Resumo
Neste ensaio, reflito sobre o artigo de Gastaldo e Eakin Practising Soft Science in the Field of Health, em que a pesquisa qualitativa crítica é uma metodologia, com fundamentos epistemológicos, axiológicos e teóricos. Destaco os elementos-chave emergentes levantados no comentário, discutindo o valor que ele contribui para criar uma presença institucional para a pesquisa qualitativa crítica nas ciências da saúde. Chamo a atenção para o trabalho invisível, muitas vezes emocional, associado a essa estratégia, ao mesmo tempo em que discuto os pontos fortes dessa abordagem. Argumento que a formação de um coletivo alinhado contraria a orientação positivista dominante no que Ndlovu-Gatsheni (2021) chama de “academia de gladiadores”. Em vez disso, ela permite explorar o lócus da enunciação (Mignolo, 2009), trazendo à tona as desigualdades. Por meio da implementação dessas estratégias, a pesquisa qualitativa crítica tem o potencial de contribuir para a disrupção generativa, criando uma ciência mole que alimenta a transformação social.
Palavras-chave
Ciências da saúde; Pesquisa qualitativa; Ciências moles; epistemologia
Abstract
In this essay, I reflect on Gastaldo and Eakin’s Practising Soft Science in the Field of Health, where critical qualitative research is a methodology, with epistemological, axiological and theoretical underpinnings. I highlight the emerging key elements raised in the commentary, discussing the value that it contributes to creating an institutional presence for critical qualitative research in the health sciences. I draw attention to the invisible, often emotional, labor associated with this strategy while elaborating on the strengths of this approach. I argue that forming an aligned collective counters the dominant, positivist orientation in what Ndlovu-Gatsheni (2021) calls “gladiator scholarship”. Instead, it allows for exploring the locus of enunciation (Mignolo, 2009), laying inequities to bear. Through implementing these strategies, critical qualitative research has the potential to contribute to generative disruption by creating soft science that fuels social transformation.
Keywords
Health sciences; Qualitative research; Soft sciences; Epistemology
Resumen
En este ensayo, reflexiono sobre el artículo de Gastaldo y Eakin Practicing Soft Science in the Field of Health, donde la investigación cualitativa crítica es una metodología con fundamentos epistemológicos, axiológicos y teóricos. Destaco los elementos clave emergentes planteados en el comentario, discutiendo el valor que aporta a la creación de una presencia institucional para la investigación cualitativa crítica en las ciencias de la salud. Llamo la atención sobre el trabajo invisible, a menudo emocional, asociado con esta estrategia, al tiempo que elaboro sobre los puntos fuertes de este enfoque. Sostengo que formar un colectivo alineado contrarresta la orientación dominante y positivista en lo que Ndlovu-Gatsheni (2021) llama “academia de gladiadores”. En cambio, permite explorar el locus de la enunciación (Mignolo, 2009), evidenciando las inequidades. Al implementar estas estrategias, la investigación cualitativa crítica tiene el potencial de contribuir a una disrupción generativa, creando ciencias blandas que impulsan la transformación social.
Palabras clave
Ciencias de la salud; Investigación cualitativa; Ciencias blandas; Epistemología
O artigo Practising soft science in the field of health (2024), de Gastaldo e Eakin, fornece um comentário eloquente, compartilhando percepções sobre suas experiências de incorporação da pesquisa qualitativa nas ciências da saúde. Isto é, em um mundo que tende a favorecer os paradigmas da pesquisa quantitativa. Seu artigo articula claramente os desafios enfrentados por pesquisadores qualitativos críticos. Ele ilustra as estratégias e os mecanismos adotados para desafiar e lutar contra as estruturas e os sistemas de dominância que sustentam o “limitado letramento em pesquisa qualitativa” e o preconceito do “cientificismo”. Neste artigo, começo destacando os principais elementos do argumento delas, oferecendo minhas reflexões e experiências de pesquisa qualitativa crítica em ciências da saúde na África do Sul.
1 INTRODUÇÃO
Com base em sua experiência ao estabelecer e desenvolver o Centro de Pesquisa Qualitativa Crítica em Saúde (CQ) na University of Toronto, Gastaldo e Eakin oferecem várias estratégias para navegar e resistir ao domínio de ambientes acadêmicos cada vez mais neoliberais. Elas contribuíram para a construção intencional de um espaço institucional para a pesquisa qualitativa crítica nas ciências da saúde. O desenvolvimento dessa presença institucional envolveu o estabelecimento de redes ao longo do tempo e o trabalho coletivo, assumindo várias funções e oportunidades para promover a agenda da pesquisa qualitativa crítica e resistir ao ambiente institucional hostil. Isso foi alcançado por meio da aplicação de três estratégias gerais, a saber: “fazer ciência de forma diferente”; “utilizar metodologias qualitativas com uma conexão explícita com teorias sociais situadas dentro dos paradigmas de pesquisa crítico-social e interpretativista” (Gastaldo; Eakin, 2024, p. 4) e “não apenas sobreviver, mas prosperar”.
Reconhecendo o limitado letramento em pesquisa qualitativa, as autoras propõem uma resposta sistêmica, criando um espaço institucional para desenvolver, apoiar e sustentar a pesquisa qualitativa crítica em ciências da saúde. A pesquisa qualitativa crítica foi enquadrada como uma metodologia, “uma perspectiva epistemológica, axiológica e teórica sobre a produção de conhecimento”, diferente dos métodos, que se referem a “técnicas de coleta de dados e produção de resultados”. A criação desse espaço, sugerem elas, implicou a redefinição e a reivindicação do conceito de “ciência mole”, defendendo que a prática da ciência mole é um ato de desafio que pode promover a pesquisa crítica. Isso foi possível por meio da adoção intencional de estratégias que estão fora da corrente principal e da integração corajosa dessas estratégias na pesquisa e no ensino. O avanço da pesquisa qualitativa como ciência beneficiou pesquisadores individuais e formou uma comunidade de pesquisadores com ideias semelhantes que criaram uma presença institucional ao revelar seu potencial. As autoras descrevem quatro áreas focais que mantiveram seu fluxo invocando a metáfora da pesquisa qualitativa crítica viajando ao longo das bordas irregulares e desafiadoras de um rio, seus limites e sua costa. Essas áreas focais contribuíram para que a metodologia da pesquisa qualitativa crítica se tornasse mais reconhecida como confiável nas ciências da saúde e a levasse a dialogar com a pesquisa positivista existente nas ciências da saúde.
Embora as autoras se baseiem em suas amplas experiências como líderes de pesquisa, sua narrativa destaca a importância fundamental das contribuições coletivas. O estabelecimento de um coletivo orquestrou sistematicamente a presença e o impacto institucional durante um longo período. Ter começado como uma rede que investia em pesquisa qualitativa crítica acabou levando ao estabelecimento de um centro de pesquisa. Ao longo dos anos, o crescimento intencional foi impulsionado pela permanência firme nos valores da verdade da pesquisa qualitativa e na disseminação do conhecimento em termos que refletiam esses valores (Gastaldo; Eakin, 2024). O benefício de estabelecer um coletivo que trabalhasse com essa abordagem baseada em princípios incluía oportunidades de coprodução de publicações e conjuntos de diretrizes que ajudavam a promover as carreiras dos pesquisadores qualitativos e o trabalho interdisciplinar. A natureza interdisciplinar da pesquisa do coletivo proporcionou uma ampla exposição à pesquisa qualitativa. Ao compartilhar suas reflexões sobre o trabalho, as autoras convidam outras pessoas a dar continuidade a ele, aumentando as possibilidades de ampliar a comunidade de prática de apoio.
A implementação prática da orientação crítica da pesquisa é outra estratégia que promoveu o potencial transformador da pesquisa qualitativa. Por meio de inovações metodológicas e conceituais e da mobilização de conhecimento, as autoras demonstraram que é possível desafiar as suposições sobre questões relacionadas à saúde. Eles defendem que “maneiras novas e significativas de fazer” emergem da pesquisa qualitativa crítica, que pode influenciar a saúde e o atendimento médico. O desenvolvimento da capacidade para essa pesquisa crítica foi promovido por meio do investimento na geração seguinte de pesquisadores qualitativos. Isso ocorreu por meio do ensino, especialmente em cursos de pós-graduação e supervisão de pesquisas de pós-graduação, publicação de diretrizes e oferta de oportunidades de carreira que promoveram a pesquisa qualitativa crítica. A geração de conhecimento foi aprimorada com a criação de conteúdo curricular acessível, alguns traduzidos para o português. A disseminação do conhecimento além da comunidade anglófona sinaliza uma busca ativa para ampliar as redes epistêmicas. Essa tradução fala sobre as desigualdades da distribuição de conhecimento em toda a ciência, inclusive nas ciências moles.
Gastaldo e Eakin (2024) nos lembram que, embora essas estratégias ajudem os pesquisadores a desafiar muitas pressuposições dominantes sobre a pesquisa científica, a pesquisa qualitativa crítica continua marginalizada nas universidades. Elas ilustram que esse não é um projeto único. Em vez disso, trata-se de um compromisso contínuo para equilibrar o crescimento e a criatividade que surgem nessa marginalidade, afirmando o direito ao respeito e ao reconhecimento em vez de integração ou assimilação no mundo do positivismo que persiste dentro da universidade. As estratégias e os insights que as autoras compartilham são extremamente necessários, quando o mundo enfrenta uma intolerância cada vez maior. A tentação de se adequar aos paradigmas mais positivistas ou de métodos mistos da pesquisa qualitativa pode parecer um caminho atraente para a autopreservação no meio acadêmico. As orientações neoliberais e gerenciais dominantes para a pesquisa desestimulam a pesquisa qualitativa crítica, preferindo paradigmas que se concentram em medidas numéricas e na mensuração do impacto. A concorrência por verbas de pesquisa cada vez menores aumentou nos ambientes universitários neoliberais, o que representa uma ameaça à continuidade da pesquisa qualitativa crítica. Isso levantou a questão: ainda há lugar para uma postura fundamentada em princípios, firme e criticamente embasada? Gastaldo e Eakin nos convidam a aceitar o desafio de sobreviver e, ao mesmo tempo, oferecem esperança de prosperar como pesquisadores qualitativos críticos.
2 REIVINDICAÇÃO DE VOZ E PODER: EVITANDO A ACADEMIA DE GLADIADORES
Gastaldo e Eakin (2024) oferecem sugestões persuasivas para o estabelecimento de uma presença institucional para a pesquisa qualitativa crítica. Elas fornecem uma visão do que precisa ser feito e do valioso propósito transformador que isso pode servir. Muitos pesquisadores na África do Sul e na África se identificarão com a experiência do preconceito generalizado da hierarquia nos métodos devido ao “cientificismo” (Gastaldo; Eakin, 2024, p. 2). Em minha experiência com alunos de pós-graduação de várias disciplinas das ciências da saúde, eles já se deparam com esse preconceito quando enviam suas propostas para análise institucional. As questões levantadas geralmente refletem o “limitado letramento em ciência qualitativa” dos revisores (Gastaldo; Eakin, 2024). As perguntas incluem: por que o problema é enquadrado usando construções políticas, isso não é um viés? Suponha que os participantes sejam considerados vulneráveis, tendo em mente que isso inclui uma grande proporção da população sul-africana (Republic of South Africa, 2015). Nesse caso, os revisores institucionais geralmente presumem que esses participantes têm agência limitada. Isso geralmente leva a atrasos na aprovação ética, pois os pesquisadores precisam descrever quais proteções adicionais serão implementadas quando surgirem perguntas paternalistas sobre proteção. São feitas suposições sobre vulnerabilidade e a agência é desconsiderada. Ao aplicar métodos biográficos e narrativos, honrar as decisões e as vozes dos participantes quando eles decidem revelar suas identidades é visto como um risco, mesmo quando os participantes são coautores da pesquisa biográfica. Essas questões, disfarçadas de questões legítimas de métodos, preocupação com a segurança e gerenciamento de riscos, refletem uma disjunção na orientação epistêmica. Os pesquisadores são sobrecarregados com a defesa de sua metodologia de pesquisa qualitativa crítica, pressionados a apaziguar e navegar pelo que muitas vezes parece ser um questionamento da base epistemológica, teórica e axiológica de seus estudos. A conceituação dos fenômenos e do problema da pesquisa usando teorias sociais críticas e colocando em primeiro plano os fatores relacionais e sociológicos que influenciam a saúde é considerada problemática. Reconhecer e desconstruir esses encontros dentro de redes de apoio ajuda na elaboração de estratégias sobre respostas individuais e institucionais que resistem a esses movimentos e aumentam o espaço para a pesquisa qualitativa crítica. O trabalho oculto associado à realização desse trabalho talvez seja parte do que Gastaldo e Eakin (2024) estão aludindo em sua afirmação de que “é duro ser mole” (p. 9).
Ndlovu-Gatsheni (2021) usa o conceito de “academia de gladiadores” para destacar a violência enfrentada como parte do trabalho emocional e invisível da produção acadêmica. Ele argumenta que o positivismo serve como uma base poderosa para a academia de gladiadores e que “criticar o trabalho de outro acadêmico é privilegiado em relação a tentar entender o que outros acadêmicos estão oferecendo”. Pesquisadores que adotam uma epistemologia como academia de gladiadores estão “sempre prontos para derramar sangue na busca de uma epistemologia particular” (Ndlovu-Gatsheni, 2021). A academia decolonial, como uma expressão da teoria crítica, se preocupa menos em servir ao ego acadêmico ou em afirmar a própria visão ou postura paradigmática. Ela convida a uma forma de ser que envolve o humano na pesquisa, rejeitando a luta pela dominação e abraçando a reflexividade e a abertura para ouvir e aprender. Ela se baseia na interação entre todos os aspectos das identidades, políticas e experiências humanas no contexto da pesquisa. Isso cria um espaço fértil para a geração de conhecimento. A estratégia de criar espaços onde os acadêmicos se sintam seguros para resistir à academia de gladiadores e estar abertos a novas formas de saber é outra estratégia que pode contribuir para a manutenção da pesquisa qualitativa crítica nas ciências da saúde.
Embora as estratégias de Gastaldo e Eakin (2024) para intervir no sistema de preconceito sejam encorajadoras, o trabalho emocional e o trabalho em várias frentes são intensos. Trabalhar como um coletivo é, portanto, necessário para sustentar as energias criativas e a resistência necessárias para realizar esse trabalho. Assim, a criação de redes e equipes que promovam a pesquisa qualitativa crítica nas universidades depende da busca de coerência e alinhamento entre os pesquisadores e da leitura cuidadosa de como ela se situa nos climas institucionais locais e globais e nos climas políticos mais amplos. A capacidade de interpretar o ambiente, por assim dizer, acrescenta outra camada ao ônus do trabalho emocional. Sinto-me compelida a oferecer uma palavra de cautela aqui: o lado sombrio dos coletivos estabelecidos é o risco de que eles adotem a competitividade dos gladiadores, minando o objetivo de incluir aqueles que se alinham com a agenda da pesquisa qualitativa crítica. Redes fechadas e exclusivas são frequentemente vistas na forma limitada e elitista com que alguns consórcios operam, atraindo oportunidades de financiamento apenas entre si. A forma como o coletivo epistêmico opera influencia a abordagem de integração de uma orientação de pesquisa qualitativa crítica no trabalho diário de ensino, na elaboração de subsídios, nas funções de comitê e na administração. O trabalho emocional que o acompanha ocorre como uma parte invisível da vida cotidiana de trabalho. Ele não se limita apenas a um projeto de pesquisa, mas também exige uma perseverança implacável, pois as negociações políticas são intermináveis.
A localização do ser humano como parte da geração de conhecimento está situada em uma configuração geopolítica mais ampla do mundo, em que o privilégio é concedido a formas eurocêntricas de ser e saber. Perceber esse privilégio revela a influência da colonialidade sobre os acadêmicos – significa prestar atenção em quem contribui para a geração de conhecimento, como isso ocorre e de onde você fala, o que Mignolo chama de lócus da enunciação (Mignolo, 2009). O lócus da enunciação reconhece a localização geopolítica e político-corporal a partir da qual se fala. Ele questiona a universalidade do que pode e deve ser conhecido, as formas de conhecimento e quem deve estar envolvido, permitindo o surgimento da liberdade epistêmica. Ao discutir os desafios e as estratégias usadas para avançar na pesquisa qualitativa crítica, a luta com esse lócus de enunciação parece estar ausente das considerações sugeridas por Gastaldo e Eakin (2024). As expressões de colonialidade que podem ocorrer nas redes epistêmicas que pretendem promover a pesquisa qualitativa crítica devem ser examinadas como parte explícita da criação de um espaço institucional para a pesquisa qualitativa crítica. Isso incentivaria formas de engajamento que mudam de noções singulares de conhecimento para a adoção da pluralidade de conhecimentos. Isso cria oportunidades para o surgimento de alternativas ao pensamento e à ação hegemônicos (Galvaan, 2021). Ela permite que a liberdade epistêmica se estabeleça, tornando visível o lócus da enunciação e aproveitando-o para moldar o que conta como geração de conhecimento. Esse processo, eu argumentaria, faz parte da pulsação da ciência mole e reflete mudanças epistêmicas e pragmáticas indicativas de disrupção generativa (Galvaan, 2021) por meio da práxis acadêmica. A disrupção generativa “exige que acadêmicos e profissionais adotem uma abertura epistêmica para a incerteza de não ter as respostas ou soluções imediatas. Uma abertura epistêmica para não saber é sustentada por uma intenção de mudar as práticas hegemônicas por meio da luta coletiva pela liberdade” (Galvaan, 2021, p. 8) por meio da prática. Durante a disrupção generativa, os seres humanos se trazem para a pesquisa e os dualismos são deslocados, permitindo que a pluralidade venha à tona e a colonialidade seja desafiada.
A criação de fóruns para que os coletivos se reúnam e dialoguem sobre as suposições que sustentam as orientações teóricas críticas para a pesquisa qualitativa é uma parte fundamental da estratégia que implementamos para criar um espaço institucional para esta pesquisa. Aqui estou me referindo a oportunidades formais de intercâmbio, como seminários e espaços informais para reuniões. Por exemplo, criamos um espaço denominado “Talking Scholars” para pesquisadores do Departamento de Ciências da Saúde e Reabilitação da University of Cape Town. Esse espaço incentivou os pesquisadores a compartilhar suas histórias sobre suas pesquisas com colegas e gerar percepções críticas sobre seu trabalho. É necessário estender esses espaços a todas as instituições e disciplinas. Os pesquisadores geralmente têm um senso de alinhamento com teorias críticas e uma conexão pessoal com o fenômeno que estão estudando, o que contribui para o vínculo emocional com a pesquisa. Esse vínculo pode ser reformulado a partir da percepção positivista de viés para ser ricamente produtivo, proporcionando uma oportunidade de ser um insider-outsider (Dwyer; Buckle, 2009). Ele fundamenta propositadamente a pesquisa e pode contribuir para identificar onde estão os pontos de alavancagem para a mudança necessária.
Não obstante, as tensões são evocadas quando confrontadas com o cientificismo e a demanda para defender metodologias críticas de pesquisa qualitativa e, ao mesmo tempo, resistir à academia de gladiadores. Essas tensões fazem com que seja difícil encontrar e articular a própria voz como pesquisador, especialmente sem uma rede de apoio, uma rede de pessoas com a mesma opinião. Encontrar uma voz como pesquisador diante dos questionamentos dos comitês de revisão e da academia de gladiadores pode contribuir para interrupções e atrasos na pesquisa, inclusive limitando as publicações e a divulgação da pesquisa. O desenvolvimento, a localização e a participação em redes epistêmicas estimulantes, abertas a desafiar suposições não examinadas e comprometidas com o desenvolvimento de capacidades, estão em sintonia com a ideia de construir uma ação coletiva que ofereça um lar institucional distinto para a orientação crítica à pesquisa qualitativa e à colaboração nas ciências da saúde. O convite de Gastaldo e Eakin para andar na corda bamba, mantendo o equilíbrio entre ocupar o espaço institucional e trabalhar de forma desafiadora a partir de e nas margens, ilustra uma mudança para além dos binários dualistas associados aos paradigmas da pesquisa quantitativa.
As contribuições das redes e dos coletivos que compartilham um propósito de pesquisa qualitativa crítica chamam a atenção para as oportunidades de nutrir alianças e entender os processos discursivos que moldam o trabalho dos acadêmicos indígenas em todos os lugares e a pesquisa no Sul Global. As nuances desses processos discursivos em diferentes contextos, considerando as diferentes estruturas e processos políticos, históricos e sociais, devem ser levadas em conta na forma como os pesquisadores e participantes trabalham juntos (Tuhiwai-Smith, 2024). Aprender com as experiências e práticas do Sul Global é importante para a troca mútua de conhecimento e colaborações benéficas de pesquisa. Isso pode fortalecer a rede epistêmica global da pesquisa qualitativa crítica, desconstruindo o conhecimento universal para permitir a produção de conhecimento situado. A pesquisa qualitativa crítica, então, responde à dominância ao contornar o que pode parecer uma competição dualista entre paradigmas. Ela se desvincula de discursos que tendem a justificar a legitimidade de uma abordagem. A prosperidade, e não apenas a sobrevivência (Gastaldo; Eakin, 2024), é demonstrada pelo crescimento da pesquisa qualitativa crítica, e não apenas por sua existência contínua.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Valorizo o espaço de reflexão que a seção de tópicos controversos da Movimento oferece. O comentário de Gastaldo e Eakin (2024) sobre tópicos controversos revela estratégias para contornar o domínio existente na pesquisa acadêmica e o caráter normativo da ciência.
Para encerrar, recorrerei à arte literária de Don Mattera, um escritor, jornalista, editor e poeta sul-africano conhecido por seu ativismo contra o apartheid. Mattera escreveu um poema quando seus companheiros foram perseguidos durante o auge do apartheid na África do Sul. Compartilho esse poema como uma reflexão sobre o poder das ciências moles e a ameaça com que elas podem ser percebidas. Essa ameaça pode alimentar gladiadores para instilar o medo à medida que perseguem o apagamento de ideias que surgem de orientações teóricas críticas. Viva o compromisso resoluto do pesquisador de sustentar a pesquisa qualitativa crítica.
seu murmúrio ameaça a sobrevivência deles
seu sopro pode iniciar a revolução;
ela deve ser destruída
Mande-a para a ilha
Chame o pelotão de fuzilamento
Mas lembrem-se de limpar seu sangue
Da parede,
Depois destruam a parede
Destruam a casa
Matem os vizinhos
A poeta deve morrer
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COMO REFERENCIAR
GALVAAN, Roshan. Um forte argumento para as ciências moles. Movimento, v. 31, p. e31003, jan./dez. 2025. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.145649
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FINANCIAMENTO
O presente trabalho foi realizado sem o apoio de fontes financiadoras.
REFERENCES
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Editado por
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RESPONSABILIDADE EDITORIAL
Alex Branco Fraga* https://orcid.org/0000-0002-6881-1446Elisandro Schultz Wittizorecki* https://orcid.org/0000-0001-7825-0358Mauro Myskiw* https://orcid.org/0000-0003-4689-3804Raquel da Silveira* https://orcid.org/0000-0001-8632-0731* Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
01 Fev 2025 -
Aceito
06 Fev 2025 -
Publicado
05 Mar 2025
