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A desintegração do status quo: direito e lutas sociais

Resumos

A partir de O espírito das leis, de Montesquieu, e do pensamento de Carl Schmitt e Franz Neumann, um de seus maiores críticos, o texto mostra que a simplicidade das leis e a existência de um Judiciário ativo estão relacionadas com o caráter democrático ou não das diversas sociedades. Ademais, o texto sustenta que o direito no século XX pode ser caracterizado pela regulação de diversas diferenças sociais por meio de normas especiais, resultantes de reivindicações democráticas por novos direitos, as quais contribuem para aumentar a complexidade das leis e a necessidade de intervenção judicial para dar sentido ao direito.

Direito; democracia; Judiciário; Legislativo


Based on Montesquieu's The spirit of laws and Carl Schmitt and Franz Neumann's writings, the article suggests that the simplicity of laws and the presence of an active judicial system is related to the democratic (or un-democratic) nature of societies. Law in the 20th century can be seen as the regulation of social inequalities and differences through special norms that are the result of democratic demands for new rights, which contribute to enhance the complexity of laws and the need of judicial intervention in order to confer meaning to these rights.

Law; Democracy; Judicial System; Legislative System


DOSSIÊ: 25 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A desintegração do status quo: direito e lutas sociais

José Rodrigo Rodriguez

RESUMO

A partir de O espírito das leis, de Montesquieu, e do pensamento de Carl Schmitt e Franz Neumann, um de seus maiores críticos, o texto mostra que a simplicidade das leis e a existência de um Judiciário ativo estão relacionadas com o caráter democrático ou não das diversas sociedades. Ademais, o texto sustenta que o direito no século XX pode ser caracterizado pela regulação de diversas diferenças sociais por meio de normas especiais, resultantes de reivindicações democráticas por novos direitos, as quais contribuem para aumentar a complexidade das leis e a necessidade de intervenção judicial para dar sentido ao direito.

Palavras-chave: Direito, democracia, Judiciário, Legislativo.

ABSTRACT

Based on Montesquieu's The spirit of laws and Carl Schmitt and Franz Neumann's writings, the article suggests that the simplicity of laws and the presence of an active judicial system is related to the democratic (or un-democratic) nature of societies. Law in the 20th century can be seen as the regulation of social inequalities and differences through special norms that are the result of democratic demands for new rights, which contribute to enhance the complexity of laws and the need of judicial intervention in order to confer meaning to these rights.

Keywords: Law, Democracy, Judicial System, Legislative System.

DESEQUILÍBRIO DE PODERES?

A melhor maneira de deixar de compreender o papel do direito nas democracias contemporâneas é encará-lo como um conjunto de regras claras que devem ser aplicadas inequivocamente pelo Poder Judiciário. A visão do direito como "regra do jogo", ou seja, como uma série de normas dotadas de autoridade, cujo sentido preciso pode ser identificado fora e antes da luta social, tem produzido avaliações equivocadas da dinâmica das instituições do estado de direito, em especial, do papel dos Tribunais Superiores.

Para uma parte dos analistas brasileiros, estaríamos vivendo uma grave "crise institucional", que se explicaria pelo fato de o Supremo Tribunal Federal estar "invadindo" o espaço do Poder Legislativo, ou seja, estar se comportando como não deveria. Qualquer sinal de "ativismo judicial", identificado com a atividade de interpretar as leis para além da literalidade de seu texto, seria perigoso para o equilíbrio entre os poderes. Afinal, de acordo com essa análise, as leis seriam a verdadeira expressão da "vontade do povo", pois votadas por um poder eleito democraticamente. "Desrespeitar" seu texto ou mesmo preencher lacunas na legislação (na falta de texto expresso) significaria usurpar a soberania popular e instaurar uma normatividade de caráter autoritário. Ao interpretar as leis, o Supremo estaria criando uma situação de "desequilíbrio entre os poderes".

Por isso mesmo, seria necessário fazer soar todos os alarmes para alertar a sociedade brasileira sobre os perigos da instauração de uma "ditadura dos juízes", supostamente capaz de ameaçar a vontade popular. A inação do Parlamento, que tem deixado de votar leis sobre assuntos importantes, seria a principal responsável por esse avanço "antidemocrático" do STF sobre as prerrogativas parlamentares. Nessa ordem de razões, seria preciso, portanto, que o Parlamento reto­masse seu protagonismo "natural" e reduzisse o Supremo ao seu "devido lugar", combatendo a "judicialização da política"11] Já falei sobre esse assunto em Nobre, Marcos; Rodriguez, José Rodrigo. "Judicialização da política: déficits explicativos e bloqueios normativistas". Novos Estudos Cebrap, n. 91, 2011. [.

Estamos realmente correndo o risco de uma inflexão autoritária de nossas instituições? O quadro é tão grave quanto essa forma de pensar sugere? Para refletir sobre isso, parece-me importante retomar algumas questões fundamentais a respeito da relação entre decisão judicial e legislação, um problema que ocupa os juristas, mas não apenas eles, há muito tempo. Trata-se de compreender, ao fim e ao cabo, que espécie de poder exerce o Poder Judiciário ou, na formulação dos mais radicais revolucionários franceses: afinal, para que servem os juízes?

Mas o que é uma lei? As leis são capazes de expressar de forma adequada a "vontade do povo"? Traduzir com perfeição o ethos de sociedades altamente complexas, conflitivas e fragmentadas e determinar completamente as decisões de casos concretos, mesmo os mais difíceis?

Está próximo o centenário de Teoria pura do direito , de Hans Kelsen, umas das obras mais importantes para a compreensão do direito do século XX, um livro cujo poder subversivo ainda se mostra atual em plena segunda década do século XXI22] Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. Lisboa: Armênio Amado, 1978. [ . No capítulo final, Kelsen constata que as leis são incapazes de fornecer critérios inequívocos para a atividade do juiz e para outros organismos com poder para decidir casos concretos. As decisões judiciais devem ser descritas como um ato de escolha de uma entre diversas alternativas interpretativas postas diante do juiz, todas elas coerentes com o direito posto, ou seja, com as leis promulgadas pelo Parlamento.

O texto da lei, observado na dinâmica social e institucional de sua interpretação, como faz Kelsen, é incapaz de impedir a ação criativa dos juízes; é incapaz de garantir, por si só, que as respostas oferecidas pelo Judiciário serão sempre padronizadas e inequívocas; o direito não se reproduz de fato por um processo puramente cognitivo, lógico-formal, de aplicação das leis abstratas a casos concretos.

A indeterminação do direito não é uma qualidade (ou falta de qualidade) dos textos legais. E ela não se "resolve", não se "cura" com a edição de normas claras e precisas. Estamos diante de um fenômeno complexo que deve ser compreendido em função (a) das características do texto da lei, (b) das características da sociedade e das instituições à qual ela se destina, (c) do modo de pensar da comunidade dos intérpretes autorizados, em especial os juízes, e (d) da interação entre advogados (promotores, defensores), cidadãos e Judiciário tendo em vista as demandas nascidas dos conflitos sociais. Não vou tratar de todos esses temas aqui. Pretendo concentrar minha atenção no segundo deles 33] Trato deste problema com foco no texto das leis em Rodriguez, José Rodrigo. Por um novo conceito de segurança jurídica: racionalidade jurisdicional e estratégias legislativas. Analisi e diritto, 2012. Sobre as características do modo de pensar dos juízes brasileiros, ver Rodriguez, José Rodrigo, Cutrupi, Carolina. "Como decidem os juízes? Sobre a qualidade da jurisdição brasileira". In: Silva, Felipe Gonçalves; Rodriguez, José Rodrigo. Manual de sociologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 2013; e Rodriguez, José Rodrigo. Como decidem as cortes? Rio de Janeiro: Ed. fgv, no prelo. Sobre o papel da advocacia, participo atualmente da pesquisa "Atuação da advocacia popular", financiada pela Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, que certamente trará reflexões sobre esse tema em suas conclusões. [.

É interessante notar que as posições mais radicais dentre os revolucionários franceses e os regimes totalitários do século XX, nazismo e fascismo, imaginaram ser necessário transformar o juiz em mera "boca da lei"44] Ver Silveira, Alípio. O fator político-social na aplicação das leis. São Paulo: Tipográfica Paulista, 1946. Neste estudo, infelizmente esquecido, Alípio faz uma avaliação pioneira da relação entre regimes autoritários e Poder Judiciário. [ . O estabelecimento de um poder absoluto que não admite nenhuma manifestação de independência em relação aos seus desígnios e de leis que expressam com fidelidade a vontade revolucionária do povo transforma o Poder Judiciário e os juízes, de fato, em meio de transmissão da vontade do Executivo ou do parlamento.

Não é surpresa, portanto, que tenham sido propostos à assembleia revolucionária francesa projetos de lei que aboliam a profissão de juiz e promoviam o fechamento das Faculdades de Direito55] Ver Siéyès. E. J. "Quelques idées sur la constituition aplicables a la Ville de Paris". In: Oevres de Siéyès. Paris: Edhis. s/d. [. Também não é surpresa que o Poder Judiciário alemão, já extremamente conservador antes da ascensão nazista ao poder, tenha sido reduzido à imagem e semelhança do Führer com a cassação de todo e qualquer juiz que manifestasse independência em relação ao Poder Executivo66] Ver Muller, Ingo. Hitler's Justice: The ourts of the Third Reich. Harvard: Harvard University Press, 1991. [. Ou que a prática da advocacia tenha sido limitada a um papel secundário e desimportante na DDR77] Kirchheimer, Otto. Political Justice: The use of legal procedure for political ends. Princeton: Princeton University Press, 1961. [. Afinal, diante de um direito que expresse como fidelidade a vontade do povo, encarnado no Führer ou no Parlamento88] Há uma nuance importante aqui. Para os revolucionários franceses, a vontade do povo estaria expressa no texto das leis que deveria ser seguido estritamente. Para os nazistas, a vontade do povo estava encarnada na vontade do Führer e se sobrepunha ao texto das leis. No entanto, nos dois casos, os juízes representavam um entrave para a realização desses dois projetos radicais. [ , para que serviriam os juízes e o direito? Para que serviriam os advogados senão para comunicar ao Judiciário as violações de direitos líquidos e certos, previstos em leis de sentido inequívoco?

A ARGÚCIA DO BARÃO

O espírito das leis , de Montesquieu, relaciona o despotismo e a república com a existência de leis simples, leis que não precisam ser interpretadas pelo Poder Judiciário. As reflexões do Barão, veremos a seguir, podem nos ajudar a reunir elementos capazes de explicar as razões pelas quais Kelsen chegou às suas conclusões no começo do século XX, por que as ditaduras e os pensadores autoritários não gostam do direito e por que a defesa normativa da simplicidade das leis e de uma postura textualista por parte dos juízes pode ganhar inflexões autoritárias.

Em um regime despótico, explica Montesquieu, não é fácil compreender sobre o que, afinal, o legislador poderia legislar ou o magistrado julgar99] Para todas as citações a seguir Montesquieu, O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 84-88. [:

Segue-se do fato de que as terras pertencem ao príncipe que quase não há leis civis sobre a propriedade das terras. Segue-se do direito que o rei possui de suceder que também não há leis sobre sucessões. O negócio exclusivo que ele faz em alguns lugares torna inútil qualquer lei sobre o comércio. Os casamentos que se contraem com as moças escravas fazem com que não existam leis civis sobre os dotes e as vantagens das mulheres. Resulta que desta prodigiosa multidão de escravos quase não existem pessoas que possuam vontade própria, e que consequentemente devam responder sobre sua conduta diante de um juiz. A maioria das ações morais, que não são mais do que vontade do pai, do marido, do mestre, são resolvidas por estes e não pelos magistrados.

De sua parte, as monarquias precisam de um Judiciário que se esforce por julgar sempre da mesma forma para que "a propriedade e a vida dos cidadãos sejam garantidas e fixas como a própria constituição do Estado". Isso porque, nesse regime, a justiça decide sobre a vida, a propriedade e a honra das pessoas. Há leis sobre todos esses assuntos. E leis muito mais confusas e complexas.

Não devemos espantar-nos se encontramos nas leis desses Estados tantas regras, restrições, extensões, que multiplicam os casos particulares e parecem fazer da própria razão uma arte.

As diferenças de nível, de origem, de condição entre as pessoas se multiplicam e implicam distinções sobre a natureza dos bens que podem ser "próprios, adquiridos ou conquistados, dotais, parafernais; paternos e maternos; móveis de várias espécies, livres, substituídos; de linhagem ou não; nobres em alódio ou não nobres; rendas fundiárias ou constituídas por dinheiro". Além disso, prossegue Montesquieu, em algumas monarquias há feudos que foram divididos entre irmãos, o que torna a legislação mais complexa. Ademais, há províncias com leis específicas promulgadas pelo monarca ou com costumes próprios, suportados pelo mesmo monarca. Toda essa complexidade legislativa exige um Poder Judiciário atuante. Por isso:

À medida que os julgamentos dos tribunais se multiplicam nas monarquias, a jurisprudência toma decisões que às vezes são contraditórias, porque os juízes que se sucedem pensam de maneira diferente, ou porque as mesmas causas são bem ou mal defendidas, ou enfim por uma infinidade de abusos que se infiltram em tudo que passa pelas mãos dos homens. É um mal necessário que o legislador corrige de vez em quando, como contrário até mesmo ao espírito dos regimes moderados. Pois quando somos obrigados a recorrer aos tribunais, isso deve vir da natureza da constituição e não da contradição e da incerteza das leis.

Nos Estados moderados, informa Montesquieu, "onde a cabeça do menor cidadão é considerável", é preciso um longo exame para tirar dele sua honra e seus bens. "Assim, quando um homem se torna mais absoluto, pensa primeiro em simplificar as leis". Nas repúblicas, prossegue o autor, são necessárias tantas formalidades quanto nas monarquias para julgar um homem e elas aumentam conforme a importância que se dê à honra, à riqueza, à vida e à liberdade dos cidadãos.

Nos estados republicanos, "é da natureza da constituição que os juízes sigam a letra da lei", pois nesse regime todos os homens devem ser tratados como iguais, ao contrário das monarquias: "Os homens são todos iguais no governo republicano; são todos iguais no governo despótico: no primeiro porque são tudo; no segundo porque são nada".

O espírito das repúblicas exige um juiz que decida sempre de acordo com o texto da lei, pois nesse tipo de Estado as leis não incorporaram diferenças. Todos devem ser tratados de forma igual e a legislação deve ser simples e escrita sob a forma de lei geral, pois não há necessidade de diferenciar as pessoas em razão de sua origem, condição, status etc. Nesses Estados não há, para utilizar a linguagem contemporânea, leis especiais para determinados grupos sociais, destinadas a pessoas em condições peculiares ou que regulem certos fatos sociais de forma diferenciada.

O século XX assistiu a uma mudança radical na racionalidade do direito das repúblicas, por assim dizer, que dificulta a utilização da análise de O espírito das leis sem nenhuma atualização. Pior do que isso, sem os devidos cuidados, o uso dos argumentos de Montesquieu pode transformar em plataforma conservadora a defesa da simplicidade das leis e da necessidade de julgar conforme seu texto. Afinal, ao contrário do que pensam aqueles que se assustam com a ação interpretativa do Poder Judiciário, não é do espírito da constituição das repúblicas contemporâneas a simplicidade das leis e juízes textualistas.

Utilizando as palavras de Montesquieu, as atuais repúblicas têm muito dos traços das monarquias: as leis não são simples no sentido que o autor confere ao termo e é preciso haver um Judiciário atuante para conferir racionalidade ao seu conjunto. Afinal, a pressão dos movimentos sociais, ao longo de todo o século, resultou na criação de cada vez mais distinções reguladas por lei com a finalidade de conferir direitos especiais aos pobres, às crianças, aos doentes, aos velhos, aos inválidos, aos deficientes, a empregados e empregadas, a funcionários e funcionárias públicos, a trabalhadores e trabalhadoras do campo e, mais recentemente, às mulheres em geral, aos indígenas, aos negros, às travestis, às transex, aos transgêneros e a tantos outros grupos sociais que se organizaram para lutar por melhores condições de vida1010] Como veremos a seguir, a incorporação de diferenças ao direito é um dos fatores que o torna complexo a ponto de não ser mais possível interpretá-lo apenas por meio de raciocínios lógico-formais. A incorporação de cláusulas gerais como "boa-fé" e de outros recursos argumentativos como os princípios jurídicos, especialmente a partir do século passado, está ligada à dinâmica dos conflitos sociais e seu impacto sobre a complexidade das leis. Nesse sentido, ler o conceito de materialização do direito de Weber do ponto de vista de uma sociedade civil livre e ativa faz com que se perceba seu potencial democrático. É claro, a materialização traz o risco de arbítrio. Pode ter efeitos autoritários, por exemplo, em um Estado em que os juízes decidam sem fundamentação racional, em que o poder esteja concentrado nas mãos de um líder carismático e a sociedade civil esteja neutralizada, sem poder demandar direitos e acionar o Judiciário. Para um exame mais detalhado dessa ambiguidade ver Rodriguez, José Rodrigo. Fuga do Direito: um ensaio sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann. São Paulo: Saraiva, 2009. [. Se esse não foi o único fator a conferir maior complexidade às leis1111] Não há espaço aqui para discutir este problema em detalhes. Ele é abordado pela literatura em direito sob a denominação de "juridificação". Vou falar apenas de um de seus aspectos, aquele mais ligado à dinâmica dos movimentos sociais e responsável por questionar as hierarquias de poder. Para um aprofundamento deste tema, ver Fuga do Direito... e Friedman, Lawrence M. Jurisdicização. [verbete] In: Arnaud, André-Jean (org.). Dicionário enciclopédico de teoria e sociologia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. [ , certamente estamos diante de um elemento fundamental deste processo.

DIREITO E DIFERENÇAS

Para além desses grupos, o processo de reconhecimentos de novos direitos não dá sinais de que vá cessar. Certamente, assistiremos ao surgimento de mais e mais movimentos sociais organizados que vão mostrar sua face à esfera pública para demandar novos direitos.

As diferenças reconhecidas pelas leis contemporâneas não são privilégios como nas monarquias. São distinções criadas por leis especiais que tratam de maneira diferenciada determinados tipos de fatos e categorias de pessoas e se inserem no contexto de sociedades de massa globalizadas, marcadas por acentuada diversidade social, muitas vezes vivendo no mesmo território, algo muito difícil de ser sequer imaginado na época de Montesquieu1212] Outra maneira de reivindicar direitos é pleitear a competência para criar normas em esferas imunes à regulação estatal. Essa gramática, diferente da gramática das regras, tem sido utilizada, por exemplo, para reivindicar direitos para comunidades indígenas as quais pretendem manter suas regras em funcionamento a par das normas do Estado no qual se inserem. Por razões de espaço, não vou tratar desse problema aqui, que abordei em Rodriguez, José Rodrigo. "Inverter o espelho: o direito ocidental em normatividades plurais". In: Reis, Rossana Rocha (org.). Política de direitos humanos. São Paulo: Hucitec, 2010. [. O espírito das leis foi escrito, diga-se, como os textos de O federalista , para um grupo de notáveis1313] Reproduzo neste ponto a observação de Bruce Ackermann sobre os "founding fathers" em seu esforço de desfazer o mito sobre estes escritos e submeter as instituições dos Estados Unidos a uma crítica racional. Ver Ackermann, Bruce. The decline and fall of the American Republic. Cambridge: Belknap Press, 2010. Nesse sentido, é interessante acompanhar a discussão de Montesquieu em O espírito das leis sobre a importância de uma definição clara sobre o número de representantes nas democracias. [, ou seja, para sociedades dirigidas por um número limitado de agentes de poder e em que não havia sufrágio universal1414] Para uma exposição sobre a evolução do sufrágio universal e as estratégias conservadoras para conter seu poder subversivo, ver Losurdo, Domenico. Democracia ou bonapartismo. Triunfo e decadência do sufrágio universal. São Paulo/Rio de Janeiro: Ed. Unesp/UFRJ, 2004. [. Com a entrada no sistema político de todos os homens e mulheres acima de uma determinada idade, ao longo do século XX no Ocidente, parece natural e óbvio que a complexidade das leis tendesse a aumentar.

As distinções legais que vêm sendo criadas têm reflexos sobre os mais diversos domínios da vida, ou seja, implicam a regulação especial de determinados tipos de bens, direito a rendas complementares, a um status pessoal ou familiar, entre outros. Por exemplo, a legislação brasileira protege o imóvel em que as famílias residem contra a penhora, exceto quanto a dívidas ligadas a ele, como condomínio e imposto predial (Lei 8.009 de 1990). Prevê o direito a uma renda mínima para famílias com renda familiar mensal per capita de até R$ 120,00 (Lei 10.838 de 2004), reconhece o status de família a casais compostos de cônjuges do mesmo sexo (STF, julgamento da ADPFn. 132 e da ADIN n. 4277), entre tantas outras distinções.

A Constituição de 1988 legislou sobre uma série de diferenças sociais em razão da pressão intensa da sociedade civil sobre a Assembleia Nacional Constituinte, o que resultou em um texto extenso, resultado de ampla participação social1515] Para este ponto ver Sampaio, P. A. "Para além da ambiguidade: uma reflexão histórica sobre a cf/88". In: Cardoso Júnior, J. C. (org.). A constituição brasileira de 1988 revisitada: recuperação histórica e desafios atuais das políticas públicas nas áreas econômica e social. Brasília: Ipea, 2009; e Kinzo, M. A. G. "O quadro partidário e a constituinte". In: Lamounier, B. (org.). De Geisel a Collor: o balanço da transição. São Paulo: Sumará , 1990. [. A acusação frequente de que a cf é excessivamente detalhista, contraditória e desorganizada negligencia as questões discutidas neste texto. Nossa Carta Constitucional — e a maior parte das constituições criadas no século XX — são igualmente extensas, repletas de normas especiais e representam, com efeito, uma evidência de que a democracia tem como corolário a crescente complexidade das leis1616] Cf. Silva, Virgílio Afonso da. "Historinhas (irrelevantes) sobre as constituições brasileiras", nesta edição de Novos Estudos Cebrap. [ N. E.] [.

A Constituição de Weimar de 1917 foi uma das primeiras a reconhecer direitos aos trabalhadores em função, evidentemente, das mobilizações operárias do começo do século. A inclusão desse tipo de direito no texto constitucional foi objeto de ácidas críticas1717] Os juízes alemães chegaram a negar vigência a Constituição de Weimar em seus julgados. Para este ponto ver a primeira parte do meu livro Fuga do Direito... e Bercovici, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente: atualidades de Weimar. São Paulo: Azougue, 2004, livro que mostra a resistência da teoria constitucional, encabeçada por Carl Schmitt, para aceitar a constitucionalização dos direitos dos trabalhadores. [ por motivos ainda hoje presentes na doutrina constitucional. Há quem defenda que as constituições deveriam tratar apenas da estrutura do Estado e dos direitos fundamentais: qualquer outra matéria não teria "natureza constitucional" e, portanto, deveria ficar fora da Constituição e ser regulada por leis de hierarquia inferior.

Esse modo de pensar o fenômeno constitucional, a partir de um núcleo de temas "constitucionais por natureza" ou "substantivamente constitucionais", deixa em segundo plano o fato de que, ao longo do século XX , algumas diferenças se tornaram tão relevantes para a sociedade que acabaram sendo incorporadas ao texto das constituições. Criar uma espécie de "cordão sanitário conceitual" em torno da matéria constitucional é uma das maneiras de criar entraves ideológicos à dinâmica das lutas sociais.

É evidente, diga-se, que uma determinada sociedade pode escolher que uma série de assuntos fique fora de sua Constituição. Dessa maneira, será mais fácil modificar as normas que os regulam, pois em qualquer ordenamento jurídico é difícil mudar um artigo constitucional. Em contraste, outros temas serão incluídos na Constituição exatamente pela razão contrária. Seja como for, estamos diante de uma escolha e não de um fenômeno natural; uma escolha que deve ser feita no processo de disputa social pelo sentido do direito.

Toda essa complexidade certamente causaria espanto ao arguto Barão, que teria se debruçado com mais energia sobre o insight genial a respeito da boa-fé presente nas mesmas páginas de O espírito das leis que tem nos ocupado aqui. O autor observa, com certa surpresa, que a república romana e a França de sua época utilizavam fórmulas como "boa-fé"1818] Interessante notar que a reflexão sobre "boa-fé" e outras cláusulas gerais está na base do debate sobre a materialização do direito formulado em seus termos clássicos por Max Weber em Weber, Max. Economia y Sociedade. México df: Fondo de Cultura Económica, 1966. O problema discutido pelo autor é a perda de previsibilidade do direito e suas consequências para a reprodução do sistema capitalista em função da incorporação de valores no ato de julgar por intermédio de fórmulas verbais como "boa-fé". Neumann responde a Weber mostrando que tal indeterminação não compromete a reprodução do capitalismo: há outras formas de conferir previsibilidades a essas normas jurídicas de textura aberta. Para uma análise mais extensa deste ponto, ver Fuga do Direito... e Por um novo conceito de segurança jurídica... [ para julgar casos judiciais. Tal fato é certamente digno de espanto para Montesquieu; afinal, em uma república não deveria ser lícito fugir da letra da lei. De acordo com o autor, a utilização da fórmula "boa-fé" seria mais afeita ao espírito das monarquias e... A análise termina aqui!

Diante do que foi dito até este ponto, parece claro que defender hoje a interpretação presa ao texto da lei nos mesmos termos de Montesquieu significaria opor-se a toda a legislação especial dos últimos dois séculos, tendo em vista os "problemas" interpretativos que elas provocam; a contar das leis destinadas a regular a situação de pessoas pobres, velhas, jovens e crianças, ainda que em bases estritamente assistencialistas; uma legislação que constitui os primórdios do que se viria a transformar nos estados de bem-estar social do século XX1919] Para uma análise desta evolução, ver Polanyi, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000. [.

Tal constatação joga uma nova luz sobre a relação entre a indeterminação do direito, as várias formas de autoritarismo e as diferenças sociais reconhecidas por lei. Em uma sociedade realmente marcada pela diferença, ou seja, em que as diferenças possam ser objeto de demandas por direitos, a defesa radical da simplificação das leis acaba por se constituir em um obstáculo intransponível para o avanço de reivindicações sociais2020] Um pensamento puramente instrumental que encare o direito apenas como meio para realizar fins externos a ele, praticado por alguns economistas, estudiosos de direito econômico, Law & Economics e Law & Development, revela aqui todo o seu potencial antidemocrático. Sobre este tema, ver Tamanaha, Brian. Law as a means to an end: threat to the rule of law. Nova York: Cambridge University Press, 2006; e Teles, Steven M. The rise of the conservative legal movement: the battle to control the law. Princeton: Princeton University Press, 2008. [ .

Não é por outra razão que autores como Carl Schmitt diziam que, para funcionar adequadamente, o direito liberal precisa de homogeneidade social. Para Schmitt uma norma só faz sentido se houver, de fato, uma situação social de normalidade que a ela corresponda em concreto: em abstrato a norma é completamente inútil e sem sentido. Na ausência dessa normalidade real, caberia ao soberano, se quiser estar à altura de seu nome, instituí-la por meio de um ato de pura força, externo ao direito2121] Schmitt, Carl. "Teologia política". In: A crise da democracia parlamentar. São Paulo: Scritta, 1996. [ , para, dessa forma, criar o marco zero de um estado de direito.

Afinal, se a igualdade é da essência da democracia, conforme afirma o jusnaturalista Schmitt, não restaria outra saída para um Estado que pretenda realizar a democracia do que instaurar e zelar pela unidade do poder, de um lado, e pela homogeneidade da sociedade, de outro. Na falta de um povo que esteja em relação de identidade consigo mesmo, "identidade entre dominadores e dominados, governantes e governados, dos que mandam e dos que obedecem"2222] Schmitt, Carl. Theory of Constitution. Durham e Londres: Duke University Press, 2008. [, não há, para Schmitt, democracia possível. Para Schmitt, a democracia pode conviver perfeitamente com a ditadura. Afinal, a igualdade não guarda relação necessária com o pluralismo político; ao contrário, é ameaçada por ele. Essa é a razão pela qual pode ser necessário instaurar e manter a democracia — ou seja, a igualdade — por um ato de força. E a criação desse poder unificado, ao qual deve corresponder a igualdade social concreta2323] Em Les trois types de pensée juridique (Paris: puf, 1995), Schmitt celebra o caráter verdadeiramente germânico, de acordo com ele, de uma visão concreta do direito, ou seja, de uma visão que não se perca em abstrações e volte sua atenção para a efetividade das instituições, para a correspondência entre norma e realidade. [, é essencial para a sobrevivência do Estado, ameaçada por toda e qualquer forma de pluralismo ou de partidarismo. Para Schmitt, todo Estado normal é necessariamente total e toda cisão cria, em potencial, um inimigo, uma ameaça para sua sobrevivência2424] Schmitt, Carl. State, movement, people. The triadic structure of the political unity . Corvallis: Plutarch Press, 2001. [ . O pluralismo deve ser combatido a todo custo.

Schmitt transforma o problema complexo e legítimo de criar unidade de comando em face da diversidade humana e do pluralismo político em uma mera questão de fato. Trata-se de saber como é possível, de fato, criar um poder unitário que corresponda a uma sociedade igualitária. A questão perde, assim, toda a consistência teórica. Seu fundamento é naturalizado e ela se transforma em um problema pragmático e de mero senso comum.

O raciocínio de Schmitt "fundamenta" dessa forma todo e qualquer ato de violência realizado com o objetivo de eliminar o pluralismo político e social. O pressuposto naturalizado e sem demonstração de todo o seu raciocínio é: apenas a homogeneidade social e a unidade do poder são capazes de garantir a sobrevivência de um Estado democrático. Tal chantagem fascista da unidade, posta na condição de pressuposto inquestionável, justifica todo e qualquer ato de força que vise instaurá-la. A necessidade concreta da unidade do poder, nos termos de Schmitt, não se deixa limitar por juízes ou pelos tribunais. Na verdade, a existência de juízes e tribunais autônomos e de leis estáveis pode ser um obstáculo para a sobrevivência do Estado. Um juiz de direito que se oriente por critérios não políticos, ou seja, que aja como um bom burocrata, será incapaz de zelar pela unidade do poder, tarefa que pode exigir o uso da força. E usar a força é negar a própria condição do juiz.

O despotismo de Schmitt, que já incorpora as lições de Kelsen, coloca a vontade do Führer, não o texto das leis ou sua interpretação, no centro do sistema jurídico. Em uma ordem política em que o Estado e a sociedade são idênticos, evidentemente, não existe a possibilidade de que as leis especiais proliferem ou que haja interpretações livres e variadas delas. O controle da normatividade está concentrado nas mãos do poder absoluto do soberano2525] É importante notar que esta forma autoritária de poder serve perfeitamente ao capitalismo em sua fase monopolista, ver Neumann, Franz. Behemoth: the structure and practice of National Socialism 1933-1944. Nova York: Oxford University Press, 1944. Em um regime de livre concorrência — para Adam Smith, por exemplo — a concentração de poder nas mãos do Estado é deletéria para a reprodução do mercado. Já para o capitalismo em sua fase monopolista a unidade de poder combinada com a homogeneidade social facilita o bom desenvolvimento dos negócios porque permite a padronização das regras de cima para baixo, sem a interferência da sociedade civil. [ . Seguindo as mesmas razões, seria igualmente deletéria para a unidade do soberano e da sociedade a presença de advogados militantes e de estratégias de litigância voltadas a obter determinados direitos pela via judicial, direitos estes que estabeleçam distinções que visem regular de maneira especial determinados grupos sociais e tipos de fato.

À semelhança do despotismo na versão do arguto Barão, o pensamento de Schmitt subordina o direito à vontade de um agente social qualquer, capaz de eliminar faticamente toda e qualquer diferença que ameace a unidade de seu poder. O direito ocupa assim uma posição subordinada em relação à força, tudo em nome da sobrevivência do Estado, da realização da democracia, ou seja, da manutenção da homogeneidade a todo custo.

A DESINTEGRAÇÃO DO STATUS QUO

Para desmontar esse raciocínio e explorar o potencial democrático da indeterminação do direito, Franz Neumann foi radical. Inverteu sem titubear o pressuposto autoritário de Schmitt ao afirmar que a democracia só pode se realizar de fato se o direito reconhecer e lidar com as desigualdades sociais. Tal inversão foi possível apenas em razão de seu modo de interpretar a ação dos agentes sociais, no caso, os trabalhadores, ao reivindicar direitos no Parlamento. Por isso mesmo, Neumann sustentou que toda forma de direito natural é mera ideologia, pois busca subtrair da luta social a definição do que deva ser o direito. No prefácio ao seu O império do direito , de 1936, Neumann escreveu:

Tentaremos mostrar adiante que uma justificação secular e racional do Estado e do direito, isto é, uma justificação humana baseada nas vontades ou nas carências dos homens, pode ter consequências revolucionárias sob certas condições históricas2626] Neumann, Franz. O império do direito. Teoria política e sistema jurídico na sociedade moderna. São Paulo: Quartier Latin, 2013. [.

A promessa de igualdade posta pelo direito em uma sociedade desigual faz com que os grupos sociais que se sintam injustiçados — desde que haja liberdade para tanto (garantia de direitos de liberdade pessoal e liberdade política2727] Chamo esta estrutura fundamental de forma direito no meu livro Fuga do Direito... [) — possam formular sua insatisfação na forma de reivindicação por direitos. Para Neumann, o império do direito, essa promessa de igualdade que jamais poderá ser cumprida, permite a efetivação constante e renovada da democracia, cujo motor é a demanda constante por novos direitos por parte da sociedade2828] Para as análises a seguir, ver Fuga do Direito... [.

A racionalidade do império do direito, seu modo específico de legitimação, exige que as normas sejam produzidas em função das demandas e carências sociais. Para Neumann, apenas este modo de funcionar confere racionalidade ao direito: "[...] uma fundamentação racional dos poderes coercitivos do Estado e do direito é uma justificação baseada nas carências e vontades dos homens"2929] O império do direito..., p. 72. [. O surgimento de novas carências e vontades vai transformar o direito posto constantemente e desfazer as hierarquias a ele correspondentes, ameaçando os interesses de quem estiver em posições de vantagem sobre os demais grupos sociais. Em uma sociedade desigual, o direito tem um efeito desintegrador:

Toda norma geral que pretende estabelecer um limite à atividade do estado, seja de direito natural ou de direito positivo, necessariamente contribui com a desintegração do status quo. Essa norma tem dois gumes; é uma espada de dois gumes. [...] Mais cedo ou mais tarde, o progressivo reconhecimento do Império do Direito se torna perigoso para as posições de poder 3030] O império do direito..., p. 6. [.

Foi justamente o movimento da classe operária na direção do Parlamento em luta por melhores condições de trabalho que mostrou para Neumann como o direito pode funcionar, em suas palavras, como uma espada de dois gumes3131] "O período pós-guerra [1ª Guerra Mundial] é caracterizado pelo fato de que o movimento trabalhista se torna politicamente autoconsciente, separando-se do movimento liberal da burguesia, constituindo-se como organização política autônoma e tentando transformar toda a sociedade conforme sua própria filosofia de vida. [...] a massa da população agora tinha direitos políticos e não mais se separava passivamente da elite governante." O império do direito..., p. 270. [. A luta social ativou o potencial desintegrador do direito ao mostrar que é possível utilizá-lo para contrariar os interesses da burguesia.

Ao prometer a igualdade a todos, o direito permite que as pes­soas e os grupos sociais comparem sua condição uns com os outros e sejam capazes de formular suas percepções de desigualdade sob a forma de demandas por direitos3232] Há muitas críticas sobre o uso da linguagem dos direitos na luta social: para uma visão geral dessa discussão, ver Brown, Wendy; Halley, Janet. Left Legalism/Left Critique. Durham, N. C.: Duke University Press, 2002. A despeito delas, concordo com Minow quando afirma que, mesmo com seus limites, o direito permite que indivíduos e grupos chamem atenção da esfera pública para pontos de vista que foram negligenciados pela maioria. Ver Minow, Martha. Making all the difference. Inclusion, exclusion, and American law. Cornell: Cornell University Press, 1994, p. 389. [. Por assim dizer, com a entrada da classe operária no Parlamento, o direito se transforma em uma esfinge que atormenta permanentemente o espírito da burguesia e de todos aqueles que ocupam posições de poder. O resultado desse processo foi o abandono do império do direito pela burguesia, que passou a apoiar a criação de regimes autoritários, legitimados de forma irracional, com o objetivo de manter seus privilégios e conter o ativismo reivindicatório da sociedade, estabelecendo na prática e de fato a homogeneidade social negada pelo próprio movimento social.

O abandono da democracia é acompanhado por uma reversão no sistema de valores da esfera filosófica. A ratio é desvalorizada. [...] Permanece somente a justificação carismática, que é um caso típico de atitude extrema de irracionalidade.3333] O império do direito..., p. 6. [

A garantia de não coincidência entre governantes e governados e entre norma abstrata e normalidade social concreta é crucial para a efetivação da democracia. Essa não coincidência permite que as desigualdades de hoje ponham em questão as leis atuais em nome de reivindicações que evidenciem a injustiça do que está posto. Essa distinção garante institucionalmente que o Estado seja racional, nos termos de Neumann, ou seja, que ele seja obrigado a responder a carências e vontades da sociedade e, dessa forma, abra espaço para que a sociedade deixe a condição de massa governada e passe a viver a vida política de forma plena, movida por uma autodeterminação consciente e livre.

A efetivação da igualdade por meio da força e a criação de homogeneidade social pelo soberano significa, para Neumann, a destruição do direito e da democracia, ao menos como nós as conhecemos no Ocidente3434] Para este ponto, ver o capítulo final de O império do direito e Behemoth... do mesmo autor. [. A normalidade obtida pela força é fascista; a coincidência entre norma e normalidade social, o verdadeiro mal a ser evitado. Um direito democrático só é imaginável no intervalo entre essas duas instâncias e desde que haja uma sociedade civil ativa que produza constantemente novas demandas3535] Para uma análise do que Neumann chama de "elemento ativista" e "elemento volitivo" da liberdade, ver Neumann, Franz. "The concept of political freedom". In: The democratic and the authoritarian state: essays in political and legal theory, ed. Herbert Marcuse. Glencoe: Free Press, 1957. [.

POR UM DIREITO INDETERMINADO

Um dos primeiros frutos desse processo de luta social via império do direito foi a legislação sobre as relações de trabalho que formou o que se conhece hoje como direito do trabalho. Outro fruto importante, colhido ainda no começo do século passado, foi a criação do instituto jurídico da "função social da propriedade", que modificou radicalmente o sentido da regulação da propriedade privada em sua versão liberal3636] Ver uma análise mais completa em Fuga do Direito... [ . Mas fiquemos apenas com o primeiro exemplo.

O direito do trabalho representa uma mudança radical na concepção liberal de contrato segundo a qual as partes podem negociar livremente o preço e o objeto da prestação. Ao comprar e vender um carro, por exemplo, conforme a concepção liberal clássica de contrato, não há inconveniente algum em negociar livremente o preço que as partes acharem mais justo pagar ou a forma de cumprir o contrato. A entrega do bem não tem consequência alguma sobre a pessoa do devedor, ou seja, sobre seu corpo físico.

Já nos contratos cujo objeto seja uma prestação de trabalho, a "coisa" vendida coincide com a pessoa do devedor e implica seu corpo3737] Uma das melhores análises da peculiaridade do contrato do trabalho ainda é a de Carnelutti, Francesco. Teoria geral do direito. São Paulo: Lejus, 1999, publicado originalmente em 1940. Sobre o sentido mais geral da proteção jurídica do trabalho, ver Rodriguez, José Rodrigo. "Direitos e questão social". In: Ivo, Anete B. L. (org.). Dicionário desenvolvimento e questão social (no prelo). [. A "entrega" da "coisa", a prestação do trabalho, exige o desgaste físico e mental da pessoa do devedor (que se cansa, adoece, envelhece, morre...), ou seja, a entrega do trabalho não é algo destacável dele. O devedor precisa colocar seu tempo, sua atenção, sua força física à disposição do credor para cumprir a prestação.

O devedor de um bem material não está subordinado ao seu credor: basta entregar a coisa para que ele se desobrigue da prestação. Já o empregado precisa comparecer todos os dias a mesma hora a um determinado local e desenvolver seu trabalho sob as ordens do credor. Por isso mesmo, ele está sujeito a problemas como excesso de trabalho (em intensidade e duração), falta de segurança, condições insalubres (presença de elementos tóxicos e perigosos), entre outros problemas, que derivam do poder do empregador em estabelecer a maneira pela qual o trabalho deverá ser realizado.

Ora, para retomar o exemplo anterior, se o carro for destruído antes ou no momento de sua entrega, é possível indenizar o credor em dinheiro. Uma determinada quantia seria equivalente ao carro devido. Mas, se o trabalhador adoentar-se, acidentar-se ou morrer durante a prestação de trabalho, a identidade entre a sua pessoa e a prestação de trabalho torna qualquer indenização conceitualmente impossível. Com o dinheiro pode-se comprar outro carro, mas não outra vida ou a capacidade de trabalho perdida.

Na mesma ordem de razões, se o valor devido ao empregado como contraprestação, o salário, for insuficiente para que ele sobreviva, é difícil imaginar como resolver tal problema sem aumentar excessivamente seu tempo de trabalho, em um segundo emprego, por exemplo, o que iria certamente comprometer sua integridade física, sua convivência social, sua vida familiar. Em tese, o empregado poderia procurar um emprego melhor. Mas, diante da relativa imobilidade espacial da mão de obra em contraste com a liberdade de circulação do capital, o trabalhador está quase sempre em desvantagem. Por exemplo, ele não pode escapar com tanta facilidade da contração da economia em um país como pode fazer o capital, especialmente o capital financeiro.

Em razão de todos esses problemas, os sindicatos lutaram para criar melhores condições de trabalho e conquistaram direitos trabalhistas, que se caracterizam como obrigações adicionais (para além do pagamento do salário) devidas ao empregado pelo empregador, sem nenhuma contrapartida por parte deste. Por exemplo, intervalos remunerados para descanso (dentro da jornada de trabalho, entre jornadas; semanal, o fim de semana e anual, as férias), décimo terceiro salário, salário mínimo, pisos salariais por categoria de trabalho, entre outros3838] "A relação trabalhista se baseia em obrigações recíprocas e no poder: seres humanos estabelecem relações de dominação com outros seres humanos. Essa é a base do princípio jurídico que obriga aqueles que possuem esse poder (a despeito de serem capitalistas privados ou socialistas) a cumprir obrigações adicionais em relação ao objeto da dominação, o trabalhador. Mas isso não [...] requer do trabalhador a execução de obrigações adicionais para o empregador, além daquelas estabelecidas no contrato de trabalho." Neumann, Franz. O império do direito..., p. 235. [.

Ao incorporar esses direitos ao "contrato" de trabalho, o conceito de contrato em seu sentido liberal burguês foi completamente transformado. Afinal, em troca dessas obrigações adicionais o empregado não deve nada a seu empregador. São prestações em contraprestação que servem para impor limites à exploração do trabalho e abrem espaço para superar o contrato como mera ideologia destinada a ocultar a exploração, afinal, fica claro que o salário, apenas ele, não é equivalente ao trabalho prestado3939] Para uma análise mais profunda deste ponto, ver Fuga do direito... [. Os direitos trabalhistas foram encarados no começo, e ainda o são por muitos teóricos e políticos neoliberais, como uma violação da liberdade de contratar das partes, uma intervenção indevida do Estado sobre a sociedade. Pois o estabelecimento dessa legislação especial coloca em xeque uma série de hierarquias, principalmente, o poder do empregador de determinar a maneira pela qual será prestado o trabalho e a possibilidade de as partes estabelecerem o seu preço.

Sob um estado de direito que funcione normalmente, é natural que as leis especiais sigam-se umas às outras. Seria possível reconstruir aqui, sob essa perspectiva, todo um século de lutas de empregados e empregadas, funcionários e funcionárias públicos, trabalhadores e trabalhadoras do campo, mulheres, negros e negras, indígenas, travestis, transex, transgênero, entre tantos outros grupos que têm buscado estampar sua diferença nas leis do Estado. As narrativas que justificam todas essas demandas por igualdade, de acordo com a gramática do estado de direito, resultaram na criação de novas leis especiais em um processo de destruição e reconstrução do direito posto que não dá sinais de arrefecer e tende a ampliar sensivelmente a complexidade das leis. Afinal, para que tal processo termine ou bem todas as carências e vontades humanas devem estar satisfeitas ou é preciso instaurar um regime autoritário que neutralize a sociedade civil.

Novas leis especiais geram uma série de novos problemas jurídicos. Para ficar no âmbito do direito do trabalho, assistimos à criação de diversas medidas de proteção ao trabalho da mulher, por exemplo, a garantia de estabilidade no emprego para as gestantes. De acordo com essa garantia, os empregadores não podem demitir as gestantes desde a confirmação da gravidez até um determinado período após o nascimento da criança. O objetivo da medida é proteger a mulher e a criança, em seus primeiros momentos de vida, de uma eventual dispensa que torne sua vida materialmente mais difícil.

Tal medida protetiva gerou e gera uma série de problemas jurídicos que dificultam dar um sentido coerente à legislação trabalhista. Por exemplo, a proteção às gestantes pode ter como efeito um desestímulo na contratação de mulheres. Afinal, ao contratar apenas homens, os empregadores não veriam reduzido seu poder de demitir seus empregados sem justa causa. Nesse sentido, a estabilidade da gestante, em que pese a pretensão de ser protetiva, pode ter como efeito estigmatizar e prejudicar as mulheres4040] É importante notar que o sindicalismo nem sempre viu com bons olhos a atuação das mulheres como trabalhadoras competindo com os homens pelos postos de trabalho. Para um bom panorama do problema, ver os primeiros capítulos de Goldman, Wendy Z. Women at the gates. Gender and industry in Stalin's Russia. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, Roberts, Elisabeth. Women's work 1840-1940. Cambridge: Cambridge University Press, 1995; e Milkman, Ruth. Women, work and protest: A century of U.S. women's labor history. Londres: Routledge, 1985. [.

Além disso, de outro ponto de vista, discute-se a partir de que momento a grávida adquire estabilidade: no momento em que ela comunica a gravidez ao empregador ou no momento em que ela fica efetivamente grávida? Na primeira hipótese, discute-se se seria justo impor tal ônus, a proibição de dispensa, a alguém que não sabia de nada, que nunca teve a intenção de discriminar a mulher em razão da gravidez. Não tendo sido comunicado, por exemplo, do início de uma gravidez ainda imperceptível a olho nu, a mulher demitida estaria agindo de má-fé ao entrar com uma ação reclamando esse direito. Na segunda hipótese, de responsabilidade objetiva, esse problema desaparece. A garantia se constitui em uma responsabilidade objetiva do empregador: medida de proteção que atribui um ônus ao empregador por razões de ordem pública que substituem as intenções das partes.

Como diz Montesquieu, tais complexidades, de tempos em tempos, podem ser "remediadas" pelo legislador, por exemplo, com a criação de uma lei que procure pôr fim a uma determinada controvérsia ou pelos intérpretes que podem terminar estabilizando um determinado modo de interpretar as normas jurídicas. No entanto, o surgimento de novos problemas jurídicos, de novas complexidades, numa democracia, nunca vai cessar. Pois o direito que hoje está posto e a interpretação que se encontra estabilizada neste momento podem ser questionados logo a seguir por uma nova reivindicação por direitos e por novas maneiras de interpretar as leis, nascidas de ações judiciais.

Retomando o fio da exposição, discuti aqui apenas alguns problemas jurídicos relacionados a um instituto bastante simples. A despeito disso, diante do que foi dito, para retomar os termos de Montesquieu, é razoável afirmar que a miríade de "regras, restrições, extensões, que multiplicam os casos particulares" conquistadas pela luta social tende a transformar o pensamento jurídico em algo mais próximo de uma arte do que uma simples operação lógico-formal.

Como Kelsen notara há quase cem anos, se o direito for considerado uma "ciência", ele terá características muito diversas do que as que são atribuídas às ciências "duras". O pensamento jurídico será mais parecido com o raciocínio ético-moral4141] Para este ponto, ver Por um novo conceito de segurança jurídica... e Rodriguez, José Rodrigo. "Controlar a profusão de sentidos: a hermenêutica jurídica como negação do subjetivo". In: Hermenêutica plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002. [, com uma forma de pensar relativamente indeterminada e dinâmica, que encara a imprecisão como um fato da vida, uma consequência necessária da liberdade da sociedade, que se traduz na possibilidade de reivindicar direitos e de lutar pela melhor interpretação das leis, tendo em vista a indeterminação de seu sentido4242] Sobre este ponto, ver Para um novo conceito de segurança jurídica... e os textos de Dogmática é conflito (São Paulo: Saraiva, 2012), livro do qual sou coautor. Para um estudo sobre o avanço conservador na disputa sobre o sentido do direito nos Estados Unidos, ver: The rise of the conservative legal movement... [. Em uma democracia, portanto, os juristas devem se preocupar menos com o sentido preciso do texto das leis do que com a dinâmica da luta social.

SUPREMO INTÉRPRETE

Mas toda essa discussão é suficiente para explicar e justificar que o STF possa atuar, para usar um termo técnico, como legislador positivo? Não seria essa a circunstância responsável pelo eventual desequilíbrio de poderes em nosso país? Falando especificamente desse tribunal, a nossa Corte Constitucional, é razoável que ele atue, de fato, como um legislador, proferindo decisões que inovem a ordem jurídica? Antes de discutir esse ponto, alguns esclarecimentos conceituais.

Para Kelsen, autor-chave também para esse tema, a declaração de inconstitucionalidade de uma lei, sua retirada do sistema jurídico, equivale a um ato legislativo. Neste caso, não estamos diante da livre criação de uma lei, como ocorre no Parlamento. Este é um ato de criação que se produz no contexto de uma ação judicial. Mas mesmo assim, ao fim e ao cabo, a declaração de inconstitucionalidade tem efeitos sobre toda a sociedade ao estabelecer que determinado comportamento deixa de ser ou proibido ou permitido. Por isso, Kelsen afirma que a declaração de inconstitucionalidade em abstrato tem os mesmos efeitos de uma lei, ou seja, tem a natureza de um ato legislativo. Trata-se de um ato com ampla repercussão sobre a vida social e, por essa razão, deve ser exercido com exclusividade por uma Corte especial de natureza constitucional que faça parte do Poder Legislativo e não do Poder Judiciário. Daí nasce a ideia, por exemplo, de que os juízes sejam indicados pelo Parlamento. Para Kelsen, essa configuração institucional seria a mais adequada para manter o equilíbrio entre os poderes4343] Para esta discussão ver Kelsen, Hans. Justiça constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003. [.

Kelsen ajudou a criar a Corte Constitucional austríaca e atuou nela como juiz durante muitos anos. Especialmente depois da Segunda Guerra, suas ideias foram adotadas pela maior parte dos países do mundo, especialmente na Europa4444] Cf. Batalha, Carlos Eduardo. "O jurista como verdadeiro teórico do Estado". Novos Estudos Cebrap n. 91, nov. 2011, p. 201-211. [ N. E.] [. Mesmo em países que continuaram a atribuir a competência para examinar a inconstitucionalidade das leis a todos os juízes, neste caso, por meio de decisões válidas apenas para as partes de um processo judicial em concreto, criaram, em paralelo, Cortes com a competência exclusiva para declarar a inconstitucionalidade em abstrato. Outros países ficaram apenas com uma Corte Constitucional, sede exclusiva de toda e qualquer declaração de inconstitucionalidade4545] Ver a primeira parte de Brewer-Carías, Allan R. Constitutional Courts as positive legislators. a comparative law study. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. [.

O Brasil é um dos países que adotaram um sistema misto de controle de constitucionalidade. O STF tem a competência exclusiva para declarar a inconstitucionalidade em abstrato e todos os demais juízes e cortes de outra natureza podem declarar a inconstitucionalidade em concreto. Diante do que falamos, para retomar o início deste texto, será que a suposta "crise institucional" brasileira, o nosso suposto "desequilíbrio de poderes", deve-se ao fato de que o STF atua como legislador positivo, ou seja, ao fato de que esse tribunal faça mais do que declarar a inconstitucionalidade das leis em abstrato?

Se a crise for, de fato, esta, trata-se de um problema de dimensões mundiais, um desequilíbrio de poderes capaz de tirar o planeta Terra de seu eixo de rotação, tamanha a sua magnitude4646] Ainda não há muitas pesquisas organizadas sobre este tema, mas os dados de que dispomos até agora mostram que o STF julgou de forma "ativista" apenas alguns poucos casos e suas decisões desta natureza não tiveram como efeito inibir a proposta de projetos de lei sobre o mesmo assunto no Congresso Nacional. Ver os dois primeiros capítulos de Pogrebinschi, Thamy. Judicialização ou Representação? Política, direito e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. [. Todas as 933 páginas do livro Constitutional Courts as positive legislators , que já citamos, são dedicadas a construir um diagnóstico mundial sobre esse tema. O livro traz relatórios sobre o assunto escritos por constitucionalistas de todo o mundo, organizados por Allan R. Brewer-Carías, cujas conclusões nos ajudam a colocar nossa corte em perspectiva.

O livro afirma que a atuação das cortes como legislador positivo, ou seja, para além da declaração de inconstitucionalidade em abstrato, é uma tendência mundial e se desdobra em quatro modalidades4747] Brewer-Carías, Allan R. Constitutional Courts as positive legislators, pp. 889- 923. [:

a) interferências sobre o poder constituinte : por exemplo, alterando a competência dos entes federativos, emendando a Constituição ou alterando emendas, adaptando provisões constitucionais a regras sobre direitos fundamentais, alterando a forma de organização e atuação do estado;

b) interferências sobre a legislação existente : por meio da interpretação de leis conforme a Constituição, adição de novas regras (novo sentido) a uma provisão legislativa já existente, interferência sobre a validade temporal de uma lei, dar efeitos a legislação anulada;

c) interferência sobre a inexistência de legislação ou sobre a omissão legislativa : atuação para preencher uma omissão legislativa absoluta, atua­ção para preencher uma lacuna decorrente de omissão legislativa; atuação como legislador provisório;

d) cortes atuando como legislador quanto a seu poder judicial de revisão : criação de seu próprio processo judicial de revisão, criação de regras procedimentais.

Brewer-Carías não se arrisca a levantar hipóteses sobre as razões pelas quais essas quatro tendências se estabeleceram. Talvez elas sejam resultado do ativismo da sociedade perante as Cortes Supremas. Mas, de qualquer forma, seu livro deixa muito claro que as Cortes Constitucionais, como as demais cortes, exercem amplamente sua função de interpretar as normas constitucionais e as leis de hierarquia inferior das mais diversas formas. E faz isso sem alarmismo, sem afirmar que os fenômenos identificados são alguma coisa a ser combatida em nome de um possível modelo ótimo de equilíbrio entre os poderes.

Os poderes do Estado não seguem estritamente o desenho abstrato previsto na Constituição. Eles são definidos por seus embates, muitas vezes ativados por ações judiciais propostas por indivíduos, partidos, associações, movimentos sociais, entre outros agentes políticos. A separação dos poderes se constrói, portanto, por reformas parciais sucessivas levadas adiante por intermédio de leis ou decisões judiciais4848] Bruce Ackermann desenvolveu uma teoria da separação dos poderes em seu país em uma perspectiva dinâmica, atenta à sua evolução histórica em A nova separação dos poderes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. Infelizmente, seu texto naturaliza o novo desenho, o que diminui seu poder analítico. Sobre o mesmo tema, ver também o livro-curso Shane, Peter M.; Bruff, Harold H. Separation of powers law. Cases and materials. Durham: Carolina Academic Press, 2011. [. O desenho do Estado não costuma ficar imune aos embates entre os diversos grupos sociais, exceto em regimes autoritários ou no mundo ideal (e potencialmente autoritário) criado por teorias que defendem uma gestão tecnocrática do processo político.

Naturalizar a separação dos poderes em uma forma idealizada qualquer equivale a agir como um vampiro de regimes defuntos; assumir o papel de representante de tudo o que já está morto em um determinado contexto social por medo da "vil multidão", prenhe de carências e vontades. Mas isso significa, por acaso, que devemos nos render à empiria e deixar de criticar nossa democracia e seu desenho da separação de poderes? Devemos permanecer no nível descritivo, sem ter como objetivo de identificar aspectos disfuncionais e problemáticos de nossas instituições? Sem discutir seus aspectos regressivos e emancipatórios?

É claro que não. Mas a crítica precisa partir de uma boa descrição de seu objeto. Precisa identificar com clareza o espírito do desenho institucional com o qual está lidando, do contrário, corre o risco de passar longe de seu alvo. Este texto, modestamente, pretende ter contribuído para afinar essa capacidade descritiva. A crítica, sempre necessária, começaria agora, não me faltassem as páginas4949] Em Dogmática é conflito... e Como decidem as Cortes?... desenvolvo minhas críticas à fundamentação das decisões jurídicas no Brasil, para mim altamente problemática, e esboço um modelo de crítica ao direito em geral..

Recebido para publicação em 8 de julho de 2013.

JOSÉ RODRIGO RODRIGUEZ é coordenador do Núcleo Direito e Democracia-Cebrap e editor da Revista Direito GV.

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  • [1] Já falei sobre esse assunto em Nobre, Marcos; Rodriguez, José Rodrigo. "Judicialização da política: déficits explicativos e bloqueios normativistas". Novos Estudos Cebrap, n. 91, 2011.
  • [2] Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. Lisboa: Armênio Amado,
  • [3] Trato deste problema com foco no texto das leis em Rodriguez, José Rodrigo. Por um novo conceito de segurança jurídica: racionalidade jurisdicional e estratégias legislativas. Analisi e diritto,
  • 2012. Sobre as características do modo de pensar dos juízes brasileiros, ver Rodriguez, José Rodrigo, Cutrupi, Carolina. "Como decidem os juízes? Sobre a qualidade da jurisdição brasileira". In: Silva, Felipe Gonçalves; Rodriguez, José Rodrigo. Manual de sociologia jurídica São Paulo: Saraiva,
  • 2013; e Rodriguez, José Rodrigo. Como decidem as cortes? Rio de Janeiro: Ed. fgv, no prelo.
  • [4] Ver Silveira, Alípio. O fator político-social na aplicação das leis. São Paulo: Tipográfica Paulista, 1946.
  • [5] Ver Siéyès. E. J. "Quelques idées sur la constituition aplicables a la Ville de Paris". In: Oevres de Siéyès. Paris: Edhis. s/d.
  • [6] Ver Muller, Ingo. Hitler's Justice: The ourts of the Third Reich. Harvard: Harvard University Press, 1991.
  • [7] Kirchheimer, Otto. Political Justice: The use of legal procedure for political ends. Princeton: Princeton University Press,
  • [9] Para todas as citações a seguir Montesquieu, O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 84-88.
  • [10] Como veremos a seguir, a incorporação de diferenças ao direito é um dos fatores que o torna complexo a ponto de não ser mais possível interpretá-lo apenas por meio de raciocínios lógico-formais. A incorporação de cláusulas gerais como "boa-fé" e de outros recursos argumentativos como os princípios jurídicos, especialmente a partir do século passado, está ligada à dinâmica dos conflitos sociais e seu impacto sobre a complexidade das leis. Nesse sentido, ler o conceito de materialização do direito de Weber do ponto de vista de uma sociedade civil livre e ativa faz com que se perceba seu potencial democrático. É claro, a materialização traz o risco de arbítrio. Pode ter efeitos autoritários, por exemplo, em um Estado em que os juízes decidam sem fundamentação racional, em que o poder esteja concentrado nas mãos de um líder carismático e a sociedade civil esteja neutralizada, sem poder demandar direitos e acionar o Judiciário. Para um exame mais detalhado dessa ambiguidade ver Rodriguez, José Rodrigo. Fuga do Direito: um ensaio sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann. São Paulo: Saraiva,
  • [11] Não há espaço aqui para discutir este problema em detalhes. Ele é abordado pela literatura em direito sob a denominação de "juridificação". Vou falar apenas de um de seus aspectos, aquele mais ligado à dinâmica dos movimentos sociais e responsável por questionar as hierarquias de poder. Para um aprofundamento deste tema, ver Fuga do Direito... e Friedman, Lawrence M. Jurisdicização. [verbete] In: Arnaud, André-Jean (org.). Dicionário enciclopédico de teoria e sociologia do direito. Rio de Janeiro: Renovar,
  • [12] Outra maneira de reivindicar direitos é pleitear a competência para criar normas em esferas imunes à regulação estatal. Essa gramática, diferente da gramática das regras, tem sido utilizada, por exemplo, para reivindicar direitos para comunidades indígenas as quais pretendem manter suas regras em funcionamento a par das normas do Estado no qual se inserem. Por razões de espaço, não vou tratar desse problema aqui, que abordei em Rodriguez, José Rodrigo. "Inverter o espelho: o direito ocidental em normatividades plurais". In: Reis, Rossana Rocha (org.). Política de direitos humanos. São Paulo: Hucitec,
  • [13] Reproduzo neste ponto a observação de Bruce Ackermann sobre os "founding fathers" em seu esforço de desfazer o mito sobre estes escritos e submeter as instituições dos Estados Unidos a uma crítica racional. Ver Ackermann, Bruce. The decline and fall of the American Republic. Cambridge: Belknap Press,
  • [14] Para uma exposição sobre a evolução do sufrágio universal e as estratégias conservadoras para conter seu poder subversivo, ver Losurdo, Domenico. Democracia ou bonapartismo. Triunfo e decadência do sufrágio universal. São Paulo/Rio de Janeiro: Ed. Unesp/UFRJ, 2004.
  • [15] Para este ponto ver Sampaio, P. A. "Para além da ambiguidade: uma reflexão histórica sobre a cf/88". In: Cardoso Júnior, J. C. (org.). A constituição brasileira de 1988 revisitada: recuperação histórica e desafios atuais das políticas públicas nas áreas econômica e social. Brasília: Ipea,
  • 2009; e Kinzo, M. A. G. "O quadro partidário e a constituinte". In: Lamounier, B. (org.). De Geisel a Collor: o balanço da transição São Paulo: Sumará
  • [16] Cf. Silva, Virgílio Afonso da. "Historinhas (irrelevantes) sobre as constituições brasileiras", nesta edição de Novos Estudos Cebrap. [
  • [17] Os juízes alemães chegaram a negar vigência a Constituição de Weimar em seus julgados. Para este ponto ver a primeira parte do meu livro Fuga do Direito... e Bercovici, Gilberto. Constituição e Estado de exceção permanente: atualidades de Weimar. São Paulo: Azougue,
  • [18] Interessante notar que a reflexão sobre "boa-fé" e outras cláusulas gerais está na base do debate sobre a materialização do direito formulado em seus termos clássicos por Max Weber em Weber, Max. Economia y Sociedade. México df: Fondo de Cultura Económica,
  • [19] Para uma análise desta evolução, ver Polanyi, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus,
  • [20] Um pensamento puramente instrumental que encare o direito apenas como meio para realizar fins externos a ele, praticado por alguns economistas, estudiosos de direito econômico, Law & Economics e Law & Development, revela aqui todo o seu potencial antidemocrático. Sobre este tema, ver Tamanaha, Brian. Law as a means to an end: threat to the rule of law. Nova York: Cambridge University Press,
  • 2006; e Teles, Steven M. The rise of the conservative legal movement: the battle to control the law Princeton: Princeton University Press,
  • [21] Schmitt, Carl. "Teologia política". In: A crise da democracia parlamentar. São Paulo: Scritta, 1996.
  • [22] Schmitt, Carl. Theory of Constitution. Durham e Londres: Duke University Press,
  • [24] Schmitt, Carl. State, movement, people. The triadic structure of the political unity . Corvallis: Plutarch Press,
  • [25] É importante notar que esta forma autoritária de poder serve perfeitamente ao capitalismo em sua fase monopolista, ver Neumann, Franz. Behemoth: the structure and practice of National Socialism 1933-1944. Nova York: Oxford University Press,
  • [26] Neumann, Franz. O império do direito. Teoria política e sistema jurídico na sociedade moderna. São Paulo: Quartier Latin,
  • [32] Há muitas críticas sobre o uso da linguagem dos direitos na luta social: para uma visão geral dessa discussão, ver Brown, Wendy; Halley, Janet. Left Legalism/Left Critique. Durham, N. C.: Duke University Press,
  • [35] Para uma análise do que Neumann chama de "elemento ativista" e "elemento volitivo" da liberdade, ver Neumann, Franz. "The concept of political freedom". In: The democratic and the authoritarian state: essays in political and legal theory, ed. Herbert Marcuse. Glencoe: Free Press,
  • [37] Uma das melhores análises da peculiaridade do contrato do trabalho ainda é a de Carnelutti, Francesco. Teoria geral do direito. São Paulo: Lejus,
  • 1999, publicado originalmente em 1940. Sobre o sentido mais geral da proteção jurídica do trabalho, ver Rodriguez, José Rodrigo. "Direitos e questão social". In: Ivo, Anete B. L. (org.). Dicionário desenvolvimento e questão social (no prelo).
  • [38] "A relação trabalhista se baseia em obrigações recíprocas e no poder: seres humanos estabelecem relações de dominação com outros seres humanos. Essa é a base do princípio jurídico que obriga aqueles que possuem esse poder (a despeito de serem capitalistas privados ou socialistas) a cumprir obrigações adicionais em relação ao objeto da dominação, o trabalhador. Mas isso não [...] requer do trabalhador a execução de obrigações adicionais para o empregador, além daquelas estabelecidas no contrato de trabalho." Neumann, Franz. O império do direito..., p.
  • [40] É importante notar que o sindicalismo nem sempre viu com bons olhos a atuação das mulheres como trabalhadoras competindo com os homens pelos postos de trabalho. Para um bom panorama do problema, ver os primeiros capítulos de Goldman, Wendy Z. Women at the gates. Gender and industry in Stalin's Russia. Cambridge: Cambridge University Press,
  • 2002, Roberts, Elisabeth. Women's work 1840-1940 Cambridge: Cambridge University Press,
  • 1995; e Milkman, Ruth. Women, work and protest: A century of U.S. women's labor history Londres: Routledge,
  • [41] Para este ponto, ver Por um novo conceito de segurança jurídica... e Rodriguez, José Rodrigo. "Controlar a profusão de sentidos: a hermenêutica jurídica como negação do subjetivo". In: Hermenêutica plural. São Paulo: Martins Fontes,
  • [44] Cf. Batalha, Carlos Eduardo. "O jurista como verdadeiro teórico do Estado". Novos Estudos Cebrap n. 91, nov. 2011, p. 201-211. [
  • [45] Ver a primeira parte de Brewer-Carías, Allan R. Constitutional Courts as positive legislators. a comparative law study. Cambridge: Cambridge University Press,
  • [46] Ainda não há muitas pesquisas organizadas sobre este tema, mas os dados de que dispomos até agora mostram que o STF julgou de forma "ativista" apenas alguns poucos casos e suas decisões desta natureza não tiveram como efeito inibir a proposta de projetos de lei sobre o mesmo assunto no Congresso Nacional. Ver os dois primeiros capítulos de Pogrebinschi, Thamy. Judicialização ou Representação? Política, direito e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier,
  • [47] Brewer-Carías, Allan R. Constitutional Courts as positive legislators, pp. 889-
  • [48] Bruce Ackermann desenvolveu uma teoria da separação dos poderes em seu país em uma perspectiva dinâmica, atenta à sua evolução histórica em A nova separação dos poderes. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
  • 2013. Infelizmente, seu texto naturaliza o novo desenho, o que diminui seu poder analítico. Sobre o mesmo tema, ver também o livro-curso Shane, Peter M.; Bruff, Harold H. Separation of powers law. Cases and materials Durham: Carolina Academic Press,
  • 1
    ] Já falei sobre esse assunto em Nobre, Marcos; Rodriguez, José Rodrigo. "Judicialização da política: déficits explicativos e bloqueios normativistas".
    Novos Estudos Cebrap, n. 91, 2011.
    [
  • 2
    ] Kelsen, Hans.
    Teoria pura do direito. Lisboa: Armênio Amado, 1978.
    [
  • 3
    ] Trato deste problema com foco no texto das leis em Rodriguez, José Rodrigo.
    Por um novo conceito de segurança jurídica: racionalidade jurisdicional e estratégias legislativas.
    Analisi e diritto, 2012. Sobre as características do modo de pensar dos juízes brasileiros, ver Rodriguez, José Rodrigo, Cutrupi, Carolina. "Como decidem os juízes? Sobre a qualidade da jurisdição brasileira". In: Silva, Felipe Gonçalves; Rodriguez, José Rodrigo.
    Manual de sociologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 2013; e Rodriguez, José Rodrigo.
    Como decidem as cortes? Rio de Janeiro: Ed. fgv, no prelo. Sobre o papel da advocacia, participo atualmente da pesquisa "Atuação da advocacia popular", financiada pela Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, que certamente trará reflexões sobre esse tema em suas conclusões.
    [
  • 4
    ] Ver Silveira, Alípio.
    O fator político-social na aplicação das leis. São Paulo: Tipográfica Paulista, 1946. Neste estudo, infelizmente esquecido, Alípio faz uma avaliação pioneira da relação entre regimes autoritários e Poder Judiciário.
    [
  • 5
    ] Ver Siéyès. E. J. "Quelques idées sur la constituition aplicables a la Ville de Paris". In:
    Oevres de Siéyès. Paris: Edhis. s/d.
    [
  • 6
    ] Ver Muller, Ingo.
    Hitler's Justice: The ourts of the Third Reich. Harvard: Harvard University Press, 1991.
    [
  • 7
    ] Kirchheimer, Otto.
    Political Justice:
    The use of legal procedure for political ends. Princeton: Princeton University Press, 1961.
    [
  • 8
    ] Há uma nuance importante aqui. Para os revolucionários franceses, a vontade do povo estaria expressa no texto das leis que deveria ser seguido estritamente. Para os nazistas, a vontade do povo estava encarnada na vontade do Führer e se sobrepunha ao texto das leis. No entanto, nos dois casos, os juízes representavam um entrave para a realização desses dois projetos radicais.
    [
  • 9
    ] Para todas as citações a seguir Montesquieu,
    O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 84-88.
    [
  • 10
    ] Como veremos a seguir, a incorporação de diferenças ao direito é um dos fatores que o torna complexo a ponto de não ser mais possível interpretá-lo apenas por meio de raciocínios lógico-formais. A incorporação de cláusulas gerais como "boa-fé" e de outros recursos argumentativos como os princípios jurídicos, especialmente a partir do século passado, está ligada à dinâmica dos conflitos sociais e seu impacto sobre a complexidade das leis. Nesse sentido, ler o conceito de materialização do direito de Weber do ponto de vista de uma sociedade civil livre e ativa faz com que se perceba seu potencial democrático. É claro, a materialização traz o risco de arbítrio. Pode ter efeitos autoritários, por exemplo, em um Estado em que os juízes decidam sem fundamentação racional, em que o poder esteja concentrado nas mãos de um líder carismático e a sociedade civil esteja neutralizada, sem poder demandar direitos e acionar o Judiciário. Para um exame mais detalhado dessa ambiguidade ver Rodriguez, José Rodrigo.
    Fuga do Direito: um ensaio sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann. São Paulo: Saraiva, 2009.
    [
  • 11
    ] Não há espaço aqui para discutir este problema em detalhes. Ele é abordado pela literatura em direito sob a denominação de "juridificação". Vou falar apenas de um de seus aspectos, aquele mais ligado à dinâmica dos movimentos sociais e responsável por questionar as hierarquias de poder. Para um aprofundamento deste tema, ver
    Fuga do Direito... e Friedman, Lawrence M. Jurisdicização. [verbete] In: Arnaud, André-Jean (org.).
    Dicionário enciclopédico de teoria e sociologia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
    [
  • 12
    ] Outra maneira de reivindicar direitos é pleitear a competência para criar normas em esferas imunes à regulação estatal. Essa gramática, diferente da gramática das regras, tem sido utilizada, por exemplo, para reivindicar direitos para comunidades indígenas as quais pretendem manter suas regras em funcionamento a par das normas do Estado no qual se inserem. Por razões de espaço, não vou tratar desse problema aqui, que abordei em Rodriguez, José Rodrigo. "Inverter o espelho: o direito ocidental em normatividades plurais". In: Reis, Rossana Rocha (org.).
    Política de direitos humanos. São Paulo: Hucitec, 2010.
    [
  • 13
    ] Reproduzo neste ponto a observação de Bruce Ackermann sobre os "
    founding fathers" em seu esforço de desfazer o mito sobre estes escritos e submeter as instituições dos Estados Unidos a uma crítica racional. Ver Ackermann, Bruce.
    The decline and fall of the American Republic. Cambridge: Belknap Press, 2010. Nesse sentido, é interessante acompanhar a discussão de Montesquieu em
    O espírito das leis sobre a importância de uma definição clara sobre o número de representantes nas democracias.
    [
  • 14
    ] Para uma exposição sobre a evolução do sufrágio universal e as estratégias conservadoras para conter seu poder subversivo, ver Losurdo, Domenico.
    Democracia ou bonapartismo. Triunfo e decadência do sufrágio universal. São Paulo/Rio de Janeiro: Ed. Unesp/UFRJ, 2004.
    [
  • 15
    ] Para este ponto ver Sampaio, P. A. "Para além da ambiguidade: uma reflexão histórica sobre a cf/88". In: Cardoso Júnior, J. C. (org.).
    A constituição brasileira de 1988 revisitada: recuperação histórica e desafios atuais das políticas públicas nas áreas econômica e social. Brasília: Ipea, 2009; e Kinzo, M. A. G. "O quadro partidário e a constituinte". In: Lamounier, B. (org.).
    De Geisel a Collor: o balanço da transição. São Paulo: Sumará , 1990.
    [
  • 16
    ] Cf. Silva, Virgílio Afonso da. "Historinhas (irrelevantes) sobre as constituições brasileiras", nesta edição de
    Novos Estudos Cebrap. [ N. E.]
    [
  • 17
    ] Os juízes alemães chegaram a negar vigência a Constituição de Weimar em seus julgados. Para este ponto ver a primeira parte do meu livro
    Fuga do Direito... e Bercovici, Gilberto.
    Constituição e Estado de exceção permanente: atualidades de Weimar. São Paulo: Azougue, 2004, livro que mostra a resistência da teoria constitucional, encabeçada por Carl Schmitt, para aceitar a constitucionalização dos direitos dos trabalhadores.
    [
  • 18
    ] Interessante notar que a reflexão sobre "boa-fé" e outras cláusulas gerais está na base do debate sobre a materialização do direito formulado em seus termos clássicos por Max Weber em Weber, Max.
    Economia y Sociedade. México df: Fondo de Cultura Económica, 1966. O problema discutido pelo autor é a perda de previsibilidade do direito e suas consequências para a reprodução do sistema capitalista em função da incorporação de valores no ato de julgar por intermédio de fórmulas verbais como "boa-fé". Neumann responde a Weber mostrando que tal indeterminação não compromete a reprodução do capitalismo: há outras formas de conferir previsibilidades a essas normas jurídicas de textura aberta. Para uma análise mais extensa deste ponto, ver
    Fuga do Direito... e
    Por um novo conceito de segurança jurídica...
    [
  • 19
    ] Para uma análise desta evolução, ver Polanyi, Karl.
    A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
    [
  • 20
    ] Um pensamento puramente instrumental que encare o direito apenas como meio para realizar fins externos a ele, praticado por alguns economistas, estudiosos de direito econômico,
    Law & Economics e
    Law & Development, revela aqui todo o seu potencial antidemocrático. Sobre este tema, ver Tamanaha, Brian.
    Law as a means to an end: threat to the rule of law. Nova York: Cambridge University Press, 2006; e Teles, Steven M.
    The rise of the conservative legal movement: the battle to control the law. Princeton: Princeton University Press, 2008.
    [
  • 21
    ] Schmitt, Carl. "Teologia política". In:
    A crise da democracia parlamentar. São Paulo: Scritta, 1996.
    [
  • 22
    ] Schmitt, Carl.
    Theory of Constitution. Durham e Londres: Duke University Press, 2008.
    [
  • 23
    ] Em
    Les trois types de pensée juridique (Paris: puf, 1995), Schmitt celebra o caráter verdadeiramente germânico, de acordo com ele, de uma visão concreta do direito, ou seja, de uma visão que não se perca em abstrações e volte sua atenção para a efetividade das instituições, para a correspondência entre norma e realidade.
    [
  • 24
    ] Schmitt, Carl.
    State, movement, people. The triadic structure of the political unity . Corvallis: Plutarch Press, 2001.
    [
  • 25
    ] É importante notar que esta forma autoritária de poder serve perfeitamente ao capitalismo em sua fase monopolista, ver Neumann, Franz.
    Behemoth: the structure and practice of National Socialism 1933-1944. Nova York: Oxford University Press, 1944. Em um regime de livre concorrência — para Adam Smith, por exemplo — a concentração de poder nas mãos do Estado é deletéria para a reprodução do mercado. Já para o capitalismo em sua fase monopolista a unidade de poder combinada com a homogeneidade social facilita o bom desenvolvimento dos negócios porque permite a padronização das regras de cima para baixo, sem a interferência da sociedade civil.
    [
  • 26
    ] Neumann, Franz.
    O império do direito. Teoria política e sistema jurídico na sociedade moderna. São Paulo: Quartier Latin, 2013.
    [
  • 27
    ] Chamo esta estrutura fundamental de
    forma direito no meu livro
    Fuga do Direito...
    [
  • 28
    ] Para as análises a seguir, ver
    Fuga do Direito...
    [
  • 29
    ]
    O império do direito..., p. 72.
    [
  • 30
    ]
    O império do direito..., p. 6.
    [
  • 31
    ] "O período pós-guerra [1ª Guerra Mundial] é caracterizado pelo fato de que o movimento trabalhista se torna politicamente autoconsciente, separando-se do movimento liberal da burguesia, constituindo-se como organização política autônoma e tentando transformar toda a sociedade conforme sua própria filosofia de vida. [...] a massa da população agora tinha direitos políticos e não mais se separava passivamente da elite governante."
    O império do direito..., p. 270.
    [
  • 32
    ] Há muitas críticas sobre o uso da linguagem dos direitos na luta social: para uma visão geral dessa discussão, ver Brown, Wendy; Halley, Janet.
    Left Legalism/Left Critique. Durham, N. C.: Duke University Press, 2002. A despeito delas, concordo com Minow quando afirma que, mesmo com seus limites, o direito permite que indivíduos e grupos chamem atenção da esfera pública para pontos de vista que foram negligenciados pela maioria. Ver Minow, Martha.
    Making all the difference. Inclusion, exclusion, and American law. Cornell: Cornell University Press, 1994, p. 389.
    [
  • 33
    ]
    O império do direito..., p. 6.
    [
  • 34
    ] Para este ponto, ver o capítulo final de
    O império do direito e
    Behemoth... do mesmo autor.
    [
  • 35
    ] Para uma análise do que Neumann chama de "elemento ativista" e "elemento volitivo" da liberdade, ver Neumann, Franz. "The concept of political freedom". In:
    The democratic and the authoritarian state: essays in political and legal theory, ed. Herbert Marcuse. Glencoe: Free Press, 1957.
    [
  • 36
    ] Ver uma análise mais completa em
    Fuga do Direito...
    [
  • 37
    ] Uma das melhores análises da peculiaridade do contrato do trabalho ainda é a de Carnelutti, Francesco.
    Teoria geral do direito. São Paulo: Lejus, 1999, publicado originalmente em 1940. Sobre o sentido mais geral da proteção jurídica do trabalho, ver Rodriguez, José Rodrigo. "Direitos e questão social". In: Ivo, Anete B. L. (org.).
    Dicionário desenvolvimento e questão social (no prelo).
    [
  • 38
    ] "A relação trabalhista se baseia em obrigações recíprocas e no poder: seres humanos estabelecem relações de dominação com outros seres humanos. Essa é a base do princípio jurídico que obriga aqueles que possuem esse poder (a despeito de serem capitalistas privados ou socialistas) a cumprir obrigações adicionais em relação ao objeto da dominação, o trabalhador. Mas isso não [...] requer do trabalhador a execução de obrigações adicionais para o empregador, além daquelas estabelecidas no contrato de trabalho." Neumann, Franz.
    O império do direito..., p. 235.
    [
  • 39
    ] Para uma análise mais profunda deste ponto, ver
    Fuga do direito...
    [
  • 40
    ] É importante notar que o sindicalismo nem sempre viu com bons olhos a atuação das mulheres como trabalhadoras competindo com os homens pelos postos de trabalho. Para um bom panorama do problema, ver os primeiros capítulos de Goldman, Wendy Z.
    Women at the gates. Gender and industry in Stalin's Russia. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, Roberts, Elisabeth.
    Women's work 1840-1940. Cambridge: Cambridge University Press, 1995; e Milkman, Ruth.
    Women, work and protest: A century of U.S. women's labor history. Londres: Routledge, 1985.
    [
  • 41
    ] Para este ponto, ver
    Por um novo conceito de segurança jurídica... e Rodriguez, José Rodrigo. "Controlar a profusão de sentidos: a hermenêutica jurídica como negação do subjetivo". In:
    Hermenêutica plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
    [
  • 42
    ] Sobre este ponto, ver
    Para um novo conceito de segurança jurídica... e os textos de
    Dogmática é conflito (São Paulo: Saraiva, 2012), livro do qual sou coautor. Para um estudo sobre o avanço conservador na disputa sobre o sentido do direito nos Estados Unidos, ver:
    The rise of the conservative legal movement...
    [
  • 43
    ] Para esta discussão ver Kelsen, Hans.
    Justiça constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
    [
  • 44
    ] Cf. Batalha, Carlos Eduardo. "O jurista como verdadeiro teórico do Estado".
    Novos Estudos Cebrap n. 91, nov. 2011, p. 201-211. [ N. E.]
    [
  • 45
    ] Ver a primeira parte de Brewer-Carías, Allan R.
    Constitutional Courts as positive legislators. a comparative law study. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.
    [
  • 46
    ] Ainda não há muitas pesquisas organizadas sobre este tema, mas os dados de que dispomos até agora mostram que o STF julgou de forma "ativista" apenas alguns poucos casos e suas decisões desta natureza não tiveram como efeito inibir a proposta de projetos de lei sobre o mesmo assunto no Congresso Nacional. Ver os dois primeiros capítulos de Pogrebinschi, Thamy.
    Judicialização ou Representação? Política, direito e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
    [
  • 47
    ] Brewer-Carías, Allan R.
    Constitutional Courts as positive legislators, pp. 889- 923.
    [
  • 48
    ] Bruce Ackermann desenvolveu uma teoria da separação dos poderes em seu país em uma perspectiva dinâmica, atenta à sua evolução histórica em
    A nova separação dos poderes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. Infelizmente, seu texto naturaliza o novo desenho, o que diminui seu poder analítico. Sobre o mesmo tema, ver também o livro-curso Shane, Peter M.; Bruff, Harold H.
    Separation of powers law. Cases and materials. Durham: Carolina Academic Press, 2011.
    [
  • 49
    ] Em
    Dogmática é conflito... e
    Como decidem as Cortes?... desenvolvo minhas críticas à fundamentação das decisões jurídicas no Brasil, para mim altamente problemática, e esboço um modelo de crítica ao direito em geral.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2013
    • Data do Fascículo
      Jul 2013

    Histórico

    • Recebido
      08 Jul 2013
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