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ESPACIALIZANDO A PRISÃO: A conformação dos parques penitenciários em São Paulo e no Rio de Janeiro

Spatializing the Prison: the Shaping of the Penitentiary Parks in São Paulo and Rio de Janeiro

RESUMO

Se o parque penitenciário paulista se caracteriza pela dispersão de unidades pelo interior do estado, no Rio boa parte das prisões concentra-se em um único bairro da capital. Neste artigo, contrastamos esses arranjos heterogêneos, perseguindo diferenças e ressonâncias, e procurando jogar luz sobre as condições de possibilidade que sustentam a atual e reiterada aposta governamental na segregação carcerária.

PALAVRAS-CHAVE:
prisão; São Paulo; Rio de Janeiro; espaços urbanos

ABSTRACT

While the São Paulo penitentiary park is characterized by the dispersion of units throughout the state, in Rio de Janeiro most prisons are concentrated in a single neighborhood of the capital. In this article we contrast these heterogeneous arrangements, pursuing differences and resonances, and seeking to shed light on the conditions of possibility that underpin the current and repeated governmental bet on prison segregation.

KEYWORDS:
prison; São Paulo; Rio de Janeiro; urban spaces

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, o campo dos estudos prisionais vem passando por reconfigurações. Para além do paradigma estabelecido em torno de conceitos como “comunidade prisional” e “instituição total”, ganha espaço um conjunto de pesquisas que tematizam formas de conexão entre o intra e o extramuros, entre a instituição e o seu entorno (Cunha, 2014Cunha, Manuela. “The Ethnography of Prisons and Penal Confinement”. Annual Review of Anthropology, n. 43, 2014, pp. 217-33.; Combessie, 1996Combessie, Philippe. Prisons des villes et des campagnes: étude d’écologie sociale. Quebec: Les Classiques des Sciences Sociales, 1996.). Também no Brasil, estudos recentes vêm explorando as formas pelas quais a prisão se articula com outros territórios e dinâmicas (Barbosa, 2005Barbosa, Antônio Rafael. Prender e dar fuga: biopolítica, tráfico de drogas e sistema penitenciário no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005.; Godoi, 2017Godoi, Rafael. Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2017.). Todavia, no âmbito das políticas penais, bem como no senso comum, a prisão insiste em figurar como “mundo à parte”, como espaço “fechado” que tem o poder de neutralizar os que encerra. A ideia de que, pela segregação que promove, “a prisão funciona” como forma eficaz de controle do crime é um dos pilares da racionalidade governamental contemporânea que, em seus efeitos, gerou, de norte a sul, o chamado processo de massificação do encarceramento (Garland, 2001Garland, David (org.). Mass Imprisonment: Social Causes and Consequences. Londres: Sage, 2001.).

Tomamos como ponto de partida o artigo de Ferguson e Gupta (2002Ferguson, James; Gupta, Akhil. “Spatializing States: Toward an Ethnography of Neoliberal Governmentality”. American Ethnologist, v. 29, n. 4, 2002, pp. 981-1.002.), que postulam a análise das formas de espacialização do Estado como uma via profícua para a compreensão da governamentalidade neoliberal. Segundo os autores, mesmo num momento histórico marcado pela profusão de fluxos e agências transnacionais de natureza diversa, também por reiterados programas de “redução do Estado”, a figuração de um Estado verticalizado e englobante - que, ao mesmo tempo, está acima e abarca uma “sociedade civil” - não deve ser considerada como representação ideológica, no limite, falsa. Ela é construída e sustentada por um conjunto de discursos e práticas passíveis de observação e análise. O estudo dos modos pelos quais o Estado se espacializa, como ele se instancia nos territórios através de documentos, edifícios e agentes, é um atalho para discernir o lugar e o papel de tal instituição nas práticas de governo.

Neste trabalho, tomamos essa inspiração para analisar a prisão. Trata-se de explorar algumas das bases empíricas que sustentam a imagem da prisão como solução para todos os males, na exata medida em que afasta do convívio social um amplo contingente de “sujeitos perigosos”. Logicamente, as muralhas da prisão constituem o índice empírico mais imediato dessa segregação fundamental. No entanto, não é sobre sua materialidade e simbolismo que nos debruçaremos. Não se trata de indagar o que faz de um edifício uma prisão, mas o que faz de um território um lugar propício (ou não) ao encarceramento. Abordaremos os modos de espacialização do cárcere como “sistema”, como forma de punição que funciona no seio da sociedade. Mais do que a constituição de uma unidade delimitada por um perímetro, interessa-nos a sua distribuição diferencial pelo território em relação com outras unidades e outros espaços - daí a centralidade do processo de conformação de parques penitenciários.

Ressalte-se que enfocaremos as prisões dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Em primeiro lugar, porque esses estados concentram praticamente a metade da população presa do país. Em segundo lugar, porque apresentam formas de espacialização muito distintas, senão antagônicas: enquanto o parque penitenciário paulista se caracteriza pela dispersão de unidades pelo interior, em terras cariocas boa parte das prisões concentra-se num único bairro da capital. Resta esclarecer que não se almeja uma comparação exaustiva. Antes, busca-se contrastar arranjos heterogêneos, perseguindo diferenças e ressonâncias, sem deixar de lançar um feixe de luz sobre as condições que sustentam a aposta no encarceramento.

SÃO PAULO E RIO DE JANEIRO

O Brasil é um dos países que mais encarceram. Dados do Departamento Penitenciário Nacional demonstram que, em junho de 2016, 726.712 pessoas estavam presas em todo o território da Federação - o que corresponde a 352,6 presos por 100 mil habitantes (Depen, 2017Depen - Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Atualização - Junho de 2016. Brasília: Ministério da Justiça, 2017., p. 7). Em números absolutos, a população carcerária brasileira só é menor do que a dos Estados Unidos e da China (ICPS, 2019ICPS - Institute for Criminal Policy Research. Highest to Lowest: Prison Population Total. Disponível em: <Disponível em: http://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-population-total?field_region_taxonomy_tid=All >. Acesso em: 04/02/2019.
http://www.prisonstudies.org/highest-to-...
).

Para melhor compreender os processos sociais, econômicos e políticos que produzem e sustentam esse quadro, é preciso considerar que as cifras nacionais encobrem uma realidade heterogênea. Ainda que nos últimos anos as agências federais venham assumindo crescente protagonismo na área, as mais decisivas políticas e estratégias de controle do crime ainda são produzidas pelos governos estaduais (Vasconcelos et al., 2018Vasconcelos, Beto; Cardozo, José Eduardo; Pereira, Marivaldo; De Vitto, Renato. “Questão federativa, sistema penitenciário e intervenção federal”. Culturas Jurídicas, v. 5, n. 10, 2018, pp. 1-47.). Ademais, é nessa escala que se definem as estruturas e as práticas de administração do sistema de justiça, não só diferentes, mas desiguais (Ipea, 2013Ipea - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Mapa da Defensoria Pública no Brasil. Brasília: Ipea/Anadep, 2013.). Finalmente, deve-se ter em vista que os territórios estaduais circunscrevem mercados criminais heterogêneos, onde se apresentam possibilidades variadas de acumulação. A escala estadual, logo, se mostra pertinente para a análise da dinâmica do encarceramento.

Dados veiculados pelo Depen (2017, p. 8) apontam São Paulo como o estado que conta com a maior população penitenciária do país: 240.061 encarcerados - o correspondente a 33% do contingente brasileiro. O Rio de Janeiro abriga 50.219 presos - cerca de 7% do total nacional. Tais dados são suficientes para mostrar a importância de uma abordagem articulada desses dois contextos, responsáveis por praticamente 40% das pessoas presas. Se os números absolutos já sugerem uma distância importante entre os aparatos carcerários desses estados, a diferença se mostra ainda mais pronunciada em termos relativos: a taxa de encarceramento verificada no estado de São Paulo é de 536,5/100 mil habitantes, enquanto no Rio de Janeiro é de 301,9/100 mil. Nesse primeiro exercício de aproximação, outra diferença é digna de nota: 31,6% dos presos de São Paulo são provisórios, enquanto, no Rio de Janeiro, o número de presos que ainda não foram julgados corresponde a 40,1% do total (Ibidem).

Segundo informações da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), São Paulo, em 2018, contava com 171 unidades pulverizadas pelo estado: 86 Penitenciárias, 44 Centros de Detenção Provisória (CDPs), 22 Centros de Ressocialização (CRs), 15 Centros de Progressão Penitenciária (CPPs), 3 Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs), 1 Centro de Reabilitação Penitenciária (CRP), onde vigora o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Já a Secretaria de Estado da Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (Seap), no mesmo ano, reportava 52 estabelecimentos: 11 Penitenciárias, 15 Cadeias Públicas, 7 Institutos Penais, 10 Presídios, 1 Colônia Agrícola, 1 Unidade Materno-Infantil, 4 Hospitais Penais, 1 Patronato, 1 Casa do Albergado e 1 Instituto de Perícias.

A taxonomia das prisões em São Paulo parece corresponder aos regimes de reclusão previstos na legislação penal brasileira: CDPs para presos provisórios, penitenciárias para cumprimento de pena em regime fechado, CPPS para cumprimento de pena em regime semiaberto, CRs para presos considerados de baixa periculosidade, CRP para presos “problemáticos”, HCTPs para cumprimento de medida de segurança. A despeito da lei, não há em São Paulo nenhuma instalação destinada ao cumprimento de pena em regime aberto. Entretanto, a nomenclatura dessas unidades encobre uma realidade complexa. Por um lado, a mistura de detentos de diferentes estatutos legais é acentuada. É comum encontrar um número expressivo de presos condenados nos CDPs, inclusive aqueles que alcançaram o “benefício” do semiaberto. Da mesma forma, há pavilhões inteiros de penitenciárias que abrigam presos provisórios. Com efeito, o critério mais relevante que opera na distribuição dos detentos é a facção. Em São Paulo, mais de 90% das unidades são para presos vinculados, direta ou indiretamente, ao PCC; o restante é dividido entre coletivos, como o Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade (CRBC) e o Terceiro Comando da Capital (TCC). Tamanha desproporção provoca uma diferenciação prática entre unidades “favoráveis” e de “oposição”, que também se mostra na divisão interna entre “convívio” e “seguro” (Marques, 2014Marques, Adalton. Crime e proceder: um experimento antropológico. São Paulo: Alameda, 2014.).

Já no Rio de Janeiro, a taxonomia carcerária é distinta: as Cadeias Públicas abrigariam presos provisórios; as Penitenciárias, os que cumprem pena em regime fechado; os Institutos Penais, presos em regime semiaberto; Patronato e Casa de Albergado, os que cumprem pena em regime aberto. De todo modo, segundo dados do CNJ (2016CNJ - Conselho Nacional de Justiça. Geopresídios. Disponível em <Disponível em http://www.cnj.jus.br/inspecao_penal/mapa.php >. Acesso em: 12/11/2016.
http://www.cnj.jus.br/inspecao_penal/map...
), existem presos e presas sob regime fechado em Institutos Penais; provisórios e condenados em Cadeias Públicas etc. Como em São Paulo, no Rio de Janeiro, a mistura de presos com diferentes estatutos legais é a regra. A segmentação dos espaços segundo o critério faccional também é estruturante, mas, ao contrário de São Paulo, os coletivos se distribuem por um espaço mais fragmentado, dividido entre o Comando Vermelho (CV), o Terceiro Comando Puro (TCP), os Amigos dos Amigos (ADA), outros coletivos menores, além de milicianos e “neutros”.

Não se devem compreender os contrastes entre os contextos prisionais paulista e carioca - em termos de unidade e fragmentação - sem considerar as dinâmicas criminais mais amplas que ultrapassam os perímetros das prisões e que capilarizam a presença e a atuação das facções nos territórios urbanos. Hirata e Grillo (2017Hirata, Daniel; Grillo, Carolina. “Sintonia e amizade entre patrões e donos de morro: perspectivas comparativas entre o comércio varejista de drogas em São Paulo e no Rio de Janeiro”. Tempo Social, v. 29, n. 2, 2017, pp. 75-98.) vêm refletindo sobre as diferenças entre CV e PCC no que concerne à estruturação do mercado varejista de drogas. Em diálogo com tais análises, sugerimos algumas marcações relevantes. No Rio de Janeiro, o pertencimento territorial de origem do preso é um dos mais estratégicos critérios para a alocação no sistema prisional: um morador de um morro “controlado” pelo CV, por exemplo, tem como destino uma prisão da facção. Em São Paulo, o território de origem não tem a mesma relevância, haja vista que o preso é alocado em uma unidade a partir de avaliações sobre a sua “caminhada” (Biondi, 2010Biondi, Karina. Junto e misturado. São Paulo: Terceiro Nome, 2010.), principalmente sobre as prisões pelas quais transitou. Trata-se de diferentes geopolíticas carcerárias, que espelham diferentes geopolíticas criminais: à fragmentação dos comandos nos morros cariocas corresponde uma fragmentação das prisões no estado. Em São Paulo, a hegemonia do PCC nas prisões se relaciona com outra forma de a facção habitar a cidade: ela não se encontra intimamente ligada a um território circunscrito, mas pulverizada por várias áreas urbanas, territorializando-se circunstancialmente.

De fato, as questões aqui esboçadas - a hegemonia do PCC em São Paulo, bem como a fragmentação das facções cariocas - são amplamente conhecidas. Entretanto, esse contraste ganha renovada significação quando colocado em perspectiva com as considerações sobre o modo como cada estado espacializa os seus sistemas punitivos.

PULVERIZAÇÃO E CONCENTRAÇÃO

As prisões paulistas são divididas em cinco coordenadorias administrativas, cada uma responsável por diferentes porções do território: Coordenadoria da Região Metropolitana (Coremetro), Coordenadoria do Vale do Paraíba e Litoral (CVL), Coordenadoria da Região Central (CRC), Coordenadoria da Região Noroeste (CRN) e Coordenadoria da Região Oeste (CRO). Na tabela abaixo, detalhamos a distribuição de unidades prisionais e de cidades-sede por tipo de estabelecimento e coordenadoria administrativa.

No interior mais distante do estado, sob a gestão da CRN e CRO, o número de prisões administradas por coordenadoria e a quantidade de cidades em que estão distribuídas são maiores do que nas demais áreas. Na Coremetro, a capital concentra 12 prisões, enquanto no extremo oposto, na CRO, existem apenas duas cidades com um máximo de 3 unidades: São José do Rio Preto (443 km da capital, com 408.435 habitantes),1 1 Dados populacionais do IBGE (2010). com 1 CR feminino, 1 CPP e 1 CDP, e Lavínia (593 km, 8.782 hab.), com 3 penitenciárias masculinas. No estado de São Paulo, é possível observar dois circuitos penitenciários bem demarcados: de um lado, no território metropolitano, um circuito de Centros de Detenção Provisória; de outro, um circuito interiorizado de penitenciárias (Zomighani Jr., 2009Zomighani Jr., James. Território ativo e esquizofrênico: prisão e pena privativa de liberdade no Estado de São Paulo. Dissertação de Mestrado. PPGGH/Universidade de São Paulo, 2009.).

COREMETRO CVL CRC CRN CRO Total Unidades 30 19 39 43 40 171 Cidades 9 10 23 26 29 97 Penitenciárias 8 8 18 25 27 86 CDPs 17 7 8 7 5 44 CRs 0 1 10 7 4 22 CPPs 3 2 3 4 3 15 CRP 0 0 0 0 1 1 HCTPs 2 1 0 0 0 3 Elaboração nossa (informações da Coordenadoria Administrativa da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, em dezembro de 2018. Fonte: <http://www.sap.sp.gov.br/>. Acesso em jan. 2019).

No centro metropolitano, não obstante a concentração de CDPs, o parque penitenciário tende a ser mais diversificado do que no interior distante. A região metropolitana concentra Hospitais Penitenciários e unidades voltadas para o encarceramento feminino, enquanto na CRN e CRO prevalecem as penitenciárias masculinas. Mesmo no interior, há uma afinidade entre as dimensões municipais e a diversidade do parque penitenciário. Os municípios que abrigam um parque penitenciário diversificado costumam ter maiores dimensões do que aqueles que só abrigam penitenciárias. Por exemplo, os municípios de Bauru e São José do Rio Preto, polos urbanos regionais, abrigam CRs, CDPs e CPPs; municípios pequenos como Itirapina (214 km, 15.528 hab.) e Lucélia (574 km, 19.885 hab.) só possuem penitenciárias. A tabela acima juntamente com os dados detalhados permitem sugerir o ponto a reter: a ampla pulverização do sistema carcerário pelo território estadual e a constituição do interior distante - o chamado fundão - como território privilegiado para o cumprimento das penas.

Já a Secretaria de Estado da Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (Seap), ao apresentar oficialmente as unidades que compõem o sistema carcerário, as reparte em três categorias: Unidades Prisionais do Complexo de Gericinó; Unidades Prisionais da Grande Niterói e Norte/Noroeste; e Unidades Prisionais do Grande Rio. Na tabela abaixo, detalhamos a distribuição de unidades prisionais e cidades-sede por tipo de estabelecimento e categoria.

Complexo de Gericinó Grande Niterói e Norte/Noroeste Grande Rio Total Unidades 25 14 13 52 Cidades 1 5* 4** 9*** Penitenciárias 10 1 0 11 Cadeias Públicas 6 6 3 15 Institutos Penais 3 2 2 7 Presídios 2 3 5 10 Hospitais Penais 3 1 0 4 Outros 1**** 1***** 3****** 5 Elaboração nossa (informações da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro, em dezembro de 2018. Fonte: <http://www.rj.gov.br/web/seap/exibeconteudo?article-id=473780>. Acesso em jan. 2019). * Embora Magé se localize no Grande Rio, a Seap dispõe as unidades que ficam nesse município ao lado das que ficam em Niterói, São Gonçalo, Campos dos Goytacazes e Itaperuna. ** Além de Japeri e da própria capital, a Seap inclui entre as Unidades Prisionais do Grande Rio as que se situam em municípios distantes como Volta Redonda e Resende, no sul do estado. *** O Complexo de Gericinó e algumas unidades do Grande Rio ficam na capital do estado. **** Unidade Materno-Infantil. ***** Colônia Agrícola. ****** Casa do Albergado, Patronato e Instituto de Perícias.

Praticamente a metade do sistema carcerário do estado do Rio de Janeiro se concentra no Complexo Prisional de Gericinó, diante da Vila Kennedy, em Bangu, zona oeste da capital. O Complexo se encontra atrás de um batalhão da Polícia Militar, entre uma reserva ambiental, um aterro sanitário e um campo de treinamento militar, abrigando 10 das 11 Penitenciárias fluminenses, 3 dos 7 Institutos Penais e 3 dos 4 Hospitais Penais do estado, constituindo-se como o território privilegiado para o cumprimento de penas e medidas de segurança. A cidade do Rio de Janeiro abriga outras 8 unidades: 1 Casa de Albergado, 1 Instituto de Perícias, 1 Patronato, 2 Institutos Penais e 3 Presídios. Portanto, 33 das 52 unidades se concentram na capital. A maior parte das unidades restantes localiza-se na região metropolitana: o município de Japeri (a 70 km da capital, 95.492 hab.) dispõe de 1 Cadeia Pública e 2 Presídios; Magé (50 km, 227.322 hab.) abriga 2 Cadeias Públicas e 1 Colônia Agrícola; São Gonçalo (25 km, 999.728 hab.) possui 2 Cadeias Públicas; e Niterói (15 km, 487.562 hab.) abriga 1 Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, 1 Cadeia Pública, 1 Penitenciária e 2 Institutos Penais. As unidades situadas no interior se dividem em 4 municípios: no norte, Campos dos Goytacazes (275 km, 463.731 hab.) possui 1 Cadeia Pública e 2 Presídios; ao seu lado, Itaperuna (313 km, 95.841 hab.) dispõe de 1 Presídio; enquanto, no sul, há 1 Cadeia Pública em Volta Redonda (127 km, 257.803 hab.) e outra em Resende (146 km, 124.316 hab.).

A intensa concentração territorial é a marca distintiva do sistema prisional do estado do Rio de Janeiro. Sob essa concentração, é possível identificar uma lógica inversa daquela que vigora em São Paulo: as unidades mais voltadas para a prisão provisória - Presídios e Cadeias Públicas - distribuem-se em um território relativamente amplo, enquanto penitenciárias para cumprimento de pena em regime fechado estão quase todas em Gericinó. Ao contrário de São Paulo, não existem pequenas cidades abrigando unidades prisionais da Seap.

As diferentes configurações dos parques penitenciários devem ser confrontadas tendo-se em vista diferenças geográficas, demográficas e históricas. O estado do Rio de Janeiro é bem menor que São Paulo, contabiliza apenas 92 municípios, enquanto no estado vizinho há 645. Ademais, dos 15.989.929 habitantes do Rio de Janeiro, 11.835.708 - ou 74% - vivem na área metropolitana; 6.320.446 na capital. Dos 41.262.199 residentes de São Paulo, 19.683.975 - 48% - estão na região metropolitana, enquanto 11.253.503 na capital. Tais considerações ajudam a matizar as diferenças que se verificam entre os sistemas prisionais dos estados, sem anular a possibilidade de discernir estratégias de encarceramento distintas: a pulverização dos espaços de reclusão em São Paulo e a concentração no Rio de Janeiro.

A discrepância entre os modos de espacialização de cada sistema punitivo não deve obscurecer a “lógica de relegação” (Combessie, 1996) que opera em ambos os territórios. A construção do Complexo Prisional de Gericinó num bairro afastado e de difícil acesso, ao lado de um antigo lixão, indica o lugar que o estado do Rio de Janeiro destina aos presos - tanto quanto a instalação de penitenciárias nos canaviais do interior de São Paulo. Entretanto, vale dizer que a construção de prisões em lugares afastados dos centros urbanos não é novidade.

No desenvolvimento histórico das instituições punitivas, antigas e modernas, sempre esteve presente uma forte inquietação quanto ao lugar mais apropriado para as práticas da punição (Foucault, 1999Foucault, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1999.). Na deportação, no degredo, no banimento, desde os tempos coloniais, a imposição da distância já era considerada elemento estratégico. Distanciar os criminosos, temporária ou definitivamente, foi, desde muito cedo: 1) um modo de reforçar a segurança de sociedades que se consideravam assoladas pelo crescimento da criminalidade; 2) uma maneira de modular a intensidade das penas impostas, combinando o máximo rigor com a benevolência de não matar; e 3) um meio de atender a determinados interesses econômicos e políticos das classes dominantes (Ekirch, 1985Ekirch, Roger. “Bound for America: a Profile of British Convicts Transported to the Colonies, 1718-1775”. The William and Mary Quarterly, v. 42, n. 2, 1985, pp. 184-200.).

Na história das prisões no Brasil, a mesma lógica também operou desde muito cedo. No Rio de Janeiro, até o século XVIII, a Cadeia da Relação funcionava no térreo do Senado da Câmara, no morro do Castelo, núcleo originário da cidade. Em 1808, o edifício foi requisitado pela recém-chegada corte portuguesa e os presos foram transferidos para o Aljube, antiga prisão eclesiástica situada no sopé do morro da Conceição. Na década de 1830, escravos punidos eram detidos e açoitados no Calabouço, também situado no morro do Castelo, enquanto civis se distribuíam entre o Aljube e determinadas celas ou pavilhões de fortalezas militares da ilha de Santa Bárbara e da ilha das Cobras, na baía de Guanabara (Araújo, 2009Araújo, Carlos. Cárceres imperiais: a Casa de Correção do Rio de Janeiro - seus detentos e o sistema prisional no Império, 1830-1861. Tese de Doutorado. PPGH/Universidade Estadual de Campinas, 2009., pp. 21-2). A Casa de Correção do Rio de Janeiro, a primeira penitenciária a se pretender moderna no país (Koerner, 2006Koerner, Andrei. “Punição, Disciplina e Pensamento Penal no Brasil do século XIX”. Lua Nova, n. 68, 2006, pp. 205-42.), foi construída entre 1834 e 1850, num terreno anteriormente ocupado por uma chácara, no Catumbi, fora do perímetro urbano (Brito, 1925Brito, Lemos. Os systemas penitenciarios do Brasil, v. 2. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1925., p. 180). Assim se constitui a matriz do que viria a se tornar o Complexo Prisional da rua Frei Caneca. Como a insuficiência e a degradação das prisões existentes no Rio de Janeiro já eram, mais uma vez, patentes no final do século XIX, em 1894 começa a funcionar a Colônia Correcional de Dois Rios, na Ilha Grande, em Angra dos Reis, a 150 quilômetros da capital (Santos, 2004Santos, Myriam. “A prisão dos ébrios, capoeiras e vagabundos no início da era republicana”. Topoi, v. 5, n. 8, 2004, pp. 138-69.) - elevando a outro patamar a escala de distância da punição.

Em São Paulo, a Casa de Câmara e Cadeia, que desde 1787 funcionava em plena urbe - no antigo Largo de São Gonçalo, atual praça Dr. João Mendes - foi substituída, em 1852, pela Casa de Correção de São Paulo, construída na avenida Tiradentes. Naquela época, a cidade não passava do vale do Anhangabaú, de modo que a prisão também se encontrava fora do perímetro urbano. Após a explosão demográfica da virada do século, quando as autoridades locais foram escolher a área para a construção da Penitenciária do Estado, raciocinaram da mesma forma, optando por um terreno mais afastado, do outro lado do rio Tietê, no Carandiru. Quando inaugurada - em 1920 - a Penitenciária do Estado também se encontrava concreta e simbolicamente distante do perímetro urbano. Vale ressaltar ainda que, em 1907, o estado de São Paulo inaugura a sua própria prisão insular, a Colônia Correcional da Ilha dos Porcos, em Ubatuba, a mais de 200 quilômetros da capital (Salla, 1999Salla, Fernando. As prisões em São Paulo: 1822-1940. São Paulo, Annablume, 1999.).

HISTÓRIAS DO PRESENTE

Três movimentos, a partir dos anos 1980, conduziram os parques penitenciários de São Paulo e do Rio de Janeiro às atuais figurações: a política continuada de expansão de vagas; o longo processo de desativação e substituição de antigas unidades; e a responsabilização dos órgãos de administração penitenciária pela custódia de presos provisórios, anteriormente alocados em carceragens de delegacias. Como esses movimentos estão relacionados, precisam ser abordados em conjunto. Embora os três se verifiquem nos contextos estudados, é certo que a política de expansão de vagas foi mais saliente em São Paulo do que no Rio, enquanto as desativações e substituições parecem mais decisivas em terras cariocas. Já a transferência de competência sobre a custódia dos presos provisórios foi fundamental nos dois contextos.

Embora Bangu já contasse com cinco unidades, o ano de 1988 marca a consolidação da sua efetiva conversão em um “complexo”. Nesse ano, o governador Moreira Franco (1987-91) inaugurou a primeira unidade de segurança máxima do país: Bangu 1. Como se sabe, nesse período as facções já eram realidade no sistema carcerário carioca. O CV, cuja origem remete ao final dos anos 1970, já atuava no mercado de drogas e disputava territórios, nas prisões e favelas, com o arquirrival Terceiro Comando (TC). Bangu 1 nasce como promessa de neutralização dos “chefões do crime organizado”. Sua criação assinala uma inflexão na política penitenciária estadual. São conhecidas as tentativas da gestão anterior, do governador Leonel Brizola (1983-87), de democratizar o espaço prisional e respeitar direitos humanos, seja nas prisões ou nas favelas. Também já foram debatidas as alegadas consequências dessas orientações para o fortalecimento do “crime organizado” (Coelho, 2005Coelho, Edmundo. A Oficina do Diabo e outros estudos sobre criminalidade. Rio de Janeiro: Record, 2005.). Bangu 1 aparece como a concretização de uma nova abordagem governamental sobre o problema carcerário, que toma a repressão como tônica geral e o “crime organizado” como tema central.

A segunda gestão Brizola (1991-94) - em boa medida pautada pelos mesmos ideais da primeira - não pôde reverter esse quadro. Duas foram as suas principais contribuições à atual conformação do parque penitenciário carioca: a desativação do Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, e a construção da Penitenciária Alfredo Tranjan (Bangu 2), ambas em 1994. Lemgruber, então diretora do Departamento do Sistema Penitenciário (Desipe), relata os bastidores da elaboração e execução do plano de desativação e demolição do presídio da Ilha Grande, dias antes de o governador renunciar ao cargo para concorrer à Presidência. Na ocasião, derrubar aquela centenária prisão era, sobretudo, um ato simbólico, mas também não deixava de ser uma reação pragmática aos custos econômicos e políticos de sua manutenção (Lemgruber; Paiva, 2010Lemgruber, Julita; Paiva, Anabela. A dona das chaves: uma mulher no comando das prisões do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Record, 2010.). A distância e o isolamento insular dificultavam e encareciam a logística de abastecimento da unidade, além de afrouxar os controles sobre os funcionários. Casos de violações de direitos, corrupção e desvio de recursos convertiam a prisão mais num problema que numa solução. Fazia muito ela também havia deixado de figurar como a fortaleza intransponível de outrora. O presídio da Ilha Grande era o berço do CV, primeiro lugar onde a facção pôde demonstrar sua força por meio de inúmeras rebeliões, mortes e, principalmente, fugas - a mais lembrada a de Escadinha, de helicóptero, em 1985. A inauguração de Bangu 2, já sob a gestão do vice-governador Nilo Batista, demonstra que, àquela altura, nenhum gestor poderia se furtar ao imperativo de oferecer respostas “duras” ao “crime organizado”.

As políticas de expansão de vagas e de concentração penitenciária em Bangu foram reforçadas nas gestões seguintes. O governador Marcelo Allencar (1995-98) inaugurou, em 1997, a Penitenciária Serrano Neves (Bangu 3) e deu início à construção da Penitenciária Jonas Lopes de Carvalho (Bangu 4) - sob os mesmos auspícios que levaram à criação de Bangu 1 e 2: o isolamento das lideranças do “crime organizado” em ultramodernas prisões de “segurança máxima”. Em 1999, quando Bangu 4 foi inaugurada, o complexo já era sinônimo exclusivo de “tranca dura” e figurava como o principal território de encarceramento no Rio.

Todo esse período foi atravessado por fugas, rebeliões e operações de resgate em carceragens de delegacia que, espalhadas pelo território urbano, estavam sob responsabilidade da Secretaria de Segurança Pública. Para superar esse quadro, o governador Anthony Garotinho (1999-2002) propôs o programa Delegacia Legal (Caldeira, 2013Caldeira, Cesar. “A política penitenciária fluminense na era pós-Carandiru”. Insight Inteligência, n. 62, 2013, pp. 115-29.) que, entre outras medidas, previa a desativação de carceragens e a construção de Casas de Custódia sob a responsabilidade do Desipe. Garotinho encaminhou a construção, sob regime de urgência, de 11 unidades - inauguradas entre 2000 e 2004. Dessas 11 novas Casas de Custódia, 5 foram abertas em Bangu, 3 no interior, 2 na região metropolitana e 1 em Benfica, na capital.

A governadora Rosinha Garotinho (2003-06) não só procurou concluir as obras de seu antecessor, como realizou outras - por exemplo, a construção da Penitenciária Pedrolino Werling de Oliveira, inaugurada em Bangu, em 2006. Foi também responsável pela criação da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (Seap), extinguindo o Desipe e desvinculando a administração penitenciária da Secretaria de Justiça. Mais do que empreender uma política de expansão de vagas, a governadora iniciou o processo de reconfiguração do parque penitenciário, através da reacomodação de prisões inteiras. No correr do processo foi diminuindo a importância relativa do Complexo Prisional da rua Frei Caneca, até a sua extinção. Em 2003, o Presídio Feminino Nelson Hungria foi a primeira prisão desse complexo a ser desativada e implodida, após outra unidade, de mesmo nome, ser inaugurada em Bangu. Em 2006, foram desativadas as penitenciárias Lemos Brito e Milton Dias Moreira, e a Casa de Custódia Romeiro Neto - substituídas por outras de mesmo nome, em Bangu, Japeri e Magé. Em 2010, sob a gestão do governador Sérgio Cabral (2007-14), foi a vez de o Presídio Hélio Gomes vir abaixo, completando o processo de desarticulação do complexo.

Desde muito cedo, a imersão das prisões da rua Frei Caneca no tecido urbano foi vista como problemática. A proximidade do morro de São Carlos, do sambódromo e da área central sempre incomodou autoridades. Em tempos de especulação imobiliária, de megaeventos e de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), a permanência foi ficando insustentável. A contínua expansão do complexo de Gericinó foi a condição necessária para a sua desativação. Em seu lugar, foi construído um condomínio do Programa Minha Casa, Minha Vida. Após o fim do histórico complexo - entre 2011 e 2014 - o governador Sérgio Cabral inaugurou 5 novas unidades de detenção provisória - desde 2010, chamadas de Cadeias Públicas: 2 em Bangu, 2 em São Gonçalo e 1 em Magé (Caldeira, 2013Caldeira, Cesar. “A política penitenciária fluminense na era pós-Carandiru”. Insight Inteligência, n. 62, 2013, pp. 115-29.). O mandato subsequente, de Luiz Fernando Pezão (2014-2018), foi marcado por crises políticas e fiscais. No sistema carcerário, ocorreu uma única inauguração de cadeia pública, em Resende, em 2016. No período, destaca-se a transferência da Cadeia Pública José Frederico Marques, a “porta de entrada” do sistema fluminense, do Complexo de Gericinó para Benfica - dando lugar, em Bangu, à Cadeia Pública José Antônio da Costa Barros; também a cessão da Penitenciária Vieira de Ferreira Neto, em Niterói, à Polícia Militar, para o funcionamento de seu Batalhão Especial Prisional, o que gerou a conversão da Casa de Albergado Francisco Spargoli Rocha em penitenciária.

Em São Paulo, a década de 1980 também marca o início do processo de forte expansão e ampla reconfiguração do parque penitenciário. Àquela altura, já existiam diversas prisões espalhadas pelo interior, mas o maior volume de vagas e de presos ainda se concentrava no Complexo do Carandiru, na capital. Como no Rio de Janeiro, o sistema era administrado por uma agência subordinada à Secretaria de Justiça: a Coordenadoria dos Estabelecimentos Penitenciários do Estado (Coespe). Como Brizola, Franco Montoro (1983-87), o primeiro governador democraticamente eleito, assumiu o poder comprometido com uma agenda de respeito aos direitos humanos e melhoria das condições de vida na prisão. Seu secretário de Justiça, José Carlos Dias, procurou promover uma “política de humanização dos presídios” (Teixeira, 2009Teixeira, Alessandra. Prisões da exceção: política penal e penitenciária no Brasil contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2009.), que previa a democratização do ambiente carcerário, algumas melhorias na infraestrutura e o combate à superlotação, através da expansão de vagas. Como no Rio, tal programa foi alvo de resistências e prontamente acusado de favorecer o “crime organizado”. Embora em São Paulo ainda não existisse algo como o CV, boatos sobre a existência de uma organização de presos chamada Serpentes Negras foram suficientes para frustrar os planos do governo (Alvarez; Salla; Dias, 2013Alvarez, Marcos; Salla, Fernando; Dias, Camila. “Das Comissões de Solidariedade ao Primeiro Comando da Capital em São Paulo”. Tempo Social, v. 25, n. 1, 2013, pp. 61-82.). O fantasma do “crime organizado”, reverberando o que se passava no Rio de Janeiro, já era suficiente para pautar as políticas penitenciárias paulistas.

A saída de Dias demarcou uma inflexão no interior da própria gestão de Montoro: do programa de humanização dos presídios só restaram as políticas de expansão do sistema.2 2 Em trabalho recente, Marques (2018) oferece uma reflexão sobre os nexos históricos, sociais e epistêmicos que se estabeleceriam entre essas políticas de humanização e os efeitos da expansão carcerária em São Paulo. Entre 1983 e 1987, o sistema carcerário paulista cresceu 50% - de 14 a 21 unidades (Salla, 2007______. “De Montoro a Lembo: as políticas penitenciárias em São Paulo”. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 1, n. 1, 2007, pp. 72-90., p. 77). A gestão de Orestes Quércia (1987-91) intensificou esse processo. Em 1989, o parque penitenciário paulista já acumulava 28 unidades e, no ano seguinte, 37 (idem) - o que representa um crescimento acumulado de 164% na década.

Ex-secretário de Segurança Pública de Quércia, Luiz Antônio Fleury Filho foi eleito governador (1991-94) e, como uma de suas primeiras medidas, transferiu a Coespe para a pasta da Segurança Pública, sinalizando a disposição do governo para o enfrentamento com a população presa. O resultado é conhecido: a execução, pela Polícia Militar, de ao menos 111 presos na Casa de Detenção de São Paulo, em 2 de outubro de 1992, no episódio que ficou conhecido como Massacre do Carandiru. O Massacre fazia explodir o problema prisional no centro da arena política e inscrevia na agenda governamental o desafio de desativar a maior unidade prisional do país - a Casa de Detenção, com capacidade para 3.250 presos, mas que abrigava mais de 6 mil (Salla, 2007______. “De Montoro a Lembo: as políticas penitenciárias em São Paulo”. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 1, n. 1, 2007, pp. 72-90., p. 77). Em 1993, Fleury criou a Secretaria de Administração Penitenciária, desvinculando-a de qualquer outra secretaria - dez anos antes de a medida ser tomada no Rio de Janeiro. No mesmo ano, o governador ensaiava as primeiras providências deliberadas para promover a desconcentração do parque penitenciário, através da Lei 8.524/93, que previa a criação de vagas prisionais num raio de cem quilômetros de distância do centro metropolitano. No final de seu governo, o estado já contava com mais 6 unidades prisionais, 3 delas alocadas na região central e 3 na região oeste.

Em 1996, o governador Mário Covas (1995-2001) assumiu publicamente, perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o compromisso de desativar a Casa de Detenção; o governo federal endossou o plano, reafirmando-o em seu Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) e providenciando verbas para a construção de 22 unidades (idem, p. 81). Ao término do primeiro mandato, em 1998, Covas já havia inaugurado 16 novas penitenciárias, 3 delas na RMSP, 3 na região central, 4 na região noroeste e 6 no oeste. Nesse período, também foi desativado o antigo presídio da rua do Hipódromo, na zona leste.

Embora não tenha concluído o segundo mandato, Covas teve tempo de consolidar as bases da atual cartografia do parque penitenciário. Em 1999, inaugurou mais 3 penitenciárias no interior, 2 no extremo oeste do estado e 1 na região central. Em 2000, inaugurou um total de 11 unidades: 6 CDPs e 1 CPP na RMSP; 1 CDP e o primeiro CR na região central; e mais 2 penitenciárias na região noroeste. O crescimento do parque penitenciário na década de 1990 foi de 97%. A criação dos CDPs, preferencialmente em território metropolitano, marca um ponto de inflexão no processo de responsabilização da SAP pelos presos provisórios. Vale ressaltar a sincronia dessa medida com o Programa Delegacia Legal, no Rio de Janeiro.

Após a morte de Covas, o sistema penitenciário paulista passou, sob a gestão de Geraldo Alckmin (2001-02), pela maior e mais rápida expansão já registrada. Foram 38 novas unidades inauguradas no biênio. A região metropolitana foi contemplada com mais 3 CDPs e 1 HCTP; a região do Vale do Paraíba e litoral passou a abrigar 4 novos CDPs, 2 penitenciárias, 1 CR e 1 HCTP. A região central recebeu 6 CRs e 2 CDPs; a região noroeste, 4 CRs, 1 CDP e 2 penitenciárias; e a região oeste, 5 penitenciárias, 2 CPPs, 2 CRs, 1 CDP e 1 CRP. Sem minorar a escala da expansão, é importante salientar que tal crescimento não se deu apenas com a construção de novas unidades. Por exemplo, boa parte dos 13 CRs inaugurados já funcionava como cadeia pública ou carceragem de delegacia, de modo que a data da inauguração registra a incorporação de sua gestão à pasta da administração penitenciária - e não a edificação de novo espaço. A SAP também registra como inauguração a mudança formal da finalidade de um edifício prisional. A prisão de Parelheiros, na zona sul da capital, já foi inaugurada três vezes: em 1990 como Casa de Detenção, em 2002 como CDP, e em 2009 como penitenciária. Esse período também foi marcado pela desativação e demolição da Casa de Detenção no Carandiru, dez anos após o Massacre.

Em 1993, o PCC foi fundado no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté, Vale do Paraíba, proclamando as mesmas palavras de ordem do CV - “Paz, Justiça e Liberdade”; replicando, pelo menos no primeiro momento, sua estrutura organizativa (Biondi, 2010Biondi, Karina. Junto e misturado. São Paulo: Terceiro Nome, 2010.; Dias, 2013Dias, Camila. PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência. São Paulo: Saraiva, 2013.); e estabelecendo, entre outros objetivos, a intenção de evitar “que ocorra novamente um massacre semelhante ou pior ao ocorrido na Casa de Detenção” (Souza, 2007Souza, Fátima. PCC: a facção. Rio de Janeiro: Record, 2007., pp. 12-3). Juntamente com o parque penitenciário, a facção se propagou pelo estado, multiplicando as ocorrências de rebeliões, fugas e ações de resgate. A existência do PCC, sua expansão e forma de atuação aumentavam a pressão pela desativação das vulneráveis carceragens de delegacias, incrustadas no tecido metropolitano. Em 2001, a primeira megarrebelião do PCC - que contou com 29 unidades rebeladas e mais de 28 mil presos envolvidos (Salla, 2006______. “As rebeliões nas prisões: novos significados a partir da experiência brasileira”. Sociologias, n. 16, 2006, pp. 274-307., p. 276) - foi determinante para a retomada dos planos governamentais de desativação da Casa de Detenção - um dos epicentros do episódio - e para a intensificação da expansão prisional interiorizada que se verificou sob a gestão Alckmin. Depois desse episódio, na tentativa de isolar as lideranças da facção, diversos presos foram transferidos para unidades de estados vizinhos; foi instaurado o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) em duas das mais antigas unidades do interior paulista - em Presidente Venceslau e Avaré; e, em 2002, foi inaugurado o crp de Presidente Bernardes - a primeira prisão de “segurança máxima” do estado. A partir de então, distância, isolamento e segurança se tornaram indiscerníveis na racionalidade governamental.

Como governador eleito, Alckmin (2003-06) inaugurou mais 37 unidades, seguindo a mesma dinâmica de construções e conversões e o mesmo padrão territorial estabelecido nas gestões anteriores. Em 2003, deu início ao processo de conversão do “Cadeião de Pinheiros” nos atuais CDPs; e, em 2005, foi responsável pela conversão da histórica Penitenciária do Estado na Penitenciária Feminina de Santana (PFS) - atualmente, o maior presídio feminino da América Latina. Seu sucessor, José Serra (2007-10), foi mais “modesto”: inaugurou 9 prisões. Concluiu a conversão do “Cadeião de Pinheiros” nos 4 atuais CDPs; transformou o antigo Centro de Observação Criminológica (COC), no Carandiru, em Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário; converteu o CDP de Parelheiros em penitenciária, construiu 1 CPP na região oeste e 4 novos CDPs - 1 no litoral, 1 na região central e 2 na região noroeste. No final dos anos 2000, São Paulo já acumulava 147 unidades prisionais.

Outra vez eleito e reeleito, Alckmin (2011-18) inaugurou mais 24 unidades, todas no interior, entregando-nos o quadro que aqui analisamos. Foram construídas 1 penitenciária feminina no Vale do Paraíba; 5 penitenciárias, 2 CDPs e 1 CPP na região central; 5 penitenciárias, 4 CDPs e 1 CPP na região noroeste; e 3 CDPs e 2 penitenciárias na região oeste. Sem alterar substantivamente a configuração territorial do sistema, esse último período foi marcado por uma maior diversificação do parque penitenciário interiorano, com o aumento do número de CDPs e de unidades femininas - 5 das 13 penitenciárias construídas.

Os modos de espacialização dos parques penitenciários em São Paulo e no Rio de Janeiro, embora divergentes, concretizam, na escala local, os efeitos de processos transnacionais, que promovem a massificação do encarceramento e caracterizam a atual governamentalidade neoliberal: o declínio do ideal ressocializador, o populismo penal, as guerras contra o crime e as drogas, as políticas de tolerância zero, as demandas por penas exemplares e retributivas, as novas racionalidades criminológicas etc. (Garland, 2005______. La Cultura del control: crimen y orden social em la sociedade contemporânea. Barcelona: Gedisa, 2005.). A especificidade brasileira parece residir na centralidade que as facções assumem na constituição dos problemas que animam as decisões governamentais. Nesse sentido, as discrepâncias nos modos de espacialização de cada parque penitenciário aparecem como meios diferentes para se atingir um mesmo fim, com modulações singulares de escala de distância e de tática de isolamento.

CONTRASTES E RESSONÂNCIAS

O percurso analítico até aqui realizado nos conduz a uma espécie de aporia: estamos diante de parques penitenciários contrastantes, mas cujo desenvolvimento histórico se mostra similar. Quais fatores produzem o efeito de diferenciação? Qual o denominador comum que subjaz em uma e outra cartografia? Se a história nos mostra que as diferenças são, no limite, superficiais, qual o sentido em continuar perseguindo-as?

Em primeiro lugar, ressalta-se que a pulverização do parque penitenciário paulista e a concentração do carioca resultam, sobretudo, de disposições governamentais circunstanciais, animadas pela conjuntura imediata - segundo a sucessão de “crises” prisionais; baseadas num repertório de ação restrito - a aposta no encarceramento; e limitadas pelo “estoque” territorial disponível para cada gestão. Com efeito, seja remota ou recente, a história mostra que tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro a política penitenciária é, por definição, contingente - o que não quer dizer que, a cada momento, não seja informada por determinada lógica.

No que tange às formas recentes de espacialização de cada parque penitenciário, vale considerar que a prospecção de territórios vocacionados (ou não) para o encarceramento passa por fatores de ordem econômica. Para as autoridades governamentais tais questões são tão ou mais relevantes do que as penalógicas. Em São Paulo, a instalação de prisões em pequenos municípios do interior distante foi anunciada como política de indução de desenvolvimento econômico (Sabaini, 2012Sabaini, Raphael. Uma cidade entre presídios: ser agente penitenciário em Itirapina - SP. Dissertação de mestrado. PPGAS/Universidade de São Paulo, 2012.; Silvestre, 2012Silvestre, Giane. Dias de visita: uma sociologia da punição e das prisões. São Paulo: Alameda, 2012.). No Rio, também eram de ordem econômica as preocupações em torno de episódios que marcaram a história recente do parque penitenciário. A presença do Complexo Prisional na Rua Frei Caneca, no seio da cidade, depreciava o valor de mercado dos imóveis e terrenos com potencial de especulação; os planos de desativação do presídio da Ilha Grande levaram em consideração o potencial da indústria do turismo que ali se instalaria; e o desmembramento do “bairro” de Gericinó visava minorar os entraves que as instituições prisionais impõem ao desenvolvimento econômico de Bangu (Brito, 2012Brito, João. Terras quentes reinventadas: a criação do bairro de Gericinó como parte de transformações urbanas do bairro Bangu. Dissertação de Mestrado. PPGS/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.).

Fatores da política eleitoral também devem ser considerados: em São Paulo, a hegemonia do PSDB no governo estadual durante mais de duas décadas foi determinante para a manutenção de uma política continuada de ampliação de vagas. Em contrapartida, no Rio de Janeiro, a alternância de poder pode elucidar a relativa timidez da expansão do parque penitenciário. Não obstante, mesmo entre as diferentes gestões do PSDB em São Paulo é possível identificar ritmos diferenciados de expansão - entre Alckmin e Serra, por exemplo; e por outro lado, mesmo no Rio, é possível discernir linhas de continuidade nas políticas dos diversos governos - como a construção de penitenciárias de “segurança máxima” em Bangu. Esses são só alguns dos condicionantes possíveis dos modos de espacialização divergentes que se verificam em tais parques penitenciários. Uma pesquisa mais minuciosa sobre os processos decisórios e as negociações envolvidas em cada momento da expansão prisional certamente permitiria ampliar a relação de fatores explicativos. No entanto, percorrer essa progressão de acontecimentos não seria suficiente para apreender a lógica que informa as decisões e estabelece os limites das negociatas, barganhas e acordos circunstanciais.

O mesmo raciocínio se aplica às causas remotas e constantes históricas: nem a estruturação do Complexo Prisional de Gericinó, nem o processo de expansão interiorizada do parque penitenciário paulista se explicam pela resiliente lógica de relegação que orienta as práticas punitivas desde o período colonial. Se ela é importante para compreender o papel que a distância vem desempenhando no desenvolvimento das formas de punição, não determina nem explica o mapa recente das prisões cariocas e paulistas.

A atualização dessa lógica de relegação é que precisa ser qualificada, e é nesse sentido que o estudo dos processos de espacialização nos interessa. A construção de modernas prisões distantes dos vícios da cidade, a instalação de colônias agrícolas e “prisões abertas” em áreas rurais e a proliferação de penitenciárias de “segurança máxima” são fenômenos distintos, que se desenvolvem em espaços de experiência heterogêneos, cada qual ligado a um particular horizonte de expectativas (Koselleck, 2006Koselleck, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006.). Em Itirapina, interior de São Paulo, há uma enorme discrepância entre os processos de implantação e recepção de suas duas penitenciárias (Silvestre, 2012Silvestre, Giane. Dias de visita: uma sociologia da punição e das prisões. São Paulo: Alameda, 2012.). A primeira, de 1978, começou a funcionar sem maiores turbulências; sua localização aspirava a facilitar a reabilitação dos presos via trabalho agrícola e progressiva integração à vida pacata da cidade. O espaço de experiência e o horizonte de expectativas que informavam seu processo de instalação eram mais próximos daqueles que conformaram o funcionamento das primeiras Casas de Correção, no século XIX, do que de sua unidade vizinha, vinte anos depois. A segunda, a P2 de Itirapina, inaugurada em 1998, foi contestada por autoridades locais e por cidadãos comuns, temerosos do aumento da criminalidade, das fugas e rebeliões que marcavam os anos 1990. Sua localização foi pensada em outros termos, não como meio de facilitar a reintegração social do preso, mas de reforçar seu isolamento. Discrepância análoga se verifica em Bangu, cuja paisagem em boa medida ainda rural, nos anos 1940, mostrava-se favorável à instalação de unidades para tratamento de presos tuberculosos e para a reabilitação de mulheres presas e que, a partir de 1980, vai figurar como território de “segurança máxima” para a neutralização das forças do “crime organizado”.

A análise das atuais configurações de ambos os parques penitenciários e de seus respectivos processos de formação indica que um território se torna mais propício ao encarceramento na medida em que parece incorporar e, ao mesmo tempo, desdobrar a solidez das muralhas. Tal efeito resulta, tanto na pulverização paulista quanto na concentração carioca, de certo equacionamento entre escalas de distanciamento e táticas de isolamento. Em São Paulo, o distanciamento se impõe na escala das centenas de quilômetros e as unidades prisionais se inserem num meio absolutamente inóspito, entre pastos e plantações de cana. No Rio de Janeiro, o Complexo de Gericinó se situa nos confins da capital, a uma distância que se multiplica pela precariedade do acesso. De todo modo, a relativa proximidade do ambiente urbano parece compensada por um entorno que se mostra mais hermético: a mata fechada de uma reserva ambiental, o cordão de isolamento de um aterro sanitário, o perímetro de segurança de um campo de treinamento militar, o reforço de um batalhão da PM.

Se é certo que os parques penitenciários de São Paulo e do Rio de Janeiro se distinguem entre si, é certo também que compartilham uma mesma diferença em relação ao passado. Distinguem-se do passado quantitativamente, pela escala de encarceramento que viabilizam, e qualitativamente, em dois outros sentidos: pelo perfil das unidades construídas e o modo como a distância é figurada no interior das táticas governamentais. Durante muito tempo, o “afastado” e o “interior”, por suas qualidades rurais, eram vistos como lugares apropriados para a alocação de Casas de Correção e institutos penais agrícolas, que prometiam preparar os internos para o convívio social. O campo figurava em oposição ao urbano; desempenhava duplo papel terapêutico: de privar os condenados dos vícios da cidade, e de introduzi-los em dinâmicas sociais pacatas. A partir dos anos 1980, proliferam as prisões de regime fechado e “segurança máxima”. A distância torna-se fator que duplica a segregação das muralhas.

Em São Paulo, o campo deixa de ser qualificado por suas propriedades terapêuticas para ser apreciado em suas potencialidades securitárias; não está em relação de oposição ao urbano, mas de complementaridade. Rural e urbano já não conformam unidades apartadas; são paisagens socioespaciais coextensivas (Brenner, 2013Brenner, Neil. “Theses on urbanization”. Public Culture, v. 25, n. 1, 2013, pp. 85-114.). A construção de uma unidade na área rural de um pequeno município interiorano, em vez de representar sua extração do ambiente urbano, implica uma conexão desse território com a urbanidade metropolitana. No Rio, a distância de Bangu também não evoca qualquer potencial terapêutico. A concentração de prisões no território converte elementos da paisagem metropolitana, como um aterro sanitário e uma reserva ambiental, em dispositivos de segurança, que, juntamente com o Exército e a Polícia Militar, reforçam as muralhas. O bairro distante já não se opõe ao centro da metrópole. Ao concentrar tantas prisões, é ele mesmo uma centralidade, um polo dinâmico que redesenha e desdobra o tecido metropolitano, articulando circuitos e constituindo-se como um potente conector urbano (Rui; Mallart, 2015Rui, Taniele; Mallart, Fábio. “A Cracolândia, um potente conector urbano”. Le Monde Diplomatique Brasil, n. 99, 2015, pp. 30-1. Disponível em: http://diplomatique.org.br/a-cracolandia-um-potente-conector-urbano/.
http://diplomatique.org.br/a-cracolandia...
). Nesses termos, ainda que motivados pela intenção de isolar, cada parque penitenciário, com sua figuração, gera uma particular experiência da cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Exploramos a construção empírica e histórica do ideal de isolamento carcerário. O reconhecimento de que a prisão se define por seus atravessamentos (Barbosa, 2005Barbosa, Antônio Rafael. Prender e dar fuga: biopolítica, tráfico de drogas e sistema penitenciário no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005., p. 317) não modifica o fato de que, nas representações de governantes e governados, ela segue figurando como um mecanismo de contenção e de exclusão total.

Os muros da prisão materializam e anunciam a segregação da forma mais evidente. Porém, a localização da instituição prisional também cumpre papel decisivo na concretização e na comunicação dessa segregação. A imagem da prisão-ilha, como meio apartado de seu ambiente circundante, durante tempos, foi sustentada por uma efetiva prática de insulamento. A edificação de uma moderna instituição incrustada num ambiente primitivo e natural foi a forma mais recorrente de produzir e fazer ver sua necessária alteridade.

Até recentemente, esse distanciamento compulsório e a representação do isolamento traziam consigo a promessa de um retorno. Afastar era uma forma de reaproximar aqueles que, por seus atos, se distanciaram da sociedade. No momento presente, tal promessa já não compõe o horizonte. O isolamento não só se converteu em um fim em si mesmo, como também se tornou justificável mesmo para aqueles sobre os quais não pesa mais do que uma acusação. A perda de ênfase do ideal de ressocialização por um imperativo securitário se manifesta na transição da figura do “preso comum” para o “crime organizado”, objeto central das políticas penitenciárias. A construção de unidades em áreas suficientemente distantes, a desativação de antigas prisões imersas no tecido metropolitano e a progressiva transferência da custódia de suspeitos das delegacias espalhadas pela cidade para determinadas instituições especializadas em confinamento são alguns dos expedientes que - nos últimos tempos - reforçaram e propagaram a renovada figuração da prisão como um “mundo à parte”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    26 Abr 2019
  • Aceito
    29 Nov 2019
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