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PRÁTICAS CORPORAIS COMO CONCEITO?

BODILY PRACTICES AS A CONCEPT?

¿PRÁCTICAS CORPORALES COMO CONCEPTO?

Resumo:

A partir de uma perspectiva pós-estruturalista se propõe a problematizar o termo Práticas Corporais como conceito para o campo da Educação Física. Percorrem-se na literatura estudos, pesquisas e argumentos que demonstram sua heterogeneidade, indefinição e polissemia. Apresenta subsídios científicos e linguísticos para embasar que Práticas Corporais não possui especificidade, estabilidade e densidade suficiente para ser considerado como tal, desde perspectivas estruturalistas e/ou científicas. No entanto, se considerar compreensões inspiradas na filosofia da diferença e no pós-estruturalismo, Práticas Corporais tem potência para ser considerado um conceito para o campo.

Palavras-chave:
Formação de Conceito; Conhecimento; Educação Física

Abstract:

From a post-structuralist perspective, it proposes to problematize the term Bodily Practices as a concept for the field of Physical Education. Studies, research and arguments in the literature demonstrate the heterogeneity, indefiniteness and polysemy of this term. It presents scientific and linguistic subsidies to support that Bodily Practices does not have sufficient specificity, stability and density to be considered as such, from structuralist perspectives. However, if considering understandings inspired by the philosophy of difference and post-structuralism, Bodily Practices has the potential to be considered a concept for the field.

Keywords:
Concept formation; Knowledge; Physical Education

Resumen:

Desde una perspectiva postestructuralista se propone problematizar la expresión Prácticas Corporales como concepto para el campo de la Educación Física. En la literatura, se buscan estudios, investigaciones y argumentos que demuestran su heterogeneidad, indefinición y polisemia. Son presentados argumentos científicos y lingüísticos para sostener que Prácticas Corporales es una expresión que no posee suficiente especificidad, estabilidad y densidad para ser considerada como tal desde perspectivas estructuralistas y/o científicas. Sin embargo, si se consideran comprensiones inspiradas en la filosofía de la diferencia y en el postestructuralismo, Prácticas Corporales tiene la potencia para ser considerada un concepto para el campo.

Palabras clave:
Formación de Concepto; Conocimiento; Educación Física

1 NOTAS INTRODUTÓRIAS

É preciso escovar as palavras, já dizia Manoel de Barros (2008BARROS, Manoel de. Memórias Inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. Iluminuras de Martha Barros. São Paulo: Planeta do Brasil, 2008. p. 17), pois possuem sentidos e significados que remetem a “conchas com clamores antigos”, bem como “possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas”. Tal reflexão implica, para o poeta, a necessidade de buscar a origem dos termos que usamos, de forma arqueológica, mas também e em especial, de limpar e polir com cuidado e esmero as palavras que utilizamos de modo que estas possam ter maior precisão1 1 Cabe aqui outra alusão poética. Dessa vez a Fernando Pessoa (1996), quando retoma a frase de Pompeu “Navegar é necessário, viver não é necessário” e a ressignifica em um poema sobre a vida, substituindo o termo necessário por preciso. Pessoa utiliza a polissemia do termo “preciso” para referir a oscilação dos sentidos possíveis entre necessidade (precisar) e certeza (precisão) em relação ao viver. Tal movimento de buscar a sentidos fixos em meio a polissemia dos termos será mais bem justificado adiante em relação ao objeto deste ensaio. em suas funções linguísticas, sociais e culturais.

O termo Práticas Corporais2 2 Utilizarei o termo Práticas Corporais com letras maiúsculas para me referir à possibilidade de um “termo-conceito” no campo da Educação Física, e com letras minúsculas para referir as mais variadas práticas corporais possíveis de realização, mas que não são tomadas como conceito. utilizado no campo da Educação Física se insere no escopo dessa “escovação de palavras”, sendo esta incursão o objeto deste ensaio. Mas não no investimento arqueológico do termo, como sugere poeticamente o trecho acima aludido, mas sim, na segunda acepção da proposta de Barros (2008)BARROS, Manoel de. Memórias Inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. Iluminuras de Martha Barros. São Paulo: Planeta do Brasil, 2008., a saber, com a intenção de esmerar sua utilização e abarcar sua polissemia. Assim, refletir e ensaiar sobre os usos, as potências e as com-fusões do termo a partir de e em relação a outros estudos é o objetivo deste empreendimento. Além de problematizar seus usos como conceito.

São abundantes os estudos, pesquisas e coletâneas que tomam o termo Práticas Corporais como operador de discussão, tanto nas relações com as práticas educativas como, sobretudo, com as práticas de saúde, mais recentemente, como veremos adiante. O referido termo tem sido ocupado por grupos de pesquisa, coletivos de estudos, autores e autoras do campo da Educação Física com a intenção de marcar um posicionamento científico-político que se distancie - e por vezes incorpore - as noções de cunho biologicista da atividade física e/ou do exercício físico. Assim, neste emaranhado de produções acadêmicas que se consolida cada vez mais em torno do termo tornando-o muitas vezes um operador analítico para leituras e discussões de objetos de conhecimento da Educação Física, cabe questionar: Práticas Corporais pode ser considerado um conceito analítico do campo da Educação Física? Insere-se em alguma perspectiva teórica já consolidada e/ou difundida? Sua utilização já permite entendê-lo com consenso para análises e interpretações de fenômenos abarcados pelas leituras da área?

De chofre cabe mencionar o estudo de Lazzarotti Filho et al. (2010)LAZZAROTTI FILHO, Ari et al. O termo práticas corporais na literatura científica brasileira e sua repercussão no campo da Educação Física. Movimento (Porto Alegre), v. 16, n. 1, p. 11-29, jan./mar. 2010. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.9000 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/9000 Acesso em: 23 set. 2021.
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que propuseram discussão acerca do uso deste termo, problematizando suas áreas e campos de aplicação e menção, apresentando argumentos sobre sua potência em ser nominado como um conceito analítico para o campo (embora apontem para uma insuficiente capacidade para tal). Passados cerca de dez anos, seria possível empreender novamente tal discussão e fazer uma afirmação positiva da utilização deste como conceito em suas mais variadas significações?

É adequado destacar que passados cerca de cincos anos da publicação anterior, Silva, Lazzaroti Filho e Antunes (2014) retomaram algumas dessas questões na construção deste verbete para o Dicionário Crítico da Educação Física (GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2014GONZÁLEZ, Fernando Jaime; FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo. Dicionário crítico da Educação Física. 3. ed. rev. e ampl. Ijuí: Ed. Unijuí, 2014.). Resgatam a primeira incursão investigativa sobre o termo e apresentam evidências mais atualizadas que permitem considerá-lo com maior potencial de ser elaborado enquanto conceito. Nesse curso, relatam aumento substancial de produções, registros, usos e pesquisas acerca do termo Práticas Corporais e, sobretudo, indicam consensos e agrupamentos que permitem pensá-lo com força e intensidade pedagógica na formação humana.

É na esteira desse debate e a partir de alguns recortes de estudos e reflexões de tendências teóricas da área que se procura ensaiar e contribuir sobre essas questões no material aqui apresentado. Para tanto, num primeiro momento, se discute sobre a perspectiva teórica que permite fazer tais movimentos ensaísticos, a saber, o pós-estruturalismo, e a seguir, retomando diferentes abordagens sobre o objeto de estudo deste ensaio, tensiona-se o uso do termo com algumas tendências teóricas do campo da Educação Física, a fim de problematizar a organização e estabilidade deste termo na direção de um conceito próprio com potência analítica para o campo da Educação Física.

2 ESCOLHAS TEÓRICO-EPISTEMOLÓGICAS QUE BALIZAM AS PROBLEMATIZAÇÕES DESTE ENSAIO

A proposta aqui ensaiada de problematizar o uso do termo Práticas Corporais na Educação Física se ancora em vertentes de conhecimento que assumem que as “palavras e as coisas” não possuem sentidos próprios em si mesmos, mas sim, que são construídas em práticas de significação mediante relações de poder. Assim, diferentemente das epistemologias modernas estruturalistas que concebem que “a linguagem é entendida como um instrumento capaz de descrever o mundo e, de certa forma, representá-lo” (VEIGA-NETO, 2002VEIGA-NETO, Alfredo. Olhares.... In: COSTA, Marisa V. Caminhos Investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 23-38., p. 26), em perspectivas pós-estruturalistas a linguagem, radicalmente, é o locus em que essas representações e significações são construídas.

Tal entendimento de linguagem pode ser inicialmente atribuído a partir dos trabalhos do linguista suíço Ferdinand de Saussure3 3 Cabe ressaltar que, para Michael Peters (2000), o linguista Roman Jakobson também foi, junto com Saussure, de fundamental importância para o desenvolvimento dos estudos que se opunham à concepção da centralidade e do primado do sujeito nos processos linguísticos. Para maiores detalhes e aprofundamento teórico acerca da emergência do modelo estruturalista de linguagem e o pós-estruturalismo, vide: Peters (2000); Silva (1999); Edgar e Sedgwick (2003). , que influenciou diversos campos do conhecimento, como a antropologia, a literatura, a filosofia, entre outros, e que tinha uma tendência anti-humanista definida “abertamente contra os movimentos iniciais de pensamento ‘centrados no sujeito’” (EDGAR; SEDGWICK, 2003EDGAR, Andrew; SEDGWICK, Peter. Teoria Cultural de A a Z: conceitos-chave para entender o mundo contemporâneo. São Paulo: Contexto, 2003., p. 250). Em Saussure, a linguagem não é uma ferramenta utilizada para a apreensão e a descrição do real e da verdade das coisas, é ela que delimita e produz o que são as coisas a partir das estruturas sociais internas que a conformam. Sua estrutura é definida a partir da oposição entre língua - sistema abstrato de regras que condicionam sua estrutura - e fala - a utilização concreta dessa língua (SILVA, 1999SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.).

Muitos outros autores elaboraram, a partir dos trabalhos de Saussure, algumas considerações em relação à concepção de linguagem por ele promulgada. Para o movimento de pensamento ou a atitude convencionada de pós-estruturalismo, a linguagem adquire maior centralidade enquanto meio de produção de significados e, de certa forma, é radicalizada em relação à concepção desenvolvida nos trabalhos de Saussure (SILVA, 1999SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.). A linguagem, então, não apenas atua na significação das coisas e de seus significados - tampouco é entendida como descritora dos eventos materiais - porém, antes disso, “o processo de significação continua central, mas a fixidez do significado que é, de certa forma, suposta no estruturalismo, se transforma no pós-estruturalismo em fluidez, indeterminação e incerteza” (SILVA, 1999SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999., p. 119). Assim, a linguagem não descreve as coisas e seus eventos, mas sim, atua como uma instância privilegiada na constituição dos significados que damos aos fenômenos, ao mundo, aos objetos, e isso a partir dos processos de diferenciação sempre inacabados que ocorrem através deste lugar que é a linguagem.

É nesse ínterim que tal empreendimento teórico permite a problematização do termo Práticas Corporais, na medida em que este passa a receber significados mediante a utilização que se faz dele, sobretudo, no interior de determinados discursos. Desse modo, não há uma estabilidade presumida do termo, tampouco uma definição real ou final deste, pelo contrário, buscar-se-á compreender suas utilizações de modo a considerar se este já possui certa regularidade de compreensão.

Na ótica pós-estruturalista, os significados produzidos pelos processos de significação ocorridos através das linguagens não são nunca fixados, esgotados e finalizados, há sempre uma falta, uma incompletude, uma brecha, uma fenda que se abre ininterruptamente nas relações de produção de sentido das coisas. E tal compreensão é um dos deslocamentos realizados pela perspectiva pós-estruturalista em relação ao entendimento de linguagem idealizado por Saussure e outros estruturalistas, pois enquanto para estes o método estruturalista da linguagem, se aplicada com um rigoroso cientificismo, poderia estabelecer e identificar estruturas universais e comuns a todas as culturas e palavras - tendo a pretensão de um formalismo autossuficiente - no pós-estruturalismo a linguagem é concebida como antifundacional, ou seja, não existe nenhum elemento, essência, organização ou estrutura “de qualquer tipo, que possa garantir a validade ou a estabilidade de qualquer sistema de pensamento” (PETERS, 2000PETERS, Michael. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2000., p. 39).4 4 GUTTING, 1998 apudPETERS, 2000, p. 39

Assumir a importância da linguagem como um meio de produção de sentidos e significados requer pensar não apenas como a linguagem funciona na produção destes, mas também, quais os efeitos desses processos de significação na organização das coisas, nesse caso, de um termo e seus usos. Por fim, assumir este modo de compreender as produções culturais - nesse caso, científicas e filosóficas - implica considerar que as coisas, os fatos, os fenômenos, os acontecimentos são constituídos em seus sentidos e significados através da linguagem, de forma negociada, inacabada, escorregadia, contestada, disputada, ambivalente, incompleta, adiada, diferida. Eis a perspectiva que permite e organiza as problematizações seguintes.

3 USOS DO TERMO PRÁTICAS CORPORAIS NA LITERATURA: ALGUNS APONTAMENTOS

Seria uma tarefa interminável buscar a emergência - e ainda mais a origem - do uso do temo Práticas Corporais na literatura brasileira da Educação Física. Pressupõem-se que tal termo possa ter sido usado em diferentes registros anteriores as bases de dados e até mesmo em publicações cinzentas ou outros documentos relativos ao campo em registros de pares de anos atrás. Também não é pretensão deste ensaio realizar um trabalho arqueológico sobre esse objeto, assim como não se intenta conduzir uma revisão da literatura de modo narrativo, sistemático ou integrativo que verse sobre isso.

Nesse escopo e sobre os usos desse termo na Educação Física brasileira chama a atenção o argumento de Damico e Knuth (2014)DAMICO, José; KNUTH, Alan Goularte. O (des)encontro entre as práticas corporais e a atividade física: hibridizações e borramentos no campo da saúde. Movimento (Porto Alegre), v. 20, n. 1, p. 329-350, jan./mar. 2014. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.39474 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/39474 Acesso em: 23 set. 2021.
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, que, ao abordarem e problematizarem sua utilização, sugerem que este pode derivar da noção de técnicas corporais de Marcel Mauss, conquanto tenham definições semelhantes. Para eles, além de Mauss, Norbert Elias e David Le Breton também fazem ecos a este termo. Este é apenas um destaque introdutório sobre como buscar a origem de uma palavra tão difundida e utilizada de forma generalista pode ocasionar inúmeras interpretações sobre sua emergência, sobretudo num campo de conhecimento que tem o corpo e o movimento como objeto de estudo5 5 Aqui se faz um uso aberto e amplo da definição do objeto de estudo da Educação Física, tendo em vista que mais adiante se discutirá as distintas ênfases e tensões que tangenciam esse aspecto. .

Entrementes, cabe registrar que Lazzarotti Filho et al. (2010)LAZZAROTTI FILHO, Ari et al. O termo práticas corporais na literatura científica brasileira e sua repercussão no campo da Educação Física. Movimento (Porto Alegre), v. 16, n. 1, p. 11-29, jan./mar. 2010. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.9000 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/9000 Acesso em: 23 set. 2021.
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realizaram um esforço de busca e sistematização sobre o uso do termo Práticas Corporais na literatura brasileira. Os achados indicam que o termo se insere em áreas diversas, tais como Educação, Ciências Sociais Aplicadas, Psicologia, Antropologia, Artes, entre outras. Registram, ainda, que seu significado é variado, sendo sinônimo de esportes (inclusive antônimo destes!), práticas alternativas, cultura corporal, atividade física (antônimo desta!), atividades do cotidiano, entre outras (inclusive e especialmente não nominadas, o que os(as) autores(as) chamam de “termo dado”). Tais resultados indicam uma pluralidade de usos e referentes de significação, assim como de significados, áreas de aplicação e possibilidades de interpretação.

Essas constatações também são percebidas por Silva e Damiani (2005)SILVA, Ana Márcia; DAMIANI, Iara Regina. As práticas corporais na contemporaneidade: pressupostos de um campo de pesquisa e intervenção social. In: SILVA, Ana Márcia; DAMIANI, Iara Regina. Práticas corporais: Gênese de um movimento investigativo em Educação Física. Florianópolis: Nauemblu Ciência & Arte, 2005. p. 17-28.. Para as autoras, há várias áreas teóricas como as artes, a filosofia e a cultura popular em que a tematização das práticas corporais ocorre como objeto de reflexão. Aliás, merece destaque a coletânea produzida pelo coletivo do Núcleo de Estudos Pedagógicos em Educação Física - NEPEF, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), vinculada às autoras acimas citadas, organizada em quatro volumes que têm como título primário “Práticas Corporais”, sendo cada volume posterior sucedido com subtítulo específico. Nesta coletânea, em seus distintos volumes, as aproximações de objetos, métodos e teorias que subsidiam as práticas corporais são das mais amplas e diversas.

Outro movimento que é necessário frisar em torno da produção teórica sobre as práticas corporais, com vistas, dessa vez, a investimentos teóricos e metodológicos no campo da saúde coletiva e pública, e em especial, com a intenção de orientar novas diretrizes de formação na área, é a articulação feita por três Grupos de Pesquisa no Brasil, provenientes de três universidades, a saber, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), num projeto de investigação e formação de professores e profissionais de Educação Física para a saúde pública e coletiva. Este coletivo de pesquisadores foi contemplado com recursos para o desenvolvimento de um projeto interinstitucional denominado “Políticas de formação em educação física e saúde coletiva: atividade física/práticas corporais no SUS” (FRAGA; CARVALHO; GOMES, 2012FRAGA, Alex Branco; CARVALHO, Yara Maria de; GOMES, Ivan Marcelo. Políticas de formação em educação física e saúde coletiva. Trabalho, Educação e Saúde. v. 10, n. 3, p. 367-386, nov. 2012. DOI: https://doi.org/10.1590/S1981-77462012000300002 Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/qw86pRDkvgJh4RwgHcrb6PH/?lang=pt# Acesso em: 23 set. 2021..
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). Tal projeto gerou seminários de discussão e a produção direta de três livros: As práticas corporais no campo da saúde (FRAGA; CARVALHO; GOMES, 2013FRAGA, Alex Branco; CARVALHO, Yara Maria de; GOMES, Ivan Marcelo. As práticas corporais no campo da saúde. São Paulo: Hucitec, 2013.); Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação (GOMES; FRAGA; CARVALHO, 2015GOMES, Ivan; FRAGA, Alex Branco; CARVALHO, Yara Maria. Práticas Corporais no Campo da Saúde: uma política em formação. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2015.); e As práticas corporais no campo da saúde: pesquisa interinstitucional e formação em rede (CARVALHO; GOMES; FRAGA, 2016CARVALHO; Yara Maria de; GOMES; Ivan Marcelo; FRAGA, Alex Branco. As práticas corporais no campo da saúde: pesquisa interinstitucional e formação em rede. São Paulo: Hucitec, 2016. v. 3.), além de ter contribuído diretamente para outro livro, na medida em que foi organizado por alunos de pós-graduação vinculados a este projeto, a saber, Educação Física e Saúde Coletiva - cenários, experiências e artefatos culturais (WACHS; ALMEIDA; BRANDÃO, 2016WACHS, Felipe; ALMEIDA, Ueberson Ribeiro; BRANDAO, Fabiana Freitas. Educação física e saúde coletiva: cenários, experiências e artefatos culturais. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2016.). Tais registros indicam, por um lado, a importância do termo Práticas Corporais nas produções do campo, e, por outro, demarca a heterogeneidade deste.

No tocante às definições do termo Práticas Corporais, como já destacado, os processos estão abertos a distintas interpretações. O texto de Fraga (1995)FRAGA, Alex Branco. Concepções de gênero nas práticas corporais de adolescentes. Movimento (Porto Alegre), v. 2, n. 3, p. 35-41, 1995. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.2197 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/2197/918 Acesso em: 23 set. 2021.
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, por exemplo, mencionado por Lazzarotti Filho et al. (2010)LAZZAROTTI FILHO, Ari et al. O termo práticas corporais na literatura científica brasileira e sua repercussão no campo da Educação Física. Movimento (Porto Alegre), v. 16, n. 1, p. 11-29, jan./mar. 2010. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.9000 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/9000 Acesso em: 23 set. 2021.
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como aquele que cita diretamente o termo pela primeira vez na literatura científica presente em base de dados digitais, apresenta os processos identitários de gênero vinculados às práticas corporais em espaços e ações escolares, e para tanto, usa como elaboração teórica para justificar a importância da atenção a essas práticas na adolescência o conceito de técnicas corporais de Marcel Mauss. Refere assim: “Segundo Mauss, [...] tanta [sic] para os homens como para as mulheres, o momento decisivo é o da adolescência. É nesse momento que aprenderão definitivamente as técnicas corporais que conservarão para toda idade adulta” (FRAGA, 1995FRAGA, Alex Branco. Concepções de gênero nas práticas corporais de adolescentes. Movimento (Porto Alegre), v. 2, n. 3, p. 35-41, 1995. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.2197 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/2197/918 Acesso em: 23 set. 2021.
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)6 6 MAUSS, 1974 apudFRAGA, 1995. . Desse modo, se como afirmam Lazzarotti Filho et al. (2010)LAZZAROTTI FILHO, Ari et al. O termo práticas corporais na literatura científica brasileira e sua repercussão no campo da Educação Física. Movimento (Porto Alegre), v. 16, n. 1, p. 11-29, jan./mar. 2010. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.9000 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/9000 Acesso em: 23 set. 2021.
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ser esse o primeiro registro do uso do termo Práticas Corporais enquanto noção que permite reflexões e análises na literatura brasileira em base de dados digitais, é possível afirmar, também, que este deriva da noção de técnicas corporais de Mauss. Tal movimento de se referir ao conceito de Mauss como aquele que permite a emergência do termo, como já indicado, também foi realizado por Damico e Knuth (2014)DAMICO, José; KNUTH, Alan Goularte. O (des)encontro entre as práticas corporais e a atividade física: hibridizações e borramentos no campo da saúde. Movimento (Porto Alegre), v. 20, n. 1, p. 329-350, jan./mar. 2014. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.39474 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/39474 Acesso em: 23 set. 2021.
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.

Na continuidade da busca de delimitações de significados sobre Práticas Corporais, Silva, Lazzarotti Filho e Antunes (2014)SILVA, Ana Márcia; LAZZAROTTI FILHO, Ari; ANTUNES, Priscila de Cesaro. Práticas Corporais. In: GONZÁLEZ, Fernando Jaime; FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo. Dicionário crítico da educação física. 3. ed. rev. e ampl. Ijuí: Ed. Unijuí, 2014. p. 522-528. descrevem algumas características presentes no uso deste termo e registram enunciados que remetem a elementos que permitem melhor circunscrevê-lo, tais como: referir ao corpo e ao movimento corporal, destacar a historicidade das técnicas utilizadas e seus significados em coletividades, apresentar finalidades específicas e objetos determinados para sua realização, e ocorrer em tempo livre com características lúdicas e dinamicidade de movimentos.

Em curso, outras definições sobre o termo se apresentam, e estas variam de acordo com as perspectivas epistemológicas que se avizinham aos(às) autores(as). Por um lado, pode-se indicar aquelas de cunho mais culturalistas, definidas como as que estão carregadas de manifestações e identidades culturais diversas, que variam em valores e sentidos para os sujeitos que as praticam e produzem (CARVALHO, 2006CARVALHO, Yara Maria de. Promoção da saúde, práticas corporais e atenção básica. Revista Brasileira de Saúde da Família, Brasília: Ministério da Saúde, v. 8, p. 33-45, 2006. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/revistas/revista_saude_familia11.pdf Acesso em: 23 set. 2021.
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), ou ainda, como práticas e fenômenos heterogêneos, mas com sistemas de representação e produção de sentidos comuns aos sujeitos que as praticam por meio de linguagens (MANSKE; BARCELOS, 2016MANSKE, George Saliba; BARCELLOS, Thais Silveira. Práticas corporais medicalizantes: diagnosticando a revista Vida Simples. Movimento (Porto Alegre). v. 22, n. 1, p. 233-246, jan./mar. 2016. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.54900 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/54900 Acesso em: 23 set. 2021.
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). Também é possível destacar definições de ordem mais sociológicas, tal como referida por González (2015GONZÁLEZ, Fernando Jaime. Práticas corporais e o sistema único de saúde: desafios para a intervenção profissional. In: GOMES, Ivan Marcelo; FRAGA, Alex Braga; CARVALHO, Yara Maria (org.). Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2015. p. 135-162., p. 136), para quem as práticas corporais são ações que ocorrem entre indivíduos e/ou diferentes grupos sociais “de forma institucionalizada, organizada e sistemática, mas também de forma espontânea, desestruturada e esporádica”.

Não se pretende aqui afirmar uma ou outra definição em detrimento de tal qual, mas mostrar os diferentes usos, as ambivalências, as polissemias, os discursos que sustentam e as redes de significados que operam em torno e com o termo, de modo que se evidencie uma não estabilidade e usos diversos do termo, o que acarreta a) desafios e limites e b) potências (de acordo com o ponto de vista epistemológico) da organização deste termo em conceito.

Porém, como advertem Damico e Knuth (2014)DAMICO, José; KNUTH, Alan Goularte. O (des)encontro entre as práticas corporais e a atividade física: hibridizações e borramentos no campo da saúde. Movimento (Porto Alegre), v. 20, n. 1, p. 329-350, jan./mar. 2014. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.39474 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/39474 Acesso em: 23 set. 2021.
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, talvez esse exercício epistemológico de compreensão do termo seja uma tarefa específica do reduto acadêmico, pois os sujeitos vinculados às ações da EF na base da sociedade sejam usuários do SUS ou alunos de espaços educativos formais e não formais, não se importam com a diferenciação de tais noções, ignorando tais discussões. Tal ressalva é pertinente de consideração, pois esse exercício de definições e construção de conceitos, muitas vezes reduto do espaço acadêmico-científico, pode se tornar distante da operacionalização e sentidos das ações nos espaços em que ocorre. Todavia, essa discussão de problematizar a eleição de um termo enquanto conceito pode contribuir e conduzir de modo mais programático as ações dos profissionais de Educação Física e orientar a formação profissional do campo.

4 RELAÇÕES DOS USOS DE PRÁTICAS CORPORAIS COM PERSPECTIVAS TEÓRICAS DO CAMPO

Como já mencionado, o estudo de Lazzarotti Filho et al. (2010)LAZZAROTTI FILHO, Ari et al. O termo práticas corporais na literatura científica brasileira e sua repercussão no campo da Educação Física. Movimento (Porto Alegre), v. 16, n. 1, p. 11-29, jan./mar. 2010. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.9000 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/9000 Acesso em: 23 set. 2021.
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traz à baila que na literatura brasileira relativa a base de dados o termo Práticas Corporais é citado, inicialmente, por Fraga (1995)FRAGA, Alex Branco. Concepções de gênero nas práticas corporais de adolescentes. Movimento (Porto Alegre), v. 2, n. 3, p. 35-41, 1995. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.2197 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/2197/918 Acesso em: 23 set. 2021.
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em um artigo que versa sobre as constituições identitárias de gênero em relação a práticas corporais numa escola no município de Cachoeirinha/RS. Ao analisar as práticas de futebol e dança para os escolares, trata do futebol como “prática corporal desportiva” (FRAGA, 1995FRAGA, Alex Branco. Concepções de gênero nas práticas corporais de adolescentes. Movimento (Porto Alegre), v. 2, n. 3, p. 35-41, 1995. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.2197 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/2197/918 Acesso em: 23 set. 2021.
https://doi.org/10.22456/1982-8918.2197...
, p. 38), e concebe ambos desde uma lógica culturalista, afirmando que estas práticas possuem “códigos simbólicos referenciais que embasam qualquer cultura” (p. 40). Tal registro permite inferir que a noção de práticas corporais utilizada, além de se basear na concepção de técnicas corporais de Marcel Mauss, traz uma perspectiva culturalista para sua compreensão.

Importante ressaltar, então, que num primeiro momento o uso do termo práticas corporais ocorre em interpretações de fenômenos relativos à escola, e prescinde, nesse caso, de diálogos com teorizações bastante estabelecidas no campo da Educação Física Escolar, concebidas como tendências, correntes ou teorias pedagógicas (BRACHT, 2000BRACHT, Valter. A constituição das teorias pedagógicas da educação física. Cadernos CEDES, v. 19, n. 48, p. 69-88, maio 2000. DOI: https://doi.org/10.1590/S0101-32621999000100005 Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccedes/a/3NLKtc3KPprBBcvgLQbHv9s/?lang=pt&format=pdf Acesso em: 23 set. 2021.
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). De modo a não tornar exaustiva a discussão sobre esse tópico, e tampouco com a intenção de abarcar e muito menos esgotar esse debate, é possível apontar algumas teorias já consolidadas na Educação Física pedagógica brasileira para esta problematização, a saber, as assim denominadas teorias críticas e/ou progressistas.

A teoria Crítico-Superadora, organizada e proposta por um Coletivo de Autores em 1992, destaca como objeto de estudo a Cultura Corporal. Por este conceito os(as) autores(as) entendem o amplo repertório de práticas que constituem as manifestações da cultura corporal que expressam sentidos e são interpenetradas e produzidas, dialeticamente, nos espações escolares (SOARES, et al. 1992SOARES, Carmen Lucia et al. Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Cortez, 1992.). Podem ser tematizadas enquanto jogos, brincadeiras, esportes, danças, ginásticas e lutas. Cabe destacar que a base epistemológica de tal empreendimento é o materialismo histórico-dialético. No caso dessa teoria pedagógica (BRACHT, 2000BRACHT, Valter. A constituição das teorias pedagógicas da educação física. Cadernos CEDES, v. 19, n. 48, p. 69-88, maio 2000. DOI: https://doi.org/10.1590/S0101-32621999000100005 Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccedes/a/3NLKtc3KPprBBcvgLQbHv9s/?lang=pt&format=pdf Acesso em: 23 set. 2021.
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), é possível inferirmos que as práticas corporais estão situadas e podem ser tomadas enquanto culturas corporais, na medida em que são expressões que se alinham a tematizações propostas por este coletivo. Assim, a noção de práticas corporais se dilui em meio ao conceito de Cultura Corporal, tal como já fora abordado por Silva e Damiani (2005)SILVA, Ana Márcia; DAMIANI, Iara Regina. As práticas corporais na contemporaneidade: pressupostos de um campo de pesquisa e intervenção social. In: SILVA, Ana Márcia; DAMIANI, Iara Regina. Práticas corporais: Gênese de um movimento investigativo em Educação Física. Florianópolis: Nauemblu Ciência & Arte, 2005. p. 17-28. em momento anterior.

De outra abordagem, mas também considerada teoria crítica da Educação Física, se situa a pedagogia Crítico-Emancipatória. Esta teoria é atribuída, sobretudo, às elaborações de Kunz (2006b)KUNZ, Eleonor. Transformação didático-pedagógica do esporte. 7. ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006b. sobre as possibilidades de transformação do esporte escolar. Diferentemente da proposta teórica anterior, esta se baseia em epistemologias fenomenológicas para suas proposições, e busca no desenvolvimento de competências objetivas, sociais e comunicativas oferecer possibilidades de experiências aos(às) alunos(as) nas ações do se-movimentar. Poder-se-ia sugerir que nesta perspectiva o esporte se configura enquanto uma prática corporal. Além do mais, Kunz (2006a)KUNZ, Eleonor. Pedagogia do esporte, do movimento humano ou da Educação Física? In: KUNZ, Eleonor; TREBELS, Andreas Heinrich. Educação Física crítico-emancipatória: com uma perspectiva da pedagogia alemã do esporte. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006a. afirma propor o conceito de cultura de movimento para dar conta das inúmeras possibilidades empíricas do se-movimentar humano, ampliando para além do esporte o objeto de intervenção desta proposta pedagógica para a Educação Física. Assim, a noção de Práticas Corporais também parece se diluir no conceito do objeto proposto nessa teoria.

Em curso, cabe menção ao exercício de sistematização de Betti (2005BETTI, Mauro. Educação física como prática científica e prática pedagógica: reflexões à luz da filosofia da ciência. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 19, n. 3, p. 183-197, 2005. DOI: 10.1590/S1807-55092005000300002. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rbefe/article/view/16594 Acesso em: 23 set. 2021.
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, p. 187) para a concepção de Cultura Corporal de Movimento. Por este conceito o autor entende “aquela parcela da cultura geral que abrange as formas culturais que se vêm historicamente produzindo, nos planos material e simbólico, mediante o exercício da motricidade humana”. A proposta de Betti (2005)BETTI, Mauro. Educação física como prática científica e prática pedagógica: reflexões à luz da filosofia da ciência. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 19, n. 3, p. 183-197, 2005. DOI: 10.1590/S1807-55092005000300002. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rbefe/article/view/16594 Acesso em: 23 set. 2021.
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se assenta em perspectivas da semiótica e busca articular o empírico corporal com os sentidos possíveis de interpretação. Tal concepção parece, também, incorporar o entendimento de Práticas Corporais, sem que haja clara distinção entre um e outro termo.

Tais indicações de teorias progressistas do campo pedagógico da Educação Física e suas definições de objeto de estudo do campo permitem discutir que a concepção de Práticas Corporais não marca, efetivamente, um distanciamento ou delimitação de sentidos, escopo e objeto em relação a estas, de modo que pudesse ser considerada como uma proposição nova ou com potência de organização de outra perspectiva de objeto de estudo da Educação Física. Este exercício serve para pensarmos que embora o termo Práticas Corporais tenha surgido inicialmente em intepretações no espaço escolar no campo da Educação Física (conforme revisão de Lazzarotti Filho et al., 2010LAZZAROTTI FILHO, Ari et al. O termo práticas corporais na literatura científica brasileira e sua repercussão no campo da Educação Física. Movimento (Porto Alegre), v. 16, n. 1, p. 11-29, jan./mar. 2010. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.9000 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/9000 Acesso em: 23 set. 2021.
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), as tendências pedagógicas consolidadas da Educação Física não fazem menção a uma especificação teórico-conceitual deste termo.

No entanto, isso parece ser diferente nos estudos voltados à saúde.

É possível indicar a obra de Carvalho (1995)CARVALHO, Yara Maria de. O mito da atividade física e saúde. São Paulo: Hucitec, 1995. como o estudo inicial mais sistematizado acerca da problematização do estatuto epistemológico da Educação Física no campo da saúde baseado em pressupostos biologicistas e de relações “causa e efeito” por meio da atividade física. Desde então, os estudos que tematizam, discutem e problematizam tais relações têm se expandido, especialmente aqueles que advogam novas formas de pensar e fazer as práticas de saúde. As políticas públicas vinculadas ao Sistema Único de Saúde, especialmente na Atenção Básica, também colaboram para o aumento da produção sobre essa temática. A inclusão da Educação Física como componente de atuação profissional no SUS incentivou uma série de investigações e avanços na direção de tomadas de decisões sobre qual o papel do professor e profissional de Educação Física na saúde pública, com vistas à saúde coletiva.

É nesse ínterim que as discussões e produção de conhecimento na Educação Física em suas interfaces com a saúde - em especial a Saúde Coletiva - passam a questionar mais fortemente o modelo tradicional de desenvolvimento de ações, e propõem novos marcos teóricos e conceituais. Dentre estas novas proposições teórico-metodológicas se insere a noção de práticas corporais. Atualmente o Ministério da Saúde, através do Glossário Temático Promoção da Saúde (BRASIL, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Secretaria de Vigilância em Saúde. Glossário Temático: Promoção da Saúde. Série A. Normas e Manuais Técnicos. Brasília, DF, 2012., p. 28), define as práticas corporais como “expressões individuais ou coletivas do movimento corporal, advindo do conhecimento e da experiência em torno do jogo, da dança, do esporte, da luta, da ginástica, construídas de modo sistemático ou não sistemático”7 7 A discussão em torno do binômio “Atividade Física/Práticas Corporais” presente nas legislações referentes à saúde pública, no tocante à Educação Física, merece menção. Nesses documentos, é comum convencionar Atividades Físicas como sinônimo de Práticas Corporais. Isto está presente, inicialmente, na Política Nacional de Promoção da Saúde (BRASIL, 2006), inclusive destacadamente como um binômio. Já no Glossário Temático de Promoção da Saúde esses termos aparecem como verbetes distintos, mas mutuamente inclusivos e referenciáveis entre si. Destaca-se, no entanto, que ambos termos/conceitos partem de pressupostos epistemológicos divergentes. Por um lado, Atividades Físicas são definidas desde um viés estritamente biológico, e por outro, Práticas Corporais o são a partir de vieses humanísticos e sociais. Além do mais, o objeto e o escopo de intervenção, assim como, as finalidades, se distinguem. Por isso, faz-se necessária a atenção permanente a esses aspectos para que se possa promover a problematização e desconstrução deste arbitrário binômio. . Cita, ainda, que se deve considerar as manifestações culturais de determinado grupo e contemplar as vivências lúdicas e de organização cultural, assim como frisa que existem várias formas de práticas corporais, tais como as recreativas, esportivas, culturais e cotidianas.

Aqui, a noção de Práticas Corporais parece ter não apenas mais sistematização em relação às interfaces com as propostas pedagógicas como, sobretudo, legitimidade, tendo em vista que se opõem - de forma teórica, mas sobretudo política - aos conceitos de atividade física e exercício físico, ambos balizados por perspectivas com base nas Ciências Naturais.

Em suma, é possível retomar que o uso do termo Práticas Corporais tem registro inicial para interpretações no espaço escolar, desde uma perspectiva culturalista. No entanto, as principais teorias pedagógicas da Educação Física Escolar ao elaborarem conceitos para compreensão da produção de conhecimento, formação e intervenção no campo não abordam este termo, de forma separada, enquanto um objeto específico, sendo este possível de incorporação às propostas já elaboradas, na medida em que são amplas e com escopo bem definido, independentes das epistemologias que as sustentam. E isto é diferente nas elaborações em interfaces com o campo da saúde, muito possivelmente pelo termo Práticas Corporais permitir, se não uma oposição, uma ampliação das compreensões de atividade física e exercício físico, estes sim consolidados enquanto conceitos científicos.

5 PRÁTICAS CORPORAIS: A ORGANIZAÇÃO DE UM CONCEITO?

Em seu estudo de revisão sobre o uso do termo Práticas Corporais na literatura Lazzarotti Filho et al. (2010)LAZZAROTTI FILHO, Ari et al. O termo práticas corporais na literatura científica brasileira e sua repercussão no campo da Educação Física. Movimento (Porto Alegre), v. 16, n. 1, p. 11-29, jan./mar. 2010. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.9000 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/9000 Acesso em: 23 set. 2021.
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lançam mão de uma possibilidade de compreensão do que vem a ser conceito. Desde uma perspectiva estruturalista, indicam que um conceito é formado em triangulação entre três entes, a saber, o referente, o significado (designado pelos autores como características) e a forma verbal. Não obstante, como já mencionado em seção anterior, Saussure concebia a possibilidade de leitura - e explicação - do mundo na relação entre a língua verbal e a língua formal (estrutura). Assim, no escopo desse argumento, os(as) referidos(as) autores ainda destrincham as diferenças entre o que é um termo e uma palavra, atribuindo ao primeiro a necessidade de ser compreendido em meio a discursos. De todo modo, o que interessa aqui é a indicação de que um conceito serve para “instrumentalizar a linguagem e ser manipulado para a construção de vocabulários e tesauros” (p. 16).

Assim, desde essa perspectiva, seria possível sugerir que Práticas Corporais se configura como um conceito? Os(as) próprios(as) autores advertem, no início do manuscrito, que não. Para eles(as) o termo “ainda carece de elementos mais consistentes para sua conceituação” (LAZZAROTTIO FILHO, 2010, p. 14), e justificam isso pelo fato de que, num campo científico, em que há linguagens especializadas, a delimitação de um conceito é extremamente importante para o avanço de um campo, sendo que um conceito é uma

[...] unidade de conhecimento que surge pela síntese dos predicados necessários e relacionados com determinado objeto e que, por meio de sinais linguísticos, pode ser comunicado aos demais, o que exige que a linguagem especializada tenha maior precisão do que aquela do senso comum (p. 15).

Ao final do texto, já nas considerações finais, aludem à possibilidade de o termo estar na direção de consolidação, indicando que este “já se constitui com potencialidade para ser estruturado como conceito, necessitando, porém, de maior estabilidade e de um certo nível de consenso dentre a comunidade acadêmica” (LAZZAROTTI FILHO et al., 2010LAZZAROTTI FILHO, Ari et al. O termo práticas corporais na literatura científica brasileira e sua repercussão no campo da Educação Física. Movimento (Porto Alegre), v. 16, n. 1, p. 11-29, jan./mar. 2010. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.9000 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/9000 Acesso em: 23 set. 2021.
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, p. 25). Por fim, advogam mais investimentos teóricos por autores do campo.

Se formos balizar a perspectiva de conceito adotada por esses(as) autores(as), é possível concordar com suas considerações, na medida em que, por um evento tanto científico quanto político (unidade conceitual permite avanços na área!), o termo ainda não permite que seja visto como consolidado - haja vista as discussões aqui realizadas sobre seus mais diversos usos, limites de alcances e interpretações.

Complementando esses argumentos, cabe trazer à baila reflexões de Betti (2005)BETTI, Mauro. Educação física como prática científica e prática pedagógica: reflexões à luz da filosofia da ciência. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 19, n. 3, p. 183-197, 2005. DOI: 10.1590/S1807-55092005000300002. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rbefe/article/view/16594 Acesso em: 23 set. 2021.
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em torno da problematização da Educação Física poder ser considerada ciência. Em ampla revisão e discussão, apontando as disputas entre matrizes científicas e pedagógicas do estatuto da Educação Física, o autor apresenta, desde abordagens da filosofia da ciência, argumentos que permitem considerá-la como científica (destaca-se que o autor não se posiciona a favor desses argumentos de forma direta, pelo contrário!). O que interessa aqui é a estrutura de pensamento que Betti (2005)BETTI, Mauro. Educação física como prática científica e prática pedagógica: reflexões à luz da filosofia da ciência. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 19, n. 3, p. 183-197, 2005. DOI: 10.1590/S1807-55092005000300002. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rbefe/article/view/16594 Acesso em: 23 set. 2021.
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utiliza para tais reflexões.

Nesse empreendimento, Betti (2005)BETTI, Mauro. Educação física como prática científica e prática pedagógica: reflexões à luz da filosofia da ciência. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 19, n. 3, p. 183-197, 2005. DOI: 10.1590/S1807-55092005000300002. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rbefe/article/view/16594 Acesso em: 23 set. 2021.
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afirma que para algo ser contemplado como científico é necessário respeito às etapas da própria produção da ciência, que abrangem rigor teórico-metodológico de comprovação, confrontação com o mundo empírico, capacidade de reprodução de resultados e aplicação, além de procedimentos que garantam extremo cuidado na vigilância e validação deste processo. Ao se inferir o que pode ser considerado como conceito científico neste emaranhado de práticas que implicam a produção da ciência, não é difícil perceber que, pelos mesmos motivos alinhados acima por Lazzarotti Filho et al. (2010)LAZZAROTTI FILHO, Ari et al. O termo práticas corporais na literatura científica brasileira e sua repercussão no campo da Educação Física. Movimento (Porto Alegre), v. 16, n. 1, p. 11-29, jan./mar. 2010. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.9000 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/9000 Acesso em: 23 set. 2021.
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, o termo Práticas Corporais, por sua heterogeneidade e ambivalência, não atende aos requisitos para ser considerado enquanto conceito científico da Educação Física.

Sendo assim, a concepção de um conceito por um viés estritamente científico, calcado em pressupostos modernos com espectros cartesianos e influências da “Nova Ciência” de bases filosóficas empiristas, mecanicistas e racionalistas, certamente implicará não considerar Práticas Corporais como conceito, pela dificuldade acarretada de respeitar minuciosamente os processos de verificação, validação e veridicção científica, tal como referido. Em suma, suas heterogeneidade, polissemia, ambivalência e ambiência não lhe permitem galgar o percurso de validação científica enquanto conceito. Porém, justamente por essas mesmas características, pode lhe potencializar leituras conceituais em outras direções.

Novamente são Damico e Knuth (2014)DAMICO, José; KNUTH, Alan Goularte. O (des)encontro entre as práticas corporais e a atividade física: hibridizações e borramentos no campo da saúde. Movimento (Porto Alegre), v. 20, n. 1, p. 329-350, jan./mar. 2014. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.39474 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/39474 Acesso em: 23 set. 2021.
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que fornecem algumas provocações que podem ser trazidas à discussão sobre esse tópico. Afirmam, ao colocar em segundo plano a centralidade do debate dos defensores, de um lado, das atividades físicas, e de outro, das práticas corporais, que em meio a esses termos existe um espaço imponderável que se refere à experiência vivida pelos sujeitos a quem se dirigem as ações dos profissionais de Educação Física. Embora aqui possam residir ecos de perspectivas empiristas ou materialistas de validação da experiência e dos sentidos como ente ou critério para legitimar algo - nesse caso o termo objeto de ensaio -, também sugere, de igual modo, a importância de uma ética-estética de vida como objeto e efeito derradeiro das ações a serem realizadas, independentemente de serem consideradas atividades físicas ou práticas corporais.

É nesse ínterim que é possível pensarmos sobre o que é um conceito não apenas por bases linguísticas estruturalistas ou científicas, como aquelas aqui outrora citadas, mas também por vieses filosóficos e pelo olhar do pós-estruturalismo.

Na obra O que é filosofia?Deleuze e Guatarri (2010)DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. O que é filosofia? 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2010. aludem à necessidade de se criar conceitos. Afirmam que um conceito é a “condição de possibilidade do próprio pensamento, uma categoria viva, um vivido transcendental” (p. 10). Não são entes prontos, acabados, em formas e funções predefinidas e existentes. São ações em planos de criação.

Desse modo, os conceitos não se originam do nada, pelo contrário, são articulações de componentes e multiplicidades de potências, que derivam em outras. Também é próprio dos conceitos tornar os diferentes componentes que os constituem inseparáveis, mesmo que sejam heterogêneos e distintos em sua composição. Não são, portanto, separáveis na constituição do conceito a que referem, mas são, sim, seu próprio ponto de encontro e sua intensidade. Ainda destacam:

[…] o conceito filosófico não se refere ao vivido, por compensação, mas consiste, por sua própria criação, em erigir um acontecimento que sobrevoe todo o vivido, bem como qualquer estado de coisas. Cada conceito corta o acontecimento, o recorta à sua maneira (DELEUZE; GUATARRI, 2010DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. O que é filosofia? 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2010., p. 46)

É nesse escopo que se torna possível pensar Práticas Corporais como conceito. Enquanto platôs, planos, direções e devires. Abertos. Como potência mobilizadora dos sujeitos, de suas criações, de suas existências e experiências; e não pela intenção de recortar e abarcar sentidos numa capacidade preditiva de definir o que são ou o que deveriam ser. Conceitos são ideias mobilizadoras que se incorporam (em corporalidades) às realidades e aos sujeitos, constituindo-os em devires.

Assim, um conceito nessa perspectiva não promulga a relação entre termos e uma representação fixa (entre significado e significante), ou entre um termo e a capacidade fidedigna de representar algum objeto ou sujeito de modo estável; tampouco pretende contornar a experiência como aquela capaz de melhor apreender o que importa ou o real. Um conceito nessa perspectiva intenta a criação vivida enquanto potência que articula componentes diversos que remetem a ações, que não se repetem conquanto sempre se rearticulam; que se valem dos componentes de mesmo plano.

Por esse viés, o termo Práticas Corporais pode ser concebido como um conceito, considerando que permite processos de criação e mobilização do mundo e das pessoas. Não obstante, tem sido amplamente utilizado dessa forma nos estudos, pesquisas e intervenções relatas na literatura do campo da Educação Física.

Ora, como não considerar as produções aqui elencadas como produtos de processos criativos, tanto de autores(as) como de pesquisadores(as), mas também dos sujeitos a quem se dirige essas ações? Como não identificar que o termo tem sido, sim, um potente organizador de pesquisas, publicações, reflexões, discussões em âmbito nacional mobilizando redes de pesquisa e atores, como apresentado em seção anterior? Como não considerar que uma multiplicidade de áreas de conhecimento, disciplinas acadêmicas, campos de atuação vêm fazendo desse termo um locus de jogos de força que criam e recriam componentes diversos para ler, interpretar e intervir no mundo? Se considerarmos que um conceito é potência de criação que constrói unicidades com multiplicidades de componentes e forças em processos de devires que implicam ações no mundo, sim, o termo Práticas Corporais tem cumprido esse papel e pode ser considerado como tal.

Mas daí a ser considerado como conceito por um viés científico ou linguístico estruturalista, isso é outra coisa.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pretendeu-se escovar uma palavra. Não para acessar seu sentido último, final e derradeiro, mas sim, para compreender as ressonâncias que nela se assentam e são assentadas. A cada escovada e escovação, a palavra não é mais a mesma. Está sempre imersa num jogo de saber-poder, em que se disputa e se atribui sentidos. Se pretendeu explorar essas ressonâncias, significados e, principalmente, suas construções.

Também se pretendeu refletir sobre o termo Práticas Corporais pela polissemia do termo precisão. Por um lado, o quanto é possível precisar mesmo o sentido final deste termo, de modo a torná-lo um conceito estável linguisticamente ou cientificamente. Mas de outro modo, precisar este termo é, ao mesmo tempo e em outra acepção, atribuir a ele e suas aplicações o caráter de necessário. Portanto, definir Práticas Corporais enquanto conceito pode não ser preciso, embora seja.

Mostraram-se os diferentes campos em que o termo é produzido e utilizado, as variadas disciplinas, as distintas pesquisas, coletivos de pesquisadores(as), autores(as) e atores, suas interfaces (borradas) com matrizes teóricas pedagógicas já consolidadas, e a dificuldade de se eleger Práticas Corporais enquanto conceito justamente pela instabilidade e heterogeneidade que o constitui.

Refletiu-se sobre o que é ser um conceito linguisticamente (de forma estruturalista) e cientificamente (de modo tradicional), e se apontaram os abismos que separam este termo para ser incluído como tal. No entanto, se indicou, também, um caminho possível para concebê-lo como conceito, por um viés pós-estruturalista, ou ainda, inspirado em uma filosófica da diferença (DELEUZE; GUATARRI, 2010DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. O que é filosofia? 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2010.).

Se tomarmos um conceito como uma “ideia mobilizadora de práticas” que se diferem, e que por isso mesmo não são estáveis, poder-se-ia considerá-lo como tal. Se aceitarmos que um conceito se organiza e importa pelo que cria e mobiliza, em ideias, ações, coletividades e corporalidades, podemos aceitá-lo como tal.

São esses jogos de disputas de significação que importam, não pelos jogos em si, mas pelo que produzem e afetam, neste caso, para um campo específico de conhecimento e seus atores e atrizes e processos de intervenção e formação.

Práticas Corporais como conceito?

Depende.

Do que se entende por, do que se quer com e do que se faz com um conceito.

  • 1
    Cabe aqui outra alusão poética. Dessa vez a Fernando Pessoa (1996)PESSOA, Fernando. Poesias. Porto Alegre: L&PM, 1996., quando retoma a frase de Pompeu “Navegar é necessário, viver não é necessário” e a ressignifica em um poema sobre a vida, substituindo o termo necessário por preciso. Pessoa utiliza a polissemia do termo “preciso” para referir a oscilação dos sentidos possíveis entre necessidade (precisar) e certeza (precisão) em relação ao viver. Tal movimento de buscar a sentidos fixos em meio a polissemia dos termos será mais bem justificado adiante em relação ao objeto deste ensaio.
  • 2
    Utilizarei o termo Práticas Corporais com letras maiúsculas para me referir à possibilidade de um “termo-conceito” no campo da Educação Física, e com letras minúsculas para referir as mais variadas práticas corporais possíveis de realização, mas que não são tomadas como conceito.
  • 3
    Cabe ressaltar que, para Michael Peters (2000)PETERS, Michael. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2000., o linguista Roman Jakobson também foi, junto com Saussure, de fundamental importância para o desenvolvimento dos estudos que se opunham à concepção da centralidade e do primado do sujeito nos processos linguísticos. Para maiores detalhes e aprofundamento teórico acerca da emergência do modelo estruturalista de linguagem e o pós-estruturalismo, vide: Peters (2000)PETERS, Michael. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.; Silva (1999)SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.; Edgar e Sedgwick (2003)EDGAR, Andrew; SEDGWICK, Peter. Teoria Cultural de A a Z: conceitos-chave para entender o mundo contemporâneo. São Paulo: Contexto, 2003..
  • 4
    GUTTING, 1998 apudPETERS, 2000PETERS, Michael. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2000., p. 39
  • 5
    Aqui se faz um uso aberto e amplo da definição do objeto de estudo da Educação Física, tendo em vista que mais adiante se discutirá as distintas ênfases e tensões que tangenciam esse aspecto.
  • 6
    MAUSS, 1974 apudFRAGA, 1995FRAGA, Alex Branco. Concepções de gênero nas práticas corporais de adolescentes. Movimento (Porto Alegre), v. 2, n. 3, p. 35-41, 1995. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.2197 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/2197/918 Acesso em: 23 set. 2021.
    https://doi.org/10.22456/1982-8918.2197...
    .
  • 7
    A discussão em torno do binômio “Atividade Física/Práticas Corporais” presente nas legislações referentes à saúde pública, no tocante à Educação Física, merece menção. Nesses documentos, é comum convencionar Atividades Físicas como sinônimo de Práticas Corporais. Isto está presente, inicialmente, na Política Nacional de Promoção da Saúde (BRASIL, 2006BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde. Série B. Textos Básicos de Saúde. Brasília, DF, 2006.), inclusive destacadamente como um binômio. Já no Glossário Temático de Promoção da Saúde esses termos aparecem como verbetes distintos, mas mutuamente inclusivos e referenciáveis entre si. Destaca-se, no entanto, que ambos termos/conceitos partem de pressupostos epistemológicos divergentes. Por um lado, Atividades Físicas são definidas desde um viés estritamente biológico, e por outro, Práticas Corporais o são a partir de vieses humanísticos e sociais. Além do mais, o objeto e o escopo de intervenção, assim como, as finalidades, se distinguem. Por isso, faz-se necessária a atenção permanente a esses aspectos para que se possa promover a problematização e desconstrução deste arbitrário binômio.
  • FINANCIAMENTO
    O presente trabalho foi realizado sem o apoio de fontes financiadoras.
  • *
    Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

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Editado por

RESPONSABILIDADE EDITORIAL
Alex Branco Fraga * * Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil. , Elisandro Schultz Wittizorecki * * Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil. , Ivone Job * * Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil. , Mauro Myskiw * * Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil. , Raquel da Silveira * * Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2021
  • Aceito
    09 Dez 2021
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