RESUMO
O artigo discute as assessorias técnicas e os mutirões em São Paulo, compilando aportes elaborados por profissionais que fizeram parte dessas ações e apontando a centralidade paulista como gênese para tais práticas. Propõe-se a construção de uma “montagem genealógica” latino-americana que conecte a produção paulista a outros eventos, inserindo-a em um campo historiográfico abrangente e enriquecendo a prática e crítica dessas ações.
PALAVRAS-CHAVE:
historiografia; moradia popular; América Latina; assessoria técnica; mutirão
ABSTRACT
The article discusses the technical advisory groups and the collective construction in São Paulo, compiling contributions from professionals who participated in these actions and highlighting the centrality of São Paulo as the genesis of such practices. It proposes the construction of a Latin American “genealogical-montage” that connects São Paulo’s production to other events, inserting it into a broader historiographical field and enriching the practice and critique of these initiatives.
KEYWORDS:
historiography; popular housing; Latin America; technical advisory; collective construction
INTRODUÇÃO
Ao investigar registros elaborados sobre a produção de moradia popular no Brasil que, de algum modo, contrasta com a lógica capitalista,2 é comum deparar-se com relatos acerca dos mutirões autogeridos de São Paulo. Essas ações, que ficaram conhecidas como práticas de assessorias técnicas3 envolveram uma forte articulação entre grupos técnicos - em particular arquitetos e urbanistas - e movimentos de luta por moradia. A literatura produzida sobre o tema buscou evidenciar a relevância dos mutirões paulistanos, de modo que, na virada da década de 1980 para 1990, essas experiências tornaram-se paradigmáticas e foram incorporadas como referências no ensino e na prática da arquitetura em segmentos populares.
Este artigo pretende analisar a literatura acerca da prática a partir de uma perspectiva historiográfica, buscando evidenciar seu lugar de enunciação e seus limites. Pretende-se relacionar as práticas de assessoria técnica que resultaram nos mutirões paulistanos a processos históricos mais amplos, buscando suas possíveis genealogias em contraposição a uma única conexão originária. O objetivo é dar maior complexidade à história de importantes episódios que direcionaram a crítica, a prática e o ensino de arquitetura no Brasil, sobretudo no que diz respeito ao caráter “social” da profissão, numa relação direta com o campo popular e as formas de produção de moradia.
A HISTORIOGRAFIA DE UMA “ORIGEM”
A década de 1980 no Brasil é usualmente entendida em contraposição ao período imediatamente anterior, marcado pela ditadura civil-militar (1964-1986) e, no campo da arquitetura e do urbanismo, pela implementação de políticas habitacionais em âmbito federal por meio do Banco Nacional de Habitação (BNH), fundado em 1964. Pode-se dizer que a publicação São Paulo 1975: crescimento e pobreza (Camargo, 1976) foi paradigmática para a análise crítica dessas políticas num período de extraordinária elevação do Produto Interno Bruto (PIB) no Brasil.4 Resultado de uma pesquisa encomendada pela Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e de pesquisadores vinculados ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o próprio título do livro buscava mostrar as contradições do período que combinou índices econômicos exitosos com agravamento da pobreza, mais evidentes na maior metrópole do país. Os resultados apresentados sobre as condições materiais de vida dos trabalhadores paulistanos alimentaram críticas ao modelo de desenvolvimento baseado numa industrialização que não absorvia as classes populares e provocava expansão desmesurada do meio urbano e avanço das desigualdades sociais.
São Paulo 1975 impactou o meio especializado da arquitetura, cujos estudos eram voltados para a dimensão espacial do processo que o livro denunciava. Alguns anos depois, o encontro dos interesses da sociologia com a arquitetura levaria à publicação de A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial, organizado pela urbanista Ermínia Maricato (1982). Esse livro focalizava a produção da moradia dos trabalhadores na metrópole, dividindo-a basicamente em duas vertentes: a autoconstrução e a produção pública do BNH. A crítica desenvolvida nessa obra, que se tornou referência para os estudos urbanos, argumentava que o modelo de financiamento do BNH era apresentado como universal, mas favorecia a aliança entre empresários da construção civil e proprietários fundiários, resultando num processo de produção da cidade que concentrava terra e capital. Em São Paulo, a produção do BNH, baseada na redução de custos das moradias por meio de sua implantação em terrenos periféricos e padronização excessiva das unidades, difundiu-se a partir da criação da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab-SP), em 1965. A ação estatal direcionava os recursos públicos para as camadas médias da população, com capacidade de endividamento. Restava aos mais pobres a autoconstrução em terrenos próprios, distantes das áreas consolidadas ou sem segurança de titulação, incrementando o processo de favelização. Nesse quadro, profissionais da arquitetura analisaram a produção da moradia pelos próprios moradores, a fim de buscar uma alternativa ao modelo estatal concentrador.
A autoconstrução foi um fenômeno constitutivo da metropolização no Brasil e respondeu às crises habitacionais que vinham desde a década de 1940. Nabil Bonduki (1998) viu a origem desse processo na Lei do Inquilinato de 1942, que, ao congelar os aluguéis, desestimulou a produção privada de habitação, “transferindo para o Estado e para os próprios trabalhadores o encargo de produzir suas moradias” (Bonduki, 1998, p. 209). A partir daí a autoconstrução teria se tornado a principal alternativa de habitação para os pobres nas metrópoles (Bonduki; Rolnik, 1979, pp. 117-54). Diversas interpretações e teorizações sobre o fenômeno da autoconstrução foram produzidas em meio a disputas por seus significados, fazendo-o despontar como solução para os problemas habitacionais e de organização da classe trabalhadora urbana. A leitura histórica se fez simultaneamente à atuação dos intelectuais nos movimentos sociais, aliados na luta contra a ditadura e, depois, no processo de redemocratização. Os vínculos entre pesquisa acadêmica, produção historiográfica e prática arquitetônica, mais especificamente formação de assessorias técnicas dadas aos movimentos de moradia, podem ser identificados na trajetória de diversos autores, alguns tomados como fonte de reflexão neste artigo, como Nabil Bonduki, João Marcos de Almeida Lopes, Roberto Pompeia, Pedro Arantes, Caio Santo Amore de Carvalho e José Baravelli.
Em diversos trabalhos desses autores, a experiência no bairro paulistano Vila Nova Cachoeirinha, iniciada em 1981, é mencionada por seu caráter pioneiro. A associação de moradores reivindicava ao poder público a obtenção de recursos para a construção coletiva de habitações, propondo projeto próprio e gestão autônoma da obra. A organização, denominada mutirão autogerido, previa assistência técnica de arquitetos e engenheiros. Foi então que entraram em cena professores e alunos do curso de arquitetura e urbanismo da Faculdade Belas Artes, reunidos em seu Laboratório de Habitação (LabHab), para elaborar projetos de melhoria urbana e construção de moradias populares. Assim, entre 1982 e 1986, iniciava-se a prática extensionista de assessoria técnica a movimentos sociais organizados.5
Parte dos envolvidos descreve o desejo de reproduzir, em São Paulo, o modelo que a Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua (Fucvam) vinha implementando desde a década de 1960 no Uruguai. Atuava na prática extensionista, no desenho de um modelo de política habitacional e também na conformação de uma interpretação teórica. Com isso, uma narrativa mítica fundou-se na referência uruguaia e na militância do jovem engenheiro paulistano Guilherme Coelho, que, em visita a Montevidéu, registrou o trabalho das cooperativas de habitação em um filme Super-8 e, por meio dele, difundiu aquela experiência em São Paulo no início dos anos de 1980. O filme gerou grande impacto e é citado em diversos trabalhos acadêmicos como o disparador da transformação da relação entre arquitetos e movimentos de moradia.6 Nos termos da Fucvam, a autoconstrução, até então entendida como espoliação do trabalhador durante suas horas de folga - como mostrou Francisco de Oliveira (2006) - convertia-se em ação coletiva na forma de mutirões autogeridos, envolvendo o trabalho participativo dos próprios moradores e a participação de assessorias técnicas para o projeto arquitetônico, a realização e a gestão da obra.
O vínculo entre as primeiras iniciativas de mutirões autogeridos em São Paulo e as cooperativas de habitação uruguaias também é mencionado por Caio Santo de Amore Carvalho (2004) e foi objeto específico do trabalho de José Baravelli (2006), que apontou semelhanças e diferenças entre as experiências e buscou atribuir as razões do êxito do modelo do país vizinho às condições históricas e institucionais. Na segunda metade da década de 1980, intensificaram-se as articulações dos movimentos populares na capital paulista, já durante o processo de redemocratização. Em 1987, foi fundada a União dos Movimentos de Moradia (UMM), organização formada nas periferias e nucleada pelas Comunidades Eclesiais de Base e pelas Pastorais da Igreja Católica - a partir da mobilização popular em defesa do direito à moradia e da autonomia de gestão. A institucionalização de uma política que atendia às demandas da UMM ocorreu em 1989, com a eleição de Luiza Erundina, candidata pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Essa gestão municipal, ao implementar o Programa de Construção por Mutirão e Autogestão, foi “capaz de absorver as principais reivindicações dos movimentos de moradia na época, aglutinar as experiências isoladas e de assessoria técnica e elaborar uma nova forma de produção habitacional, incorporada à política pública” (Carvalho, 2004, p. 29). A formalização do mutirão e da autogestão como práticas da política pública municipal, por sua vez, estimulou o surgimento de grupos autônomos prestadores de assessoria técnica a movimentos sociais, como a Usina: Centro de Trabalho do Ambiente Habitado (Usina CTAH) e a Peabiru Trabalhos Comunitários e Ambientais,7 que abrigaram ou abrigam em suas formações alguns dos autores mobilizados neste trabalho.
João Marcos de Almeida Lopes (2011), que foi um dos fundadores da Usina, analisa criticamente os desdobramentos da relação entre os arquitetos e os “sem-teto”. No que pode ser lido como uma reflexão sobre parte de sua trajetória, Lopes trata dos limites do mutirão, à medida que se deu sua institucionalização como política pública ou ação filantrópica, partindo de experiências organizativas e construtivas específicas. O arquiteto destaca que os experimentos em São Paulo fizeram escola, resultando numa rede organizada de profissionais engajados em todo o país, formando professores e resgatando o problema da moradia como uma questão da e para a arquitetura (Lopes, 2011). Já Caio Santo Amore de Carvalho (2005), integrante da Peabiru, faz uma retrospectiva histórica para recuperar a gênese e os desdobramentos dos programas de mutirão nas várias gerações de assessorias técnicas, tecendo também uma crítica. Analisando algumas experiências em São Paulo - entre as quais o pioneiro mutirão da Vila Nova Cachoeirinha -, o autor identificava um percurso comum no trabalho das assessorias: iniciadas tanto em movimentos reais quanto em construções míticas, e tendo adiante um horizonte de transformação, acabavam deslizando para práticas assistencialistas. A recusa do termo “assistência” para reafirmar a atividade da “assessoria” técnica é então apontada como fato revelador de uma “crise de identidade” dessas entidades, corroborada também por sua localização fronteiriça entre escritório comercial e organização não governamental (Carvalho, 2005, p. 75).
Pedro Arantes (2002), outro membro da Usina, é mais incisivo nos possíveis elos históricos de formação das assessorias técnicas. Para ele, a atuação dos arquitetos nos movimentos de luta por moradia é herdeira da ação prática e política iniciada por Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império nos anos de 1960, abortada pelas vicissitudes históricas que levaram à ditadura. O trio de “discípulos” de Vilanova Artigas, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da da Universidade de São Paulo (FAU-USP), foram críticos ao papel do projeto - do desenho e da sua tecnicidade - como instrumento de manutenção da exploração capitalista na construção civil. Nessa perspectiva, uma dimensão pedagógica seria incorporada à tarefa que caberia aos arquitetos, ajudando o trabalhador no canteiro de obras a alcançar a consciência e a autonomia necessárias ao rompimento dos ciclos de exploração. Pedro Arantes (2002) alertou ainda para a necessidade de ampliar a abrangência das experiências das assessorias técnicas, procurando maior aderência popular, para além dos movimentos sociais imediatamente envolvidos. Ao apontar soluções alternativas para a produção de habitação, esses autores buscam retomar a história do que teria sido a origem do trabalho das assessorias técnicas, tendo como premissa o diálogo direto com as problemáticas sociais da metrópole paulistana. Analisaram de forma crítica, no âmbito acadêmico, a prática realizada com os movimentos sociais. Todos formados na FAU-USP, eles dialogaram em alguma medida com a reconhecida e requerida obra do arquiteto Sérgio Ferro.
É certo que não tiveram o objetivo de constituir uma historiografia, mas na prática foi o que aconteceu. Seus trabalhos acadêmicos são adotados como referência para a conformação de um campo ou “uma rede”, como identificou Lopes (2011). Suas análises contribuíram para interpretações que apontam uma “origem” dos mutirões assessorados, centrada sobretudo na FAU-USP. Grosso modo, traçam uma linha ou um “fio” (Arantes, 2002) que parte da crítica de Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império à adesão de Vilanova Artigas e de sua geração ao nacional-desenvolvimentismo e termina na consolidação de suas próprias assessorias técnicas na década de 1990. Essa linha passa pelos pilotos dos laboratórios de habitação das faculdades de arquitetura - com destaque para o experimento da Belas Artes -, pela inspiração das cooperativas uruguaias e pelas articulações políticas dos movimentos de luta por moradia, que foram decisivas para a instituição do programa habitacional de mutirões em São Paulo na gestão de Luiza Erundina.
Como aponta João Marcos de Almeida Lopes (2011, p. 9), ao instituírem um campo de trabalho com os movimentos de moradia, os arquitetos não estavam preocupados com uma afirmação de sua “função social” (Artigas, 1989), tampouco tinham essa reflexão como premissa em seus trabalhos acadêmicos. Entretanto, o fio traçado pelas obras citadas contribuiu para a ideia de que a questão social na arquitetura brasileira teria emergido da atuação de arquitetos paulistas, mais notadamente a partir do embate entre Vilanova Artigas e Sérgio Ferro e a politização de viés marxista que surgiu no campo disciplinar paulistano na década de 1960. É o que sugere José Henrique Bortoluci (2016, p. 32), que pretendeu produzir uma análise historiográfica e afirma que, antes da década de 1960 e do debate paulistano, a produção de habitação popular ocupava um “papel secundário na arquitetura do país, ao menos entre aquilo que se convencionou tratar como o grupo hegemônico - a chamada Escola Carioca, capitaneada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer” (Bortoluci, 2016, p. 32). Tal leitura parece desconsiderar as duas décadas de pesquisas sob a coordenação de Nabil Bonduki, que, além de uma equipe na USP, contou com uma centena de pesquisadores em todo o Brasil para tratar de debates, modelos, paradigmas e produção de habitação social de 1930 a 1964. O esforço coletivo de investigação deu origem aos três volumes do livro Pioneiros da habitação social, publicado em 2014, que faz um inventário da produção pública do período e registra quase trezentos conjuntos habitacionais construídos pelos institutos de aposentadoria e pensão (Bonduki; Koury, 2014).
Basicamente, as interpretações que minimizam a importância dessa produção acabam por referendar extemporaneamente as críticas internacionais, como as do arquiteto suíço Max Bill e do italiano Giulio Carlo Argan, que em 1953 e 1954, respectivamente, julgaram frívola e sem compromisso social a produção arquitetônica brasileira até aquele momento. Fato é que, entre a eclosão do debate paulistano nos anos 1950 e 1960 e as primeiras experiências de mutirão na década de 1980, circulavam informações sobre diversas manifestações arquitetônicas e culturais além do referencial das cooperativas uruguaias e do repertório crítico do trio Ferro, Lefèvre e Império. Entre elas, as contribuições do arquiteto inglês John Turner, autor de Housing by People, de 1976; do carioca Carlos Nelson Ferreira dos Santos, envolvido no projeto de urbanização da favela Brás de Pina, no Rio de Janeiro, na década de 1960;8 do egípcio Hassan Fathy, com seu livro Construindo com o povo: arquitetura para os pobres, de 1973; e do carioca Acácio Gil Borsoi e seus painéis de taipa no início da década de 1960, no Recife. Essas referências foram, nas palavras de João Marcos de Almeida Lopes (2011), outros “ditos” que se juntaram aos “ditos” de Sérgio Ferro e levaram a um “caleidoscópio”, à base de um pensamento que ensejou o trabalho dos arquitetos com os movimentos sociais de luta por moradia na década de 1980 em São Paulo.9
O objetivo aqui é dar visibilidade a esses outros “ditos”, mas sobretudo a outros “não ditos” que se relacionam à experiência paulistana dos mutirões autogeridos. A partir dessa perspectiva, busca-se também relativizar a centralidade paulistana na discussão, evidenciando alguns fios - latino-americanos - que tecem essa trama histórica.
DO FIO DE ORIGEM À TRAMA GENEALÓGICA
Há vinte anos, Caio Santo Amore de Carvalho (2004, p. 12) apontava que “foi dito por alguns especialistas que não há mais o que estudar sobre os mutirões”. Apesar da contundência da constatação, seu trabalho os discutia, traçando um caminho para sua compreensão que, como dissemos, é em certa medida similar ao de seus colegas. O exercício inicial de enunciar esses autores ajuda a problematizar os protagonismos atribuídos localmente num debate mais amplo. Ainda que nunca se deixe de mencionar a experiência uruguaia, outros eventos significativos no continente ficaram à margem dos registros. A seleção de certos acontecimentos, em detrimento de outros, gerou inúmeros pontos cegos no campo historiográfico da moradia social, destacando as assessorias técnicas e as experiências de mutirões autogeridos paulistanos, e, ao mesmo tempo, relegando outros elementos que também impactaram a produção da habitação popular.
A produção bibliográfica, até o momento, esteve mais engajada na sistematização e disseminação da prática mutirante, mobilizando-a como elemento de disputa pela direção de um campo disciplinar que discute a ação política e social do arquiteto na produção de moradia popular. Mesmo sem abandonar a perspectiva crítica, não há, nessa literatura, um esforço precípuo de construir uma historiografia mais distanciada. Apesar de compreendermos o objetivo do esforço, o que propomos é justamente lançar as bases para um olhar propriamente historiográfico sobre essas práticas e, portanto, menos comprometido com uma ação.
Na construção dessa perspectiva histórica, recorremos a outras situações para incluir a experiência paulistana num quadro latino-americano. Propomos construir aqui uma espécie de montagem genealógica. Tal como sugere Michel Foucault (1998), “a tradição da história [...] tende a dissolver o acontecimento singular em uma continuidade ideal”, porém “a história, genealogicamente dirigida, [...] pretende fazer aparecer todas as descontinuidades” (Foucault, 1998, p. 27 e p. 35). Com a figura da montagem, Paola Berenstein Jacques propõe “uma explosão da cronologia” linear, restando “um mundo de poeira - trapos, fragmentos, resíduos” - que se conforma como uma “‘desordem organizada’ [...] colocando lado a lado o que estava habitualmente separado, e separando o que estava antes reunido” (Jacques, 2020, p. 36).10 Portanto, no lugar de um fio, propomos fios (no plural) que se entrelaçam para formar uma trama11 histórica, a partir da mudança de postura dos arquitetos em face de sua atuação na sociedade, expandindo o panorama apresentado pelos autores que introduziram a experiência dos mutirões assessorados em São Paulo no campo da arquitetura e urbanismo.
Os procedimentos metodológicos adotados para elaborar tal trama envolveram a busca e a compilação de obras bibliográficas e fontes documentais pertinentes aos campos da produção habitacional pública e da assessoria técnica popular.12 A partir dos resultados obtidos, estabelecemos critérios para a seleção das fontes. O primeiro critério limitou a escolha a publicações que tratassem de experiências ocorridas nacional e internacionalmente, dentro do recorte espacial latino-americano. O segundo delimitou a seleção a obras que abordassem eventos pós-Segunda Guerra Mundial, um recorte temporal-chave para a América Latina, marcado por intensos debates e iniciativas voltadas para o desenvolvimento das nações da região.
João Marcos de Almeida Lopes (2011) entende que a prática das assessorias técnicas paulistanas possui duas dimensões indissociáveis: a política e a técnica. Essa correlação é ponto fundamental da historiografia da chamada arquitetura moderna e está presente tanto nas reflexões de autores mais comprometidos com a prática arquitetônica, como Leonardo Benevolo (1967) e Giulio Carlos Argan (1965), quanto daqueles que assumiram uma posição mais distante e crítica, como Manfredo Tafuri (1985) e Jorge Francisco Liernur (2015).
A montagem da trama de eventos, instituições e experiências apresentada a seguir apoia-se nessas duas dimensões: a política, centrada na educação dos técnicos e da população que orientou direta ou indiretamente a produção de moradias populares separada da lógica do mercado; e a técnica, dedicada ao desenvolvimento instrumental de métodos construtivos voltados para a produção habitacional e baseados na permuta de saberes profissionais e populares. E, considerando exatamente a indissociabilidade dessas duas dimensões, sugerimos que o viés assistencialista que Carvalho (2004) identificou como ponto de chegada de um caminho tomado pela assessoria técnica não foi acidental, mas é constitutivo dessas práticas em termos genealógicos. Por isso, é necessário incluir os “não ditos” para construir um olhar que, além de crítico, também é mais distanciado.
UMA MONTAGEM GENEALÓGICA LATINO-AMERICANA
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, os países latino-americanos foram objeto de projetos desenvolvimentistas amparados em políticas assistencialistas dos Estados Unidos (como a Política da Boa Vizinhança) e cimentados por regimes anteriores. O cenário geral propiciou a formação de pactos, organizações e programas internacionais de cooperação financeira e técnica entre as nações americanas. Instituições como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco),13 a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal),14 a Organização dos Estados Americanos (OEA)15 e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),16 todas fundadas entre as décadas de 1940 e 1950, funcionaram como promotoras do almejado Estado de bem-estar social e atuaram com problemas centrais, como a miséria no campo, a explosão urbana e a crise habitacional, resultante das grandes correntes migratórias.
Entre as décadas de 1950 e 1970, as políticas de cooperação pan-americana estimularam inúmeros intercâmbios multidisciplinares entre técnicos e intelectuais. A efervescência dos debates em torno da elaboração de soluções para o continente fez emergir novos paradigmas no campo disciplinar da arquitetura e do urbanismo, com temáticas relativas à cidade e à moradia (Gorelik, 2005).
Antes disso, Jacob Crane vinha articulando a ideia da autoconstrução dirigida como solução habitacional para os países latino-americanos e, mais amplamente, para os países em desenvolvimento. Como diretor assistente da Federal Public Housing Administration (FPHA), Crane idealizou um programa de habitação em Porto Rico, a partir de 1939, que consistia na criação de loteamentos destinados à autoconstrução da casa própria. Seu modelo, denominado “aided self-help housing”, contrapunha-se aos grandes conjuntos habitacionais seriados, característicos do movimento moderno. Sob a justificativa de que os países em desenvolvimento não tinham capacidade econômica para avançar nos processos de industrialização da construção, propagava a urbanização baseada na propriedade privada. Esse engenheiro estadunidense, que atuou no Housing and Home Finance Agency e na ONU, tornou-se embaixador das políticas habitacionais baseadas em “lotes com serviços” - ou lotes urbanizados, como são conhecidos no Brasil - e na autoconstrução. Sua circulação internacional, mobilizando modos de vida e processos construtivos tradicionais, constituiu um movimento político de defesa da autoconstrução e da propriedade privada, um modelo que se expandia como instrumento ideológico do soft-power estadunidense na América Latina, Caribe e colônias inglesas (Liernur, 2015; Harris, 1998).
Por outro lado, profissionais da América Latina passaram a questionar a pertinência de se adotar modelos uniformizadores de planejamento, dando outro sentido tanto à recuperação das técnicas construtivas locais quanto à incorporação de esforços comunitários na produção de habitação. Estimulavam soluções estratégicas, adaptadas a circunstâncias e particularidades locais, com programas educativos que valorizassem tanto os arranjos sociais quanto as soluções de autopromoção da moradia, como as favelas e os loteamentos espontâneos. Técnicos e intelectuais latino-americanos contribuíram para um debate regional ativo, centrado na defesa de estratégias de desenvolvimento autônomas, orientadas por uma perspectiva anti-imperialista (Aravecchia-Botas; Pino, 2022). Entre a ideologia do self-help housing de Crane e as ações mais autônomas de ajuda mútua desenhava-se uma disputa ideológica pelo fenômeno da autoconstrução (Hirao, 2024).
FIOS DA POLÍTICA
Na década de 1950, os países da América Latina firmaram alianças que resultaram na criação de instituições voltadas para o desenvolvimento de soluções de problemáticas relativas à cidade e à moradia. Nilce Aravecchia-Botas e Ana Montoya Pino (2022) analisaram a trajetória de instituições como a Sociedad Interamericana de Planificación (Siap) e o Centro Interamericano de Vivienda y Planeamiento (Cinva).17
A Siap foi fundada em 1956 por profissionais de diferentes campos do conhecimento e marcou um ponto de inflexão nas ideias sobre planejamento regional, confrontando os modelos exógenos, formulados em contextos europeus e norte-americanos, e a realidade latino-americana (Espinoza, 2016). Os encontros organizados pela Siap entre as décadas de 1950 e 1970 tiveram um papel fundamental na elaboração e difusão de um novo arcabouço teórico adaptado às particularidades dos países latino-americanos. A “Carta de Lima”, documento elaborado em uma das mesas redondas da Siap em 1964, defendia o desenvolvimento de políticas habitacionais por meio do planejamento integrado, contemplando estratégias como a integração das favelas na morfologia das cidades e nos planos de renovação urbana e o incentivo à produção cooperada de moradias, com a participação dos beneficiários para reduzir custos e promover o espírito de comunidade (Aravecchia-Botas; Pino, 2022).
O Cinva, criado em 1951, nasceu como um programa de cooperação técnica do Conselho Interamericano Econômico e Social (Cies), da OEA. A instituição, que inicialmente centralizava os debates sobre o desenvolvimento tecnológico e a produção seriada da moradia, passou a fomentar o “desarrollo comunal”,18 as organizações sociais e a incorporação de saberes construtivos locais como caminho para solucionar o problema habitacional. O Cies, formado por especialistas, técnicos e estudantes de campos diversos (entre eles, arquitetura, assistência social e economia), visava à “integração da tecnologia, do trabalho interprofissional e do trabalho com as comunidades de base, para melhorar seu nível econômico e social” (Paez, 2002, p. 2). Em certo sentido, o Cinva fazia a ponte com Porto Rico e expandia para a América Latina o modelo de self-help idealizado por Jacob Crane (Gorelik, 2022). Por outro lado, seus projetos extensionistas mobilizavam técnicos e agentes comunitários cuja relação apontava para horizontes políticos mais autônomos, dando um significado propriamente latino-americano para a autoconstrução e para a ideia de planejamento integral dos lugares de habitar (Pino; Aravecchia-Botas; Ramirez, 2024, pp. 179-83). As atividades do Cinva incluíam a tradução e a publicação de livros e artigos, assim como o assessoramento de projetos, programas e políticas institucionais no continente. Jorge Alberto Rivera Paez (2002) destaca que a atuação de maior relevância do Cinva foi a capacitação de profissionais para a habitação e o desenvolvimento do meio rural, realizada por meio de cursos “regulares” e de “extensão”. O Cinva promoveu 62 cursos, três deles no Brasil: em Viçosa (1958), em Recife (1965) e no Rio de Janeiro (1969). Durante sua atuação nas décadas de 1950 a 1970, a organização contribuiu para a formação de uma extensa rede internacional de profissionais do planejamento e desenvolveu uma série de protótipos e soluções construtivas - como a prensa Cinva-ram19 - para uma maior eficiência e qualidade na execução de moradias populares autoconstruídas.
No auge da atuação do Cinva, mais precisamente em 1961, o presidente estadunidense John F. Kennedy firmou um acordo de cooperação técnica e financeira com países da América Latina, a Aliança para o Progresso (APP). Tratava-se de um compromisso político que visava a promover o desenvolvimento econômico e social da população por meio de políticas de planejamento urbano, reforma agrária, educação, saúde e outras, e expandir a influência política norte-americana. Entretanto, após o assassinato de Kennedy, esse soft-power daria lugar a uma ação mais radical de apoio dos Estados Unidos aos regimes ditatoriais da América Latina.
Ainda que separados por décadas e, no caso brasileiro, pela ruptura política, segundo o que foi exposto até aqui, o Cinva e as assessorias técnicas paulistanas possuem nexos evidentes e comportam ambiguidades muito parecidas. Criados por professores, os laboratórios de habitação contribuíram para a formação profissional de arquitetos com foco no social e desenvolveram técnicas construtivas destinadas à produção mutirante de moradias. Podemos citar como exemplo o processo construtivo empregado pela Usina CTAH - grupo de assessoria do qual fizeram parte Lopes, Baravelli e Arantes -, que combina alvenaria estrutural de tijolos cerâmicos com escadas de estrutura metálica,20 cuja aplicação em conjuntos habitacionais populares autoconstruídos são detalhadas em Ícaro Vilaça e Paula Constante (2016). Os mutirões autogeridos também se configuraram, em escala local, como instrumentos pedagógicos e operacionais de desenvolvimento comunitário, na medida em que propunham uma relação mais próxima entre arquitetos e trabalhadores, que visava à formação política e à desalienação do trabalho no canteiro de obras.
Nesse ponto, encontramos uma outra linha genealógica, ligada a um programa pedagógico desenvolvido na região nordeste do Brasil. Na década de 1960, o analfabetismo no Brasil chegava a índices alarmantes, em especial no Nordeste, e configurava-se como um obstáculo para o desenvolvimento econômico e social proclamado em discursos técnicos e políticos. Em 1963, em uma ação financiada pela APP, o educador Paulo Freire aplicou seu método de alfabetização na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, alfabetizando 135 adultos em quarenta horas, dentro de um programa de desenvolvimento das comunidades rurais por meio da educação21 (Fernandes; Terra, 1994). O método, exaltado por favorecer um processo de alfabetização autônomo, crítico e eficiente, foi barrado pelo golpe militar de 1964. Apesar dessa ruptura, sabemos que os ensinamentos de Paulo Freire foram apropriados por várias áreas do conhecimento, inclusive pela arquitetura e pelo urbanismo.
É o que se identifica na trajetória de Rodrigo Lefèvre, representante da Arquitetura Nova na década de 1960 e uma das figuras centrais da bibliografia de Pedro Arantes (2002). Em Projeto de um acampamento de obra: uma utopia (1981), ele se fundamenta na pedagogia freiriana para idealizar um acampamento-escola de arquitetura e construção, propondo-o como possível solução para a situação dos migrantes que chegavam a São Paulo. Cabe ressaltar outro paralelo de relevância para esta narrativa: Paulo Freire atuou como secretário de Educação de São Paulo durante a gestão de Luiza Erundina, quando foi implementado o Programa de Construção por Mutirão e Autogestão.
Na outra ponta da América Latina, ainda no cenário dos debates das décadas de 1950 a 1970, quando se estabeleceram marcos importante na capacitação profissional nos campos da habitação e do planejamento urbano, houve outro evento significativo para a construção dessa trama: a criação, em 1972, de uma nova estrutura acadêmica na Escola Nacional de Arquitetura da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), nomeada Autogobierno. A novidade surgiu em meio à efervescência dos movimentos universitários e buscava alinhar a escola ao contexto social e econômico das cidades mexicanas, distanciando-se das práticas e concepções elitistas da arquitetura e do urbanismo. O modelo de ensino era orientado por um plano de estudo, com ateliês e atividades de extensão que visavam a dar autonomia aos estudantes para interpretar como o conhecimento poderia ser produzido, estudado e aplicado. Os resultados alcançados foram compilados e publicados. Enquanto esteve vigente, o Autogobierno capacitou os alunos para atuar nas comunidades locais, elaborando planos de reabilitação urbana e desenvolvendo técnicas construtivas para a produção de habitação e equipamentos coletivos.
Patrícia Batista Freitag (2019) aponta que o VII Congresso da União Internacional de Arquitetos (UIA), realizado na capital cubana em 1963, foi um marco na formulação do Autogobierno. O evento, cujo tema era a arquitetura nos países em desenvolvimento, debateu a ineficiência dos modelos externos de planejamento nas nações subdesenvolvidas. Trabalhos realizados pelos ateliês da Escola de Arquitetura da Unam em comunidades mexicanas renderam à escola três premiações nos congressos seguintes da UIA - em 1968, 1981 e 1983 -, evidenciando o destaque que a produção intelectual latino-americana ganhou nos círculos internacionais, oferecendo soluções valiosas para o enfrentamento da problemática urbana.
FIOS DA TÉCNICA
No mesmo congresso de 1963 da UIA, emblemático para o Autogobierno, o arquiteto carioca Acácio Gil Borsoi apresentou seu projeto-piloto de moradia de taipa armada para o núcleo habitacional de Cajueiro Seco, no Recife. Financiado pelo governo estadual, sob o comando de Miguel Arraes, o projeto almejava abrigar quinhentas famílias que seriam retiradas de um terreno federal tombado (Souza, 2009). Para as moradias, Borsoi propunha um sistema construtivo modular, com painéis pré-fabricados de malha de madeira preenchida com barro, técnica tradicionalmente utilizada na região. Acompanhada por técnicos, a população fabricou os painéis de taipa in loco e, a partir deles, construiu as moradias, seguindo tipologias modulares adaptáveis às necessidades dos grupos familiares. Nos anos 1960, as moradias de Cajueiro Seco representaram um ponto de inflexão na produção de moradia pública em Pernambuco e no Brasil, envolvendo população e técnicos e respeitando os repertórios culturais e a capacidade de organização coletiva. Essa experiência é brevemente citada por Pedro Arantes (2002) quando trata do artigo sobre a Casa do Juarez que Rodrigo Lefèvre escreveu para o número 4 da ou - revista fundada pelos estudantes da FAU-USP em 1970 -, mas sem uma análise mais aprofundada de seus possíveis elos.
Outra experiência citada na bibliografia selecionada ocorreu no Peru, em 1966. Nesse ano, o governo de Fernando Belaúnde Terry lançou, com apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Proyecto Experimental de Vivienda (Previ). A iniciativa teve ampla repercussão internacional, com divulgação em meios respeitados no campo da arquitetura, e contribuiu para moldar outras visões significativas para a produção de moradia pública na América Latina após a Segunda Guerra Mundial (Ballent, 2004). O Peru já figurava em discussões intelectuais de arquitetura por suas barriadas, sobretudo em artigos do inglês John Francis Charlewood Turner, no início da década de 1960, em especial “Dwelling Resources in South America”, publicado na revista inglesa Architectural Design (Aravecchia-Botas; Castro, 2021). Turner apresentou estratégias de planejamento baseadas na observação desses assentamentos informais em escritos que influenciaram diversos profissionais - como o já citado Housing by People (1976).22
Por meio de um concurso internacional, cuja convocatória foi elaborada por Turner, o Previ solicitou o projeto de um bairro de 1,5 mil habitações de baixo custo, de um ou dois pavimentos e previsão de construção de um terceiro. O objetivo era elaborar tipologias de moradias “evolutivas” que se adaptassem aos modos de morar de famílias de baixa renda ao longo do tempo. Participaram do concurso equipes de arquitetos nacionais e internacionais, entre eles nomes conhecidos internacionalmente, como Christopher Alexander, James Stirling e Aldo Van Eyck, além de outros de expressão local, como Elsa Massari e Fernando Chaparro. O Previ materializou o espírito de colaboração técnica internacional vivenciada no continente, viabilizando a execução de um bairro de quinhentas moradias no qual foram aplicadas 26 soluções projetuais elaboradas pelos grupos competidores. A experiência foi emblemática por conseguir promover um debate global focado nos aspectos políticos e técnicos da produção de moradias sociais dentro da realidade latino-americana.
O concurso do Previ resultou em um leque de soluções técnico-construtivas para a produção de moradias “evolutivas”, que mesclavam tecnologias modernas a métodos artesanais locais e que se difundiram mundialmente por meio de publicações de grande alcance, como a inglesa Architectural Review, em 1970 (Ballent, 2004). As soluções apresentadas uniam a pré-fabricação a materiais abundantes na região, previam a elaboração de componentes construtivos econômicos e eficientes, aplicáveis a sistemas modulares. As peças foram produzidas em uma fábrica erguida no canteiro de obras. Estratégias correspondentes se manifestaram em produções mutirantes, como a Moradia Estudantil do Laboratório de Habitação da Unicamp em 1990 (Pompeia, 2007) e o mutirão Copromo em São Paulo, assessorado pela Usina CTAH em 1991 (Cerqueira, 2016).
Com as mesmas características dos levantamentos de Turner, o arquiteto e professor Carlos Lemos iniciava em 1965, na FAU-USP, uma pesquisa-piloto sobre a autoconstrução nos bairros periféricos, que estavam se expandindo. A pesquisa, dirigida em parceria com a socióloga Maria Ruth Amaral de Sampaio, também professora da FAU-USP, resultou no relatório Habitação popular paulistana, redigido entre 1970 e 1972, com o objetivo de fornecer dados sobre a casa ideal de nível popular e captar as expectativas dos moradores sobre diversos aspectos. Os pesquisadores buscaram “pesquisar as casas autoconstruídas de arrabalde, procurando dados úteis não só através de questionários, mas levantando e analisando as próprias construções e o uso que o habitante faz dela” (Lemos; Sampaio, 1977, s.n.). Eles realizaram um levantamento pioneiro dos materiais, das plantas, dos terrenos da ocupação periférica em 67 bairros paulistanos. É importante ressaltar que essa pesquisa foi retomada por Sérgio Ferro (1972) para indicar que a casa popular era “pobre” do ponto de vista construtivo não por uma “questão de gosto, higiene, estabilidade ou conforto: [mas como] resultado do baixo nível do consumo permitido por seu salário” (Ferro, 1972, p. 5).
A referência a esses outros autores busca levar esta reflexão de volta ao seu início: a proposta de uma trama de agentes, inclusive no âmbito da FAU-USP, que se conectam ao fio - sugerido por Pedro Arantes (2002) e reforçado por seus colegas paulistas - em torno do debate crítico dos anos 1960 e 1970 sobre a autoconstrução, realizado não apenas pelo arquiteto defensor da “função social” da arquitetura, Vilanova Artigas, mas por aquele que seria visto, décadas depois, como o “pai” intelectual dos mutirões: Sérgio Ferro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O esforço de fundamentar e elaborar uma trama latino-americana de produção de moradias públicas, que envolve a ação de técnicos e da população, mostrou um cenário político e econômico propício à implementação de políticas e instituições voltadas para o planejamento e desenvolvimento das cidades na América Latina, desde o pós-guerra. Esse período, caracterizado pela circulação intensa de intelectuais e especialistas pelo continente, viabilizou a formação de redes internacionais e multidisciplinares e intercâmbio de conhecimentos. A mobilização técnica, catalisada pelas universidades, resultou na formulação de teorias e estratégias de planejamento urbano e social que se alinhavam às particularidades regionais do continente. A crítica às políticas desenvolvimentistas, que em certo sentido geraram propostas de provisão habitacional estatal em larga escala,23 abriu portas para a revisão de soluções e a introdução da autoconstrução - e da autogestão - em programas públicos habitacionais, mesmo que em escala reduzida em comparação com o que já se havia construído. Contudo, houve também uma crítica desmesurada às ações de planejamento de moradia em larga escala. As bibliografias apontadas inicialmente, produzidas pelos acadêmicos formados na FAU-USP, destacam as relações construídas entre técnicos e movimentos populares na produção de moradia, em contraposição a outras práticas, a outras gerações de profissionais que atuavam na produção de habitação.
O registro dessas narrativas mostra que houve estímulo à capacitação de profissionais para assessorar comunidades, assim como ao desenvolvimento de técnicas construtivas baseadas na pré-fabricação para otimizar o trabalho nos canteiros compostos por mão de obra popular. O planejamento colocado em prática fundamentou novos paradigmas para a produção de moradia, ao introduzir ações populares nesse processo. As estratégias e experimentações se difundiram pelo continente por meio da intensa circulação de profissionais, publicações e eventos que, por suas semelhanças, impactaram direta ou indiretamente produções como as das cooperativas uruguaias e dos mutirões paulistanos.
O esforço de realizar essa “montagem genealógica”, por meio de um olhar historiográfico que se volta para recortes mais amplos, buscou recuperar eventos registrados em outras bibliografias e conectá-los. Apontar os nexos dos programas de mutirões com o expansionismo estadunidense, tensionando e dando maior complexidade ao campo da produção de habitação social latino-americana, também dá pistas sobre os limites dessas ações. Ao mesmo tempo, a discussão elaborada aqui revelou episódios, trajetórias e heranças que possivelmente não estavam evidentes no fio traçado pela literatura anterior e logrou integrar a produção mutirante de São Paulo a um contexto latino-americano de experimentações que vinham de antes, em meio a disputas políticas, esforços técnicos e articulações populares na busca por maior autonomia e emancipação.
Hoje, retomar essa produção e historicizá-la, evidenciando nexos, cruzamentos e paralelismos do ponto de vista crítico, permite fortalecer a própria formação dos arquitetos e urbanistas - que em seus projetos de assessoria técnica e extensão no campo da arquitetura e do urbanismo podem recuperar experiências, transformá-las e propor novos caminhos para a sua prática. Cabe ressaltar que a “trama” e seus “fios” seguem inacabados. O debate aqui proposto visava tão somente a apresentar uma proposta historiográfica e estimular novos esforços para a produção de conhecimento que possam partir de contextos e olhares mais diversos, enriquecendo o campo teórico e prático.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- Arantes, Pedro Fiori. Arquitetura Nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões. São Paulo: Editora 34, 2002.
-
Aravecchia-Botas, Nilce; Castro, Ana. “Fin de semana y loteamiento clandestino: aproximaciones al universo popular de la vivienda en São Paulo (1970-1990)”. Ensayo: Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorio, n. 2, 2021, pp. 13-35. Disponível em: <Disponível em: https://doi.org/10.18800/ensayo.202102.001 >. Acesso em: 13/5/2025.
» https://doi.org/10.18800/ensayo.202102.001 - Aravecchia-Botas, Nilce; Pino, Ana Montoya. “Del problema a la solución: orígenes de las políticas de urbanización en favelas y tugurios”. In: III Congreso de la Asociación Iberoamericana de Historia Urbana. Anais... Madri, 2022.
- Argan, Giulio Carlos. Projeto e destino. São Paulo: Ática, 1965.
- Artigas, João Batista Vilanova. A função social do arquiteto. São Paulo: Nobel, 1989.
- Ballent, Anahí. “Learning from Lima. Previ, Peru: habitat popular, vivienda masiva y debate arquitectónico”. Block, n. 6, 2004, pp. 86-95.
- Baravelli, José Eduardo. O cooperativismo uruguaio na habitação social de São Paulo: das cooperativas Fucvam à Associação de Moradia Unidos de Vila Nova Cachoeirinha. Dissertação (mestrado em arquitetura e urbanismo). São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2006.
- Benevolo, Leonardo. As origens da urbanística moderna. Lisboa: Presença, 1967.
- Bielschowsky, Ricardo. Cinquenta anos de pensamento na Cepal. Rio de Janeiro: Record, 2000.
- Bonduki, Nabil. Habitação e autogestão. Rio de Janeiro: Fase, 1992.
- Bonduki, Nabil. Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
- Bonduki, Nabil; Koury, Ana Paula. Os pioneiros da habitação social, v. 2: inventário da produção pública no Brasil entre 1930 e 1964. São Paulo: Ed. Unesp, 2014.
- Bonduki, Nabil; Rolnik, Raquel. Periferias: ocupação do espaço e reprodução da força trabalho. São Paulo: FAU-USP/Fundação para a Pesquisa em Arquitetura e Ambiente, 1979.
- Bortoluci, José Henrique. “A descoberta do viver periférico: articulações do popular na arquitetura paulista (1960-1980)”. Novos Estudos Cebrap, v. 3, n. 35, 2016, pp. 31-50.
- Camargo, Cândido Procópio Ferreira de et al. São Paulo, 1975: crescimento e pobreza. São Paulo: Loyola, 1976.
-
Cardoso, Fernanda Simon; Lopes, João Marcos de Almeida. “Assessoria e Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social: do discurso à construção da prática profissional”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 24, n. 1, 2022, pp. 1-24. Disponível em: <Disponível em: https://doi.org/10.22296/2317-1529.rbeur.202210pt >. Acesso em: 13/5/2025.
» https://doi.org/10.22296/2317-1529.rbeur.202210pt - Carvalho, Caio Santo de Amore. Lupa e telescópio: o mutirão em foco. São Paulo, anos 90 e atualidade. Dissertação (mestrado em estruturas ambientais urbanas). São Paulo: PPGFAU/Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2004.
- Cerqueira, Ícaro Vilaça Nunesmaia. As mil moradias. Arquitetura [e história] como processo na experiência da Usina CTAH junto à Associação por Moradia de Osasco. Dissertação (mestrado em história e fundamentos da arquitetura e do urbanismo). São Paulo: PPGFAU/Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2016.
- Espinoza, José Carlos Huapaya. “Reflexões sobre a forma urbana latino-americana: o aporte dos Congressos Pan-Americanos de Arquitetos e da Sociedad Interamericana de Planificación, 1920-1976”. Urbana, n. 7, 2015, pp. 63-88.
- Espinoza, José Carlos Huapaya. “[Re]Pensando a ‘cidade latino-americana’: a Sociedad Interamericana de Planificación (SIAP) e as discussões em torno dos assentamentos precários, 1964-1979”. In: I Congresso Iberoamericano de Historia Urbana. Anais... Santiago, 2016, pp. 383-91.
- Fernandes, Francisco Calazans; Terra, Antônia. 40 horas de esperança. O método Paulo Freire: política e pedagogia na experiência de Angicos. São Paulo: Ática, 1994.
- Ferro, Sergio. A casa popular. São Paulo: GFAU, 1972.
- Foucault, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história”. In: Foucault, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1998, pp. 12-22.
- Freitag, Patrícia Batista. Crítica e emancipação: a reforma do ensino de Arquitetura e Urbanismo na América Latina (1950-1980). Tese (doutorado em arquitetura e urbanismo). Brasília: PPGFAU/Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília, 2019.
- Gorelik, Adrián. “A produção da ‘cidade latino-americana’”. Tempo Social, v. 17, n. 1, 2005, pp. 111-33.
- Gorelik, Adrián. La ciudad latinoamericana: una figura de la imaginación social del siglo XX. Buenos Aires: Siglo XXI, 2022.
- Harris, Richard. “The Silence of the Experts: ‘Aided Self-Help Housing’, 1939-1954”. Habitat International, v. 22, 1998, pp. 165-89.
- Hirao, Flávio Higuchi. A autoconstrução nos labirintos da autonomia: um estudo a partir do Chile. Tese (doutorado em história e fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo). São Paulo: PPGFAU/Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2024.
- Jacques, Paola Berenstein. Fantasmas modernos: montagem de uma outra herança. Salvador: Edufba, 2020.
- Jacques, Paola Berenstein; Pereira, Margareth da Silva. Nebulosas do pensamento urbanístico: 3 tomos. Salvador: Edufba, 2018.
- Lefèvre, Rodrigo. Projeto de um acampamento de obra: uma utopia. Dissertação (mestrado em estruturas ambientais urbanas). São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 1981.
- Lemos, Carlos; Sampaio, Maria Ruth Amaral de. Habitação popular paulistana. Relatório de Pesquisa. São Paulo: FAU-USP, 1977.
- Liernur, Jorge Francisco. “Mutaciones de cancer a capricornio”. Estudios del Hábitat, v. 13, n. 1, 2015, pp. 1-60.
- Lima, Apoenna Caetano. Em busca do conjunto Paulo Freire: uma construção historiográfica latino-americana das ações do Estado, técnicos e população na produção de habitação social (1950-1990). Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). João Pessoa: PPGFAU/Universidade Federal da Paraíba, 2023.
- Lopes, João Marcos de Almeida. Sobre arquitetos e sem-tetos: técnica e arquitetura como prática política. Tese (livre-docência em arquitetura e urbanismo). São Paulo: PPGFAU/Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2011.
- Maricato, Ermínia (org.). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo: Alfa Omega, 1982.
- Nogueiras, Luís M. La práctica y la teoría del desarrollo comunitario: descripción de un modelo. Madri: Narcea, 1996.
- Negrelos, Eulalia Portela. Estado, planejamento e habitação no Brasil entre as décadas de 1960 e 1980. A forma urbana conjunto habitacional no quadro da crítica ao movimento moderno. Tese (livre-docência em arquitetura e urbanismo). São Carlos: Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2019.
- Oliveira, Francisco de. “O vício da virtude: autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil”. Novos Estudos Cebrap, n. 74, 2006, pp. 67-85.
- Paez, Jorge Alberto Rivera. El Cinva: un modelo de cooperácion técnica (1951-1972). Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2002.
- Pino, Ana Montoya; Aravecchia-Botas, Nilce; Ramirez, Gustavo. “Vivienda y desarrollo en el Cinva. La planificación integral en términos latinoamericanos”. In: Pino, Ana Montoya; Ramirez, Jorge; Aravecchia-Botas, Nilce (orgs.). Cinva: un proyecto latinoamericano 1951-1972. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2024, pp. 189-262.
- Pompeia, Roberto Alfredo. Os laboratórios de habitação no ensino da arquitetura: uma contribuição ao processo de formação do arquiteto. Tese (doutorado em tecnologia da arquitetura). São Paulo: PPGFAU/Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2007.
- Rolnik, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.
- Santos, Carlos Nelson Ferreira dos. Movimentos urbanos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
- Silva, Maria Laís Pereira. “O arquiteto que virou antropólogo: Carlos Nelson Ferreira dos Santos”. In: Freire, Américo; Oliveira, Lúcia Lippi (orgs.). Capítulos da memória do urbanismo carioca: depoimentos ao CPDOC/FGV. Rio de Janeiro: Folha Seca, 2002, pp. 105-17.
- Souza, Diego Beja Inglez. Reconstruindo Cajueiro Seco: arquitetura, política social e cultura popular em Pernambuco (1960-64). Dissertação (mestrado em história e fundamentos da arquitetura e do urbanismo). São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2009.
- Tafuri, Manfredo. Projecto e utopia: arquitetura e desenvolvimento do capitalismo. Lisboa: Presença, 1985.
- Vilaça, Ícaro; Constante, Paula (orgs.). Usina: entre o projeto e o canteiro. São Paulo: Aurora, 2016.
-
1
Este artigo apresenta o resultado da pesquisa de mestrado Em busca do conjunto Paulo Freire: uma construção historiográfica latino-americana das ações do estado, técnicos e população na produção de habitação social (1950-1990) defendida no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba. A pesquisa contou com apoio e financiamento da Capes.
-
2
Lógica fundamentada em Raquel Rolnik (2015).
-
3
Fernanda Simon Cardoso e João Marcos de Almeida Lopes (2022) discorrem sobre a disputa de sentido entre os termos “assessoria” e “assistência”, por vezes utilizados como sinônimos. “Assessoria técnica” foi o termo adotado pelos grupos que se consolidaram no trabalho com os mutirões em São Paulo. “Assistência técnica” se consolidou em nível nacional desde que foi sancionada a Lei federal n. 11.888, conhecida como Lei de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social. Os autores apontam que existem diferenças fundamentais entre os termos, pela semântica e pela designação de ações distintas.
-
4
Entre 1968 e 1973, o país registrou taxas de crescimento de 11% ao ano.
-
5
As ações do laboratório de habitação da Faculdade de Belas Artes, assim como de outros laboratórios que atuaram em São Paulo na década de 1980, foram documentadas por Roberto Alfredo Pompeia (2007).
-
6
O engenheiro Guilherme Coelho formou-se pela Escola Politécnica da USP, foi a Montevidéu em 1981, em razão de seu trabalho de pós-graduação e lá documentou o funcionamento das cooperativas. Ao retornar, peregrinou por faculdades e bairros da periferia paulistana exibindo seu filme Super-8, desenvolvido a partir da filmagem de edifícios e entrevistas, numa militância em busca da adesão de técnicos e movimentos sociais ao modelo. A dimensão mística de sua figura foi incrementada por seu trágico falecimento em um acidente automobilístico em 1981 (Carvalho, 2004). Referindo-se a Guilherme Coelho, diria a professora Ermínia Maricato que “parece incrível dizer que a figura de uma pessoa pode mudar o movimento de moradia, mas isso aconteceu”, em um evento realizado no Centro Universitário Maria Antonia, em 2022. Arquitetos engajados que trabalharam nas assessorias técnicas em diálogo com os movimentos de moradia narraram as próprias vivências como parte desse processo (cf. Bonduki, 1992; Carvalho, 2004; Baravelli, 2006).
-
7
A Usina CTAH foi fundada em 1990 por arquitetos vinculados ao laboratório de habitação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que procuraram expandir sua prática profissional para além da universidade. Desde então, o grupo desenvolveu um amplo repertório na condução de mutirões autogeridos. A Peabiru Trabalhos Comunitários e Ambientais foi criada em 1993 por profissionais que, desde a graduação, ansiavam por atuar nas frentes engajadas com os movimentos sociais. As duas assessorias são organizações sem fins lucrativos, compostas por equipes multidisciplinares, que atuam na elaboração de projetos de habitação popular, na urbanização de favelas e regularização fundiária em processos participativos, que incluem a experimentação de técnicas construtivas e a otimização do trabalho em canteiro.
-
8
Publicando em 1981 o livro Movimentos urbanos no Rio de Janeiro, com o capítulo “Quando não há saída, pelo menos há janelas: a experiência da favela Brás de Pina” (Santos, 1981).
-
9
João Marcos de Almeida Lopes (2011) cita tais experiências, porém não as aprofunda, deixando-as apenas mencionadas.
-
10
Paola Berenstein Jacques e Margareth Pereira - inspiradas por Foucault, entre outros pensadores - vêm desenvolvendo um projeto historiográfico coletivo materializado na plataforma Cronologia do Pensamento Urbanístico e no livro Nebulosas do pensamento urbanístico (2018), nos quais debatem a perspectiva cronológica linear e propõem outras miradas sobre a história do urbanismo e da arquitetura.
-
11
A figura da trama é recuperada do trabalho de Anahí Ballent (2004). No artigo sobre o concurso promovido pelo Proyecto Experimental de Viviendas (Previ), realizado no Peru no final da década de 1960, a autora buscou revelar como o episódio que resultou em uma colagem, na verdade, é uma trama. Intelectuais peruanos fizeram de Lima um importante lócus de debate sobre cidade e habitação naquele período. Porém, a revista inglesa Architectural Review, em sua capa, apresentou uma colagem que atribuía protagonismo aos arquitetos do eixo norte-atlântico, retratados como se estivessem “ensinando” os latino-americanos a ler seus pobres urbanos (Ballent, 2004).
-
12
A busca foi realizada a partir das palavras-chave produção habitacional, mutirão, assessoria técnica, participação popular, autogestão, desenvolvimento comunitário e planejamento urbano. A pesquisa foi realizada em acervos físicos (bibliotecas e arquivos das Universidades Federais da Paraíba e de Campina Grande, da FAU-USP, e da Usina CTAH) e digitais (Academia, ResearchGate, Google Acadêmico, Scielo, Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP, Acervo Paulo Freire, Mostra Memórias da Educação, Acervo El Correio da Unesco, Acervo Raices Digital, Acervo Acácio Gil Borsoi, Acervo de Publicações de John F. C. Turner, Acervo Revista Arquitetura, Portal Vitruvius).
-
13
A Unesco foi fundada em 1946 como um braço da ONU para questões culturais. Publicado em 1950, após ampla pesquisa realizada em países latino-americanos, o Statement on Race declara não haver base científica ou justificativa para o preconceito racial.
-
14
A Cepal, criada em 1948 como uma das cinco comissões regionais da ONU e sediada em Santiago do Chile, teve os economistas Raúl Prebisch (argentino) e Celso Furtado (brasileiro) como dois de seus principais teóricos. Desenvolvendo um amplo programa de pesquisas, defendeu políticas de desenvolvimento regional que garantissem a autonomia e a soberania dos países da região (Bielschowsky, 2000).
-
15
A OEA, atuante nas nações latino-americanas desde a sua fundação, em 1948, era vinculada à ONU.
-
16
O BID é uma instituição financeira internacional criada em 1959, com a finalidade de financiar projetos nos países da América Latina e do Caribe que promovessem o desenvolvimento econômico e social dessas regiões.
-
17
Também o Centro de Estudios del Desarrollo (Cendes), da Venezuela, o Centro de Estudios Urbanos y Regionais (Ceur), da Argentina, e o Centro de Investigaciones en Desarollo Urbano (Cidu), do Chile.
-
18
O desarrollo comunal, ou “desenvolvimento comunitário”, é descrito por Nogueiras (1996) como um processo de fomento à melhoria da qualidade de vida de populações carentes por meio da participação voluntária, consciente e responsável dos indivíduos na resolução de seus próprios problemas. Nas ações coletivas, a colaboração de agentes técnicos se faz necessária.
-
19
Prensa desenvolvida no Cinva na década de 1950, pelo engenheiro chileno Raul Ramirez, para a produção de blocos de construção.
-
20
Nesse sistema, as etapas construtivas convencionais são invertidas. A escada metálica é colocada logo após a etapa de fundação e antes da construção das alvenarias, servindo de guia para o prumo e andaime para levantar pisos e paredes, além de auxiliar na locomoção e no transporte de materiais no canteiro pelos mutirantes.
-
21
Ações voltadas para o desenvolvimento rural pela educação possuíam antecedentes no continente, como as Missões Culturais Mexicanas de 1923, as Missões Rurais de Educação da Unesco de 1948 e o Movimento de Educação de Base da Igreja Católica do Brasil de 1961.
-
22
Mais tarde, essas estratégias foram mobilizadas por arquitetos e urbanistas do Grupo Quadra, que prestou assessoria na urbanização e produção de moradias em favelas do Rio de Janeiro, na década de 1960, notadamente na comunidade Brás de Pina (Silva, 2002).
-
23
Teve início no Brasil com os institutos de aposentadoria e pensão (Bonduki; Koury, 2014) e alcançou seu auge com os financiamentos do BNH e o Sistema Nacional de Habitação, povoando as periferias das grandes cidades com imensos conjuntos habitacionais baseados nos preceitos modernistas rebaixados: seriação, componentes industrializados, mas, ao mesmo tempo, vãos pequenos, áreas externas pouco trabalhadas, resultando na massificação da paisagem.
-
Declaração de Disponibilidade de Dados:
os dados de pesquisa estão disponíveis em repositórios como citados nas referências bibliográficas do presente artigo
Disponibilidade de dados
os dados de pesquisa estão disponíveis em repositórios como citados nas referências bibliográficas do presente artigo
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Out 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
19 Jun 2024 -
Aceito
20 Maio 2025
