RESUMO
As transformações que vêm ocorrendo no campo religioso, indissociáveis das grandes mudanças sociais, são: (a) o declínio da hegemonia católica e a expansão do pentecostalismo evangélico; (b) o crescimento dos sem religião, interessados na espiritualidade; (c) a valorização da individualidade e do nomadismo espiritual; (d) a conjugação entre Teologia da Prosperidade e desenvolvimento econômico, agora ameaçada pela crise.
PALAVRAS-CHAVE: nomadismo espiritual; Teologia da Prosperidade; mudança social
ABSTRACT
These are the major transformations that have been happening within the religious field, inseparable from deep social changes: (a) the decline of catholic hegemony and the expansion of evangelical Pentecostalism; (b) the growing number of those who don’t have a religion, though interested in spirituality; (c) the valorization of individuality and spiritual nomadism; (d) the articulation of Theology of Prosperity and economic development, now challenged by the crisis.
KEYWORDS: spiritual nomadism; Theology of Prosperity; social change
Uma tentação ronda a sociologia brasileira desde que o movimento rumo ao urbano tornou-se tema central: a ideia de que os migrantes empobrecidos e perdidos nas cidades constituiriam fontes potenciais de anomia. Vítimas da desordem econômica, tornar-se-iam agentes da desordem social. Seus valores se perderiam ante a grande confusão de crenças na babel urbana. Os padrões familiares e as referências tradicionais seriam anulados pela selva das cidades. Vivendo a humilhação do declínio e a angústia das mudanças velozes e profundas, sem acesso a condições materiais minimamente decentes, inseguros diante de si e dos próximos, eles talvez se sentissem instados a usar a violência a que haviam sido submetidos sob outra forma para alcançar alguma recompensa, valorizando-se e arrancando pela força o que lhes era negado. O crime seria a resposta “natural” à desfuncionalidade (relativa) de sua posição na sociedade.
Felizmente, os cientistas sociais temos sido capazes de resistir a esse clichê, graças sobretudo ao alerta precoce de Alba Zaluar.2 Evitamos, assim, um erro analítico e a projeção de estigmas sobre uma ampla camada da população já onerada por preconceitos e dificuldades de todo tipo. O que estou dizendo em nada diminui a magnitude da reviravolta que embaralhou suas vidas em tramas inesperadas, nem a profundidade das mudanças, como Ingold (2000) nos levou a perceber. Meu objetivo é apenas demonstrar que as conexões na vida social não são mecânicas, nem circunstâncias anteriores devem ser entendidas como determinantes das subsequentes, porque entre umas e outras está a ação humana, que contém o brilho da liberdade, ainda que restrita, mesmo sob pressões.
Isso não significa que não haja condições mais ou menos favoráveis a tais ou quais linhas de ação. Favorecer determinada linha de ação implica fortalecer o potencial de recrutamento dos empreendedores dispostos a investir em atividades que estejam em sintonia com expectativas e aptidões disseminadas na área onde vigoram as referidas condições. Circunstâncias potencialmente favoráveis só atualizam seu potencial se empreendedores agirem como intermediários entre os recrutáveis e o empreendimento, beneficiando-se dessa facilidade e conectando demandas e ofertas, desejos e seus alvos, mesmo que demandas e desejos tenham de ser traduzidos para o idioma próprio ao empreendimento. Por exemplo, que condições sociais e econômicas seriam mais propícias ao empresário criminoso que planeja montar o negócio das drogas em uma favela carioca, nos anos 1980? Supondo-se que ele tenha boas razões para esperar uma demanda suficiente e apta a pagar o preço lucrativo, em territórios contíguos, os bairros de classe média, e que seu acesso à provisão atacadista do produto esteja garantido a custos compatíveis, e que os gastos com a corrupção policial caibam no orçamento, restar-lhe-ia avaliar o custo de recrutamento e reprodução da força de trabalho para formar sua equipe: um grupo armado para operar o negócio em razoável segurança. Dadas as condições conhecidas nas quais se processavam tais operações, o que lhe pareceria mais conveniente: um contexto local em que os jovens em idade apropriada para o recrutamento estivessem engajados em trajetórias escolares proveitosas e promissoras, educados em uma cultura que valorizasse a paz, os direitos humanos e métodos não violentos de resolução de conflitos, imersos em relações familiares e comunitárias solidárias e afetuosas, nas quais se sentissem valorizados, acolhidos, admirados e queridos, não lhes faltando perspectivas futuras de inserção gratificante no mercado de trabalho, nem lazer ou acesso à criação cultural e a redes de interlocução com diferentes grupos na cidade? Esse seria o cenário ideal para o empreendedor do crime? Ou ele optaria por um quadro que fosse o inverso do primeiro? O empreendedor não hesitaria em escolher o segundo cenário por motivos óbvios. E a sociologia não tem por que discordar. Não há motivo para divergir de seu cálculo. A avaliação nada tem a ver com teorias deterministas ou visões mecânicas do ser humano e da vida social. Ela é precisa e pragmática. Apoia-se na observação cotidiana e repetida.
Examino uma hipótese explicativa isolada para ilustrar minha compreensão do tema: “processos de degradação da autoestima de um adolescente induzem ao crime”. O postulado é falso. Está errado. Até porque são crimes a evasão fiscal, o feminicídio, a homofobia, o latrocínio, a lavagem de dinheiro, o homicídio doloso etc. De que é que se está falando, afinal?3 E autoestima? De que se trata, exatamente? E o que significa “indução”? Por essas e outras razões, seria um equívoco afirmar o referido postulado. O erro não estaria na imprecisão do conceito de autoestima ou no psicologismo da tese, mas em sua arbitrariedade, em seu artificialismo, em seu formalismo abstrato, em sua absoluta impertinência empírica. Seria igualmente absurdo atribuir a qualquer outro fator o papel de fonte de uma relação de causalidade: fome, desemprego, crises familiares, desordem moral, escolaridade precária, valorização cultural da violência. Não faz sentido, sociologicamente, declarar que há causas para determinada modalidade de ação violenta ou criminosa. Se a causa b na circunstância c, a fórmula teria de explicar os fatos já observados e predizer o futuro: onde houvesse a em circunstância c, na sequência haveria b. Essa configuração dinâmica não é aplicável às sociedades, porque a equação faz tabula rasa do indivíduo como agente, protagonista, sujeito da ação. Nem sob limitações extremas, como a tortura, o ser humano é previsível ou responde da mesma maneira. Em outras palavras, as condições são sempre pertinentes se o propósito for conhecer, prever (pelo menos no sentido limitado da redução da incerteza) e influir, via políticas públicas. O ponto fundamental a reter, no entanto, é este: o rendimento das condições propiciadoras depende do dinamismo criativo dos mediadores ou da qualidade do investimento dos empreendedores que se esforçam por fazer os fatores operar a seu favor. Fatores estáticos como cordas de violão só produzem som quando tocados. Há sempre uma política (ou um empreendimento) transformando estruturas em processos, fatores em ações, “causas” em “efeitos”.
Por outro lado, insisto: o cálculo do empreendedor está certo. O potencial de êxito de seu recrutamento será maior quanto mais numeroso for o contingente local dos jovens vulneráveis, isto é, receptivos a seu chamado. Essa receptividade tende a crescer à medida que a nova forma de vida oferecida soar atraente, o que por sua vez dependerá de inúmeros fatores, em todas as esferas da experiência individual, entre os quais aqueles referidos na descrição inicial da comunidade ideal virados de ponta-cabeça. Em síntese, soará sedutora uma forma de vida que faça um jovem sentir-se visível, reconhecido, valorizado e alvo de afeto, ele que se sente socialmente invisível, exilado em sua casa e em sua comunidade, que abandonou a escola e não encontra nos outros reconhecimento de seu valor, e que tampouco imagina meio mais acessível do que a violência para reverter a situação (material, moral, simbólica e afetiva de desalento, desamparo e desesperança). O porte de uma arma e o pertencimento a um grupo coeso de guerreiros, temidos, admirados, desejados, pode representar a reversão desejada, a despeito de seus riscos e custos - inclusive psicológicos, porque matar não é simples.
Por isso, as políticas preventivas que logram reduzir a violência associada ao tráfico de drogas - organizado como pequena força armada - estruturam-se para disputar com os empreendedores criminosos o recrutamento dos jovens, identificando os benefícios oferecidos e dobrando a aposta, claro que em direção oposta, dialogando com os desejos legítimos dos jovens e cumprindo as obrigações do Estado antes negligenciadas - além de mobilizar famílias, escolas e comunidades (Soares, 2001; Soares e Guindani, 2006; Rolim, 2006; P. Mesquita, 2011).
Em outras palavras: a pauperização em massa e o deslocamento rural-urbano em grande escala e acelerado, sob ditadura durante a maior parte do período, sem o acolhimento nas cidades que políticas sociais e de moradia deveriam ter garantido, não podem ser definidos como causas do aumento da violência urbana como se tivessem derramado sobre as cidades potenciais criminosos, espelhos e fontes de anomia, mas certamente constituíram em si mesmos manifestação dramática de violência urbana. Ou melhor, a urbanização realizou-se no Brasil como violência.4 Além disso, os filhos e netos dos migrantes estenderam o processo de vulnerabilização de que foram vítimas seus pais e avós. Afinal, no rastro do boom econômico dos anos 1970, cujos frutos não chegaram aos trabalhadores, sobretudo aos homens e mulheres que sobreviviam da informalidade ou de serviços domésticos, veio a chamada “década perdida”, do ponto de vista econômico: os anos 1980. Não parece ser um acaso a escalada da violência letal e da criminalidade nos centros metropolitanos nessa conjuntura crítica, quando o país mergulhou na estagflação e o desemprego avançou.5 Migrantes, herdeiros de migrantes, moradores de favelas e bairros periféricos das metrópoles, particularmente daquelas que foram os destinos principais do fluxo migratório, em especial o Rio de Janeiro: é plausível supor que não tenha sido mera coincidência a concentração sobre esses contingentes populacionais dos ônus da vulnerabilização à violência, envolvendo-os nas duas pontas do processo de vitimização.6
Esse excurso reflexivo que tangenciou a violência e a teoria social não foi uma digressão, mas uma etapa necessária ao argumento sobre o destino dos migrantes.
Para quem como eu mantém um olho na violência - entendida pelo ângulo dos direitos humanos - e outro nas reações da sociedade à violência, as quais dependem dos valores e das formas coletivas de entendimento do que seja a violência, o grande fluxo migratório interno e a urbanização constituem fenômenos da maior importância, sem cuja compreensão é inviável avançar. Defendi duas hipóteses sobre essa temática: (1) a mudança radical do ambiente envolve alteração do sujeito, sobretudo quando muda também todo o universo de relações sociais; (2) o indivíduo que se desloca do campo para a cidade, impelido pela precarização das condições rurais ou diretamente expulso, sob constrangimento da pauperização urbana e de limitações à participação democrática, atravessa uma experiência radical que exige mais do que adaptação: mutação adaptativa. A simples adaptação dar-se-ia se o indivíduo pudesse manter-se subjetivamente inalterado e apenas tivesse de empenhar-se em aprender novos códigos para credenciar-se a agir em conformidade com as novas regras do jogo, as novas possibilidades e limitações. Quando a mudança é transversal, no sentido descrito no primeiro item, a dinâmica é muito mais complexa e imprevisível. O caráter multidimensional da mudança, que transcorre em distintas esferas e temporalidades, expõe mais radicalmente os grupos sociais e os indivíduos a incertezas, dificuldades, sofrimentos, mal-entendidos, desperdício de energia, perda de oportunidades. Por consequência, o sujeito - plano subjetivo do indivíduo - torna-se mais vulnerável a sofrimento psíquico, ansiedades, insegurança, depressão (da autoestima) e intervenções externas, entre as quais a violência e a criminalização. O conjunto das observações anteriores justifica a adoção do conceito de Marcel Mauss fato social total para lidar com a problemática.
Por tudo que vimos, é complicada a ação sincrética defensiva, adaptativa, por meio da qual o ator social fragilizado - social, econômica, afetiva, culturalmente - junta a seu modo as peças separadas pelo terremoto da migração, inserindo aqui e ali os elementos de sua tradição, guardados em sua bagagem. O jogo de armar não serve como metáfora, nesse caso, porque faltava ao jogador conhecimento da gestalt, da forma final que deveria ser restaurada. Ele tampouco tinha acesso a todas as peças. No ensaio e erro do cotidiano, na velocidade das decisões entre opções escassas, o jogo poderia ser mortal e infiltrava no espírito menos adrenalina do que medo e suspeição.
O cenário é propício para outro tipo de sincretismo que afeta o jogador em vez das peças para armar. O sujeito converte-se, ele mesmo, no espaço da montagem. É ele que tem de se (re)fazer, combinando os pedaços que ficaram no caminho com as expectativas que identifica na cidade - expectativas que chegam à consciência filtradas por sua percepção. Cada caso é um caso, repito, as trajetórias foram as mais variadas e também houve itinerários virtuosos e felizes para os que sofriam a exploração econômica no campo e a opressão moralista na comunidade rural de origem, e vivenciaram a chegada à cidade grande como a chance de oxigenação, recomeço e liberdade. De todo modo, o balanço foi intenso e fundo: o título do filme de Glauber Rocha, terra em transe, descreveria muito bem a gravidade do fenômeno. A religiosidade não poderia ficar de fora, assim como não foram poupadas as formas de organização familiar, as relações entre os gêneros e com os filhos.
É natural que pesquisadores tenham procurado estabelecer correlações entre migrações, urbanização e religiosidade. As perguntas mais razoáveis incidiram sobre o impacto desse processo social tão significativo sobre as crenças religiosas (cf. César, 1974; Souza, 1969). Conexões desse tipo são sempre problemáticas, e não se consolidou na área de estudos nenhum consenso a respeito, conforme demonstra a análise crítica primorosa de Ronaldo de Almeida em seu brilhante estudo etnográfico A Igreja Universal e seus demônios (2009: pp. 44ss). Com grande sensibilidade, Almeida refuta as hipóteses que estabelecem relações causais diretas e mecânicas, chamando a atenção para as complexas mediações que intervêm sobre as adesões, a formação de redes e os processos sociais implicados. Por concordar com o ponto de vista crítico de Almeida e de tantos outros pesquisadores avessos aos reducionismos sociológicos, proponho que se pense a transformação em curso no campo religioso brasileiro, perceptível desde o final dos anos 1980, ainda que lhe fosse anterior, não como efeito da grande transição demográfico-sociológica, mas como parte desse processo, isto é, como uma de suas dimensões.
A ideia pode parecer um truque metodológico: ante a impossibilidade de demonstrar relações de causa e efeito ou vínculos significativos entre as duas variáveis, suspende-se a hipótese sobre o impacto espiritual da migração para que a implicação religiosa seja concebida como um pressuposto da análise. De meu ponto de vista, não é esse o movimento lógico. Simplesmente concebo a migração - em grande escala e curto período, nas condições em que se efetivou - como um fato social total estendido no tempo, conforme já assinalado. Descrita assim a grande transição migratória, a esfera religiosa inscreve-se no fenômeno com os mesmos créditos metodológicos que a economia, a política e a demografia.
Diz-nos Mauss: fatos sociais totais são aqueles que “põem em movimento, em certos casos, a totalidade da sociedade e de suas instituições […] e, em outros casos, somente um grande número de instituições, em particular quando [as] trocas e contratos [isto é, as relações] dizem respeito de preferência ao indivíduo” (Mauss, 1974, p. 179, colchetes meus). Espero que, graças à ajuda de Tim Ingold, este artigo logre reunir elementos suficientes para justificar o emprego da categoria maussiana. Por seu intermédio, as religiões saltam para o centro da migração, qualificando-a e configurando-a como momento constitutivo de sua realidade. Em outras palavras, por esse prisma, a migração não provocou a revolução religiosa em curso no país: ela é essa revolução, em um de seus níveis, assim como a revolução religiosa é a grande migração, em um de seus níveis.7
Concentremo-nos, então, no campo religioso brasileiro. O que aconteceu de mais significativo nas últimas décadas, até 2010?8 Vejamos os dados.
A seguir, destaco, em percentuais, as variações experimentadas pelos grupos que pretendo destacar:
O mundo evangélico, em sua complexa diversidade, vem crescendo celeremente. O universo católico contraiu-se, embora ainda predomine. Expandiu-se o grupo dos sem religião porém não ateus - o dos ateus, também. Ampliou-se o contingente que denominei, em 1994, errante, nômade. Esse contingente frequentemente se diz “sem religião”, apesar de prezar a religiosidade. Referia-me ao personagem típico dessa tribo como “um peregrino muito especial”. Escrevi o seguinte:
O religioso alternativo brasileiro é também um andarilho. Faz parte de sua agenda um deslocamento permanente entre formas de trabalhar a espiritualidade, em nome de uma busca sempre renovada de experiências místicas. Nada mais coerente, portanto, que a inconstância e a volubilidade. A devoção a crenças e rituais se dá, geralmente, sob o signo da experimentação.
Itinerário indefinido, montado na travessia, o errante da nova era caminha solitário, raramente se une a procissões e, mais raramente ainda, identifica sua viagem a uma cruzada. Em certo sentido, deseja o repouso de uma adesão definitiva, de vínculos estáveis. Mas tende a reconhecer na própria busca a essência de sua utopia e a natureza de sua devoção.
O pêndulo da religiosidade, grosseiramente homogeneizada sob o rótulo precário “alternativa”, oscila entre movimento e repouso; solidão e comunhão; experiências fragmentárias e a idealização da unidade e do pertencimento.
É verdade que esses temas polares e a oscilação entre eles estão quase sempre presentes em nossa cultura. Exatamente por isso, cumpre destacar as formas específicas e os significados que adquirem no contexto do nomadismo religioso,9característico do que denominamos misticismo ecológico. (Soares, 1994, p. 205)
Adiante:
É graças à mediação da cultura alternativa que os engajamentos religiosos, representativos da “nova consciência”, são percebidos e vividos como “trabalhos espirituais” que pontuam trajetórias, irredutíveis aos portos de baldeação e aos sentidos que cada um dos portos projeta sobre o itinerário, sua meta e o repouso […]. Não está nas religiões a eventual novidade, mas no modo de relacionar-se com elas. (idem, p. 206)
Na sequência: “[…] a bricolage parece ser o modo de a ‘cultura alternativa’ realizar-se - inclusive a si própria” (idem, p. 207).
Alguns dos traços que minha pesquisa identificara na “cultura alternativa” se disseminariam por todo o campo religioso: a errância na sequência de escolhas e experiências, a bricolage, a pluralidade nos modos de relacionar-se com as religiões e suas instituições. Da perspectiva dos religiosos sem religião, cujo número cresce, não há mais a adesão a um sistema completo e coerente de crenças. Quem totaliza (se é que sente a necessidade de fazê-lo, conscientemente) é o fiel nômade e bricoleur, que tece experiências, descobertas, crenças, narrativas, imagens, mitologias, valores, comunhões provisórias e adesões parciais. Pode não haver o desejo de integrar os componentes rituais, valorativos e cosmológicos em totalidades sistêmicas, sendo suficientemente gratificante conviver com a série de crenças assistemáticas, colhidas na peregrinação existencial. Elas não necessariamente se incluem em estruturas coerentes, porque o importante é que se inscreveram no plano das extensões metonímicas, eventualmente interrompidas e retomadas. Esses cortes são editados pela narrativa que desfoca a religião e focaliza o indivíduo, para retornar à religião em seguida. O que conecta os pontos apartados pelo corte são o tempo e o percurso, é o sujeito (lugar de edição, cortes e montagem). Quando há saltos desse tipo, a visão de mundo do indivíduo cede lugar ao relato biográfico e aos testemunhos de passagens, visitas e vivências. Portanto, o destaque é o indivíduo. Eis a grande novidade. Com a ênfase em sua movimentação entre adesões e (re)conversões, destaca-se o viajante, o protagonista, o indivíduo dotado de subjetividade na qual se destilam as experiências que se traduzem em memória e narrativa. Os laços sociais e afetivos são também muito importantes, mas fazem parte do equipamento que o viajante transporta. Ele (ou ela) é o centro, a usina em que se forjam os hibridismos. Por isso, disse que o sincretismo - como lógica e procedimento - deslocou-se da cosmologia para a subjetividade, dos ritos e das crenças para o sujeito. Registre-se que o sujeito não só metaboliza significados e decisões, experiências e redes sociais, liberdade e compromisso, repouso e nomadismo, como constitui a si mesmo por meio da narrativa que dá os nós nas linhas de continuidade, puxa os fios e corta as pontas.
A análise do mestre Pierre Sanchis sobre o quadro identificado pelo Censo de 2010 parece confirmar essa hipótese:
Um dos grandes problemas religiosos do próximo século será o da relação do indivíduo com a instituição que lhe propicia uma identidade religiosa. Dizer-se católico ou umbandista, até proclamar-se evangélico, não será mais unívoco […]. No caso de uma identidade tradicional, a situação está clara: continua-se aderindo a uma identidade, mas escolhe-se o conteúdo desta adesão […]. E mesmo no caso de uma conversão, à medida que o tempo vai passando, a iniciativa individual na bricolagem de uma cosmovisão de fé e de um mapa de vida tende a se alargar. Neste sentido, as pesquisas deverão afinar as suas perspectivas. (Sanchis, 2012)
Em artigo publicado nos Cadernos CERU, diz-nos Sanchis:
Seria preciso encontrar a fórmula que conservasse a ambivalência analítica da situação. Uma adesão emocional profunda, não a uma religião, mas a uma “cultura enquanto religiosa”, já que está em jogo uma concepção de Deus e do gênero de relação que o homem deve cultivar em relação a Ele. Falência do(s) “sistema(s)”, mas presença de uma lógica subjetiva que redistribui as cartas, criando um cenário inédito. (Sanchis, 2008)
O que era alternativo nos anos 1970 referia-se sobretudo à juventude, ainda que não exclusivamente. Os alternativos nessa década eram grupos das camadas médias, críticos da ditadura e do que chamavam “sistema” - categoria análoga ao que os hippies norte-americanos denominavam establishment -, mas refratários ao engajamento político clandestino à esquerda. Herdeiros dos beatniks e dos movimentos libertários de 1968 ao redor do mundo, sintonizados com as lutas dos negros e das mulheres americanos, contrários à Guerra do Vietnã, cultores da natureza, da paz e do amor, avessos à caretice (o conservadorismo moral hipócrita) nos hábitos e no figurino, e ao confinamento da vida espiritual nas disciplinas burocratizadas das igrejas tradicionais, antipáticos à institucionalização do afeto e do sexo no matrimônio, céticos quanto a carreiras convencionais e projetos de vida burgueses, inimigos do materialismo consumista e da ordem capitalista, amantes da espontaneidade autêntica que a gramática das boas maneiras reprime, contrários ao que denominavam “racionalismo ocidental moderno” que subestima o corpo, adeptos de experiências extáticas e dispostos a alterar a consciência, ingerindo substâncias psicoativas, fiéis a medicinas alternativas, saberes esotéricos, práticas divinatórias, ioga, meditação e alimentação vegetariana, resistentes à vida urbana competitiva e repetitiva - em ambiente industrial onde reinam ambições e necessidades artificiais -, atraídos pela utopia comunitarista de um retorno às origens e da volta ao campo, encantados pela pureza primitiva, pela simplicidade romântica e pelo convívio com a natureza, sempre alerta contra a poluição que devasta o planeta Terra, representado pela deusa Gaia.10
Na década seguinte, anos 1980, os alternativos voltaram-se mais para o misticismo e a contemplação, afastando-se gradualmente de sua anterior vocação libertária radical. A conjuntura histórica mudava para melhor, na atmosfera política que se respirava, e os alternativos adaptaram-se, inventando maneiras de compatibilizar sua busca espiritual com o trabalho na sociedade de consumo. Reaproximaram-se da família burguesa, com reservas, e passaram a buscar um lugar ao sol no “sistema”. Afinal, era preciso pagar as contas no final do mês, os filhos nasciam e o pé na estrada já não preenchia a ânsia por uma vida saudável de novo tipo. A era de Aquarius frustrou esperanças escatológicas. Ninguém aguentava mais viver de improviso e gambiarra. O adjetivo “alternativo” deixou de implicar separação da sociedade ou opção pela margem. Passou a significar soluções de compromisso e convívio com a ordem instituída - ainda que sob tensão. Paralelamente, parte do segmento hippie vinha sendo cooptado pelo canto de sereia do individualismo darwiniano neoliberal, metia-se no terno-e-gravata à imagem e semelhança dos pais, ou no tailleur das mães, e engolia em seco a ideologia yuppie, enquanto cheirava uma carreira de pó. Maconha (haxixe, cogumelos e lsd) e cocaína (álcool) eram totens de grupos opostos (quase sinais diacríticos), cujos membros, em alguma medida, provinham das mesmas camadas sociais (Velho, 1998; Soares, 2012).
São esses alternativos integrados, pós-hippies, mas firmes em seus valores, homens e mulheres críticos do “sistema” (não yuppies, portanto), embora capazes de sublimar sua disposição rebelde nos mergulhos místicos, que constituem os personagens para os quais a religiosidade pervasiva será vivida como errância e bricolage. Eles vão apurar a experiência da individualidade, trazendo para o coração da classe média brasileira, sobretudo jovem, a oportunidade de plantar os pilares da sacralização da pessoa como esteio dos direitos humanos. Os yuppies votariam em Fernando Collor para presidente. Esses yuppies estavam mais perto do individualismo liberal, contudo dessa tradição rejeitaram o legado humanista igualitário e retiveram a racionalização das desigualdades, a idealização do mercado e a idolatria do utilitarismo.
Nesse período que coincide com a etapa conclusiva da transição democrática, a década de 1980, há sem dúvida a expansão do segmento social que se identifica com os direitos humanos e a valorização plena da individualidade, mantendo-se equidistante das tradições religiosas. O que lhe importa e o que o caracteriza como grupo é a devoção à cultura democrática da cidadania. Desnecessário acrescentar que se trata de segmento minoritário, ainda que bastante influente.
Por outro lado, há os que saem da ditadura, defrontam-se com as transformações da sociedade, a globalização e a queda do Muro de Berlim, e buscam avidamente o rumo oposto ao da errância: um destino estável, uma identidade, um continente para sua insegurança, um lugar e um sentido. Ninguém interpretou tão bem quanto Pierre Sanchis essa conjuntura, os sentimentos que despertou e o movimento que inspirou:
Motivos assim sobrepostos: por um lado, coexistência de ofertas culturais dilacerantes, que opõem os indivíduos entre si e os dividem no interior deles próprios, por outro lado, uniformização tendencialmente compulsória, acaba produzindo simultaneamente, na condição pós-moderna, junto com a euforia da livre escolha e da autoconstrução das identidades, o vetor diametralmente oposto: uma procura das raízes, uma saudade das origens, um refúgio no reconhecimento apaziguador de uma identidade que se proclama como recebida. Uma volta dos povos para a “sua cultura” (exatamente, aliás, quando os antropólogos põem em questão a existência desta). Uma cultura, no entanto, que não será mais simplesmente recebida, mas ativa e autonomamente escolhida, indissoluvelmente reencontrada e “inventada”. Perfil de “resistência”, muitas vezes de “retorno”. Pode se discutir, por exemplo, o futuro da ideia de “nação” - para alguns, ameaçada, por dentro, pela reemergência de suas partes (as regiões), ou por fora, pela exigência de maiores conjuntos (federações ou uniões) - mas algo no mundo está hoje a remobilizar homens e mulheres, em geral em movimentos pacíficos de efervescência ideológica, mas às vezes até a violência, pela ressurgência, a difusão, o fascínio, às vezes a criação de uma referência grupal que signifique uma origem, uma tradição, uma terra, uma pertença: nação, cultura, etnia. E também religião. (Sanchis, 2008)
No campo religioso brasileiro nos anos 1980, dois impulsos opostos predominavam: a errância cujo centro era a individualidade, em busca da experiência espiritual, e a fixação identitária cujo centro era a comunhão coletiva e mesmo institucional, à procura do pertencimento. Registre-se que esses impulsos não se excluem, combinam-se. Toda a questão está em identificar qual deles predomina em cada caso. Ambos os impulsos intensificaram-se nos anos 1990, seguiram polarizando o dinamismo religioso na década seguinte e até hoje não cessam de produzir mudanças em um universo que, historicamente, parecia estabilizado sob ampla hegemonia católica. As características de cada tendência e o choque entre elas diversificaram as trajetórias de grupos e indivíduos, os tipos de adesão, as crenças, os valores, os ritos e os conteúdos que os fiéis emprestam à sua fé e a seus respectivos engajamentos. Portanto, o campo religioso vem se tornando mais diversificado e tem sido marcado pela expansão incessante das adesões evangélicas (correspondentes à valorização de identidades coletivas e do pertencimento) e pelo crescimento dos engajamentos múltiplos, simultâneos ou sucessivos (correspondentes à valorização do nomadismo individualizado).
A diversificação resulta também do crescimento do mundo evangélico, cuja evolução tradicionalmente segue a dinâmica da cissiparidade, ao contrário do que acontece no universo católico, cuja lógica predominante é a da absorção hierarquizante das diferenças sob a égide da unidade institucional, reproduzindo a supremacia dos estratos dirigentes.
Atentemos para o fato, destacado por Sanchis, de que, atualmente, mesmo a adesão a uma organização religiosa institucionalizada não garante uniformidade de crenças e valores nem permanência do vínculo. Eu acrescentaria a seguinte hipótese explicativa: a energia precipitada pela individualização é de tal modo potente que imanta inclusive as estruturas que se destinam à fixação de lealdades e à homogeneização moral e teológica. Em outras palavras, o processo cultural brasileiro, histórica e politicamente moldado, vinha sendo marcado, até a grande crise que eclode em 2015, pela afirmação predominante de tendências democráticas, em todas as esferas da vida social. Nesse contexto, a individualidade vinha se tornando o principal alvo de investimento de valor e poder, tornando-se o espaço mais importante de experimentação das possibilidades oferecidas pela sociedade brasileira a seus membros, assim como o principal ativo social, porque gerador de protagonismo cidadão e empreendedorismo econômico e cultural. Necessitaremos de distância histórica para aquilatar os efeitos regressivos da crise e do fortalecimento do conservadorismo entre nós. Retornemos, porém, ao processo dominante, que caracterizou as últimas décadas.
Por mais estranho que pareça, as escavações tropicalistas na alma tradicional, abrindo espaço para o cuidado de si em versão contemporânea, e a construção de uma subjetividade de novo tipo cruzam o caminho da deriva religiosa rumo à individualização. O fenômeno não é o mesmo, nem o personagem individual que vem sendo gestado é o mesmo, mas a confluência em linhas gerais me parece inegável, ainda que os pontos de parada sejam distintos e os significados, contraditórios. Uma das rotas da navegação em busca de experiência religiosa pode conduzir a portos regressivos, cujos pilares sejam dogmas classificatórios e preconceitos violentos. Não há garantias nesses deslocamentos. Leituras unilaterais seriam equivocadas e induziriam a previsões insustentáveis.
O modelo da errância individualizada não exclui adesões de tipo evangélico, ainda que deixe sua marca forte sobre a natureza do vínculo porventura estabelecido e, portanto, sobre o próprio sentido que se empresta nesse caso ao verbo aderir, afastando-o do substantivo conversão.11 A mediação se encontra no universo da autoajuda. Indivíduos caminhando sob neblina, acuados por pressões diversas, procuram na cultura da autoajuda a motivação e as orientações que os animem a seguir adiante, enfrentando as dificuldades com energia, sem se desesperar, aprendendo a valorizar-se e a decifrar os enigmas de um cotidiano complexo e opaco, segundo um vocabulário de manejo simples e compatível com quase qualquer tipo de formação anterior, nos mais variados graus de dificuldade. Assim como livros, programas e cursos de autoajuda, também algumas modalidades religiosas oferecem uma psicologia prêt-à-porter, um kit de ferramentas intelectuais de aplicação imediata e universal para a solução de conflitos. Em lugar de práticas divinatórias ou oráculos misteriosos, e mesmo de intermediações mágicas para a cura dos males,12 que continuam prestigiados, mas não suprem todas as necessidades e correm o risco da infirmação no dia a dia, surgem e se disseminam as mais variadas fórmulas de autoajuda, inclusive e com destaque em alguns segmentos religiosos do universo evangélico, cuja pujança decorre da habilidade em fornecer, via tv ou em ritos presenciais, bússolas bastante acessíveis a todo tipo de interessado e mapas muito simples para uso rápido e direto.
Dois tipos de individualidades nômades percorrem o espaço religioso: aqueles que buscam o contato com a esfera extramundana, a experiência do sagrado, para elevar-se acima do materialismo e do imediatismo impostos pelo cotidiano, e aqueles que procuram orientação intramundana, porque precisam lidar com uma realidade cotidiana, material e imediata, mas também emocional e subjetiva, tremendamente desafiadora e em constante mudança - realidade tão precária quanto as novas relações de trabalho e tão efêmera quanto os relacionamentos amorosos de novo tipo e os novos arranjos familiares.13 Nesse sentido, a instrumentalidade da autoajuda e de suas versões religiosas corresponde a novas abordagens para problemas análogos aos que, no passado, suscitavam respostas curativas e divinatórias. Claro que não há substituição plena e irreversível de umas pelas outras, e sim variadas combinações. Mais uma vez, e weberianamente, trata-se de identificar predominâncias tendenciais e não optar por modelos descritivos unívocos, estáticos e mutuamente excludentes. Sobretudo, importa reter a centralidade do indivíduo em trânsito como o operador de decisões, o protagonista por excelência dessas distintas sagas religiosas. Além disso, vale sublinhar a continuidade entre as dúvidas e a ansiedade vividas por atores sociais diante de dilemas práticos em uma sociedade dinâmica que se complexifica - atravessada por contradições e violência, exploração e iniquidades, mas também caracterizada por promessas de salvação e oportunidades de superação - e a cultura da autoajuda em seu conjunto, laica ou religiosa, as diferenças sendo nesse caso talvez menos relevantes do que as similitudes.
Em outro estudo que realizei na passagem da década de 1980 para a de 1990, identifiquei algumas características do que se passava no campo religioso brasileiro que me pareciam extremamente importantes e originais, e projetei consequências benéficas da “guerra santa” dos evangélicos pentecostais, especialmente a Assembleia de Deus e a Igreja Universal do Reino de Deus, contra a religiosidade afro-brasileira, mas a história subsequente demonstrou que eu estava errado. Os efeitos foram desastrosos. Naquele momento, como hoje, as organizações religiosas que mais cresciam eram exatamente aquelas que provocavam a guerra. O resultado tem sido devastador para as tradições afro-brasileiras, alvo de perseguições, estigmas e acusações que chegam ao cúmulo de violar direitos e se manifestar de formas fisicamente violentas.
Contudo, as características que descrevi permanecem atuais e relevantes. Ousaria dizer que sua identificação é indispensável para o conhecimento dos processos em curso na esfera religiosa. Cito trecho da análise publicada em 1993:
O exorcismo (realizado nos templos da Igreja Universal do Reino de Deus, em determinadas etapas de seus rituais) constitui o momento crucial do confronto; e a exibição de sua face verdadeiramente dramática […]. Por seu intermédio, os pentecostais expulsam os demônios da vida dos fiéis em processo de conversão e afirmam seu predomínio religioso no embate entre o bem e o mal. O extraordinário é que, representando a culminância da luta contra o “povo do santo” ou, mais exatamente, contra sua fé “espúria” (“ilusão”; “ignorância”; “obra do demônio”), atualiza uma integração orgânica com o antagonista, orquestrando uma espécie de harmonia contrapontística. Orando com o inimigo, poder-se-ia denominar, com alguma ironia, este impressionante paradoxo […].
Em meio à cerimônia religiosa dos santos guerreiros em luta contra os dragões (espirituais) da maldade, conversões são declaradas, estilizando-se uma tradição cara a Igrejas reformadas. Ocorrem aí os notáveis episódios de exorcismo, em que as entidades da Umbanda são invocadas para serem detratadas e reenviadas ao inferno, de onde não deveriam voltar a perturbar a boa alma recuperada. O “cavalo” volta a sê-lo pela última vez e a incorporação é vivida com enorme sobrecarga de emoções. A intensidade resulta da sobreposição de dois movimentos, em si mesmos plenos de som e fúria: o “santo” é recebido e, a seguir, expulso. O esforço da convocação e da abertura indispensável à acolhida é acompanhado de uma reação violenta à própria incorporação e de uma luta desesperada contra o “santo” e tudo o que ele significa. Crenças, relações, práticas, rotinas, valores e linguagens são suprimidos no ritual que recusa o passado, inverte o sinal de antigas fidelidades e exige a reconstrução retrospectiva da biografia moral. É de alternação que se trata.
Suprimidas e negadas, mas reconhecidas, mencionadas, incorporadas. Este ponto é decisivo: o pentecostalismo exige a pureza doutrinária e rejeita práticas e crenças que as camadas populares cultivam sobretudo na Umbanda, na quimbanda, no candomblé. Entretanto, invocam as presenças de Exu e Pomba gira nos rituais de exorcismo que promovem. […] Em outras palavras, a existência das entidades espirituais que povoam os credos afro-brasileiros é reconhecida [assim como] as performances corporais dos ritos de incorporação […].
Há, na guerra santa brasileira em curso, um diálogo, ainda que áspero, com as crenças criticadas e seus objetos são tidos como reais. […] A continuidade entre os planos representados pelos universos simbólico-axiológicos em confronto constitui a característica mais importante do conflito, responsável inclusive pela determinação de sua natureza sociológica, que poderia ser assim definida: neste caso, o conflito separa com radicalidade para unir, estabelecer relações, construir pontes, fundar as bases de uma nova experiência de sociabilidade, identificada por um renovador igualitarismo, associado a uma postura cultural excludente e diferenciadora, oposta à nossa tradição inclusiva e neutralizadora de diferenças, que o sincretismo expressa de modo ímpar. (Soares, 1993, pp. 204-5)
Algumas páginas adiante, depois de sublinhar a origem social dos pastores e o sistemático recrutamento de lideranças religiosas nas classes populares, a análise concluía o seguinte:
No plano da religiosidade, os brasileiros pobres começam a prescindir da direção católica, da hegemonia tradicional que se exerce, fundamentalmente, no plano simbólico. Pentecostais ou não, os evangélicos crescem, empurrando o próprio catolicismo para a via carismática, no afã de recuperar o tempo (e as almas) perdido (as). A população pobre começa a descobrir uma nova linguagem e uma outra forma de disciplina, outra maneira de conceber a ordem do mundo e de experimentar a subjetividade, valores distintos, perspectivas diferentes. Lutando contra seus próprios pares, do ponto de vista da estrutura de classes, vivem seus desígnios e identificações com ardor inusitado, tomando-se mutuamente como referência e invertendo a ordem brasileira multissecular: o igualitarismo segmentar popular substitui o patrimonialismo e a verticalidade estamental. As implicações políticas desse processo não devem ser subestimadas. Quando elites deixam de dirigir a cultura, correm o risco de ceder o comando político. (Idem, pp. 213-4)
Contemplando, hoje, retrospectivamente, os mais de 25 anos que me separam da publicação daquelas reflexões, concluo que a interpretação otimista se equivocou, mas o diagnóstico de fundo mostrou-se correto.14 O deslocamento da hegemonia católica prosseguiu e intensificou-se, e de fato proporcionou uma interação mais direta, menos tutelada, entre os segmentos populares. Não por acaso, conforme a previsão, o igualitarismo vinha sendo a tônica, crescentemente, na consciência popular, pelo menos até a irrupção da crise. O erro do prognóstico estava em supor que a interação igualitária, tensionada pela “guerra santa”, promoveria naturalmente o equilíbrio, o reconhecimento recíproco e o convívio pacífico nas diferenças, induzindo à geração democrática de novos mediadores, egressos dos próprios grupos envolvidos no conflito. Nada disso: igualdade sem mediações redundou em intensificação do confronto, que visa extinguir o polo fragilizado, o afro-brasileiro. O desdobramento belicoso deveu-se provavelmente à importância estratégica que a oposição a um Outro significativo (no caso, à umbanda) assumiu para a formação da identidade e para a coesão interna dos grupos evangélicos. Em certo sentido, mais importante do que combater as tradições afro-brasileiras era combater. Como se sabe, a coesão interna de um grupo não raro depende da rivalidade com outros grupos. Além disso, quanto mais intensa a hostilidade, mais vigoroso tenderá a ser o gregarismo interno. Portanto, a dialogia eu-tu não prosperou nesse terreno. Por outro lado, a hostilização ostensiva associada ao estabelecimento de pontes e de uma realidade comum terá sido fundamental para o sucesso do recrutamento de adeptos. Como afirmara na primeira parte deste texto, o empreendedorismo é condição sine qua non para que condições de possibilidade e fatores facilitadores se transformem em realidade. No campo religioso, a competência empreendedora corresponde à aptidão para o proselitismo. Estou me referindo a algo maior que liderança e talento persuasivo: estratégias de sedução que combinem verossimilhança das crenças e linhas de continuidade com a adesão anterior, nas quais a ruptura faça sentido, infundindo inteligibilidade e coerência às mudanças. Além disso, são necessários outros ingredientes: liturgias atraentes em que emoções, música e o movimento integral do corpo participem. Porém, nada é mais importante, nesse universo de adesões religiosas, do que a garantia de que a organização do grupo ofereça acolhida a seus membros em dificuldade e funcione como uma rede confiável de cooperação em todos os níveis para os indivíduos e suas famílias.
Em resumo, as transformações que vêm ocorrendo no campo religioso brasileiro nos últimos trinta anos, pelo menos, inscrevem-se nas grandes mudanças pelas quais vem passando a sociedade brasileira, no centro das quais se encontra a grande migração, contraface do processo de urbanização acelerada que virou o país de cabeça para baixo. As principais alterações verificadas no plano religioso são provavelmente as seguintes: (a) a diversificação de um universo que antes se caracterizava por certa homogeneidade; (b) o dinamismo em lugar da estabilidade anterior; (c) o declínio da ampla e tradicional hegemonia católica; (d) a expansão veloz e em grande escala, sobretudo nas camadas mais pobres da população,15 do pentecostalismo evangélico, conjunto heterogêneo que impactou o próprio catolicismo, provocando a valorização do segmento católico carismático; (e) a centralidade dos rituais-espetáculo e da midiatização da fé, transformando pastores estrelas e padres cantores (e escritores) em fenômenos pop; (f) o crescimento do grupo dos sem religião, que prefiro definir, assim como Pierre Sanchis e outros pesquisadores, como o grupo dos sem Igreja, sem vínculos permanentes institucionalizados, entretanto interessados em práticas espirituais e pertencentes ao universo religioso; (g) a valorização da individualidade e de seus trajetos no campo religioso, em busca de experiências místicas e contato com o sagrado, gerando múltiplas adesões ou adesões sucessivas, e mudando o sentido que se atribuía no passado à adesão a uma Igreja ou a uma religião; (h) os cruzamentos entre a cultura da autoajuda e a procura espiritual, deslocando, ainda que não substituindo, as práticas terapêuticas alternativas e divinatórias; (i) a constituição de um terreno comum entre universos religiosos populares em conflito, promovendo as diferenças sobre o pano de fundo da igualdade, ainda que a guerra entre evangélicos e adeptos da umbanda não tenha sido obstada por isso e que seus efeitos deletérios para as tradições afro-brasileiras continuem a se produzir; (j) a predominância de escolhas religiosas intramundanas, que não excluem as opções extramundanas, mas as redistribuem no campo ou revogam sua antiga centralidade; (k) o fortalecimento de redes sociais de apoio mútuo entre os evangélicos; (l) a conjugação histórica nas últimas duas décadas entre as promessas intramundanas das teologias da prosperidade e o desenvolvimento econômico, envolvendo a redução da pobreza e a elevação da renda para os mais pobres. A conjugação é posta em xeque pela crise econômica e política que emerge em 2015.
Para facilitar a compreensão do último item, que me parece decisivo e talvez insuficientemente destacado, passo a descrever seus pressupostos e suas consequências, recapitulando o enredo desde o começo.
Bombardeados pela desconcertante realidade dos anos 1970 e 1980 - vividos, a maior parte do tempo, sem democracia e sob crescente crise econômica - que incidiu sobre suas sensibilidades coletivas em transição, e ainda em busca de novas narrativas que dessem conta de sua acidentada história recente, os segmentos populares não pareciam suficientemente atendidos pelos repertórios religiosos disponíveis.16 A grande narrativa católica talvez se revelasse incapaz de suscitar uma postura apta a fruir o que a vida - como ela era - oferecia, enfrentando-se as dificuldades para vencê-las, em vez de resignar-se. A versão tradicional tendia a ser interpretada como um estímulo a aceitar o sofrimento como forma de purgar os pecados e, sacrificando-se, alcançar a salvação espiritual. A versão progressista, inspirada na teologia da libertação, propunha um posicionamento ativo, cujo fundamento era a crítica da sociedade capitalista e a recusa à vida como ela era, ao mundo como se apresentava. Nos dois casos, o fiel popular era descrito como vítima, seja do enigmático capricho divino, seja da exploração econômica. As diferenças diziam respeito ao dilema: conformar-se ou empenhar-se na mudança? Observe-se que, no credo socialista da teologia da libertação, não se tratava de mudança das condições objetivas de vida, mas de transformação das estruturas que determinavam a existência de tais condições, o que envolveria a renúncia aos bens materiais, aos valores materialistas e consumistas, e aos critérios de julgamento sobre a realização pessoal desejável. Essa grande mudança só seria alcançada coletivamente.
Na versão católica tradicional, a redenção dá-se no reino do espírito, fora do mundo material. Na versão heterodoxa politicamente engajada, a salvação dá-se fora do mundo materialista. Em ambos os casos, os símbolos estratégicos focalizam renúncia e vitimização, insinuando a necessidade de que se recuse a vida como ela é, ou como ela era aos olhos dos fiéis mais pobres. Em um caso, seria preciso morrer em graça para alcançar a recompensa eterna. No outro, seria necessário fazer a revolução, o que não estava no horizonte histórico biográfico de ninguém. O fato constante em ambas as narrativas teológicas era a inviabilidade da realização pessoal neste mundo, nesta vida, qualquer que fosse o sentido que se atribuísse à ideia de realização. Para quem sofre carências de todo tipo, é desolador negar que haja possibilidade de mudanças no tempo que o destino concede à vida individual.
Por outro lado, faltava à cultura cívica laica o encantamento profético do carisma, fonte de promessas e esperanças. Não viriam dessa outra fonte, portanto, garantias que justificassem a esperança em uma redenção intramundana.
Sem prejuízo de todos os fatores previamente discutidos, talvez esteja aí a principal razão para a emergência de um dos fenômenos mais importantes na cultura popular brasileira das últimas décadas: a revolução no campo religioso, em especial a adesão em massa a igrejas evangélicas.17 A despeito da imensa diversidade escondida sob um mesmo título - de resto já suficientemente complexificado na análise que expus -, arrisco uma hipótese interpretativa sintética: o trabalhador, sobretudo a trabalhadora que assume a liderança familiar, onerada pela multiplicidade de obrigações domésticas e profissionais, precisa contar com uma narrativa que atribua sentido positivo, afirmativo, ao mundo real e à vida como ela é, de tal modo que as eventuais conquistas sejam percebidas como acessíveis em seu tempo de vida útil. Precisa contar a si mesma uma história em que não figure como vítima, na qual os objetos de seu desejo não sejam depreciados, em que atue como protagonista e mereça reconhecimento. Precisa de uma crença que a impulsione para dentro do mundo e a reassegure. Precisa que a vida como ela lhe aparece não seja reduzida a uma torpe indignidade dos poderosos ou a uma arbitrária e malévola maldição divina. Se a vida material - o dinheiro e os bens materiais - for maculada, o indivíduo e sua família estarão inapelavelmente conspurcados enquanto viverem. Ou, na clave revolucionário-sebastianista: enquanto a grande mudança não vier. Pois bem, a salvação neste mundo, a possibilidade de realização pessoal ainda em seu tempo de vida útil, a chance de tocar a felicidade, tudo isso lhe é facultado pela Teologia da Prosperidade difundida no mundo evangélico pentecostal.
Essa leitura faz do mundo evangélico uma grande conspiração conservadora? Não necessariamente, ainda que as religiões intramundanas sejam, por sua natureza, mais próximas da ética do trabalho e das orientações pragmáticas, como nos ensinou Max Weber. Tudo se passa como se parte expressiva do povo brasileiro dissesse a si mesma: se o capitalismo veio para ficar, joguemos o jogo e empreguemos seu vocabulário, desde que amparados por parâmetros morais que imponham limites aos apetites vorazes, à soberba, à ostentação e ao abuso dos outros. Afinal, talvez o dinheiro nem sempre seja sujo e “vencer na vida” não seja uma blasfêmia competitiva e egoísta. Respondamos à dubiedade do Estado - que proclama a igualdade de todos perante a lei e pratica a mais despudorada iniquidade - com nossa postura severa e reta. Enfrentemos a plasticidade de situações informais e amorfas, tão próprias às manipulações iníquas, com o rigor de nossa disciplina. Não nos detenhamos, porém, à espera da redenção utópica, nem nos postemos à beira do caminho clamando por piedosa indulgência e caridade paternal: avancemos para o interior desse mundo com nossa energia e muita ambição. É provável que o exorcismo, envolvendo possessão, como forma de combate à umbanda guarde relação com a natureza intramundana da religiosidade evangélica - refiro-me em particular à Igreja Universal. O diabo dá as caras no centro do ritual, no meio do povo de Deus, sob o disfarce de uma ou outra entidade. Para uma religião que fala a linguagem deste mundo, que negocia os caminhos deste mundo, é importante que o mal esteja encarnado. Vencê-lo ou expulsá-lo requer um enfrentamento direto no espaço e no tempo deste mundo.
Nem tudo foi fruto da virtude no sucesso evangélico. O tempero foi espargido pela fortuna, tornando a crença intramundana saborosamente verossímil: crescimento econômico, redução da pobreza, aumento da renda, expansão das oportunidades, acesso ao consumo e disseminação de expectativas favoráveis. Se a promessa de prosperidade não encontrasse estruturas de plausibilidade na vida real, talvez o balão desinflasse, perfurado por ceticismo e desânimo. No entanto, uma corrente benfazeja soprou por aqui, até 2015. O que era hipótese desejável tornou-se projeto realista. O dízimo valeu a pena. Os sacrifícios não foram em vão. Nada levaria a crer que sobreviesse alguma reversão inesperada no fluxo de adesões à Teologia da Prosperidade na diversidade de suas versões, enquanto a vida levasse adiante o sonho de virar cidadão pleno. Ocorre que a grave crise pela qual o Brasil vem passando desde 2015 impôs uma inflexão no ciclo socioeconômico ascendente: o desemprego explodiu, a pobreza avançou. Veremos até que ponto a popularidade da Universal resiste ao abalo em suas estruturas empíricas de plausibilidade. Por outro lado, quem sabe a crise torne ainda mais importantes os vínculos comunitários de solidariedade?
O grande desafio para os católicos será combinar valores sociais com expectativas intramundanas sem abdicar da crítica ao estado das coisas na vida como ela é. É possível aderir a seu tempo e cultivar esperanças intramundanas sem fazer dessa adesão compromisso com iniquidades?
Dessa visão de mundo que conquista mais adeptos a cada dia no meio popular, na nova classe média, nas camadas médias tradicionais, deriva um clamor por ordem, estabilização de expectativas, respeito a contratos e regras do jogo, de que a segurança pública constitui o conceito e a síntese prática.
A meu juízo, seria um equívoco de grandes proporções deduzir daí um suposto caráter conservador desses grupos sociais. Primeiro, porque esse caráter não pode ser objeto de dedução com base em condições já consolidadas: ele é objeto de disputa no espaço da política e da cultura política. Por isso mesmo, não é propriamente um caráter ou uma característica intrínseca ao personagem ou a suas condições históricas. Tudo vai depender das interpelações que os atores políticos lhes souberem dirigir, dos diálogos que estabelecerem com eles, que serão mais ou menos fluentes e bem-sucedidos conforme a compreensão de seus valores, expectativas e trajetórias. O projeto “vencer na vida fazendo força” pode implicar adesão acrítica ou participação crítica no sistema político-econômico, e essa distinção faz toda a diferença. Não é nada sutil. O que parece fora de cogitação é a hipótese de que esses grupos venham a se mostrar receptivos a imaginários políticos utópicos, isto é, extramundanos, ou mesmo a linguagens políticas sectárias, que confundam a crítica a iniquidades - as quais traem as próprias regras do jogo constitucionais - com a recusa de “tudo isso que está aí”. O discurso que desqualificar a ideia de vencer na vida no sistema vigente estará ameaçando as bases da ética religiosa intramundana que dá a liga a esses grupos e os impulsiona a seguir vivendo, enfrentando toda sorte de dificuldades. A ânsia por ordem tem as mais diferentes acepções e as escolhas entre elas estão abertas, à espera do processo e da sensibilidade dos empreendedores políticos. Assim como a segurança pública, a ordem desejada pode ou não ser compatível com os direitos humanos. À política e ao dinamismo criativo da cultura, a última palavra.
É curioso observar que a individualidade não se afirma apenas entre os andarilhos da “nova era” ou das religiosidades alternativas, nem apenas entre os errantes que experimentam diferentes religiões institucionalizadas, optando provisoriamente por alguma ou combinando algumas, como um sujeito sincrético, em lugar do antigo fiel cuja crença era sincrética. A individualidade também se constitui no âmbito evangélico pentecostal na medida em que se abraça a religiosidade intramundana. Afinal, o mundo de que se trata é regido pelo individualismo igualitário de raiz liberal, ao menos formalmente, normativamente e cada vez mais na vida real, graças à democratização participativa cidadã, recentemente bloqueada. Quanto mais o evangélico investe com realismo pragmático no mundo, mais contagiante torna-se o individualismo, o qual, como sabemos, se bifurca em egoísmo utilitário e experiência de autonomia, sintonizada com os princípios que constituem o eixo dos direitos humanos.
Mais um fator a ponderar quando se analisa o sentido da ordem desejada: os direitos humanos e a crença na dignidade da pessoa serão incorporados? Ou essa ordem aceita o convívio com a barbárie? De novo, à política e à criatividade da cultura a resposta. Essa ordem idealizada ainda não existe. Será construída, ou poderá sê-lo. Será, portanto, o que a sociedade, com todas as suas contradições, puder fazer.
Em síntese, mesmo não sendo correto o reducionismo que considera todo esse universo pentecostal conservador, é verdade que as linhas principais apontam para limites às mudanças. Ocorre que, paralelamente, avança a individualidade, o que implica dizer: estão lançadas sementes de transformações muito mais profundas.
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O presente ensaio é parte do livro O Brasil e seu duplo, a ser publicado pela editora Todavia em 2019.
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Deve-se a Alba Zaluar a crítica pioneira a essas associações mecânicas entre pobreza, desfuncionalidade social, anomia e criminalidade. Em sua obra-prima A máquina e a revolta, já um clássico, ela demonstrou quão perverso pode ser esse tipo de raciocínio equivocado, cujo efeito é estigmatizar os atores sociais oriundos das classes subalternas (Zaluar, 1985).
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Observe-se que, na experiência social, há um contínuo entre práticas e relações, diluindo fronteiras formalmente delineadas, na letra da lei. A posteriori, a ação de agências da Justiça criminal (das polícias aos tribunais e ao sistema penitenciário) é que, retrospectivamente, classificará em categorias os eventos empíricos, mediados por narrativas que lhes atribuem possíveis significações, acusando e estigmatizando alguns indivíduos e os punindo, enquanto outros atores e suas práticas permanecem intocados. A aplicação das leis, em todas as instâncias, é submetida à refração de filtros seletivos, que impõem vieses de classe, cor e território, entre outros. Um bom modo de abordar esse complexo, formado por continuidades e descontinuidades, é “seguir o dinheiro”, acompanhar a dinâmica do capital. Roberto Saviano (2014) mostrou como os negócios legais, nas mais diversas áreas da economia e países, tornaram-se indissociáveis dos ilegais, em especial do tráfico de cocaína (por isso, mesmo com o sacrifício do bom senso e de direitos individuais elementares, o proibicionismo continua em vigência, trazendo consigo todo um cortejo de violência, corrupção e degradação de instituições públicas). Por esse motivo, além da ignorância e da manipulação demagógica, a legalização das drogas não ingressa de vez na agenda política.
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Obra muito importante sobre a urbanização é a de Milton Santos (2005).
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Em certo sentido, é bastante discutível a tese de que o Brasil é mais violento atualmente do que foi no passado. Bastaria mencionar a escravidão e a incomensurável violência que representa para sustentar a ideia. Entretanto, se nos detivermos na experiência dos homens livres, no século xix, em pleno Brasil rural, encontraremos, graças à pesquisa clássica de Maria Sylvia de Carvalho Franco (1997), um universo humano extraordinariamente brutal, aleatoriamente violento. As informações historiográficas não são suficientes para a construção de séries diacrônicas extensas que nos permitam estabelecer uma comparação precisa — aliás, em matéria de violência, o que não há nem antes nem hoje são dados precisos. De todo modo, independentemente dos cômputos que façamos, seria razoável questionar a convicção de que a violência brasileira explodiu nas últimas duas décadas do século xx depois de séculos de relativa tranquilidade, depois de décadas serenas. A paz nunca foi uma qualidade da sociedade brasileira. Muito pelo contrário. A brutalidade sempre foi a regra. O que havia era mais obscuridade e desleixo, e manipulação, nas práticas de registro. A modernização administrativa do aparelho de Estado aprimora os instrumentos de aferição e a valoriza como parte das estratégias de controle. À medida que os registros se tornam um pouco menos precários, os indicadores sobem. De qualquer forma, em sendo inviável formar uma convicção definitiva sobre quando fomos mais ou menos violentos, o que podemos fazer é esclarecer de que modos distintos temos sido violentos.
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Sobre associação entre pobreza extrema e homicídio, ver Soares (2008) e Soares e Sapori (2014).
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O sociólogo José de Souza Martins propõe uma interpretação que parece, à primeira vista, radicalmente oposta àquela aqui enunciada, mas que talvez esteja próxima, se a compreendermos como a afirmação de que há continuidades na descontinuidade e vice-versa, além e aquém das relações causais: “Na sociedade brasileira, a modernização se dá no marco da tradição, o progresso ocorre no marco da ordem. Portanto, as transformações sociais e políticas são lentas, não se baseiam em acentuadas e súbitas rupturas, sociais, culturais, econômicas e institucionais. O novo surge sempre como um desdobramento do velho” (Martins, 1999, apudPassos, 2006). A tese pode deixar-se ler pelo avesso: a continuidade aparentemente conservadora e estável pode revelar-se disruptiva, se filtrada por determinada ótica, em certo contexto. Na complexidade da articulação entre as distintas temporalidades dos fenômenos, as imagens são prismáticas: simultâneas e contrastantes, quando não contraditórias.
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Para o período anterior, consulte-se C. R. Jacob (2003; 2006). Sobre a participação política dos evangélicos, leitura fundamental é Machado (2006).
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Para interpretações mais recentes de fenômenos análogos, vale consultar Sanchis (1995), Amaral (2003), Novaes (2004), Hervieu-Léger (2005), Fernandes e Pitta (2006) e Coelho (2009).
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Vale a pena consultar Magnani (1999), para uma interpretação do mundo “alternativo”, assim como Montero e Almeida (2000), Pierucci e Prandi (1996) e Pierucci (2004) para uma análise geral.
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Um exemplo interessante é analisado por Fonseca (2000).
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Para análises muito ricas sobre o lugar do mal (não só, nem principalmente, dos males) na sociedade brasileira, vale a leitura de Birman, Novaes e Crespo (1997).
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Creio não abusar da liberdade interpretativa se tomar as seguintes afirmações de Ronaldo de Almeida como a confirmação da atualidade de minha tese: “O culto de libertação, portanto, pode ser lido como uma inversão simbólica dos rituais encontrados nos terreiros. Logo, se por um lado a relação entre os universos religiosos está fundada sobre uma situação inicial de oposição e de confronto, por outro a Igreja Universal não deixa de reconhecer a veracidade do que ocorre na Umbanda e no Candomblé. Assim, o reconhecimento garante que a possessão efetivada num terreiro se reproduza também no templo; contudo, no templo, a ‘manifestação’ das entidades tem a função de revelar as estratégias do diabo para a escravização espiritual, física e material do homem” (Almeida, 2009, p. 105). Em outra passagem: “A Igreja Universal acabou estabelecendo […] uma continuidade entre o ritual de incorporação das entidades e o ritual de exorcismo. Inversão e continuidade que se caracterizam pela aceitação do que ocorreu no terreiro como verdadeiro […]” (p. 112). Mais um trecho: “Acima de tudo, o confronto simbólico é mais acentuado com as religiões afro-brasileiras. A hipótese deste trabalho é de que, nesse processo de confronto, a Igreja Universal constituiu-se em relação ao universo simbólico de seus adversários, ficando parecida com as religiões combatidas” (p. 57; consultem-se também pp. 83 e ss., e 93 e ss.).
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Ronaldo de Almeida observa essa concentração do crescimento evangélico entre os mais pobres, comparando os censos de 1991 e 2000, na Região Metropolitana de São Paulo (Almeida, 2009, p. 41). O censo de 2010 parece confirmar suas conclusões e justificar sua generalização. Consulte-se também, do mesmo autor, “Religião na metrópole paulista” (2004). Para uma refinada e profunda apresentação geral do quadro religioso brasileiro contemporâneo, nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, vale consultar Mafra e Almeida, 2009.
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As reflexões sobre as vantagens de opções religiosas intramundanas para a massa da população e sua coincidência histórica com a ampliação de oportunidades, conferindo verossimilhança às crenças, foram incluídas, em versão anterior, em meu ensaio “Raízes do imobilismo político na segurança pública” (Soares, 2013).
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É preciso destacar a importância histórica, para o conhecimento desse fenômeno, do Censo Institucional Evangélico, publicado em 1993 pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser), sob coordenação de Rubem César Fernandes. Os números surpreenderam, à época: em 1992, já havia quase 3.500 espaços de culto, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, e se registravam, a cada semana, oito novas organizações religiosas. Não por acaso, o estado do Rio de Janeiro é aquele em que o crescimento evangélico tem sido o mais pronunciado, segundo os dados do ibge relativos a 2010.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Maio 2019 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2019
Histórico
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Recebido
28 Jan 2019 -
Aceito
28 Fev 2019