolver as demandas do parque (Diário de Campo,12/05/2022).
Com isso, Fernanda relata o distanciamento das ações políticas quando geridas por Secretarias diferentes. Enquanto na SME a gestão do espaço estava sob responsabilidade da coordenadora e Associação, atualmente, com a SMP, esta gestão se faz de forma diluída entre as agentes que ali atuam. Essa nova organização propõe o estabelecimento de outros vínculos, deslocando a centralidade de sua atuação, construída a partir de sua trajetória na SME, para uma parceria da qual ela parece se distanciar.
Esse borramento dos limites e responsabilidades referentes à gestão do parque coloca em debate, também, as novas negociações sobre a forma de uso e gestão do campo de futebol. A construção do campo de futebol foi o marco inicial do parque em 1942, junto com o time Sulbrasil, e desde 1949 já sediava os jogos de futebol de várzea (Flor, 2013). A utilização do campo de futebol para os Jogos Municipais de futebol e os Jogos dos Veteranos, segundo Rosário, foi um importante agente capaz de mobilizar instâncias governamentais e não governamentais, agenciando diferentes atores.
Ao longo dos anos o alto custo da manutenção do campo, a impossibilidade da Prefeitura de realizar a manutenção, destacada por Rosário, e os acordos para a sua utilização, coloca este espaço em disputa.
No campo de futebol a gente fazia escolha, ou tu põe grama ou tu compra as coisas para as crianças e compra as coisas para o parque, né. Então a gente mandava cortar a grama que era 400 pila na época, então isso dava para mandar fazer é só, botar a grama nem pensar. Não dava, o Walter [atual responsável do espaço, o adotante do campo] gastou 20 mil ali dentro, não tinha como a Associação gastar 20 mil (Entrevista Rosário, 15/02/2023).
A primeira movimentação se dá com a adoção, através do projeto “Adote uma Praça” pelo voluntário Walter. Durante o tempo de pandemia, ele cuidou do gramado, pintou as marcações, organizou os vestiários em troca de garantir um acesso “privilegiado” do mesmo, visto que atualmente ele fica cadeado restringindo o acesso da comunidade.
Em uma conversa com o adotante e Rosário, registrada no diário de campo, Walter fala sobre a sua relação com o parque, deixando claro que esta adoção tem a intenção de ajudar, realizando benfeitorias como podas de árvores, vestiários, manutenção do gramado e dos jardins. Segundo ele, o custo de manutenção é de aproximadamente 2 mil reais mensais, e este investimento parece aproximar sua relação com a prefeitura de POA e a Prefeita de Praça buscando uma forma ‘amigável’ de organizar a utilização do campo.
A [Secretária da SMELJ], eu conversei com ela direto, conversei com ela ontem sobre os horários do campo. Então à noite só joga eu. Eu tenho o direito de jogar na terça pelas benfeitorias que eu faço, mas eu não quero jogar por enquanto até tudo se acalmar. E os jogos a gente já reduziu de 6 pra 2 [jogos do campeonato municipal de várzea e veteranos]. Se reduzir para 1, pra mim melhor. Escolinha durante a semana não vai ter? Ótimo. Imagina na semana os caras querendo dormir e vá apito? (fala do Walter - Diário de Campo, 27/03/2022).
Nesta conversa Walter procura explicar que seus interesses se aproximam aos interesses da SMELJ e da Prefeita de Praça, contudo ainda não dá conta dos interesses da comunidade necessitando da ajuda de Rosário para esta aproximação e o estabelecimento de um acordo.
Com a volta das atividades, no ano de 2022 após a flexibilização do isolamento social decorrente da pandemia do Covid-19, o campeonato organizado pela prefeitura retorna ao parque e desestabiliza a rotina que havia se instalado no bairro durante o período de 2 anos de isolamento. O que tornou esse fato tangível foram os jogos da 28º Edição do Campeonato Municipal de Várzea e a movimentação que o evento gerou no Parque, levando a mobilização de moradores para exigir seu direito ao descanso e a utilização desse espaço como um espaço de lazer “comunitário”. Assim se abre um debate, um momento de disputa, onde os argumentos das/dos moradoras/es, da SMELJ, da Prefeita de Praça e do adotante estão sendo colocados em jogo. Essa disputa ocorreu em diferentes espaços, Whatsapp, reuniões no parque e prefeitura e no jornal Correio do Povo13.
Em um primeiro momento, parte dos moradores se organizou via Whatsapp e acionou a Prefeita da Praça e a coordenadora do Parque, para reivindicar a utilização do campo pelos moradores e para impedir os jogos do campeonato ofertado pela prefeitura. Por algum tempo elas/eles acreditavam ter solucionado seu problema, visto que o campeonato ainda não havia começado.
Contudo, com o início das atividades esportivas do campeonato, as moradoras “convocaram” a Secretária, para comparecer ao parque para que ela pudesse verificar a situação em dias de jogos. As ameaças de tornar público os problemas do parque através de denúncias realizadas no jornal, parecem ter motivado a Secretária a comparecer no jogo, contudo não foi o suficiente para evitar reportagem14. Feita a denúncia e ainda em processo de disputa, as moradoras organizaram junto à Prefeita da praça e gestão do parque uma reunião para um possível acordo. Desta forma foi marcada uma reunião com a Secretária da SMELJ, os responsáveis pelo futebol na SMELJ, junto com a prefeita de praça e a coordenadora do espaço, sem a presença do Adotante.
O grupo de usuárias/os reuniu as seguintes provas para evitar o uso do campo para campeonatos municipais: a existência de três casas geriátricas próximas ao parque, e a lei que restringe o barulho e os jogos perto dessas residências; a utilização do campo por um coletivo específico de usuários, o “pessoal do futebol”, já que durante a semana o mesmo fica cadeado e os moradores não podem usufruir do mesmo; a falta de banheiros químicos; a segurança no local; e a venda de alimentos. Por fim as/os usuárias/os do parque sugeriram que ‘essas pessoas’, que não moram no bairro e que têm costumes diferentes dos moradores do local, como ouvir funk, utilizassem outros espaços da cidade, mais próximos de suas residências “afinal aqui é o Petrópolis e não podemos conviver com isso” (fala de uma das moradoras. Diário de Campo, 27/03/2022). Essa frase traz o anúncio de uma diferenciação econômica do bairro Petrópolis, o qual na fala da moradora deve ser compreendido como um bairro nobre, em relação a outros bairros periféricos da cidade, dos quais grande parte dos times de futebol de várzea são oriundos, uma vez que os visitantes parecem não compreender a gramática do espaço, ou deste coletivo.
A SMELJ e coordenadora do parque sustentaram a utilização do espaço para os jogos argumentando que durante toda a história do parque os Jogos Municipais de futebol e os Jogos dos Veteranos utilizam esse espaço para a realização de algumas etapas de seus campeonatos, e que os mesmos acontecem antes de existir casas geriátricas no local, devendo assim se verificar o alvará das mesmas. Relataram a importância desse espaço como um espaço histórico para o campeonato, e o fato do mesmo ter apenas três meses de duração. O argumento de que esse é um espaço público, e assim atende toda a cidade, estava implícito nas falas deles que citaram outros campos utilizados sem problemas para a comunidade. Sobre o churrasco na rua e a utilização do espaço por um público específico, acionaram as leis vigentes que autorizam essa prática15. A gestão do Parque argumentou que o espaço fica cadeado para conservação, mas que o mesmo pode ser utilizado pela comunidade sempre que solicitado.
Na reunião observamos diferentes agentes, com interesses distintos dialogando em prol de um único objetivo. A Associação, a Prefeita da praça e os moradores reclamavam o direito de utilizar o campo para seus momentos de lazer, para as escolinhas de futebol, para as atividades do parque e passeios com animais de estimação. Ficou evidente que nesta reunião havia divergências entre elas, relacionadas aos horários e a forma de utilização. A reunião encerrou com a promessa de uma solução por parte da Prefeitura que contemple a todos e o compromisso de uma nova reunião para que essas regras sejam discutidas entre todos ali presentes.
As novas possibilidades de (re)organização e gestão dos espaços públicos de lazer da cidade de Porto Alegre, proposta pela atual prefeitura da cidade através do trabalho voluntário de cidadãs/ãos e empresas privadas, colocam em diálogo, no cenário político, diferentes agentes e negociações. Entendemos neste processo que a maneira como as agentes percebem a ação desta política se dá de formas distintas, como a possibilidade de garantir o uso do parque e o desmonte do serviço prestado anteriormente. Essa percepção afeta a ação das/dos agentes que procuram novas formas de associações e passam por um processo de adaptação, onde se faz necessário acionar diferentes elementos em seus processos de justificação, como os processos históricos, legais, elementos elitistas e as mudanças territoriais.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao “seguir” a ação da política, atentas às formas como a mesma transforma e é transformada a partir das relações entre as agentes e as associações que se estabelecem nos momentos de instabilidade, buscamos neste trabalho, observar o desenvolvimento de duas controvérsias. A primeira está relacionada com o enfraquecimento do serviço público e da Associação Comunitária do Parque Ararigbóia e a segunda versa sobre e as novas possibilidades de organização e gestão deste espaço.
A mudança de um ciclo de quase cem anos de serviços públicos de esporte, recreação e lazer, construído a partir da ação e relação entre os agentes governamentais e não governamentais envolvidos no processo de participação na gestão da política colocam à prova as ações governamentais, dos/as funcionários/as e da população porto-alegrense. A partir da observação participante e das entrevistas realizadas, observamos que os processos de justificação, mandatos de Nelson Marchezan Júnior (PSDB- 2017-2020) e Sebastião Melo (MDB- 2021-2024 e 2025 - atualidade) à frente da Prefeitura de Porto Alegre, para o desmonte da SME e redistribuição da gestão dos espaços públicos de esporte e lazer da cidade, estão atrelados a uma política pautada pelos princípios neoliberais de redução da máquina pública e compartilhamento de tarefas com o setor privado e o serviço voluntário. Foi possível observar também, que essa ação política levou as/os agentes a modificarem suas formas de agir dentro deste espaço, tecendo críticas, justificando seus atos, fortalecendo e restaurando associações, mobilizando recursos e agenciando elementos a partir das experiências e aprendizagens anteriores.
Essa capacidade de agenciamento da política, contudo, é percebida de diferentes formas pela população. Enquanto para a coordenadora, professora e usuárias ela é percebida como uma (des)organização do espaço e atividades, desmonte e abandono dada suas experiências anteriores pautadas em suas trajetórias, ações políticas e trabalho de participação nas estações da SME. Estas mulheres teceram suas críticas à nova política enquanto procuravam adaptar estratégias para agir neste local. Por outro lado, a nova possibilidade de (re)organização da gestão dos parques, é utilizada como forma de argumentação da/do voluntária/o que passa a fazer parte deste arranjo político, ajustando e justificando suas ações como possibilidade de resolver problemas no campo do esporte e lazer.
Destarte, o processo de (des)(re)organização das políticas públicas de esporte e lazer de Porto Alegre impactou diretamente a prestação dos serviços ofertados à comunidade, ao mesmo tempo em que essa comunidade se mobilizou para que houvesse mudanças na forma de organização das políticas públicas de esporte e lazer.
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1
O texto é desdobramento de SILVA, Carolina Caneva. As políticas públicas de esporte, recreação e lazer da cidade de Porto Alegre em ação: percepções de uma produção coletiva a partir do protagonismo de mulheres. 2023. 194 f. Dissertação (Mestrado em Ciências do Movimento Humano) – Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2023. O objetivo que orienta a dissertação é compreender de que maneira a rede das políticas públicas de esporte, recreação e lazer da cidade de Porto Alegre se mantém ativa a partir do protagonismo de mulheres.
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2
Coligação de partidos aliados à plataforma de esquerda, PT, PCdoB, PSB e PV, que atuou na prefeitura de 1989 até 2004..
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3
Ao final do trabalho de campo foram realizadas 70 observações.
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4
A Prefeitura de Praça é um cargo voluntário pautado no Decreto Municipal Nº 21.073, de 17 de junho de 2021.
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5
Sociedade de Ginástica Porto Alegre, fundada em 1867, por imigrantes alemães. É um clube de grande relevância na comunidade porto-alegrense, tanto pela sua contribuição ao esporte quanto pela sua importância social.
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6
Jair Messias Bolsonaro do Partido Social Liberal (PL) foi presidente do Brasil de 2019 a 2022.
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7
O termo pejorativo é utilizado pela oposição para se referir aos apoiadores de Jair Messias Bolsonaro.
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8
Secretária Municipal de Desenvolvimento Social e Esporte (SMDSE) no ano de 2018, atualmente vinculada ao Partido Liberal.
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9
O programa Brincalhão foi desenvolvido pela SME desde 1998, oferecia atendimento ao público infantil em eventos recreativos, associações de moradores, entidades assistenciais, escolas públicas e creches comunitárias.
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10
Informações site da Prefeitura de Porto Alegre: PREFEITURA busca adoção... Disponível em: https://prefeitura.poa.br/smp/noticias/prefeitura-busca-adocao-para-espacos-publicos e PREFEITO da praça. Disponível em: https://prefeitura.poa.br/carta-de-servicos/prefeito-da-praca. Acesso 2 fev. 2024.
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11
Secretaria responsável por planejar, coordenar, articular e controlar as políticas voltadas para a captação de recursos externos através de parcerias públicas ou privadas. Informações retiradas do site da SMP, https://www2.portoalegre.rs.gov.br/ppp/default.php?p_secao=1208. Acesso em 27 jul. 2023.
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12
MELO nomeia segundo Prefeito de Praça da capital. Disponível em: https://prefeitura.poa.br/gp/noticias/melo-nomeia-segundo-prefeito-de-praca-da-capital. Acesso em: 27 fev. 2024.
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13
Jornal da cidade de Porto Alegre com ampla circularidade, com uma produção editorial posicionada politicamente a plataforma de direita.
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14
FALEIRO, Felipe. Moradores reclamam de barulho e sujeira na Praça Ararigboia, em Porto Alegre. Correio do Povo, 27 set., 2022. Disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/geral/moradores-reclamam-de-barulho-e-sujeira-na-pra%C3%A7a-ararigboia-em-porto-alegre-1.896874Acesso em: 27 jul. 2023.
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15
PORTO ALEGRE. Câmara Municipal. Aprovado projeto que libera churrasco na calçada. 13 jul. 2022. Disponível em: https://www.camarapoa.rs.gov.br/noticias/aprovado-projeto-que-libera-churrasco-na-calcadaAcesso em: 13 fev. 2024. E SAIBA como adotar... Disponível em: https://prefeitura.poa.br/smp/noticias/saiba-como-adotar-espacos-publicos-e-doar-servicos-ou-materiais-para-porto-alegre. Acesso em: 13 fev. 2024.
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FINANCIAMENTO
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
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ÉTICA DE PESQUISA
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética de Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Número na Plataforma Brasil CAAE: 53241321.2.0000.5347.
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COMO REFERENCIAR
SILVA, Carolina Caneva da; CARNEIRO, Fernando Henrique Silva; OLIVEIRA, Janaína Fontes de; PONTES, Bruna Tassiane dos Santos; SILVEIRA, Raquel da. As mulheres na (des)(re)organização das políticas públicas de esporte e lazer: um estudo etnográfico em Porto Alegre. Movimento, v. 31, p. e31041, jan./dez. 2025. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.143472
DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA
Os dados de pesquisa estão disponíveis no corpo do documento.
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Editado por
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RESPONSABILIDADE EDITORIAL
Alex Branco Fraga* https://orcid.org/0000-0002-6881-1446Elisandro Schultz Wittizorecki* https://orcid.org/0000-0001-7825-0358Mauro Myskiw* https://orcid.org/0000-0003-4689-3804* Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
23 Abr 2024 -
Aceito
11 Maio 2025 -
Publicado
04 Nov 2025
