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NÃO MORTE, PENSAMENTO E VIDA EM “O FILHO DE SAUL”

Non Death, Thinking and Life in “Son of Saul”

RESUMO

Este texto analisa o filme O filho de Saul (László Nemes, 2015O filho de Saul. Direção László Nemes. 2015. 107 minutos. Colorido. Hungria.), tomando como objeto de reflexão a relação que seu protagonista estabelece com a morte e com a atividade do pensar na situação de exceção em que se encontra (campo de extermínio; membro do Sonderkommando). Para tanto, destacaremos os movimentos de câmera, em particular, e exploraremos as noções de morte/não morte, pensamento e revolta, com base em Agamben, Arendt e Camus.

PALAVRAS-CHAVE:
O filho de Saul; análise de filme; morte; vida; pensamento

ABSTRACT

This paper analyzes the film Son of Saul (László Nemes, 2015O filho de Saul. Direção László Nemes. 2015. 107 minutos. Colorido. Hungria.), focusing on how the leading character relates to death and thinking in the exception situation he is (an extermination camp; member of Sonderkommando). For that, we will highlight, in particular, the camera movements and explore the notions of death/non-death, thought and revolt, from Agamben, Arendt and Camus.

KEYWORDS:
Son of Saul; film analysis; death; life; thinking

INTRODUÇÃO

Primo Levi apontou, em Os afogados e os sobreviventes, que a concepção dos Sonderkommandos [comandos especiais] foi o “delito mais demoníaco do nacional-socialismo”, o “caso-limite de colaboração”, pois o carrasco transferia “para as vítimas o peso do crime, de modo que para o consolo delas não ficasse nem a consciência de ser inocente” (Levi, 2004______. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Trad. Luiz Sergio Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004., pp. 45-6). A compreensão dos atos e ações de pessoas envolvidas nesses comandos coloca-nos, ainda nos termos de Levi, ante uma “zona cinzenta”, arredia à inteligibilidade (Levi, 2004______. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Trad. Luiz Sergio Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004., p. 32). É justamente aí que se situa o personagem judeu húngaro do filme objeto de nossa análise.

A trama de O filho de Saul (László Nemes, 2015Nemes, László; Baecque, Antoine de. “Interview with László Nemes”. Cinéart, Amsterdã, 2015.) encena as atividades cotidianas dos membros do Sonderkommando de Auschwitz-Birkenau, além de fazer menção a ao menos três eventos encontrados na literatura a respeito do assunto: uma pessoa que sobreviveu à câmara de gás, foi resgatada, reanimada e, em seguida, assassinada; a explosão de um dos crematórios, com tentativa de fuga de membros do comando; e o instante em que uma máquina fotográfica é utilizada por um prisioneiro para registrar o que se passava no campo.1 1 Em entrevista a Antoine de Baecque sobre esse que é seu primeiro longa-metragem, Nemes aponta a colaboração de historiadores, dizendo também que a ideia de realizar o filme veio depois da leitura de Des Voix sous la cendre: manuscrits des Sonderkommandos d’Auschwitz-Birkenau [Vozes sob as cinzas: manuscritos dos Sonderkommandos de Auschwitz-Birkenau], que reúne textos enterrados por participantes do Sonderkommando em Auschwitz-Birkenau (Nemes; Baecque, 2015). Sobre os três eventos, fazendo referência à bibliografia que mobilizamos, ver: Levi (2004, p. 47), a respeito da menina que sobreviveu à câmara (aspecto mencionado no filme, embora a trama gire em torno de um menino); da revolta em Birkenau, em 7 de outubro de 1944, ver Gilbert (2010, pp. 792-9), Hilberg (2016, pp. 1.215-6) e Levi (2004, pp. 42-51); quanto à fotografia atribuída a Alberto Errera (Alex), tirada em agosto de 1944 em Auschwitz-Birkenau, ver Didi-Huberman (2016, pp. 18-21). O que nos leva até O filho de Saul, contudo, não é a discussão acerca da relação entre perpetradores e vítimas nem o problema da encenação dos três eventos acima mencionados. Se, consoante Pierre Sorlin (1985Sorlin, Pierre. Sociología del cine: la apertura para la historia de mañana. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1985., p. 49), “não existe uma significação inerente ao filme: são as hipóteses da investigação que permitem descobrir certos conjuntos significativos”, instiga-nos o modo como, no filme em questão, aparece construído o personagem principal. Ao tentar enterrar dignamente o corpo de alguém que diz ser seu filho, Saul Ausländer opera um ato de pensamento e de revolta que redefine o lugar da morte. Trata-se de fazer o filme “falar”, de modo a pôr em relevo, dado o nosso recorte, não o que o filme “pretende” dizer, mas “o que” e “como” diz (Sorlin, 1985Sorlin, Pierre. Sociología del cine: la apertura para la historia de mañana. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1985., pp. 62-3).

SOBRE OS MOVIMENTOS DE CÂMERA

Comecemos pela abertura. O filme tem início com uma série de telas escuras nas quais são anunciadas a produção e a direção, seguidas, imediatamente, de outra tela, onde lemos a definição da palavra Sonderkommando: “Expressão alemã. Termo utilizado nos campos de concentração para designar prisioneiros com status especial, também chamados de ‘portadores do segredo’ (Geheimnisträger). Os membros de um Sonderkommando eram separados dos outros. Eram mortos após alguns meses de trabalho”.

O destaque dado à definição do termo pode ser notado não apenas pela tela inteira que ocupa, mas sobretudo pelo bloco de aproximadamente sete minutos que a sucede até que o título apareça em nova tela escura: Saul fia. Esse trecho, como se estivesse colocado entre parênteses, traz-nos, além do personagem Saul e dos aspectos afeitos à função que ele realiza, algumas particularidades tocantes, por exemplo, aos sons e ruídos (os quais não exploraremos a fundo) e à posição e aos movimentos da câmera.

Demoremo-nos um pouco sobre esse bloco de sete minutos da abertura. Nele encontramos aspectos fundamentais referentes não propriamente ao conteúdo do que é mostrado, e sim ao “como”. Falamos dos movimentos e dos posicionamentos da câmera. Após a tela que traz a definição do Sonderkommando, em um plano fixo, ligeiramente borrado, fora de foco, conseguimos identificar, no fundo, algumas árvores, mas não as silhuetas em movimento. A imagem fora de foco dura o tempo necessário para que o personagem (logo saberemos tratar-se de Saul) avance em direção à câmera, preenchendo com seu rosto quase todo o plano - ainda que as silhuetas permaneçam se movimentando, sem nitidez, ao fundo. O personagem precipita-se a dirigir/organizar/ajudar um grupo de pessoas que parecem ter chegado de trem - como notamos pelos vários ruídos presentes na sequência, a maior parte deles no extracampo. O grupo cruza o plano, e, embora vejamos as pessoas rapidamente, logo percebemos que a imagem delas também passa por regiões de nitidez e de indistinção. Estamos, assim parece, no meio de um jogo entre as porções do plano que são vistas nitidamente e as que não o são, sendo o personagem Saul (ou, às vezes, a sua perspectiva) uma espécie de chancela do que pode ou não ser visto claramente.

Se a câmera que passou a seguir os passos de Saul, operando muitas vezes bem próxima ao personagem, permitiu-nos identificar a chegada de várias pessoas carregando pertences, também o identifica como judeu e membro do Sonderkommando, pois a roupa que veste o classifica (um casaco puído, marcado com a letra xis grafada em vermelho, cobre-lhe as costas, e com um pedaço de pano, triangular, amarelo, costurado no peito). As pessoas são dirigidas para o interior de um vestiário, cruzando o espaço entre Saul e a câmera. Quando a porta é trancada, uma nova tela escura surge, agora graças ao primeiro plano da porta fechada. O corte, contudo, não interdita o acesso ao interior desse espaço, ao contrário, pois a câmera muito próxima a Saul continua mostrando porções de visibilidade nítidas e não nítidas, cujo efeito, por um lado, oferece um campo visual limitado e, por outro, sublinha certos detalhes: os gestos do personagem (diligente tanto em observar e ajudar as pessoas que se despem como, logo constataremos, em as conduzir à câmara de gás, limpando o ambiente em seguida), a presença de guardas uniformizados, homens e mulheres nus que cruzam seu caminho. Os planos mais estreitos, o fato de Saul permanecer como foco, a oscilação entre zonas nítidas e indistintas no mesmo quadro, tudo isso parece fazer da câmera uma observadora irrequieta dos acontecimentos, colaborando para açular a imaginação acerca do que não é claramente mostrado. Segundo Ilana Feldman, “parte desse efeito de restrição do campo visual é proporcionado pela tela quadrada, no formato reduzido do 1:37 e pela utilização de uma única lente objetiva de 40 mm, os quais, além de se contrapor ao excesso de visibilidade do cinemascope, produz no espectador uma sensação de asfixia e confinamento” (Feldman, 2016Feldman, Ilana. “Imagens apesar de tudo: problemas e polêmicas em torno da representação, de Shoah a O filho de Saul”. ARS, São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 135-53. Disponível em: <Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2178-0447.ars.2016.124999 >. Acesso em: 27/2/2020.
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, p. 150).

Assim, não se trata apenas de porções do plano que estão fora de foco, prejudicando a visibilidade, há também o que não pode ser visto “inteiramente”, mesmo quando ocupa a sua porção bastante nítida, como se a parte que nos é dada a olhar fosse fruto de uma câmera que, mesmo quando oferece imagens claras, raramente nos coloca ante um plano aberto para mostrar o que ali se encena. É como se aquilo que pudéssemos identificar com clareza estivesse restrito ao (e confundido com o) provável foco que Saul dirige às pessoas e às coisas enquanto executa suas funções como membro de um Sonderkommando. Tal estreitamento parece sugerir não apenas a particularidade da sua condição de prisioneiro que leva outros prisioneiros à morte, não apenas o fato de saber que estes serão eliminados na sequência dos protocolos que têm por objetivo melhor organizar o sistema e fazer fluir o trabalho de produção de cadáveres,2 2 Agamben (2013, p. 78) usa a expressão “produção em cadeia”, retirada de Raul Hilberg. Na tradução brasileira do livro de Hilberg, ela aparece como “esteira industrial” (“am laufenden Band”) (Hilberg, 2016, pp. 1.198-9). mas também o caráter de segredo a envolver tal engrenagem, que liga o extermínio em série de seres humanos com o apagamento de vestígios desse crime. O que nos é mostrado, assim, é menos o que poderia estar na perspectiva de um prisioneiro, fosse ou não Saul, e mais o que ele vê e ouve no seu cotidiano de trabalho como membro de um Sonderkommando - e que deveria permanecer para sempre em segredo.

Na sequência, as pessoas, agora despidas, são conduzidas a um novo compartimento. Outra porta se fecha, e, paulatinamente, a cena é preenchida com gritos, choros e batidas nervosas. São os gritos desesperados dos donos das roupas que agora ouvimos, os mesmos que haviam sido convencidos a pendurarem-nas organizadamente em ganchos, para recuperá-las depois do banho,3 3 Pretexto que aparece também no depoimento de Filip Müller, em Shoah, e servia, como apontou Gilbert (2010, pp. 725-6, 945), baseado no relato de Yehuda Bacon, para “acalmá-los, para confundi-los” após a viagem em “vagões selados”. Nas palavras de Hilberg (2016, p. 1.204) sobre tais “cuidados”: “Em Birkenau, o embuste era a regra”. as mesmas roupas que agora vemos Saul apalpar e revirar em busca de objetos de valor. Enquanto a intensidade dos gritos aumenta, ele se dirige novamente à porta da câmara de gás e aguarda. Corte e nova tela escura. Silêncio. No centro, surge o título Saul fia. Quando a sequência for retomada, Saul e a câmera já estarão dentro daquele espaço, limpando-o para novo uso.

Qual a razão de nos termos detido nesse bloco para falar da câmera, se o processo descrito, qualquer que seja o ângulo pelo qual se o aborde, é tão aterrador? Qual o motivo de falar de zonas de oscilação e de nitidez no plano, se estamos diante de um personagem que é partícipe de um Sonderkommando, cuja função nos campos de extermínio fez Primo Levi caracterizar seus membros justamente como habitantes de uma “zona cinzenta”?4 4 “Zona cinzenta” está para confundir ou problematizar a propensão à simplificação dos fenômenos históricos. No caso específico de que trata Levi (2004, p. 32), “a rede de relações humanas no interior dos Lager: não se podia reduzi-la a dois blocos, o das vítimas e o dos opressores”. O que ali se via “não era conforme a nenhum modelo, o inimigo estava ao redor, mas também dentro, o ‘nós’ perdia seus limites, os contendores não eram dois, não se distinguia uma fronteira mas muitas e confusas, talvez inúmeras, separando cada um do outro”. Em primeiro lugar, porque não abordaremos diretamente o que é aterrador no “campo”, mas um acontecimento particular na vida de um desses prisioneiros, a relação que ele estabelece com o corpo de um menino que sobrevive à câmara de gás. Em segundo, porque nos interessa o modo como essa relação está construída expressivamente no filme, com destaque para os movimentos de câmera, de modo a discutir a dimensão da revolta na qual mergulha o protagonista.

Decerto, não ignoramos que nas muitas leituras já produzidas sobre o filme destaca-se o trabalho de câmera. Como observa Márcio Seligmann-Silva (2016Seligmann-Silva, Márcio. “O filho de Saul, de László Nemes: um novo mito de Auschwitz?”. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG, Belo Horizonte, v. 10, n. 18, 2016. Disponível em: <Disponível em: http://dx.doi.org/10.17851/1982-3053.10.18.285-290 >. Acesso em: 27/2/2020.
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, pp. 1, 3), o diretor “incorpora 50 anos de debate sobre como filmar Auschwitz” e busca fazê-lo de maneira “por assim dizer ética”, com uma “câmara na mão diegética nervosa que nos guia e contagia”. Na leitura do autor, contudo, “a opção do primeiríssimo plano [...] que tinge o filme com o voyeurismo que se queria evitar” e a fixação do personagem com a ideia do sepultamento, que funciona como “a construção clássica da hybris”, colaboram para colocar Auschwitz para fora da história, no mito.5 5 Sob outra perspectiva, Feldman (2016, pp. 150-1) destaca, além da importância do kadish (“a reza aos mortos”) e da dimensão alegórica do filme, o modo como “a tragédia coletiva e a loucura pessoal assumem ares de parábola bíblica”, o que o afastaria do mito. A autora faz, junto com a análise do filme, uma preciosa incursão pelo debate em torno da questão da representação do inimaginável, ou da reflexão “sobre as aporias inerentes a toda tentativa de pensamento e representação após a catástrofe” (p. 144), mobilizando reflexões de Lanzmann, Didi-Huberman e Seligmann-Silva, entre outros. O filme, para a autora, “atualiza e elabora o debate entre forma e política, ética e estética que tem marcado o cinema a partir do pós-guerra” (p. 149). Em outra vertente, Didi-Huberman aponta que a escolha da câmera revela um cuidado “fenomenológico” e evita a “profundidade de campo visual” que somente um “SS destinado ao mirador poderia pretender” e cujo resultado seria um “nada olhar humanamente” (Didi-Huberman, 2016Didi-Huberman, Georges. Sortir du noir. Paris: Les Éditions de Minuit, 2016., pp. 28-9, grifo do original). Segundo Jacques Aumont (2017Aumont, Jacques. Attrait de l’oubli. Crisnée: Yellow Now, 2017., p. 77), a câmera poderia criar um “universo plástico” autônomo com risco de formalismo. Para nós, o trabalho de câmera será também crucial, mas em uma direção particular, ou seja, para tratar do evento singular que, ao mobilizar o personagem ao longo do filme, finda por reinseri-lo numa dimensão temporal.

Continuemos. Logo após o surgimento do título, vemos o personagem limpando o que breve identificaremos como sangue e, em seguida, como o local onde as pessoas haviam sido trancadas e assassinadas. Compreensão viabilizada pelo surgimento, no campo visual de Saul, de um corpo inerte, depois outros, todos nus, arrastados e amontoados pelos companheiros de Sonderkommando. Mais adiante, e frisemos este ponto, ao descobrir que alguém sobreviveu, a câmera passa a se movimentar como se desdobrasse e revelasse, no seu movimento, um outro olhar, um olhar que tudo acompanha. A diferença entre esses dois momentos pode ser notada já na sequência em que, após o corpo ser levado até uma sala contígua, temos um corte e podemos ver, nitidamente, o corpo de um menino (da cintura para cima) e, em seguida, o rosto de Saul, permitindo que identifiquemos não apenas o que o personagem olha e em qual direção, mas como o faz.6 6 Ao falar do plano ponto de vista, aquele no qual “vemos o que um personagem vê de seu ponto de vista”, Branigan menciona que, em um dos seus usos, “não apenas vemos o que o personagem vê, mas como o vê” (Branigan, 1984, pp. 2, 6, grifo do original). Ainda que ele se refira, nessa passagem, a imagens superexpostas, o que não é o caso de O filho de Saul, consideramos importante sublinhar essa ideia do “como se olha”. Nota-se que é por um enquadramento diverso daqueles que acompanhamos até agora que vemos o médico nazista examinar e assassinar (novamente) o menino, pois, conquanto o acontecimento se passe no fundo da tela, longe de Saul, o plano é nítido, como a qualificar o que ele vê - não mais o corpo morto de um menino, mas o de um menino que, ao logo da história, ele assegurará ser seu filho.

Ao final, voltaremos a abordar mais detidamente a câmera. Agora, no entanto, é preciso enveredar pelas reflexões suscitadas por essa singular construção fílmica.

A NÃO MORTE E A VIDA ANIQUILADA

Insistamos: os enquadramentos dominantes no filme parecem ser de uma câmera muito próxima a Saul, e é assim que assistimos ao processo em que os prisioneiros recém-chegados são preparados para a morte com rapidez e senso de eficácia perturbadores. Essa eficiência que rege o modo como os condenados são organizados antes de entrarem na câmara de gás se impõe igualmente aos corpos que se acumulam e à sujeira resultante dos procedimentos ao final da execução, cujos vestígios devem ser apagados com urgência.7 7 Para uma descrição das incumbências desses prisioneiros, ver Agamben (2013, p. 34). Na sucessão de imagens nem sempre nítidas em que essas atividades são encenadas, o que se desvela em paralelo é o assasinato em série e, em consequência, o aspecto que transborda nessa sucessão imagética é a produção de mortos. Com efeito, no filme, a morte está por todos os lados, mas o implícito nesses quadros desconcerta. Aos olhos dos membros do Sonderkommando, mais especificamente, sob a perspectiva do protagonista, o morrer - nos moldes em que se dá na tela, parece nada ter de sinistro ou impactante, o que nos força a interpelar como, no filme, está construída a natureza dessa morte que prolifera em Birkenau.

Antes de nos determos mais precisamente no modo pelo qual esses elementos despontam e se radicalizam em O filho de Saul, uma pequena digressão se impõe. No tocante à morte em série perpetrada nos campos de extermínio, como já notou Agamben em O que resta de Auschwitz, não estamos a uma distância visceral apenas da morte celebrada por Rainer Maria Rilke em Os cadernos de Malte Laurids Brigge, mas também da natureza assumida pela morte na sociedade moderna. No que tange a Rilke, a antinomia é absoluta. A presença mórbida e avassaladora dos corpos mortos que acompanhamos no campo de extermínio, como aquele em que se encontra Saul, nada tem a ver com a experiência descrita pelo poeta, na qual a finitude singular e única inscrita em cada sujeito, sendo intrínseca a este, ocorre em profunda consonância com sua história e a síntese de cada um, permitindo que um indivíduo, ao morrer, permaneça fiel a si próprio. No que tange ao lugar da morte na sociedade moderna, vale lembrar que a conotação significativa será sacrificada em prol de uma produtividade acelerada que toma conta de todas as esferas da vida, de sorte que o morrer não mais se conecta a um momento que viabiliza a transmissão de experiência. Será tratado como acontecimento quantitativo conveniente à lógica racional produtivista, como já denunciado, notou Agamben, pelo próprio Rilke, ao aludir à perda do sentido da morte como experiência que deixa de ser única e intransferível para se transformar em quantidade (Rilke apudAgamben, 2013______. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 79).

Agamben evoca uma entrevista de Hannah Arendt na qual ela observa que o produto dos campos não era a morte, mas uma profusão inimaginável de cadáveres fabricados em série, perspectiva até certo ponto por ele contemplada: “a ‘fabricação de cadáveres’ implica que aqui já não se possa propriamente falar de morte, que não era morte aquela dos campos, mas algo infinitamente mais ultrajante que a morte” (Agamben, 2013______. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 78). Mas, se não era a morte, o que ocorria também não se esgotava na produção de cadáveres e aprofundava o ultraje já perpetrado pela serialização dos corpos. Decerto, ratifiquemos, podemos identificar, no contexto moderno, um processo em que a morte perde importância, em que é aviltada e padronizada. Mas a morte que impera e se generaliza nos campos de extermínio, mais particularmente em Auschwitz, supera esse aviltamento. Ora, o que seria essa verticalização do ultraje? Pela lente de Agamben, nos campos não bastava que a morte fosse destituída de significado, serializada, transformada em coisa a ser administrada. Algo mais abissal do que uma produção quantitativa de cadáveres sem morte ali se efetivou, a saber, um processo de ordem qualitativa, produtor da indistinção entre a morte e o “simples desaparecer”. Uma não morte, pois. Nos termos do autor: “Onde o pensamento da morte foi materialmente materializado, onde a morte era ‘trivial, burocrática e cotidiana’ [Primo Levi], tanto a morte como o morrer, tanto o morrer como os seus modos, tanto a morte como a fabricação de cadáveres se tornam indiscerníveis”(Agamben, 2013______. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 82). Em outra de suas obras, o autor sustenta que essa experiência histórica se consumou não apenas como estado de exceção, ou seja, fora dos cânones do direito ordinário, mas como a mais radical “condicio inhumana” já realizada (Agamben, 1996Agamben, Giorgio. “Che cos’è un campo?” In: Mezzi senza fine. Turim: Bollati Boringhieri, 1996.).

Tomando como base essa leitura, mas dando um passo adiante, poderíamos considerar que a situação vivida pelos personagens é aquela em que os prisioneiros não morrem não apenas porque têm como destino “o ser liquidado”, para ficarmos com Agamben, mas porque já estariam mortos antes de morrer. É assim que, ao ser questionado por suas atitudes, as quais colocariam a vida de seus companheiros em risco, a resposta de Saul é emblemática: “Já estamos mortos”. Pontuemos que, no quadro construído no filme, no qual os membros desse comando, cônscios de uma morte certa, vivem uma não vida (nesse sentido, inclusive, diferente dos outros prisioneiros que chegavam de trem aos campos), o processo de extinção - em que o morrer já não se diferencia do desaparecer ou de ser liquidado - deve ser conduzido de modo a não deixar vestígios. Destarte, interessa-nos ressaltar precisamente o modo pelo qual o filme constrói esse sistema em que a morte é subvertida em níveis inimagináveis em decorrência de um processo de desumanização que opera a indistinção entre os mortos e os vivos.

Sob essa pespectiva, se o direito de morrer é erradicado, é porque impera uma dinâmica empenhada em eliminar a própria humanidade dos prisioneiros. As imagens pouco nítidas ou de pouca amplitude que acompanhamos no filme não deixam de sugerir o índice de horror dessa dinâmica. Aspectos que, graças aos planos aproximados e aos ruídos que normalmente advêm do (ou anunciam o) extracampo, encontramos, por exemplo, no modo como o trabalho de produção de mortos é dividido, organizado, sistematizado, utilizando protocolos que vão desde a chegada do trem, passam pela recepção e execução dos deportados, estendem-se à limpeza do local e ao derradeiro apagamento dos vestígios (pela incineração em fornos ou ao ar livre). No entanto, o horror intrínseco a essa processualidade parece inexistir sob o ângulo do protagonista, cujo rosto, muitas vezes destacado, não se altera substancialmente de maneira a sinalizar a presença de afetos (recurso estético que, na nossa leitura, sugere que, ali, viver e morrer se equivalem).

A câmera, por sua vez, não permite ver com clareza a reação dos outros prisioneiros operadores do processo de extermínio, nem ajuizar se, de fato, agem - ou não - movidos por uma completa letargia em relação às execuções sistemáticas. O que vemos todo o tempo são esses personagens em sua lida com os corpos inanimados, sobrepostos como objetos que se armazenam, em um movimento que vai do extermínio à eliminação dos corpos.

Ademais, a restrição ao que se dá a ver não deixa de apresentar indícios da dificuldade de se “construir uma imagem” do Sonderkommando. Essa clareza imagética poderia ter sido oferecida, talvez, se a opção fosse por planos mais abertos, límpidos, com gestos e diálogos que explicitassem o que os personagens poderiam estar sentindo ou mesmo sequências que mostrassem a luta e a revolta deles. Tais aspectos, que poderiam funcionar como uma espécie de catarse no interior da trama, não estavam, porém, no foco de Saul. Não há afeto óbvio que emane do rosto dos membros do comando especial em sua relação direta com os corpos acumulados, os quais figuram como uma infinidade de objetos destinados a desaparecer sem deixar rastros e cuja história não deveria ser contada nem humanamente vivenciada. Assim, no filme, acompanhamos o trabalho desempenhado pelos membros do Sonderkommando que subtraem esses seres - vivos e mortos - do registro humano. Como enunciado em vários momentos pelos guardas alemães, os cadáveres são peças8 8 Em depoimento no filme Shoah, Filip Müller diz que “peça” (Stück) significa “cadáver”. - e, diríamos nós, “peças” na engrenagem de um sistema em que vivos e mortos se equalizam em sua inumanidade.

Em suma, a experiência dos campos de concentração - ou de extermínio, como aquele em que penetramos em O filho de Saul - põe à mostra o fato de que o homem traz inscrito em si mesmo a sua radical negatividade, a antítese da condição que o define. Nesse registro, as palavras de Agamben (2013______. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 83) vêm a propósito: “O homem carrega em si o selo do inumano, [...] o seu espírito contém, no próprio cerne dele, a punção do não espírito, do não-humano que marca atrozmente o seu ser capaz de tudo”.9 9 Nessa passagem, Agamben alude à potência do homem de suportar e manifestar em si o que não é humano e refere-se ao sofrimento não humano produzido nos campos. Aqui fazemos uma livre apropriação de suas palavras para nos referirmos ao Sonderkommando. Quando essa potência se manifesta, o impensável toma forma e lugar. Nesse sentido, é como se o filme nos colocasse ante aspectos da manifestação concreta desse impensável, encarnado nos processos que sistematicamente desumanizam as vítimas. Por um lado, a não morte, ou seja, uma prática em que se gerencia a produção de corpos para os quais morrer e desaparecer se equalizam e cujos rastros devem ser suprimidos sob princípios lógicos e racionais; por outro, o fato de terem sido concebidos e criados tais comandos especiais - e, talvez por isso, arriscaríamos dizer, chamados de “portadores do segredo”.

DO PENSAR OBJETIVADO AO PENSAMENTO VIVO: A VOLTA DO MUNDO DOS MORTOS

Com Saul inserido numa situação dominada por um trabalho dessa natureza, o que vemos é o personagem compelido a responder sem trégua aos apelos do ambiente que o circunda, de sorte que suas atividades se desenrolem em plena conformidade com a dinâmica prevalecente no campo. Referindo-se ao campo de modo geral, Primo Levi apontou que havia entre os prisioneiros aqueles que em algum grau logravam se adaptar. Ainda que o autor aqui não se refira aos membros do Sonderkommando e à situação específica de extermínio, tomemos essa capacidade reativa de Saul, rápida, eficaz, isenta de hesitações ou vacilos, como índice de tal conformidade.10 10 Em todas as situações é possível sempre pensar na plástica constitutiva da condição humana, o que torna os indivíduos, em maior ou menor amplitude, capazes de se moldarem a “situações extremas” (Agamben, 2013, p. 56). Em É isto um homem?, Primo Levi refere-se àqueles mais aptos para sobreviverem num lugar regido pela seleção natural. Referindo-se aos que definharam até a ida para o gás, a “multidão anônima”, escreve ele: “Uma vez, dentro do Campo, ou por causa de sua intrínseca incapacidade, ou por azar, ou por um banal acidente qualquer, eles foram esmagados antes de conseguir adaptar-se” (Levi, 2004, p. 91). Relevemos esse aspecto.

Na situação em que o protagonista se encontra, submetido a estratégias exacerbadas de coisificação, o advir de um pensar que interrogue o significado do vivido é certamente interditado. Nesse sentido, nas sequências iniciais do filme, acompanhamos Saul empenhado num fazer quase autômato, do qual parecem ausentes as frestas que permitiriam algum distanciamento em relação às suas tarefas. Assim, as possibilidades de uma atividade pensante parecem quase nulas, de modo que pensar e fazer se enlaçam numa relação identitária.

De fato, uma consciência que se atém a perseguir os meios da ação eficaz se subsume a uma lógica puramente adaptativa, na qual o agente finda por se assemelhar às coisas que organiza e manuseia. A rigor, a submissão a tal lógica não suprime a condição de ser vivo, mas neutraliza os elementos que singularizam e definem a sua humanidade. Se, no âmbito da prática humana, em sua generalidade, tal conformação pode ser vislumbrada em múltiplas gradações, no cotidiano de Saul ela maximiza-se para além do concebível. As atividades realizadas pelo personagem - reativas e que nada têm a ver com afazeres humanos banais, e sim com o impensável, como mencionado - parecem culminar no pensamento objetivado e erradicar as possibilidades de uma reflexão desviante. Tentemos pensar os atos de Saul em conexão com algumas reflexões tecidas por Hannah Arendt em A vida do espírito.

A autora assinala que a atividade do pensamento encontra no mundo os problemas e os objetos sobre os quais se debruça, o que aponta para certa relação condicional entre ambos. O único modo pelo qual as limitações da condicionalidade podem ser transgredidas consiste no esforço mental que delas se afasta, mesmo que esse movimento não liberte os homens - o que seria impossível - da factualidade que circunscreve sua inserção no universo mundano. O pensar - ou a vida do espírito - exige que uma clivagem se instaure entre a consciência e sua circunstância; exige uma desatenção ao seu presente. Frisemos: a situação a que se refere a autora - o distanciamento que suscita a reflexão interrogante - nenhuma identidade estabelece com o estado de exceção vivenciado pelo personagem. Contudo, seus argumentos podem lançar luz sobre o singular processo por ele vivido.

A transcendência em relação ao imediato, operada pelo esforço de um pensamento que se afasta da experiência, não altera por si só a circunstância em que se encontra o sujeito, mas é ela que permite, sublinha Arendt, o juízo negativo ou positivo acerca da realidade que o envolve, ou, nos seus termos, o anseio pelo impossível. Nesse sentido, a autora destaca a radical oposição entre o fazer e o pensar, visto que este último requer independência do primeiro. O pensamento que responde à demanda de significado, enquanto empreendimento que se dissocia da pura praticidade, constitui a fonte dos princípios e critérios que moldarão o agir humano no mundo. Esse estatuto de pressuposto necessário para a conformação significativa dos atos humanos, que a autora atribui à atividade pensante, não impede, contudo, que os assuntos humanos sejam em geral conduzidos sob a ausência de tal atividade. Com efeito, o pensamento ou os atos de reflexão podem se anular ou amortecer, subsumindo-se ao fazer.

A conduta daí decorrente, regida por hábitos ou pela necessidade de responder de pronto aos estímulos, não suprime de todo o envolvimento do intelecto com o agir; porém, quanto mais a inteligência se mostra coadunada à lógica operacional do mundo, menos emancipada é a sua vida reflexiva. Por conseguinte, insiste Arendt, o pensar para além da pura objetividade deve perturbar a normalidade do fazer. Ele exige alguma perplexidade: “interrompe qualquer fazer, quaisquer atividades normais, não importando quais sejam. Todo o pensar exige um parar-e-pensar” (Arendt, 2011Arendt, Hannah. A vida do espírito, v. 1 Pensar. Trad. João C. S. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 2011., p. 91). Para que a experiência se tinja de significação, é crucial que se opere um alheamento do imediato, em meio ao qual a consciência pensante se desnorteie: “O pensar enquanto tal, e não apenas o levantar das irrespondíveis ‘questões últimas’, mas toda a reflexão que não serve ao conhecimento e não é guiada por necessidade e objetivos práticos, está [...] ‘deslocado’” (Arendt, 2011Arendt, Hannah. A vida do espírito, v. 1 Pensar. Trad. João C. S. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 2011., p. 91).

Se, para a autora, o pensamento - diferente do falar, do fabricar, do agir - é a única atividade inteiramente invisível, ao seguirmos Saul em suas atividades ininterruptas, sujeitas o tempo todo a mecanismos de controle e vigilância, é para nós impossível, sem dúvida, acompanhar sua atividade pensante, a qual não é explicitada nem mesmo em off. Não obstante, ao seguirmos a sequência das imagens a que aludimos acima, somos impactados pela maneira ágil como ele reage aos estímulos que o atingem, desde os assassinatos coletivos nas câmaras de gás até as contínuas execuções sumárias. Esse adequar dos atos à situação - adaptação, pois - demonstra uma conformidade que não deixa de ser inteligível, uma vez que não há outro fim ali senão sobreviver.11 11 Para os judeus do Sonderkommando, mais do que fugir dali o plano de explodir o crematório era uma questão de sobrevivência, diferente dos não judeus, para os quais uma revolta e fuga àquela altura colocaria suas vidas em risco, dada a aproximação do Exército Vermelho em outubro de 1944. Para os judeus, o motim era a sobrevivência (ver: Hilberg, 2016, p. 1.215). Mas cumpre frisar: as primeiras e rápidas sequências do filme, que nos mostram Saul empenhado numa sucessão de atos maquínicos, vêm sugerir que sua vida espiritual não encontra outra forma de manifestação além do ajuste às atividades que dominam o seu agir. Elas parecem consumar o acoplamento entre o pensar e o fazer, de sorte que nenhuma possibilidade de reflexão deslocada parece se abrir para o personagem, que age como que mergulhado num presente repetitivo e eterno.

Há, entretanto, dois aspectos a se relevar nas considerações tecidas por Arendt. Primeiramente - sustenta ela -, é a atividade distanciada e “alheada” do pensar que instaurará os critérios e os princípios que nortearão a conduta moral dos homens. O segundo, por sua vez, concerne ao fato de que a atividade que “em regra chamamos pensar”, mesmo que implique dispersão e algum grau de divórcio em relação à experiência e às demandas do mundo vivido, toma como objeto os elementos inseridos no contexto prático, nutre-se deles e submete-os a um processo interrogante cuja profundidade e alcance são múltiplos e variáveis. Eis a condição sine qua non para que se torne presente o ausente, de modo que se possa transcender o puramente atual e vislumbrar tanto o passado como o futuro.

No universo concentracionário em que Saul se encontra, não há margem para que o pensamento significativo e desviante advenha. Sua adaptabilidade parece plena, de sorte que o personagem se afigura como morto para a vida do espírito. Do mesmo modo que os corpos que manipula, Saul age como um objeto entre objetos, submergido em um presente que não passa. Não obstante, em meio a essa atmosfera em que o humano parece ter sido erradicado, algo acontece a ele.

O surgimento do garoto que sobrevive à câmara de gás é desconcertante. Em momento algum a narrativa esclarece se há vínculo efetivo entre ele e o protagonista. Essa nebulosa, porém, não tem relevância, dado que tal acontecimento não apenas opera um desnortear da lógica adaptativa de Saul como também resgata a morte da condição a que ela fora relegada nos campos, como antes problematizado.

Conforme apontamos inicialmente, o curto trecho de filme anterior ao aparecimento do título, com uma câmera particular e pródigo em sons, coloca-nos ante o trabalho realizado por um membro do Sonderkommando na recepção de prisioneiros. Até então, sua conduta aparece moldada à lógica das coisas e dos afazeres maquínicos, aspecto que prevalece também na retomada do filme, quando o protagonista limpa a câmara de gás. Entretanto, é nesse momento que o surgimento do menino que resiste ao dispositivo de morte opera uma mudança que se fará notar paulatinamente na conduta do personagem. Entre os minutos 48 e 50, e esse momento gostaríamos de sublinhar, uma nova sequência de planos se dá: a câmera não apenas acompanha Saul, que está junto ao corpo estendido sobre um banco na sala escura da autópsia, não apenas mostra o rosto do personagem e o corpo, mas coloca-se, em seguida, em respeitosa distância de ambos, como se contemplasse a contemplação de Saul antes de ele resgatar o corpo.

Ora, a sua imagem estática a olhar o garoto vem nos dizer que ali um estremecimento se instaura, uma espécie de estímulo que não encontra reação imediata e leva o personagem a um tipo de desordem, a despeito da sutileza desse processo. Isso não leva à interrupção de suas atividades, o que seria impossível, mas favorece um desligamento - ou um alheamento - da imediaticidade na qual o personagem se vê inserido. Assim, esse acontecimento parece abrir uma fresta pela qual um mal-estar inédito irrompe, a saber, uma certa consciência de desacordo com o entorno, uma vez que um corpo estranho - a presença de um ser humano vivo entre as “peças” - desarticula a lógica puramente reativa de sua conduta.

Ancorados ainda nos argumentos de Arendt, podemos supor que esse acontecimento, em alguma medida, propicia um olhar deslocado de Saul para a situação, como se esse encontro perturbador e surpreendente mobilizasse a vida do espírito, a qual tem como correlato a busca de significações e de sentidos. Observemos, contudo, que nesse caso não será uma distração significativa em relação aos imperativos externos que encetará esse movimento psíquico, como postula Arendt. As condições vividas pelo personagem não permitem cesura tão alargada ou generosa. Mas, se não se instaura a distância radical e necessária da experiência imediata para que a vida do espírito se mobilize em sua plenitude, esse acontecimento tem a potência de desestabilizar uma inteligência que opera ajustada à necessidade de responder com imediata presteza aos comandos que recebe.

Atentemos para esse momento específico do filme. Não se trata apenas de um menino que sobrevive à câmara de gás, mas de alguém que sobrevive a um mecanismo constitutivo de um sistema racional cujo fim é produzir o desaparecimento. Para Saul, diferentemente do que ocorre aos outros personagens presentes na cena, os quais prosseguirão regidos pela lógica da eficácia, o evento parece suscitar uma estranheza que desestabiliza sua plena integração à ordem das coisas, distanciando-o, aos poucos, dos apelos do imediato e, assim, instaurando a ruptura na qual um pensar - ou uma ânsia de sentido - irrompe e se descola do puro fazer.

Santo Agostinho, lembra Arendt, assevera que o pensamento propicia sempre a atualização de uma ausência, a qual permite que o real atualmente configurado possa ser transcendido em relação tanto ao passado quanto ao futuro: “A faculdade do espírito de tornar presente o que está ausente não está, é claro, restringida a imagens mentais de objetos ausentes; de uma maneira geral, a memória guarda e conserva à disposição da recordação, tudo que já não é, e a vontade antecipa o que o futuro pode trazer, mas ainda não é” (Arendt, 2011Arendt, Hannah. A vida do espírito, v. 1 Pensar. Trad. João C. S. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 2011., p. 89, grifos nossos). No filme, não sabemos e não saberemos se o menino é filho de Saul. O que importa, porém, é a memória que esse acontecimento evoca e atualiza, visto que, em um universo em que tudo deve ser coisificado e o humano, subtraído, essa presença estranha procede a uma desarticulação entre a conduta do personagem e o seu meio, atualizando um pensar que de algum modo transmudará esse presente desumanizado, ao instaurar ali um breve e insólito senso de futuro.

Sob esse prisma, é lícito considerar que o novo direcionamento dado por Saul às suas ações, agora não mais norteadas por reações imediatas aos imperativos externos, tem como gênese um pensar que, a despeito das circunstâncias em que o acontecimento se dá, se afasta em alguma medida - mesmo que quase imperceptivelmente - do imediato e a ele retorna decidido a investir essa mesma experiência de novos significados. Contudo, teria o movimento do pensar, por si só, força para incutir no personagem a obstinação que doravante guiará os seus atos? Seria ele suficiente para impulsionar a conduta do personagem tal como acompanhamos até as últimas sequências do filme? Ora, se o encontro com o menino mobiliza e impulsiona Saul em direção a outro horizonte de ação que não aquele exigido pelo estado de coisas vigente, é porque, no movimento em que se atualizam seus pensamentos, inscreve-se um impulso, algo concomitante ao pensar e sem o qual este último jamais lograria se traduzir concretamente em uma conduta. Para que a nova empreitada tome corpo, é preciso mais do que um pensar desviante a preencher a clivagem entre o imediato e a perplexidade instaurada pelo aparecimento do menino. É preciso que, contemporânea ao esforço do pensar, uma potência outra se eleve e impulsione o agir desse sujeito pensante, sem a qual, ademais, esse pensamento, por mais vibrante e lúcido - ou por mais perturbador, como sugere ser a natureza do pensar que acomete Saul -, permanecerá impotente. Compete, pois, a um querer aliado ao pensar e às paixões nutrir o pensamento, de sorte que ele logre contagiar a ação com o desejo do horizonte descortinado pela atividade do espírito. São essas forças, antes de tudo afetivas, que o corpo do menino parece mobilizar no pensar e no agir de Saul.

Assim, o encontro com esse corpo instaura um vácuo no qual um outro pensar, já não orquestrado por estímulos e pelo temor ajustado ao puro fazer, toma forma. Mas qual seria esse pensamento mobilizado pelo universo afetivo de Saul e capaz de suscitar nele um comportamento que o instiga a perseguir propósitos nada solidários com as urgências que o constrangem, num cenário desumanizado em que os mortos são “peças” a serem produzidas, administradas e apagadas? Decerto, o encontro com o menino vivo e novamente assassinado mobiliza uma memória cujo teor permanece indefinido. Por consequência, o propósito e a significação que esse processo atualiza adquirem para o protagonista, assim nos parece, a tônica de um valor irrenunciável e de um fim a ser perseguido. Já não importa se adaptar para sobreviver. Um pensar vivo e significativo instaurou-se, e é assim que Saul perseguirá, na expressão de Didi-Huberman (2016Didi-Huberman, Georges. Sortir du noir. Paris: Les Éditions de Minuit, 2016.), sua “louca obsessão”: a realização de uma cerimônia, um ritual de sepultamento.

A simbologia dessa persecução é intensa e permite-nos considerar que a ruptura instaurada na conformidade com o fazer e com as coisas, que até então prevalecia na conduta do protagonista, de fato atualizou uma memória, a saber, a memória da distância entre o humano e as coisas, a memória de sua própria humanidade. Atualizada por um pensamento desviante, ela torna presente uma ausência e descortina algum futuro para os seus atos subsequentes, permitindo que irrompa no presente o passado no qual o personagem experienciou sua condição de homem.

Simultaneamente, essa memória confronta Saul com uma situação incontornável: agir de modo a atualizar a sua humanidade. Nesse sentido, instiga-o a ações inesperadas, que mais nada têm a ver com a lógica repetitiva que até então regeu sua conduta. A obsessão que orientará sua busca por um rabino e um sepultamento adequado arranca-o de um presente que se repete, bem como de um mundo onde tudo é coisa, inclusive os vivos que ainda sobrevivem. Daí a nenhuma importância atribuída pelo protagonista às mortes que se sucedem em decorrência de suas tentativas de consumar seus propósitos; afinal: “já estamos mortos”. Igualmente, carece de relevância o planejamento dos seus companheiros para explodir o crematório, pois o crucial é que o corpo morto do menino paradoxalmente trouxe Saul para um mundo vivo de significados e sentidos, no qual a morte se humaniza. Daí parece advir a necessidade do sepultamento e, mais, de um sepultamento ritualizado, aspecto que nos remete a Marcel Mauss, quando este aponta os atos rituais como “capazes de produzir algo mais do que convenções; [pois] são eminentemente eficazes; são criadores; eles fazem” (Mauss, 2003Mauss, Marcel. “Esboço de uma teoria geral da magia”. In: Sociologia e antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003, pp. 47-181., p. 56). Os ritos (gestos rituais) “são detentores de uma eficácia muito especial, diferente de sua eficácia mecânica”, e ele os designa como “atos tradicionais de uma eficácia sui generis” (Mauss, 2003Mauss, Marcel. “Esboço de uma teoria geral da magia”. In: Sociologia e antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003, pp. 47-181., p. 57, grifos do original). Ademais, o imperativo de encontrar um rabino que realize a cerimônia e profira o kadish, como aponta Feldman, realça o desejo obstinado do personagem de inscrever-se na história para sobreviver, destacando assim a perspectiva que emana da tradição judaica, para a qual “a inscrição do nome na forma do sepultamento é um de seus momentos estruturantes, salvar um morto da anulação mais extrema e radical seria salvar toda a humanidade” (Feldman, 2016Feldman, Ilana. “Imagens apesar de tudo: problemas e polêmicas em torno da representação, de Shoah a O filho de Saul”. ARS, São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 135-53. Disponível em: <Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2178-0447.ars.2016.124999 >. Acesso em: 27/2/2020.
https://doi.org/10.11606/issn.2178-0447....
, p. 151).

Vemos, assim, que a morte desse menino já não configura um mero fato objetivo a ser administrado, mas um acontecimento ligado ao existir. Ele ativa uma memória e mobiliza um agir prenhe de significações. Saul está de novo inserido em um mundo temporal e humano. Sob essa interpretação, é como se o personagem despertasse e se indignasse com o sequestro de sua humanidade; ao fazê-lo, retira a morte de um sistema operacional que a desnaturaliza, a perverte, inserindo-a numa experiência dotada de significado. Eis o possível que o menino morto revela a Saul, fazendo renascer nele a vida do espírito, para ficarmos com Arendt, mas também a seiva da revolta. Com ela, Saul reivindica o retorno à condição de homem.

Há revolta na conduta de Saul, em sua busca de um ritual de sepultamento. Sob uma perspectiva camusiana, a consciência revoltada é aquela que se eleva ao estado de lucidez, porquanto enfrenta diretamente o divórcio entre o homem e a ordem mundana. O espírito de revolta diz não ao estado de coisas que o violenta e, ao mesmo tempo, diz sim ao apelo que o dinamiza internamente, a saber, o anseio por liberdade, pela inserção plena no mundo humano. A solidariedade de Saul com o corpo morto - mas não com seus companheiros que planejam um motim - é, pois, emblemática. O risco de cuidar do corpo do menino, consoan­te ao que prescreve o rito judaico, remete-o a uma humanidade que o ultrapassa. A lucidez operada pela revolta, independentemente dos moldes em que ela se configura, ao criar valores - ou sentidos -, impede a sujeição do humano à condição de coisa: “Eu me revolto, logo existimos”, afirmará Camus (2018Camus, Albert. O homem revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2018., p. 38, grifos nossos). Afirmação que contempla mesmo as situações extremas, nas quais o mal transborda as potências da imaginação, como aquelas produzidas pela história e vivenciadas por Saul no filme. A revolta permite que, em sua última jornada, o protagonista - que se declarava já morto -, por um breve momento, encontre a vida. Saul é Lázaro que retorna do mundo dos mortos.

CONCLUSÃO

Apontamos no início da nossa discussão que, se a posição de câmera predominante parece se colocar às costas de Saul, também há momentos decisivos em que atua como uma espécie de dispositivo que revela o campo de atenção do personagem, aspecto que serve como crivo a determinar o que é ou não nítido.

A câmera está fixa, estacionada, e espera Saul aproximar-se para nos oferecer algumas porções de imagem nítidas e, imediatamente, segui-lo, como se dele dependesse para poder atingir os espaços a que apenas um membro do Sonderkommando teria acesso em Auschwitz-Birkenau. Interroguemo-nos a respeito dessa passagem. A câmera não chega ao centro da cena, isto é, ao evento “chegada de trem trazendo prisioneiros”, acompanhando Saul ou nos oferecendo o ponto de vista do personagem. Antes, ela o espera. Ele se dirige a ela ao soar um apito. Ela está fixa e mostra uma paisagem verdejante pouco nítida e algumas silhuetas, como se preexistisse a Saul, como se lá estivesse à espera para, apenas posteriormente, segui-lo.

Avancemos aceleradamente até o bloco do final do filme. A câmera segue Saul em sua busca por um rabino, do crematório à sala de descanso, da câmara de gás à sala de autópsia, dos espaços internos e escuros aos externos e iluminados, transitando pelos vários setores, funções e turnos que operavam aquele maquinário. Por fim, acompanha-o quando ele foge com o corpo às costas e tenta desesperadamente enterrá-lo, sem sucesso, e também quando ele entra no rio e quase se afoga, abandonando, então, o corpo morto - que havia limpado e envolvido em tecido. A câmera, por fim, persegue Saul pela trilha que leva a um abrigo, onde ele e seus companheiros descansam, antes de abandoná-lo.

Estamos nos últimos três minutos de filme. A câmera, de um ponto de vista que parece ser o de Saul, mostra a floresta do lado de fora do abrigo, quando, enquadrada pela abertura da porta, surge uma criança. Há um corte e nos deparamos com o rosto de Saul em grande plano. A câmera se demora na fisionomia que agora parece cansada, exausta, até que, aos poucos, percebemos que os músculos de sua face desenham um sorriso. Pelo menino que vê à porta? Não o sabemos. A criança sai em disparada, e com ela a câmera, abandonando Saul. Estanca ao mostrar a criança ser capturada por um soldado nazista, continua a segui-la quando o soldado a libera e enquanto ouvimos, fora do plano, o fuzilamento dos fugitivos. A criança continua a correr e embrenha-se na floresta. A câmera novamente estanca, fixando-se, e vemos a criança desaparecer. Por mais alguns segundos, tudo o que veremos será um plano aberto da floresta. Nova tela escura. Fim.

A câmera que, no início de tudo, aguarda Saul e, ao final, dele se desvencilha termina como havia começado: parada, fixa, como se sempre houvesse estado na floresta que envolve o campo e como se dela não pudesse fugir. A câmera não avança. É tudo o que sabemos. Ou por não conseguir sair, ou por se recusar a abandonar, ou por ter estado sempre ali. Assombrada. Atualizando, talvez, um olhar espectral.

FILMES CONSULTADOS

  • O filho de Saul. Direção László Nemes. 2015. 107 minutos. Colorido. Hungria.
  • Shoah. Direção Claude Lanzmann. 1985. 566 minutos. Colorido. França/ Reino Unido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Feldman, Ilana. “Imagens apesar de tudo: problemas e polêmicas em torno da representação, de Shoah a O filho de Saul”. ARS, São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 135-53. Disponível em: <Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2178-0447.ars.2016.124999 >. Acesso em: 27/2/2020.
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  • Sorlin, Pierre. Sociología del cine: la apertura para la historia de mañana. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1985.
  • 1
    Em entrevista a Antoine de Baecque sobre esse que é seu primeiro longa-metragem, Nemes aponta a colaboração de historiadores, dizendo também que a ideia de realizar o filme veio depois da leitura de Des Voix sous la cendre: manuscrits des Sonderkommandos d’Auschwitz-Birkenau [Vozes sob as cinzas: manuscritos dos Sonderkommandos de Auschwitz-Birkenau], que reúne textos enterrados por participantes do Sonderkommando em Auschwitz-Birkenau (Nemes; Baecque, 2015Nemes, László; Baecque, Antoine de. “Interview with László Nemes”. Cinéart, Amsterdã, 2015.). Sobre os três eventos, fazendo referência à bibliografia que mobilizamos, ver: Levi (2004______. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Trad. Luiz Sergio Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004., p. 47), a respeito da menina que sobreviveu à câmara (aspecto mencionado no filme, embora a trama gire em torno de um menino); da revolta em Birkenau, em 7 de outubro de 1944, ver Gilbert (2010Gilbert, Martin. O Holocausto: uma história dos judeus da Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Trad. Samuel Feldberg e Nancy Rozenchan. São Paulo: Hucitec, 2010., pp. 792-9), Hilberg (2016Hilberg, Raul. A destruição dos judeus europeus, v. 2. Trad. Carolina Barcellos. Barueri: Amarylis, 2016., pp. 1.215-6) e Levi (2004______. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Trad. Luiz Sergio Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004., pp. 42-51); quanto à fotografia atribuída a Alberto Errera (Alex), tirada em agosto de 1944 em Auschwitz-Birkenau, ver Didi-Huberman (2016Didi-Huberman, Georges. Sortir du noir. Paris: Les Éditions de Minuit, 2016., pp. 18-21).
  • 2
    Agamben (2013______. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 78) usa a expressão “produção em cadeia”, retirada de Raul Hilberg. Na tradução brasileira do livro de Hilberg, ela aparece como “esteira industrial” (“am laufenden Band”) (Hilberg, 2016Hilberg, Raul. A destruição dos judeus europeus, v. 2. Trad. Carolina Barcellos. Barueri: Amarylis, 2016., pp. 1.198-9).
  • 3
    Pretexto que aparece também no depoimento de Filip Müller, em Shoah, e servia, como apontou Gilbert (2010Gilbert, Martin. O Holocausto: uma história dos judeus da Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Trad. Samuel Feldberg e Nancy Rozenchan. São Paulo: Hucitec, 2010., pp. 725-6, 945), baseado no relato de Yehuda Bacon, para “acalmá-los, para confundi-los” após a viagem em “vagões selados”. Nas palavras de Hilberg (2016Hilberg, Raul. A destruição dos judeus europeus, v. 2. Trad. Carolina Barcellos. Barueri: Amarylis, 2016., p. 1.204) sobre tais “cuidados”: “Em Birkenau, o embuste era a regra”.
  • 4
    “Zona cinzenta” está para confundir ou problematizar a propensão à simplificação dos fenômenos históricos. No caso específico de que trata Levi (2004______. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Trad. Luiz Sergio Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004., p. 32), “a rede de relações humanas no interior dos Lager: não se podia reduzi-la a dois blocos, o das vítimas e o dos opressores”. O que ali se via “não era conforme a nenhum modelo, o inimigo estava ao redor, mas também dentro, o ‘nós’ perdia seus limites, os contendores não eram dois, não se distinguia uma fronteira mas muitas e confusas, talvez inúmeras, separando cada um do outro”.
  • 5
    Sob outra perspectiva, Feldman (2016Feldman, Ilana. “Imagens apesar de tudo: problemas e polêmicas em torno da representação, de Shoah a O filho de Saul”. ARS, São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 135-53. Disponível em: <Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2178-0447.ars.2016.124999 >. Acesso em: 27/2/2020.
    https://doi.org/10.11606/issn.2178-0447....
    , pp. 150-1) destaca, além da importância do kadish (“a reza aos mortos”) e da dimensão alegórica do filme, o modo como “a tragédia coletiva e a loucura pessoal assumem ares de parábola bíblica”, o que o afastaria do mito. A autora faz, junto com a análise do filme, uma preciosa incursão pelo debate em torno da questão da representação do inimaginável, ou da reflexão “sobre as aporias inerentes a toda tentativa de pensamento e representação após a catástrofe” (p. 144), mobilizando reflexões de Lanzmann, Didi-Huberman e Seligmann-Silva, entre outros. O filme, para a autora, “atualiza e elabora o debate entre forma e política, ética e estética que tem marcado o cinema a partir do pós-guerra” (p. 149).
  • 6
    Ao falar do plano ponto de vista, aquele no qual “vemos o que um personagem vê de seu ponto de vista”, Branigan menciona que, em um dos seus usos, “não apenas vemos o que o personagem vê, mas como o vê” (Branigan, 1984Branigan, Edward. Point of View in the Cinema: a Theory of Narration and Subjectivity in Classical Film. Berlim/ Nova York: Mouton, 1984., pp. 2, 6, grifo do original). Ainda que ele se refira, nessa passagem, a imagens superexpostas, o que não é o caso de O filho de Saul, consideramos importante sublinhar essa ideia do “como se olha”.
  • 7
    Para uma descrição das incumbências desses prisioneiros, ver Agamben (2013______. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 34).
  • 8
    Em depoimento no filme Shoah, Filip Müller diz que “peça” (Stück) significa “cadáver”.
  • 9
    Nessa passagem, Agamben alude à potência do homem de suportar e manifestar em si o que não é humano e refere-se ao sofrimento não humano produzido nos campos. Aqui fazemos uma livre apropriação de suas palavras para nos referirmos ao Sonderkommando.
  • 10
    Em todas as situações é possível sempre pensar na plástica constitutiva da condição humana, o que torna os indivíduos, em maior ou menor amplitude, capazes de se moldarem a “situações extremas” (Agamben, 2013______. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 56). Em É isto um homem?, Primo Levi refere-se àqueles mais aptos para sobreviverem num lugar regido pela seleção natural. Referindo-se aos que definharam até a ida para o gás, a “multidão anônima”, escreve ele: “Uma vez, dentro do Campo, ou por causa de sua intrínseca incapacidade, ou por azar, ou por um banal acidente qualquer, eles foram esmagados antes de conseguir adaptar-se” (Levi, 2004______. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Trad. Luiz Sergio Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004., p. 91).
  • 11
    Para os judeus do Sonderkommando, mais do que fugir dali o plano de explodir o crematório era uma questão de sobrevivência, diferente dos não judeus, para os quais uma revolta e fuga àquela altura colocaria suas vidas em risco, dada a aproximação do Exército Vermelho em outubro de 1944. Para os judeus, o motim era a sobrevivência (ver: Hilberg, 2016Hilberg, Raul. A destruição dos judeus europeus, v. 2. Trad. Carolina Barcellos. Barueri: Amarylis, 2016., p. 1.215).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    26 Set 2019
  • Aceito
    05 Maio 2020
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