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PRESA NA REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL: Privacidade, gênero e justiça de dados no Programa Bolsa Família

Caught in the Social Safety Net: Privacy, Gender and Data Justice in the Bolsa Família Program

RESUMO

O artigo analisa o Programa Bolsa Família (PBF) como uma “cadeia de valor da informação” e observa, a partir de elementos colhidos em entrevistas e denúncias, aspectos de justiça de dados e impactos da datificação do programa sobre suas beneficiárias, sobretudo quanto à privacidade e ao gênero. Na análise, são consideradas as dimensões procedimental, de direitos e distributiva ao longo da cadeia de dados que informa e alimenta o PBF.

PALAVRAS-CHAVE:
privacidade; justiça de dados; Programa Bolsa Família; proteção social; desigualdade

ABSTRACT

The article analyzes the Bolsa Família Program as an “information value chain” and observes, drawing from interviews and citizen complaints, data justice aspects and impacts of datafication of the cash transfer program for its beneficiaries, in particular regarding privacy and gender. In the analysis, the procedural, the rights-based and distributive dimensions along the information chain that informs and feeds the PBF are considered.

KEYWORDS:
privacy; data justice; Bolsa Família Program; social protection; inequality

INTRODUÇÃO1 1 Este trabalho é resultado de um projeto de pesquisa realizado no InternetLab — associação de pesquisa em direito e tecnologia, por meio de um financiamento da Privacy International, viabilizado pelo International Development Research Center (IDRC). As autoras agradecem as colaborações da pesquisadora Julia Drummond, a revisão de Clarice Tavares e as contribuições da pesquisadora Jaciane Milanezi e da gestora de políticas públicas Juliana Borim Milanezzi.

O Programa Bolsa Família (PBF) nasceu com a vocação de unificar e centralizar: unificar programas sociais de enfrentamento à pobreza e centralizar, no Governo Federal, os processos de normatização, seleção de beneficiários e monitoramento, e de integração com as políticas das áreas da educação e da saúde. Por isso, a relação entre o programa e seu principal instrumento de gestão de dados, o Cadastro Único, pode ser descrita como simbiótica. A cadeia de valor da informação que caracteriza os fluxos do PBF, do cadastramento ao controle das condicionalidades, permite considerá-lo um programa datificado.

Datificação é definida como o crescente uso de dados e seu impacto na vida social (Heeks; Shekhar, 2019Heeks, R.; Shekhar, S. “Datafication, Development and Marginalised Urban Communities: An Applied Data Justice Framework”. Information, Communication & Society, 2019, v. 22, n. 7. ; Masiero; Das, 2019Masiero, S.; Das, S. “Datafying Anti-Poverty Programmes: Implications for Data Justice”. Information, Communication & Society, 2019, v. 22, n. 7, pp. 916-33.). Embora se trate de uma perspectiva incipiente nos estudos sobre políticas sociais, o fenômeno é global: esquemas de proteção social, nos últimos quinze anos, vêm se tornando cada vez mais computadorizados; paralelamente, dados de beneficiários passam a desempenhar um papel determinante em todas as etapas dos programas sociais e de seus respectivos processos de decisão (Masiero; Das, 2019Masiero, S.; Das, S. “Datafying Anti-Poverty Programmes: Implications for Data Justice”. Information, Communication & Society, 2019, v. 22, n. 7, pp. 916-33.).

Há muito que dados são usados em políticas públicas, mas o advento das tecnologias digitais em todo o mundo e sua difusão nos paí­ses periféricos significaram uma diferença de grau. A datificação traz a promessa de maiores efetividade e responsividade dos programas, já que o cruzamento automatizado de dados possibilita o aperfeiçoa­mento da identificação e seleção dos beneficiários - pretendendo resolver, em especial, problemas de inclusão de beneficiários que não cumprem as condições e de exclusão de quem efetivamente precisaria do benefício (Muralidharan; Niehaus; Sukhtankar, 2016Muralidharan, K.; Niehaus, P.; Sukhtankar, S. “Building State Capacity: Evidence from Biometric Smartcards in India”. American Economic Review, 2016, v. 106, n. 10, pp. 2.895-2.929.). Para programas focalizados de transferência de renda, não é promessa pequena. A Organização das Nações Unidas (ONU), por exemplo, identificou no uso de dados um potencial revolucionário para se atingir as metas de desenvolvimento sustentável (ONU, 2015Organização das Nações Unidas (ONU). Transforming Our World: the 2030 Agenda for Sustainable Development. A/RES/70/1, 2015.).

Vem despontando uma literatura, em especial no campo dos estudos de desenvolvimento, que observa o problema a partir da perspectiva da justiça (ou injustiça) de dados, que pode ser definida como “justiça na forma como pessoas se tornam visíveis, representadas e são tratadas em razão de sua produção de dados digitais” (Taylor, 2017Taylor, L. “What is Data Justice? The Case for Connecting Digital Rights and Freedoms Globally”. Big Data & Society, 2017, v. 4, n. 2, pp. 1-14.). Essa noção permite revelar formas novas e específicas de injustiça na datificação de programas sociais. Como a datificação afeta os beneficiários do PBF?

Nos termos da justiça de dados, as análises podem dizer respeito a desigualdades para a datificação - diante de deficiências digitais e desigualdades de acesso em determinado país e entre países - ou a desvantagens da datificação em si - como vigilantismo e riscos à privacidade, captura privada das políticas, ou o aumento de desigualdades decorrente da perda relativa de poder de indivíduos e grupos. Heeks e Shekhar (2019Heeks, R.; Shekhar, S. “Datafication, Development and Marginalised Urban Communities: An Applied Data Justice Framework”. Information, Communication & Society, 2019, v. 22, n. 7. ) propõem um modelo que sistematiza a análise de processos de datificação de políticas sociais, a partir do seu sistema de dados, e em cinco diferentes dimensões. Os momentos da cadeia são separados: a “subida” (coleta de dados); a “correnteza” (processamento e visualização dos dados); e a “descida” (uso da informação em decisões e ações voltadas para o cidadão).2 2 Em inglês, respectivamente, upstream, midstream e downstream. Em cada um desses momentos, a observação de cinco dimensões serve de auxílio à avaliação de aspectos de justiça:

  • Na dimensão procedimental, como os dados são tratados nas diferentes fases da cadeia, a partir de perspectivas de equidade;

  • Na dimensão instrumental, avaliação de equidade nos resultados do uso dos dados;

  • Na dimensão baseada em direitos, a aderência, em todas as fases da cadeia, aos chamados direitos associados a dados (data rights), como o direito de estar adequadamente representado no conjunto de dados, mas também direitos relacionados a privacidade, acesso e titularidade;

  • Na dimensão estrutural, como a distribuição e o fluxo de poder e interesses apoiam resultados equitativos ou não;

  • Por fim, na dimensão distributiva, superestrutural e guarda-chuva para as demais, se há resultados equitativos em todas as outras dimensões.

Nossa análise do PBF leva em conta, primariamente, a dimensão baseada em direitos e a procedimental. A principal razão é a metodologia aqui empregada. Na dimensão baseada em direitos, foca-se quem e o que está visível em uma determinada cadeia de dados - bem como para quem -, ao passo que, na procedimental, se destacam as normas e o funcionamento do programa, em vez de seus resultados.

A visibilidade dos beneficiários de uma política social pode ser lida também a partir do conceito de legibilidade, desenvolvido por J. Scott para referir-se à forma como Estados processam informações sobre seus cidadãos para atingir seus objetivos - um processo de simplificação e padronização de dados para fins de controle social e por meio do qual compreensões locais e nativas são dissolvidas (Scott, 1998Scott, J. C. Seeing like a State: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed. Nova York: Yale University Press, 1998.). A dinâmica entre visibilidade e legibilidade pode despertar receios, por exemplo, em cidadãos com status de informalidade ou ilegalidade (Heeks; Shekhar, 2019Heeks, R.; Shekhar, S. “Datafication, Development and Marginalised Urban Communities: An Applied Data Justice Framework”. Information, Communication & Society, 2019, v. 22, n. 7. ) ou diante da possibilidade da perda de benefícios. Ademais, a legibilidade, uma vez construída, pode apresentar-se a terceiros não esperados; nessa dinâmica, importantes consequências se colocam da perspectiva do direito à privacidade e do direito à autodeterminação informativa. Na dimensão procedimental, observamos a forma como são tratados e protegidos os dados ao longo da cadeia de valor da informação e, como consequência, sobre quem recaem os riscos do tratamento dos dados.

A literatura mostra como, no caso das políticas sociais de alívio à pobreza, a privacidade é tacitamente negociada e facilmente abdicada quando a contrapartida é o acesso a benefícios (Callander, 2019Callander, A. “Privacy, a Precondition for Social Protection”. Scottish Legal Action Group Journal. n. 500, 2019.; Masiero; Das, 2019Masiero, S.; Das, S. “Datafying Anti-Poverty Programmes: Implications for Data Justice”. Information, Communication & Society, 2019, v. 22, n. 7, pp. 916-33.). Isso aumenta a sensibilidade em torno dos riscos e demanda atenção para as categorias mobilizadas nas discussões jurídicas com respeito a esse processo, como a do consentimento para coleta e cruzamento de dados.

Por fim, este artigo também apresenta contribuições para a dimensão distributiva, a partir da qual se avalia globalmente se resultados justos estão sendo produzidos por ações relacionadas à cadeia de dados, em especial a partir da consideração de que aspectos datificados do PBF reforçam imagens de controle (Collins, 2019Collins, P. H. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.), conforme exploramos a seguir.

Para além do aspecto datificado da política pública, também levamos em consideração, em nossa análise, seu aspecto generificado. Por lei (art. 2-º da Lei 10.836/2004), o benefício deve ser pago preferencialmente à mulher, como responsável pela unidade familiar. As mulheres representam 88,5% dos responsáveis familiares (Senarc, 2019Senarc - Secretaria Nacional de Renda de Cidadania. Boletim Bolsa Família e Cadastro Único, 2019, ano 4, n. 51.), e as condicionalidades do programa dizem respeito ao cuidado de seus filhos. Tendo em vista o público prioritário desta política - mulheres, majoritariamente pardas e pretas,3 3 Os dados da Senarc de 2016 indicam que 75% das beneficiárias do programa são pretas e pardas. Ver dados da Secretaria Nacional de Renda e Cidadania, do Ministério da Cidadania (Senarc/MC, 2016). em situação de pobreza e extrema pobreza -, examinamos este aspecto do programa à luz do conceito de “matriz de dominação”, desenvolvido por Patricia Hill Collins (2019Collins, P. H. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.), bem como o potencial de seu reforço através de imagens de controle.

Para a autora, as relações sociais são constituídas por um arranjo de sistemas sobrepostos de opressão baseados em gênero, estrato social, estatuto do cidadão, raça e etnia, e pela organização de quatro esferas de poder: a estrutural, que diz respeito ao poder exercido por meio de leis e políticas públicas; a disciplinar, por meio de hierarquias burocráticas e técnicas de controle e vigilância; a hegemônica, quando ideias e ideologias dominantes se impõem; e a interpessoal, estabelecida nas relações cotidianas (Collins, 2019Collins, P. H. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.; Kerner, 2012Kerner, I. “Tudo é interseccional? Sobre a relação entre racismo e sexismo”. Novos Estudos Cebrap, jul. 2012, ed. 93, v. 31, n. 2, pp. 45-58.). As imagens de controle, por sua vez, operam na dimensão ideológica e atribuem significados à vida das mulheres negras que solidificam a matriz de dominação à medida que se tornam hegemônicas e que são percebidas como “naturais” (Collins, 2019Collins, P. H. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.; Bueno, 2020Bueno, W. Imagens de controle: um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins. Porto Alegre: Zouk, 2020.). Nesse sentido, adotamos a hipótese, em nossa análise, de que as imagens de controle welfare mother e welfare queen,4 4 A autora define outras quatro imagens de controle: mammy, matriarca, Jezebel/hoochie e dama negra. Para mais detalhes sobre suas características, ver Collins (2019, pp. 135-77) e Bueno (2020). detalhadas mais adiante, informam o processo de concepção, formulação, implementação e avaliação do programa.

Assim, neste artigo, oferecemos uma análise não exaustiva do PBF a partir das perspectivas de datificação, privacidade e gênero. As conexões entre essas três dimensões são examinadas, aqui, por meio da literatura sobre esses temas e de dados, entrevistas com gestores públicos5 5 Entre setembro de 2019 e fevereiro de 2020, realizamos oito entrevistas semiestruturadas com funcionários públicos do governo federal e dos municípios de São Paulo e Osasco. A decisão de entrevistar gestores desses dois municípios veio da percepção das singularidades do município de São Paulo e de cidades que integram a região metropolitana no que se refere a seus desafios e estratégias socioassistenciais. Ouvimos pessoas que, conforme a literatura, são consideradas burocracia de médio escalão (Cavalcante; Lotta, 2015), isto é, integram equipes que hierarquicamente se situam entre o alto escalão e a burocracia do nível da rua. São elas: Pierre Rinco (Observatório de Vigilância da Socioassistencial de São Paulo), Marina Carvalho (Senarc/MC), Thadeu Costa (Ouvidoria do MDC), Luiz Francischini (coordenador de gestão de benefícios do município de São Paulo), Osvaldo Santos (gestor municipal do município de Osasco), Sérgio Tadeu Neiva Carvalho (Controladoria-Geral da União [CGU]), João Gabriel Miranda Alves Pereira (CGU), José Roberto Frutuoso (Departamento do Cadastro Único, Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação, Ministério da Cidadania [Sagi/MC]). e material primário (denúncias contra beneficiárias).6 6 O material foi levantado via Lei de Acesso à Informação (LAI, lei 12.527, de 18 de novembro de 2011). Solicitamos inicialmente dados globais, segundo os quais, entre os anos de 2006 e 2019, foram registradas 44.339 denúncias. O ano de 2018 foi então definido como marco temporal, ao passo que a amostra se constituiu a partir da seleção de um estado de cada uma das cinco regiões federativas. As denúncias de cidadãos do Maranhão, Santa Catarina, Pará, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul foram solicitadas por nós, também por não ultrapassarem o número de 100 registros por estado. Assim, nosso corpus constitui-se do conteú­do de 339 denúncias. Uma vez que, a partir de 2019, novas orientações sobre o encaminhamento de denúncias foram transmitidas aos cidadãos, recebemos do coordenador-geral da Ouvidoria do Ministério da Cidadania a sugestão de também solicitá-las, a título de comparação. Acessamos então outros 81 casos e trabalhamos com o total de 420 denúncias.

Além desta introdução e da conclusão, o artigo apresenta outras quatro seções: na primeira delas, apresentamos aspectos do desenho do PBF que são centrais nas discussões das seções seguintes; na segunda, tratamos do CadÚnico, de sua arquitetura e do fluxo de dados; na terceira seção, analisamos o programa a partir de um de seus traços constitutivos, a focalização; por fim, na quarta seção, exploramos de forma detida o aspecto generificado da política. A intenção é contribuir não somente para uma agenda de pesquisa que ainda engatinha, como também para a visibilização de perspectivas em torno do direito à privacidade e da justiça de dados, em um momento de fundação do ecossistema de proteção de dados no país e em que a transferência de renda volta a ocupar o centro do debate diante do Auxílio Emergencial aprovado como resposta institucional à crise de Covid-19.

1. O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA

O PBF é o maior programa de transferência condicional de renda do mundo (The Economist, 2020The Economist. “Bolsa Família, Brazil’s admired anti-poverty programme, is flailing”. The Economist, 30/1/2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.economist.com/the-americas/2020/1/30/bolsa-familia-brazils-admired-anti-poverty-programme-is-flailing >. Acesso em: 5/3/2021.
https://www.economist.com/the-americas/2...
). Em junho de 2020, compreendia 14,283 milhões de famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, totalizando 43.711.464 de pessoas.7 7 Dados obtidos no VIS Data, Painel de Monitoramento Social do MDS, disponível em: <https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/vis/dash/painel.php?d=55>. Acesso em: 2/6/2021.

Em todo o mundo, programas de transferência de renda foram uma resposta ao desemprego e à pobreza decorrentes de um contexto de reestruturação produtiva e de ajuste econômico. No Brasil, o modelo surgiu nos anos 1990, ainda que, nos anos 1980, a sociedade civil e os debates constituintes já apontassem para essa possibilidade no horizonte. Ele foi positivado de fato na noção de “seguridade social” da Constituição de 1988, em concordância com a pauta da universalização dos direitos sociais. A crise fiscal do Estado e o projeto neoliberal dos governos brasileiros dos anos 1990 - somados à reação das elites conservadoras no Congresso ante a regulamentação fragmentada dos direitos sociais - resultaram em programas alinhados às orientações então estabelecidas pelo Banco Mundial e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para políticas sociais: descentralização, privatização e focalização (Silva e Silva; Yazbek; Di Giovanni, 2006Silva e Silva, M.; Yazbek, M.; Di Giovanni, G. A política social brasileira no século XXI: a prevalência dos programas de transferência de renda. São Paulo: Cortez, 2006.).

O PBF foi criado em 2003, unificando programas anteriores de transferência de renda do Governo Federal - Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Vale-Gás e Cartão Alimentação. Ainda que tenha se baseado em iniciativas de estados e municípios que vinham sendo implementadas desde 1995, o PBF significou um importante avanço institucional, em especial pela partilha da responsabilidade entre a União, os estados e os municípios, pela articulação entre diferentes políticas sociais e pela eleição do “grupo familiar” como sujeito da proteção (Silva e Silva; Yazbek; Di Giovanni, 2006Silva e Silva, M.; Yazbek, M.; Di Giovanni, G. A política social brasileira no século XXI: a prevalência dos programas de transferência de renda. São Paulo: Cortez, 2006.). É um programa de transferência de renda condicionada, ou seja, com condições nas áreas da educação e da saúde de cujo cumprimento depende a permanência no programa.

São elegíveis para o benefício todas as famílias com renda de até R$ 89 mensais por pessoa, ou entre R$ 89 e R$ 178, desde que tenham crianças e adolescentes. O benefício básico repassa o valor de R$ 89 à família e é cumulável com outros benefícios, de acordo com a presença de gestantes, nutrizes e crianças e adolescentes na família, chegando ao máximo de R$ 205. Para fazer parte do programa, a família deve estar registrada no Cadastro Único (CadÚnico) - um sistema federal criado em 20018 8 Por meio do decreto 3.877/ 2001. e que serve não somente ao PBF, mas a todos os programas federais direcionados à população de baixa renda (Brasil, 2017______. Manual do entrevistador. 4. ed. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, 2017.), com exceção da Previdência Social. A seleção das famílias que receberão o benefício é automatizada, com base nos dados do CadÚnico, e de acordo com os limites orçamentários do programa e o teto destinado a cada município. Não há prazo de permanência no programa, o que significa que o benefício continua a ser repassado enquanto os critérios de elegibilidade9 9 Segundo a regra de permanência, as famílias selecionadas permanecem no PBF por até dois anos após o aumento da renda familiar, desde que não ela não ultrapasse o valor de meio salário mínimo per capita. Esse mecanismo considera e ameniza os riscos relacionados à volatilidade de renda das famílias. forem atendidos e as condicionalidades forem cumpridas.

Duas características do programa fazem dele um lócus central de atenção para o debate sobre datificação e políticas sociais. A primeira é a centralidade do CadÚnico em toda a estruturação do programa, da descentralização à coordenação com outras políticas sociais. Em maio de 2020, havia mais de 73,4 milhões de brasileiros cadastrados (Dataprev, 2020Dataprev. “Auxílio Emergencial: Dataprev conclui sistemas e 51,4 milhões de cidadãos serão beneficiados”. Dataprev, 13/4/2020. Disponível em: <Disponível em: https://portal3.dataprev.gov.br/auxilio-emergencial-dataprev-conclui-sistemas-e-514-milhoes-de-cidadaos-sao-indicados >. Acesso em: 5/3/2021.
https://portal3.dataprev.gov.br/auxilio-...
), ou 35% da população. A segunda característica é a focalização do PBF10 10 Quando foi criado, o PBF foi entendido como uma etapa na universalização de direitos sociais. Se é possível identificar um caminho nessa direção, ele é algo paradoxal: de um lado, a redução gradual do PBF e o movimento de austeridade expresso pela emenda constitucional 95/2016 e, de outro, diante da crise decorrente da pandemia do novo coronavírus, a entrada em cena da Renda Básica Emergencial e os debates que ela reinaugurou. e o tratamento de dados que ela enseja - como o cruzamento com outras bases de dados, seja para encontrar os cidadãos que mais necessitam do benefício, seja para identificar inconsistências que podem levar à exclusão dos beneficiários. Em tais procedimentos, como veremos, inscreve-se a busca por legitimidade por parte de seus gestores, uma meta pretendida desde o momento de formulação do programa.

2. DESCENTRALIZAÇÃO POLÍTICA E GESTÃO CENTRALIZADA DE DADOS: O CADÚNICO

Pode-se compreender melhor o CadÚnico no contexto da discussão acerca da unificação dos programas de transferência de renda do governo federal, realizada na transição da Presidência de Fernando Henrique Cardoso para Lula (Paiva; Falcão; Bartholo, 2013Paiva, L.; Falcão, T.; Bartholo, L. “Do Bolsa Família ao Brasil Sem Miséria: um resumo do percurso brasileiro recente na busca da superação da pobreza extrema”. In: Neri, M. C.; Campello, T. (orgs.). Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Brasília: Ipea, 2013.; Soares; Sátyro, 2009Soares, S.; Sátyro, N. O Programa Bolsa Família: desenho institucional, impactos e possibilidades futuras. Brasília: Ipea , 2009. (Texto para discussão n. 1.424.)). Os relatórios da transição indicaram sobreposição nos programas então existentes e falta de coordenação geral entre os três ministérios distintos que os geriam. Isso significava desperdício de recursos, limitação da efetividade e parca estratégia para a autonomização das famílias com vistas a seu desligamento dos programas, o que os tornava “fins em si mesmos”. Nesse sentido, o CadÚnico era identificado como um “ponto de estrangulamento na implementação dos programas” e que, portanto, deveria ser reformulado como um instrumento de planejamento - inclusive para os municípios, que deveriam ter acesso aos dados (Silva e Silva; Yazbek; Di Giovanni, 2006Silva e Silva, M.; Yazbek, M.; Di Giovanni, G. A política social brasileira no século XXI: a prevalência dos programas de transferência de renda. São Paulo: Cortez, 2006.).

As soluções para os problemas de descoordenação dependiam de instrumentos de políticas públicas que dessem conta da intersetorialidade.11 11 Definida por Bichir (2016) como as relações estabelecidas entre diferentes áreas do governo, e também entre elas e atores externos, em torno da questão social. Entre esses instrumentos, além de regulações e taxações, incluem-se sistemas de monitoramento e gestão da informação. Dessa forma, o CadÚnico, embora precedesse o PBF,12 12 O CadÚnico foi criado pelo decreto 9.364/2001 — posteriormente substituído pelo decreto 6.135/2007. ganharia centralidade e cumpriria essa função.

O CadÚnico é ao mesmo tempo um instrumento de centralização, por permitir ganhos de diagnóstico e de eficiência na alocação de recursos, e de descentralização, na medida em que a existência de uma base de dados única é o que permite a responsabilidade partilhada pelos entes federativos no PBF.13 13 O fato de o CadÚnico ser federal mas com cadastramento municipal tem sido visto, também, como mecanismo contra corrupção e práticas clientelistas (Coutinho, 2013). A distribuição de papéis entre os distintos níveis da federação pode ser resumida da seguinte forma: o governo federal é a fonte dos recursos, e o ministério responsável pelo programa (atualmente, o Ministério da Cidadania) é o hub, ou ponto de conexão, do PBF (Coutinho, 2013Coutinho, D. Capacidades estatais do Programa Bolsa-Família: o desafio de consolidação do Sistema Único de Assistência Social. Rio de Janeiro: Ipea , 2013. (Texto para discussão n. 1.852.)): é responsável pelas “normas de caráter geral”, bem como pelo acompanhamento e pela supervisão da execução do CadÚnico. O Ministério da Educação e o da Saúde acompanham e fiscalizam o cumprimento das condicionalidades. Os municípios, por sua vez, cadastram as famílias no CadÚnico e se responsabilizam por visitar pelo menos 20% delas para verificação dos dados.14 14 O relatório de acompanhamento do Tribunal de Contas da União (TC 030.760/2015-1), no entanto, indica que o percentual de formulários preenchidos em visita familiar foi de 6% em 2015. No nível local ocorre também uma descentralização política, uma vez que a população local pode participar dos processos via conselhos e instâncias de controle social (Silva e Silva; Yazbek; Di Giovanni, 2006Silva e Silva, M.; Yazbek, M.; Di Giovanni, G. A política social brasileira no século XXI: a prevalência dos programas de transferência de renda. São Paulo: Cortez, 2006.; Coutinho, 2013Coutinho, D. Capacidades estatais do Programa Bolsa-Família: o desafio de consolidação do Sistema Único de Assistência Social. Rio de Janeiro: Ipea , 2013. (Texto para discussão n. 1.852.)).

O cadastramento das famílias é fundamental para o programa, constituindo, em sua cadeia de dados, o momento principal da etapa de “subida”. Para o cadastramento, são utilizados os formulários do CadÚnico. Caso a pessoa cadastrada não tenha o Número de Identificação Social (NIS), identificação do beneficiário de programas sociais do governo, a própria Caixa Econômica Federal (CEF) o emite a partir de nome, documentação e filiação do solicitante.

Em seguida, começa a etapa “correnteza” da cadeia de dados do PBF: a CEF recebe os dados coletados pelos municípios, consolida-os e os repassa mensalmente ao Ministério da Cidadania (MC). Os dados são tratados pela área de tecnologia da informação do ministério, que dá início à etapa de “descida”: define quem é elegível, sem qualquer ingerência do município.15 15 Informação obtida em conversa com Luiz Francischini em 2019. A lista é então devolvida à CEF, que “opera os pagamentos” por meio de um sistema on-line chamado Sistema de Benefícios ao Cidadão (Sibec), e a folha de pagamentos é então submetida à Senarc.16 16 Informação obtida em conversa com Marina Carvalho (secretária substituta da Senarc) em 2020. Outros dois sistemas apoiam o trabalho da Senarc: o Sistema de Gestão do Programa Bolsa Família (SIGPBF), que cadastra municípios e serve à solicitação de formulários do CadÚnico, e o Sistema de Condicionalidades (Sicon), que é alimentado pelos dados das pastas da Saúde e da Educação.

2.1. A coleta de dados: direitos e responsabilidades

O contato entre entrevistado e Estado, mediado pelo entrevistador, envolve importantes aspectos procedimentais e de direitos associados a dados. É um momento de possível estabelecimento de relações de confiança, de identificação proativa de vulnerabilidades e também de realização de alguns direitos e princípios de proteção de dados. A atenção a esses elementos pode diferenciar uma expe­riência de reforço de autonomia - ou autodeterminação informacional - ou, do seu contrário, a alienação informacional. Do ponto de vista legal, está implicado nesse ponto o princípio da transparência, de acordo com o qual devem ser garantidas aos titulares de dados informações claras, precisas e acessíveis sobre o tratamento de dados e os agentes responsáveis.17 17 Em diferentes perspectivas, o princípio da transparência pode ser encontrado não somente no artigo 6, parágrafo VI da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), mas também no artigo 37 da Constituição Federal, bem como no artigo 31 da Lei de Acesso à Informação e no artigo 7, parágrafo III, do Marco Civil da Internet. Exemplos desse princípio são as garantias de que as informações fornecidas serão utilizadas somente para os propósitos descritos, que será obstado o acesso indevido a elas e que a privacidade será preservada.

Para o cadastramento, alguns municípios recrutam assistentes sociais e estagiários de seu corpo técnico, enquanto outros terceirizam a atividade (Bartholo; Araújo, 2008______; Araújo, L. “Em busca das famílias reconstituídas: mapeamento dos arranjos familiares da população brasileira de baixa renda por meio do Cadastro Único de Programas Sociais”. Anais do XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 2008.). Os entrevistadores são treinados e seguem um roteiro com as orientações registradas no Manual do entrevistador (Brasil, 2017______. Manual do entrevistador. 4. ed. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, 2017.). Ali estão postas diretrizes como a de “tratamento cordial”, “respeito” pelas respostas oferecidas, abstenção de “juízos de valor” e tomada de consentimento no registro de observações. Os entrevistadores são orientados a alertar, no início da entrevista, sobre o dever do entrevistado de dizer a verdade e os riscos de responsabilização civil ou criminal pela omissão ou falsidade das informações. No final, devem informar aos respondentes que “as informações prestadas ao Cadastro Único são sigilosas e somente poderão ser utilizadas para formulação e gestão de políticas públicas e realização de estudos e pesquisas”, nos termos das normas aplicáveis18 18 Decreto 6.135, de 26 de junho de 2007, e portaria 10, de 30 de janeiro de 2012. - o que corresponderia à finalidade da coleta de dados e deslocaria a questão da segurança no seu tratamento para um nível mais superficial. Devem também lembrar o entrevistado da necessidade de atualização das informações prestadas, da impossibilidade de dar garantias de acesso aos programas e de como entrar em contato para mais informações.

A partir do Manual e das entrevistas conduzidas com gestores municipais,19 19 Informação obtida em conversa com Luiz Francischini em 2019. é possível inferir que o fornecimento de informações sobre o tratamento de dados não é um aspecto adequadamente contemplado na interação. Os alertas sobre possível responsabilização por informações falsas e imprecisas não é acompanhado, por exemplo, de informações acerca dos processos de validação, averiguação ou controle dos dados. A ênfase recai sobre as responsabilidades do beneficiário, enquanto as responsabilidades do Estado - especialmente sensíveis diante da obrigatoriedade da coleta para o acesso ao PBF e da natureza dos dados coletados - são apenas superficialmente mencionadas. O consentimento é solicitado apenas para envio de e-mails e mensagens de texto de celular, pela CEF, e para o registro de observações próprias do entrevistador.

Essa assimetria pode ser observada na dimensão de direitos e na procedimental. A falha em compartilhar informações compromete o conhecimento de titulares a respeito dos tratamentos e mitiga a capacidade de exercer seus direitos ao longo da cadeia. Na dimensão procedimental, o que se observa é uma tendência maximalista, dada a coleta de dados sem garantia de seleção pelos programas, a extensão do formulário e, apesar da exigência de apenas um documento, a instrução aos entrevistadores de coletar as informações de todos os documentos apresentados. Essa tendência maximalista vincula-se às amplas funções projetadas para o CadÚnico, conforme discutimos adiante.

2.2. A extensão dos dados

O CadÚnico compreende os formulários de cadastramento, um sistema informatizado e uma base de dados, e pode ser caracterizado como um Single Registry (Barca; Chirchir, 2014Barca, V.; Chirchir, R. Single Registries and Integrated MISs: De-mystifying Data and Information Management Concepts. Canberra: Department of Foreign Affairs and Trade of the Australian Government, 2014.). Isto é, ele permite a seleção de beneficiários a partir do armazenamento de informações que os identificam e caracterizam, bem como o monitoramento das intervenções, mas não é um sistema de gestão integrada dos programas, os quais contam com sistemas independentes.

Os quesitos constantes dos formulários estabelecem os conceitos para a representação da população-alvo. No processo de coleta de dados, a situação das famílias é traduzida em informações que sobem à base do CadÚnico - é, portanto, um filtro, através do qual os cidadãos tornam-se visíveis e legíveis (Bartholo; Araújo, 2008______; Araújo, L. “Em busca das famílias reconstituídas: mapeamento dos arranjos familiares da população brasileira de baixa renda por meio do Cadastro Único de Programas Sociais”. Anais do XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 2008.; Scott, 1998Scott, J. C. Seeing like a State: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed. Nova York: Yale University Press, 1998.).

Além da renda, do número de pessoas conviventes e da escolaridade, o formulário registra as condições de moradia, o acesso ao trabalho, a presença de deficiências e o pertencimento a grupos populacionais tradicionais e específicos (GPTE). A pessoa responsável pela unidade familiar tem, no mínimo, de responder ao formulário principal, que demanda 77 informações diferentes,20 20 No cálculo, unificamos campos que dizem respeito a uma mesma informação. Algumas informações não são respondidas por todas as pessoas, caso elas respondam “não” a questões condicionais prévias. com diferentes graus de detalhamento e sensibilidade. O cadastramento permite conhecer detalhes da família, seus antecedentes, as características de seu domicílio e seus hábitos, por exemplo: o material de construção de pisos e paredes, quanto é gasto com energia elétrica, transporte e medicamentos, a condição de abastecimento de água, detalhes sobre trabalhos e outras formas de obtenção de recursos, pertencimento a populações indígenas ou quilombolas e documentos pessoais (RG, CPF, Título de Eleitor, Carteira de Trabalho, Certidão de Nascimento).

O Manual do entrevistador prescreve que o responsável deve apresentar, obrigatoriamente, o CPF ou o título de eleitor,21 21 Exceto no caso de famílias indígenas ou quilombolas, em que é aceita qualquer outra documentação, incluindo, para as primeiras, o Registro Administrativo de Nascimento do Indígena (Rani). enquanto os demais membros da família devem apresentar ao menos um documento pessoal - mas, como já apontado, todos os documentos que a pessoa possuir devem ser cadastrados. As pessoas sem documentação devem ser incluídas e receber recomendações para emissão de documentos. Dos membros da família são coletados dados de identificação (38 campos para cada).

Os Formulários Avulsos servem para cadastramento ou atualização cadastral de outros membros e não oferecem novidade. O Formulário Suplementar 1 identifica a vinculação da pessoa ou da família a outros programas ou serviços do governo federal (como Tarifa Social na energia elétrica ou mesmo refeições em restaurantes populares) e seu eventual pertencimento a grupos tradicionais ou específicos. O Formulário Suplementar 2 inclui mais onze perguntas para pessoas em situação de rua, incluindo participação em atividade comunitária e motivos para morar na rua.

Essa significativa extensão dos formulários permite que políticas de saneamento básico, emprego e melhorias habitacionais sejam direcionadas às populações cadastradas. A vocação do CadÚnico para ser polo de articulação de políticas sociais do governo federal é de fato perceptível de forma destacada em distintos momentos. Por exemplo, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), instituído em 2011, direcionou a beneficiários jovens e adultos do PBF vagas em cursos de qualificação profissional - o que, naquele ano, resultou em 600 mil matriculados no Pronatec que eram beneficiários do PBF, sendo 66% deles mulheres (Bartholo; Passos; Fontoura, 2017Bartholo, L.; Passos, L.; Fontoura, N. Bolsa família, autonomia feminina e equidade de gênero: o que indicam as pesquisas nacionais?. Brasília/Rio de Janeiro: Ipea , 2017. (Texto para discussão, n. 2.231.)). Além disso, o CadÚnico passou a ser utilizado, em 2020, também como infraestrutura de dados para a concessão da Renda Básica Emergencial durante a pandemia do novo coronavírus.

Embora a economicidade do formulário seja um dos fundamentos do CadÚnico,22 22 Como mencionado no texto do relatório do TCU, TC 030.760/ 2015-1. a sua extensão não sugere uma tendência à minimização, nem no que se refere aos dados nem no que diz respeito aos tratamentos a que são submetidos. Houve, e há, aliás, um esforço experimental de identificação de novos processamentos e possíveis usos para os dados do cadastro (Barros; Carvalho; Mendonça, 2009Barros, R.; Carvalho, M.; Mendonça, R. Sobre as utilidades do Cadastro Único. Rio de Janeiro: Ipea, 2009. (Texto para discussão, n. 1.414.)). Essa perspectiva pode gerar certa apreensão com relação ao princípio da necessidade no tratamento de dados pessoais (art. 6, III da LGPD), que determina coleta e processamento restritos ao estritamente necessário à finalidade pretendida. Esse apetite por informação, ou tendência maximalista, se não acompanhado de um reforço da lógica precaucionária, deposita nos titulares os riscos da cadeia de valor da informação.

É evidente que esse conjunto de informações - e seu permanente aprimoramento por meio do cruzamento com outras bases de dados - pode servir a terceiros com interesses comerciais (como instituições de crédito) e político-eleitorais (como candidatos), para finalidades de controle moral, social ou ideológico, ou, ainda, para diferentes tipos de fraudes e abusos. É por essa razão, e pelo grau de vulnerabilidade social das pessoas cadastradas, que são centrais os debates em torno de sigilo e segurança dos dados e sobre os impactos de seu uso. Não faltam exemplos dos riscos da exposição indevida: apenas entre 2018 e 2020, houve casos de mensagens eleitorais sendo disparadas especificamente para beneficiárias do PBF, e ao menos três casos amplamente documentados de golpes que, prometendo benefícios adicionais, instalavam vírus nos dispositivos das beneficiárias.23 23 Agência Brasil. “Ministério alerta para fraude via WhatsApp sobre 13-º do Bolsa Família” (2019): Disponível em: <http://bit.do/fraudeAgBr>. O Estado de S. Paulo. “Golpe no WhatsApp promete benefício do Bolsa Família” (2018): <http://bit.do/fraudeEst>. Folha de S.Paulo. “Golpe no Whats­App que promete liberar 13-º do Bolsa Família instala vírus” (2019): <http://bit.do/fraudeFl>. Folha de S.Paulo. “Campanha de Meirelles enviou WhatsApp a beneficiários do Bolsa Família” (2018): <http://bit.do/eleitFl>. Sites acesssados em: 2/6/2021.

Os dados que identificam e caracterizam as famílias cadastradas são sigilosos (de acordo com o decreto 6.135/2017 e a portaria 10/2012). A eficácia e mesmo o sentido dessa garantia dependem, no entanto, dos procedimentos de acesso, compartilhamento, armazenamento e exclusão dos dados. Nesse sentido, a partir de uma análise inicial e exploratória, alguns elementos chamam atenção.

O CadÚnico, que hoje informa mais de vinte programas, emprega os dados para ao menos três finalidades: planejamento, concessão de benefícios e controle e auditoria, além da possível disponibilização para pesquisas. O acesso aos dados por atores estatais ou executores descentralizados privados, como organizações da sociedade civil, concessionárias e permissionárias de serviços públicos, ou empresas privadas prestadoras de serviços, ocorre por meio: (i) de sistemas de informação com relativa integração com o CadÚnico, (ii) da extração da base completa, (iii) do produto de cruzamentos solicitados ou, finalmente, (iv) da Cecad/V7, ou seja, o Sistema de CadÚnico ou o Sistema de Consulta, Seleção e Extração de Informações do CadÚnico (Direito; Koga, 2016Direito, D.; Koga, N. “Ecossistema do Cadastro Único e seus programas usuários: uma análise relacional”. Anais do 40-º Encontro Anual da Anpocs. Minas Gerais, 2016.).

Hoje, todas as formas de acesso aos dados do CadÚnico são reguladas pela política instituída pela portaria 502/2017.24 24 A política responde à falha identificada em 2009 em auditoria realizada pela Secretaria de Fiscalização de Tecnologia da Informação (Sefti) em conjunto com a 4-ª Secretaria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (TCU), em que se identificou a inexistência de uma política de segurança da informação (PSI) e o risco resultante da não formalização dessas regras. O CadÚnico estaria, segundo o relatório da auditoria, vulnerável a acessos não autorizados. Ver: Brasil (2009). Por outro lado, as práticas concretas,25 25 Em 2018 foram inauguradas medidas de segurança, como o acesso com autenticação em duas etapas. Em contrapartida, ficou a cargo dos municípios operar as funcionalidades de controle de acesso do sistema e evitar fraudes e acessos indevidos. Ver: Brasil (2019). como é o caso da autorização concedida às distribuidoras de energia elétrica para acessar integral e diretamente a base de dados do CadÚnico, com vistas a conceder o benefício da Tarifa Social de Energia Elétrica (Direito; Koga, 2016Direito, D.; Koga, N. “Ecossistema do Cadastro Único e seus programas usuários: uma análise relacional”. Anais do 40-º Encontro Anual da Anpocs. Minas Gerais, 2016.), desafiam a eficácia desses dispositivos. A cessão dos dados, de fato, depende da autorização do governo federal e é precedida pela assinatura de termos de responsabilidade e de compromisso de manutenção do sigilo. Embora tais documentos formalizem uma obrigação e viabilizem a responsabilização diante de violação, eles constituem um mecanismo reativo de proteção da privacidade - não parecem obstar e diminuir o risco de acesso indevido de maneira proativa. Falham, portanto, em incorporar a privacidade ao sistema ao longo de todo o seu ciclo: por um lado, compartilha-se mais informação que o necessário para o atendimento da finalidade específica; por outro, o controle de acesso se torna mais frágil, mesmo com o emprego de termos de responsabilidade.

Tais fragilidades convivem com outras medidas recentes, que têm afetado os já precários limites para o compartilhamento de dados. O decreto 10.047/2019 insere o CadÚnico entre as 51 bases de dados cujo acesso será disponibilizado ao Instituto Nacional do Seguro Social (inss) com vistas à análise, concessão, revisão e manutenção de benefícios por ele administrados (art. 9, §2-º). O decreto 10.046/2019, por sua vez, criou um Cadastro Base para consolidar “atributos biográficos” constantes de bases de dados federais, permitindo, portanto, a integração do CadÚnico, o que facilita o compartilhamento de dados entre órgãos da administração pública, sem que se prevejam medidas de atenção aos princípios de proteção de dados.

3. FOCALIZAÇÃO: CRUZAMENTOS, AVERIGUAÇÕES E O FANTASMA DA FRAUDE

A renda autodeclarada é o principal critério de seleção de beneficiários e atribuição do valor do benefício (Farias, 2016Farias, L. O Cadastro Único: uma infraestrutura para programas sociais. Dissertação (mestrado em política científica e tecnológica). Campinas: Unicamp, 2016.; Barros et al., 2008Barros, R.; Carvalho, M.; Franco, S.; Mendonça, R. A importância das cotas para a focalização do Programa Bolsa Família. Rio de Janeiro: Ipea , 2008. (Texto para Discussão, n. 1.349.)). Esse traço do programa, no entanto, é alvo frequente de críticas e desconfianças. Dele decorrem também impactos sobre a forma como são tratados os dados de beneficiários, a começar por sua combinação com as cotas por município e com outras bases como estratégias originárias de correção e focalização (Barros et al., 2008Barros, R.; Carvalho, M.; Franco, S.; Mendonça, R. A importância das cotas para a focalização do Programa Bolsa Família. Rio de Janeiro: Ipea , 2008. (Texto para Discussão, n. 1.349.)).

A imprensa e órgãos de controle vieram, ao longo dos anos, repercutindo que o dado autodeclarado não seria confiável e representaria um incentivo à subdeclaração (Farias, 2016Farias, L. O Cadastro Único: uma infraestrutura para programas sociais. Dissertação (mestrado em política científica e tecnológica). Campinas: Unicamp, 2016.; Lindert; Vincensini, 2010Lindert, K.; Vincensini, V. “Social Policy, Perceptions and the Press: An Analysis of the Media’s Treatment of Conditional Cash Transfers in Brazil”. Social Protection & Labor Discussion Paper, World Bank, n. 1.008, 2010.). As perspectivas de que os potenciais beneficiários - em sua ampla maioria, mulheres - teriam incentivos para ludibriar o Estado, por serem enunciadas a partir de lugares de autoridade, reforçam as imagens de controle associadas a essas mulheres, nos termos de Collins (2019Collins, P. H. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.). A imagem da welfare mother está ligada ao estereótipo da preguiça e à ideia de que mulheres negras e pobres teriam filhos para aumentar o benefício recebido. Embora o termo tenha sido cunhado fora do Brasil, a imagem é bastante conhecida do nosso contexto, como aponta Bueno (2020Bueno, W. Imagens de controle: um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins. Porto Alegre: Zouk, 2020.). A imagem de controle da welfare queen,26 26 Nos EUA, nos anos 1980, Ronald Reagan cunhou o termo welfare queen para referir-se a mães beneficiá­rias como preguiçosas e promíscuas (Gilman, 2008). por sua vez, diz respeito à mulher que, com ou sem filhos, não tem um marido e, por depender de benefícios sociais, é considerada “casada com o Estado”, vivendo, assim, do dinheiro dos cidadãos contribuintes (Collins, 2019Collins, P. H. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019., pp. 149-50).27 27 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que 63% das casas comandadas por mulheres negras e com filhos de até 14 anos encontram-se abaixo da linha da pobreza, com renda de US$ 5,5 per capita ao dia, cerca de R$ 420 mensais. O índice representa mais que o dobro de pontos percentuais se comparado à média nacional, igualmente alarmante: 25% de toda a população está abaixo da linha da pobreza. Para mulheres brancas e com filhos, a proporção de casas abaixo da linha da pobreza é de 39,6%. Ver: Ferreira, Bruno e Martins (2019).

Essas imagens foram amplificadas, mais recentemente, por dois fatores. O primeiro é que o PBF foi atravessado por pressões políticas associadas à conflituosidade construída em torno do Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual a imagem do programa esteve ligada.28 28 Entre os elementos da Ponte para o futuro, lastro programático das articulações pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, estava o compromisso de “estabelecer uma agenda de transparência e de avaliação de políticas públicas, que permita a identificação dos beneficiários, e a análise dos impactos dos programas”, lastreada na percepção de que “o Brasil gasta muito com políticas públicas com resultados piores do que a maioria dos países relevantes” (PMDB, 2015). O segundo está relacionado a uma tendência de cortes em programas sociais, materializada nas restrições orçamentárias e financeiras decorrentes do Novo Regime Fiscal (EC 95/2016). Com o teto de gastos públicos veio a demanda por economia, redução do número de benefícios e controles mais rígidos sobre beneficiários de programas assistenciais ou previdenciários do governo. No debate público, os erros de inclusão ganharam centralidade - e a pressão decorrente dessa situação influencia o tratamento de dados.

As intervenções em resposta a essas pressões são variadas e longevas. Um exemplo foi a já extinta Rede Pública de Fiscalização do Bolsa Família, criada em 2005 para dissipar críticas e reforçar a legitimidade do programa; outro, em 2016, foi o Grupo de Trabalho Interinstitucional do Bolsa Família, incumbido de formular estratégias de “pente-fino”. O uso de dados e de técnicas de cruzamento de bases tem um lugar privilegiado nas ações e nos discursos a respeito de coibição de fraudes.

Vale lembrar, no entanto, que cruzamentos para qualificação da base e identificação de inconsistências estão ligados originariamente ao traço focalizado do programa. Dada a limitação de recursos destinados ao PBF, os cruzamentos são justificados pelo propósito de alcançar “quem realmente precisa” (Bachtold, 2017Bachtold, I. “Precisamos encontrá-los!”: etnografia dos números do Cadastro Único e dos cruzamentos de base de dados do governo federal brasileiro. Dissertação (mestrado em antropologia social). Brasília: Universidade de Brasília, 2017.). Em contrapartida, os mecanismos de “controle do risco da autodeclaração” são a revisão cadastral, a exclusão lógica e a averiguação.29 29 O relatório do TCU (TC 030. 760/2015-1) é explícito na ligação desses mecanismos com a garantia da qualidade dos dados (ver pars. 106 e 124). Uma primeira qualificação dos dados da base ocorre ainda na fase de “subida”, com “mecanismos de unicidade das informações” (regras de atribuição do NIS) e “mecanismos de crítica imediata”: na inserção dos dados, alguns campos, como CPF e título de eleitor, indicam inconsistências imediatamente, checando a validade do número, a correspondência ao titular ou duplicidade.

A revisão cadastral é realizada sistematicamente desde 2009 para os beneficiários do PBF30 30 Portaria 617, de 11 de agosto de 2010. e, desde 2017, para todo o CadÚnico - famílias que não atualizam dados por dois anos são convocadas; se não comparecem, os benefícios são bloqueados e, depois de dois meses, cancelados.31 31 Portaria 555, de 11 de novembro de 2005. A exclusão lógica do registro cadastral ocorre após 48 meses sem atualização, bem como no caso de má-fé comprovada na omissão ou prestação de informações inverídicas.32 32 Portaria 177, de 16 de junho de 2011. Finalmente, a averiguação cadastral se dá pela checagem de inconsistências a partir da comparação com outras bases de dados.33 33 Portaria do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS 94, de 4 de setembro de 2013). O artigo 2-o menciona registros administrativos dos governos, de empresas concessionárias e prestadoras de serviços públicos, dados de pesquisas do IBGE, e “outras análises, a critério do MDS”. Nesses casos, os beneficiários são chamados a realizar nova entrevista e a atualizar seus dados; confirmada a inconsistência, a família deve ter a oportunidade de se manifestar, ao passo que o cancelamento do benefício, o ressarcimento dos valores e a responsabilização dos eventuais fraudadores só ocorrem diante de comprovada má-fé ou recusa a prestar esclarecimentos.34 34 Artigo 14-A da lei 10.836/2004; ver também: Brasil (2017). A oportunidade de defesa, a convocação para atualização, e a possibilidade de bloqueio antes do cancelamento devem ser reconhecidos como importantes garantias e proteções em um sistema datificado: primeiro, defesa e esclarecimento; depois, a decisão.

Os cruzamentos de dados anuais são realizados desde 2005, por recomendação de auditoria do TCU (acórdão 240/2003) e, desde então, novas bases vêm sendo somadas ao processo. Em paralelo, os cruzamentos também são conduzidos diretamente pelos órgãos de controle, como o TCU e a CGU, e os resultados são incorporados no processo de averiguação, seguindo o mesmo fluxo do Ministério da Cidadania.35 35 Instrução Operacional 79/Senarc/MDS. Dessa multiplicidade de atores incumbidos, ou autoincumbidos, do cruzamento simultâneo e intensificado de bases de dados para verificação de inconsistências e controle de fraudes parece decorrer certa redundância fiscalizatória, sobretudo se considerada também a divulgação proativa de todos os pagamentos (como veremos adiante).

Na cidade de São Paulo, desde 2017, foi verificada uma intensificação da busca por fraudes - as averiguações passaram a ser mais frequentes.36 36 Informação obtida em conversa com Luiz Francischini em 2019. Nesses processos, o número de cancelamentos é menor que o de inconsistências, indicando que parte dos indícios não é confirmada pelas entrevistas (Bachtold, 2017Bachtold, I. “Precisamos encontrá-los!”: etnografia dos números do Cadastro Único e dos cruzamentos de base de dados do governo federal brasileiro. Dissertação (mestrado em antropologia social). Brasília: Universidade de Brasília, 2017.). No ano de 2020, embora as averiguações tenham sido temporariamente suspensas em decorrência da pandemia de Covid-19 (portaria 335/2020), a previsão era de que a averiguação ocorresse mensalmente.37 37 Instrução Operacional Conjunta 3/2020/Sagi/Senarc/Ministério da Cidadania.

Esses processos vinculam-se a movimentos análogos em outras arenas decisórias: por exemplo, um “Disque-Denúncia do Bolsa Família” em debate no Congresso Nacional, uma proposta do Executivo de vinculação obrigatória dos cadastros a um CPF, e o projeto “Raio X do Bolsa Família”, realizado pelo Ministério Público Federal em 2016, que teria identificado 1,4 milhão de “casos suspeitos”. Tais processos são entendidos por Bachtold (2017Bachtold, I. “Precisamos encontrá-los!”: etnografia dos números do Cadastro Único e dos cruzamentos de base de dados do governo federal brasileiro. Dissertação (mestrado em antropologia social). Brasília: Universidade de Brasília, 2017.) como conduzentes a uma “constante vigilância” e a uma “luta cotidiana para provar-se pobre” - e, acrescentamos, merecedor do benefício.

4. VIGILÂNCIA SOCIAL E SEU ASPECTO GENERIFICADO

A preocupação com a fraude e suas conexões com percepções e contextos aparecem também nos discursos dos cidadãos e moldam relações. As imagens de controle associadas à welfare queen e à welfare mother vêm sendo debatidas há décadas e são mobilizadas quando as políticas públicas são direcionados a mães de baixa renda em detrimento da “população em geral”, entendida a partir dos estereótipos (masculinos) associados a trabalhadores (Gilman, 2008Gilman, M. “Welfare, Privacy, and Feminism”. University of Baltimore Law Forum, 2008, v. 39, n. 1.).38 38 Nos EUA, nos anos 1980, Ronald Reagan cunhou o termo “welfare queen” para referir-se a mães beneficiá­rias como preguiçosas e promíscuas (Gilman, 2008). No contexto norte-americano, assim como no brasileiro, tais estereótipos, quando associados à maternidade de mulheres negras, vinculam-se a discursos de controle da maternidade dessas mulheres (Collins, 2019Collins, P. H. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.; Bueno, 2020Bueno, W. Imagens de controle: um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins. Porto Alegre: Zouk, 2020.). As disputas em torno da “justiça” e do “merecimento” do benefício associadas a essas imagens aparecem em diversas manifestações de vigilância social - uma prática que toca laços comunitários e o aspecto de autodeterminação ligado ao direito à privacidade. No caso do PBF, é relevante não somente a massiva titularidade feminina, mas também, como apontamos, que as condicionalidades sejam todas relacionadas a filhos: exame pré-natal, acompanhamento nutricional, acompanhamento da saúde, frequência escolar de 85% em estabelecimento de ensino regular.39 39 O significado da titularidade feminina e das condicionalidades para as dinâmicas de gênero — e a igualdade entre mulheres e homens — vem sendo objeto de disputas em torno de polos que vão da avaliação de que elas geram “instrumentalização e naturalização do papel de cuidado” (Britto; Soares, 2010; Carloto e Mariano, 2010) até a de que elas “aumentam a autonomia” e “permitem quebra do ciclo de pobreza intergeracional via acesso a outras políticas universais” (ver: Silva e Silva; Yazbek; Di Giovanni, 2006; Coutinho, 2013). Um debate possível, também, é a respeito de como as condicionalidades afetam o aspecto de autodeterminação da privacidade.

Além dos mecanismos próprios de controle de riscos de fraudes, fortemente baseados em dados, o PBF incorporou - e promoveu - instrumentos de controle social. Consideramos todas as denúncias feitas na Ouvidoria do MC entre 2006 e 2019 e propusemos um recorte anonimizado de denúncias de 2018 e 2019.40 40 O processo teve início via LAI e prosseguiu em trocas com gestores. São 44.339 as denúncias registradas entre 2006 e 2019. Recortamos uma amostra ao mesmo tempo representativa dos conteúdos e viável em termos de anonimização. Esse material constituiu fonte relevante para que acessássemos percepções e posicionamentos em torno dos beneficiários do programa e compreendêssemos dinâmicas de controle imperceptíveis a partir da análise do desenho da política em si. Observando o material dessa perspectiva, dialogamos e nos somamos a investigações cujo foco são os efeitos de uma política pública na sociabilidade de seus beneficiários bem como de moralidades construídas em suas relações entre si e/ou entre atores/atrizes da burocracia estatal (Pereira; Ribeiro, 2013; Marins, 2017; Milanezi, 2019). A frequência delas não é alta, e, de acordo com gestores federais e municipais consultados, são também inexpressivas no que se refere a causas de bloqueios ou descadastramentos.41 41 O coordenador-geral da Ouvidoria do MC, Thadeu Normando, afirmou que 95% das manifestações que chegam ao órgão referem-se ao PBF, mas em 2019 pouco mais de 2% eram denúncias (informação verbal, 2019). Luiz Francischini, da Coordenadoria de Gestão de Benefícios da Secretaria Municipal de Assistência Social de São Paulo, relatou serem poucas as denúncias e em geral motivadas por desentendimentos familiares e entre vizinhos e, portanto, não determinantes quanto à continuidade do recebimento de benefício (informação verbal, 2019). É muito expressiva a quantidade de denúncias que apresentam informações pessoais dos denunciados, entre as quais número de CPF, data de nascimento, nome da mãe e NIS.42 42 A presença de alguns desses campos nos formulários do Fala.br e do portal do Ministério da Cidadania certamente favorece a busca ativa pelos denunciantes. Em 2018, 39% das denúncias incluíam o NIS; 37%, outros dados pessoais; e 16%, ambos. Em 2019, proporções semelhantes: 32% apresentavam o NIS; 37%, outros dados pessoais; e 15%, ambos.

Isso tem relação com a demanda do formulário de denúncia por essas informações, mas também com sua fácil disponibilidade na internet. Há ao menos três caminhos institucionais para acessá-los. No Portal da Transparência, obtêm-se nome e o NIS de todos os beneficiários, por município. No Portal Consulta Cidadão - CadÚnico, a inserção de nome, data de nascimento, nome da mãe e estado e município do beneficiário revelam o NIS. De posse do nome, NIS e CPF, consulta-se também o status do benefício no Portal da CEF. Os dados da Transparência são usados, ademais, por projetos não oficiais - o BolsaFamilia.info, por exemplo, se propõe a “retirar fraudadores do programa”, facilita as buscas e o acesso às listas e oferece um botão vermelho para “denunciar fraude”, além de listar as informações individualizadas dos pagamentos.

Tudo isso suscita questões sobre a base legal, a proporcionalidade da exposição e a redundância fiscalizatória a que fizemos menção anteriormente - o que pode ser apresentado, da perspectiva distributivista, como uma injustiça de dados. Como medida de transparência, a lei 10.836/2004 prevê que será “de acesso público a relação dos beneficiários e dos respectivos benefícios”. Por sua vez, o decreto 5.209/2004, que a regulamenta, estabelece que o Conselho de Controle Social terá acesso aos dados e informações do PBF e prevê que a relação de beneficiários será amplamente divulgada. Isso expõe desproporcionalmente os beneficiários a uma gama de violações com base em dados ou na vigilância social. Além disso, pode existir tensão com a lgpd e excesso em relação às exigências da LAI.43 43 Lei 12.527/2011, que estabelece que informações de interesse público devem ser divulgadas independentemente de solicitações (art. 3, II) e que informações pessoais poderão ser divulgadas, quando consentido, conforme previsto em lei (art. 31, II), ou diante de interesse público preponderante (art. 31, § 3-o, V), ou ainda diante do envolvimento com irregularidades. Diante dos mecanismos institucionais e rotineiros de fiscalização do PBF e do monitoramento por órgãos de controle, a divulgação mensal de beneficiários como medida de transparência ativa integra o que temos chamado de redundância fiscalizatória.

As denúncias envolvem também uma gama de informações sobre a vida dos beneficiários: 70% delas tinham a renda como principal justificativa - na maioria dos casos, em valores próximos ao salário mínimo nacional: “ela possui salão, camping, bar e possui renda de 2.000,00”; “a família possui carro, casa própria e o filho estuda em escola particular”; “possui renda no valor aproximado de R$ 1.200,00... a mesma e seu marido trabalham na roça, tem casa própria, carro e moto”. É também comum que incluam justificativas envolvendo ideias de justiça e de moral: “realizando a denúncia não por rancor e sim por justiça”; “fico triste, quem precisa não consegue, já outros deveria ter investigações” [sic]; “falar que é solteira porque não é casada no papel tem casa própria acho um desrespeito com tanta gente precisando” [sic]. Isso corrobora conclusões de estudos como o de Lavinas et al. (2014Lavinas, L.; Cobo, B.; Waltenberg, F.; Veiga, A.; Méndez, Y. S. Percepções sobre desigualdade e pobreza. O que pensam os brasileiros da política social? Rio de Janeiro: Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento e Folio Digital Editora, 2014. (Coleção Pensamento Crítico, vol. 5, 172p). ) sobre percepções dos brasileiros a respeito de políticas sociais: não há oposição total a políticas redistributivas, mas uma visão de que devem ser direcionadas a quem “realmente precisa”, bem como ser restritas e condicionadas.

O PBF direciona o recurso à responsável familiar, mas a funcionalização de recurso pela presença de crianças, tendo em vista o rompimento do ciclo intergeracional da pobreza, tem eco nas percepções sociais - diversas denúncias mobilizam um argumento como “receber em nome do filho” e o repasse ao filho como pressuposto, e outras pesquisas dão conta de que a política é assim percebida também pelas beneficiárias.

Em trabalho sobre o uso do benefício por quebradeiras de coco em Codó, no Maranhão, Ahlert (2013Ahlert, M. “A ‘precisão’ e o ‘luxo’: usos do benefício do Programa Bolsa Família entre as quebradeiras de coco de Codó (MA)”. Revista Política e Trabalho, 2013, n. 38.) aponta que as beneficiárias consideram os filhos a prioridade e, ao lado deles, a casa: “tudo indica que o dinheiro do Bolsa Família aparece como uma contribuição feminina no orçamento”. No trabalho de Pereira e Ribeiro (2013Pereira, M.; Ribeiro, F. “No Areal das mulheres: um benefício em família”. Política & Trabalho, 2013, v. 30, n. 38, pp. 87-104.) e no de Pires (2012Pires, A. “Orçamento familiar e gênero: percepções do Programa Bolsa Família”. Cadernos de Pesquisa, 2012, São Paulo, v. 42, n. 145, pp. 130-61.), entrevistas mostram uma forte moralidade na destinação do recurso, ausente em posições a respeito de políticas como a aposentadoria, e a vinculação da percepção do gasto com percepções sobre o papel da mãe. Isso fica evidente em denúncias com descrições detalhadas de gastos não direcionados aos filhos: “gastou R$ 400,00 com salão de beleza, R$ 2.000,00 com prótese dentária e deve R$ 600,00 de cigarro a um comércio e não gasta com os filhos o benefício”; “ela não usa o benefício para seus 04 filhos e sim para manter seus vícios”; “não usa nada com os filhos pode investigar e ver que é pra uma coisa muito ruim” [sic].

As percepções sobre programas de transferência de renda, o impacto dos papéis de gênero e das imagens de controle associadas a gênero, raça e classe, e a prática de vigilância social têm fontes múltiplas. Chama a atenção o modo como o Estado pode desempenhar um papel incentivador ou coibidor dessas ações, bem como o que isso revela da perspectiva distributiva. Além da ampla disponibilização de dados pessoais, identificamos ações contraditórias da gestão do PBF no que se refere à criação de uma moral em torno da destinação do recurso. De um lado, a Ouvidoria, em 2019, passou a enviar mensagens aos denunciantes, demovendo-os de registrar denúncias apenas por não concordarem com a destinação dos gastos, já que o PBF não determina nada a esse respeito. De outro, a página do PBF no Facebook, postou, em ao menos duas ocasiões, perguntas sobre como os beneficiários gastam44 44 As postagens são de 10 de outubro e 11 de dezembro de 2019. Por meio de um script, raspamos e armazenamos os comentários de respostas. - no segundo caso, com uma enquete de fim de ano com as alternativas “fazer ceia de Natal” e “comprar material escolar”. Os comentários ora reiteram as respostas esperadas (“material escolar e um janta especial pq tenho 4 filho quero dar o melhor pra eles”; “comprei leite do meu bebê que é um leite mais especial pq ele tem problemas de alergia alimentação remédio paguei uma conta de luz fui no mercado e ainda sobrou um pouco pra mim comprar uma roupinha para os três graças a Deus”), ora reforçam a condenação moral e o papel esperado da mãe (“o que vejo por aí é mães pegando bolsa pra colocar mega hair, comprar o melhor celular do momento, e os filhos vivendo na miséria”; “deveria era acabar com o bolsa, ou então fazer de uma outra forma ... mas enquanto dê o $$ vai ser assim, pq infelizmente existem mães que não se preocupam com seus filhos, com o seu vestir, o seu comer, a educação, e sim se preocupam com o bem estar delas, e com o laser delas”) [sic].

Nesse tipo de interação, também estão presentes outras formas de exposição das beneficiárias para a empresa que gere a rede social, e para outros usuários, o que pode ser um disparador de fraudes, abusos e violências on-line - em especial quando se levam em conta as vulnerabilidades dessas mulheres, pobres, majoritariamente pretas e pardas, nortistas e nordestinas. Uma perspectiva de justiça de dados envolve considerar, em cada etapa da execução do programa, direitos como o de privacidade e o de acesso à informação, bem como a justiça distributiva.

5. CONCLUSÃO

A coleta e o processamento de dados são constitutivos do desenho do PBF. Desde sua implementação, o CadÚnico serve para responder aos desafios inaugurais do programa. Sua abrangência censitária, a natureza cadastral e a abundância de informações tornaram-no um instrumento de elaboração de diagnósticos e de formulação e operacionalização de políticas públicas.

Em um país cujo histórico de proteção social carrega fortes traços contributivos e excludentes, o esforço de identificação e caracterização de privações que a população de baixa renda experimenta para a prestação de políticas públicas, é um salto importante. Os processos de datificação, por sua vez, não vieram acompanhados, nesse desenho original, de preocupações quanto à justiça de dados que fizessem frente aos riscos inaugurados.

Na análise do PBF como uma “cadeia de valor da informação”, observamos, em uma dimensão procedimental, problemas na forma como são tratados os dados de beneficiários: coleta pouco orientada por imperativos de minimização (necessidade), pouca transparência em relação aos tratamentos, compartilhamentos crescentemente facilitados, desenvolvimento tardio de políticas de segurança e acesso e formas de compartilhamento que fragilizam proteções contra acessos indevidos. Em uma dimensão de direitos, chama a atenção, além da alienação resultante da falta de conhecimento acerca dos tratamentos específicos a que serão submetidos os dados obrigatoriamente coletados para acesso ao PBF, a exposição desigual experimentada por beneficiárias do PBF que ocorre na rotina de fiscalização, cada vez mais intensa, que compreende ações institucionais Ministério da Cidadania, dos órgãos de controle, mas também a habilitação e a visibilização de canais de denúncia e divulgação massiva e proativa de dados de beneficiários.

Essa exposição, inicialmente motivada pela demonstração da eficiência do programa e articulada ao ganho de legitimidade, converteu-se, com o passar dos anos, em instrumento para o escrutínio de políticas públicas, em um momento em que o governo federal passou a arguir contra seu tamanho excessivo e pela necessidade de redução. De uma perspectiva distributiva, como discutido a respeito do reforço de imagens de controle que geram também consequências na vida cotidiana das beneficiárias, observa-se a produção de injustiças.

Uma quantidade massiva de dados, muitos deles sensíveis, “sobe” no sistema; na “correnteza”, eles se tornam disponíveis a um número crescente de atores, sem que haja proteções suficientes contra acessos indevidos e para fins não comunicados; por fim, quando “descem”, as informações alimentam violações e práticas sociais difusas de vigilância - as quais, alimentadas por imagens de controle, são pouco relevantes para o controle de fraudes. Essas práticas articulam-se na cadeia com uma demanda crescente pelo endereçamento local de inconsistências de dados e pela retração do programa. Isso não resume o PBF, mas é uma face relevante de sua existência, e uma preocupação a ser levada em consideração.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    » https://www.economist.com/the-americas/2020/1/30/bolsa-familia-brazils-admired-anti-poverty-programme-is-flailing
  • 1
    Este trabalho é resultado de um projeto de pesquisa realizado no InternetLab — associação de pesquisa em direito e tecnologia, por meio de um financiamento da Privacy International, viabilizado pelo International Development Research Center (IDRC). As autoras agradecem as colaborações da pesquisadora Julia Drummond, a revisão de Clarice Tavares e as contribuições da pesquisadora Jaciane Milanezi e da gestora de políticas públicas Juliana Borim Milanezzi.
  • 2
    Em inglês, respectivamente, upstream, midstream e downstream.
  • 3
    Os dados da Senarc de 2016 indicam que 75% das beneficiárias do programa são pretas e pardas. Ver dados da Secretaria Nacional de Renda e Cidadania, do Ministério da Cidadania (Senarc/MC, 2016).
  • 4
    A autora define outras quatro imagens de controle: mammy, matriarca, Jezebel/hoochie e dama negra. Para mais detalhes sobre suas características, ver Collins (2019Collins, P. H. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019., pp. 135-77) e Bueno (2020Bueno, W. Imagens de controle: um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins. Porto Alegre: Zouk, 2020.).
  • 5
    Entre setembro de 2019 e fevereiro de 2020, realizamos oito entrevistas semiestruturadas com funcionários públicos do governo federal e dos municípios de São Paulo e Osasco. A decisão de entrevistar gestores desses dois municípios veio da percepção das singularidades do município de São Paulo e de cidades que integram a região metropolitana no que se refere a seus desafios e estratégias socioassistenciais. Ouvimos pessoas que, conforme a literatura, são consideradas burocracia de médio escalão (Cavalcante; Lotta, 2015Cavalcante P.; Lotta, G. (orgs.). Burocracia de médio escalão: perfil, trajetória e atuação. Brasília: Enap, 2015.), isto é, integram equipes que hierarquicamente se situam entre o alto escalão e a burocracia do nível da rua. São elas: Pierre Rinco (Observatório de Vigilância da Socioassistencial de São Paulo), Marina Carvalho (Senarc/MC), Thadeu Costa (Ouvidoria do MDC), Luiz Francischini (coordenador de gestão de benefícios do município de São Paulo), Osvaldo Santos (gestor municipal do município de Osasco), Sérgio Tadeu Neiva Carvalho (Controladoria-Geral da União [CGU]), João Gabriel Miranda Alves Pereira (CGU), José Roberto Frutuoso (Departamento do Cadastro Único, Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação, Ministério da Cidadania [Sagi/MC]).
  • 6
    O material foi levantado via Lei de Acesso à Informação (LAI, lei 12.527, de 18 de novembro de 2011). Solicitamos inicialmente dados globais, segundo os quais, entre os anos de 2006 e 2019, foram registradas 44.339 denúncias. O ano de 2018 foi então definido como marco temporal, ao passo que a amostra se constituiu a partir da seleção de um estado de cada uma das cinco regiões federativas. As denúncias de cidadãos do Maranhão, Santa Catarina, Pará, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul foram solicitadas por nós, também por não ultrapassarem o número de 100 registros por estado. Assim, nosso corpus constitui-se do conteú­do de 339 denúncias. Uma vez que, a partir de 2019, novas orientações sobre o encaminhamento de denúncias foram transmitidas aos cidadãos, recebemos do coordenador-geral da Ouvidoria do Ministério da Cidadania a sugestão de também solicitá-las, a título de comparação. Acessamos então outros 81 casos e trabalhamos com o total de 420 denúncias.
  • 7
    Dados obtidos no VIS Data, Painel de Monitoramento Social do MDS, disponível em: <https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/vis/dash/painel.php?d=55>. Acesso em: 2/6/2021.
  • 8
    Por meio do decreto 3.877/ 2001.
  • 9
    Segundo a regra de permanência, as famílias selecionadas permanecem no PBF por até dois anos após o aumento da renda familiar, desde que não ela não ultrapasse o valor de meio salário mínimo per capita. Esse mecanismo considera e ameniza os riscos relacionados à volatilidade de renda das famílias.
  • 10
    Quando foi criado, o PBF foi entendido como uma etapa na universalização de direitos sociais. Se é possível identificar um caminho nessa direção, ele é algo paradoxal: de um lado, a redução gradual do PBF e o movimento de austeridade expresso pela emenda constitucional 95/2016 e, de outro, diante da crise decorrente da pandemia do novo coronavírus, a entrada em cena da Renda Básica Emergencial e os debates que ela reinaugurou.
  • 11
    Definida por Bichir (2016Bichir, R. “Novas agendas, novos desafios: reflexões sobre as relações entre transferência de renda e assistência social no Brasil”. Novos Estudos Cebrap, mar. 2016, ed. 105, v. 35, n. 1, pp. 111-136.) como as relações estabelecidas entre diferentes áreas do governo, e também entre elas e atores externos, em torno da questão social.
  • 12
    O CadÚnico foi criado pelo decreto 9.364/2001 — posteriormente substituído pelo decreto 6.135/2007.
  • 13
    O fato de o CadÚnico ser federal mas com cadastramento municipal tem sido visto, também, como mecanismo contra corrupção e práticas clientelistas (Coutinho, 2013Coutinho, D. Capacidades estatais do Programa Bolsa-Família: o desafio de consolidação do Sistema Único de Assistência Social. Rio de Janeiro: Ipea , 2013. (Texto para discussão n. 1.852.)).
  • 14
    O relatório de acompanhamento do Tribunal de Contas da União (TC 030.760/2015-1), no entanto, indica que o percentual de formulários preenchidos em visita familiar foi de 6% em 2015.
  • 15
    Informação obtida em conversa com Luiz Francischini em 2019.
  • 16
    Informação obtida em conversa com Marina Carvalho (secretária substituta da Senarc) em 2020. Outros dois sistemas apoiam o trabalho da Senarc: o Sistema de Gestão do Programa Bolsa Família (SIGPBF), que cadastra municípios e serve à solicitação de formulários do CadÚnico, e o Sistema de Condicionalidades (Sicon), que é alimentado pelos dados das pastas da Saúde e da Educação.
  • 17
    Em diferentes perspectivas, o princípio da transparência pode ser encontrado não somente no artigo 6, parágrafo VI da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), mas também no artigo 37 da Constituição Federal, bem como no artigo 31 da Lei de Acesso à Informação e no artigo 7, parágrafo III, do Marco Civil da Internet.
  • 18
    Decreto 6.135, de 26 de junho de 2007, e portaria 10, de 30 de janeiro de 2012.
  • 19
    Informação obtida em conversa com Luiz Francischini em 2019.
  • 20
    No cálculo, unificamos campos que dizem respeito a uma mesma informação. Algumas informações não são respondidas por todas as pessoas, caso elas respondam “não” a questões condicionais prévias.
  • 21
    Exceto no caso de famílias indígenas ou quilombolas, em que é aceita qualquer outra documentação, incluindo, para as primeiras, o Registro Administrativo de Nascimento do Indígena (Rani).
  • 22
    Como mencionado no texto do relatório do TCU, TC 030.760/ 2015-1.
  • 23
    Agência Brasil. “Ministério alerta para fraude via WhatsApp sobre 13-º do Bolsa Família” (2019): Disponível em: <http://bit.do/fraudeAgBr>. O Estado de S. Paulo. “Golpe no WhatsApp promete benefício do Bolsa Família” (2018): <http://bit.do/fraudeEst>. Folha de S.Paulo. “Golpe no Whats­App que promete liberar 13-º do Bolsa Família instala vírus” (2019): <http://bit.do/fraudeFl>. Folha de S.Paulo. “Campanha de Meirelles enviou WhatsApp a beneficiários do Bolsa Família” (2018): <http://bit.do/eleitFl>. Sites acesssados em: 2/6/2021.
  • 24
    A política responde à falha identificada em 2009 em auditoria realizada pela Secretaria de Fiscalização de Tecnologia da Informação (Sefti) em conjunto com a 4-ª Secretaria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (TCU), em que se identificou a inexistência de uma política de segurança da informação (PSI) e o risco resultante da não formalização dessas regras. O CadÚnico estaria, segundo o relatório da auditoria, vulnerável a acessos não autorizados. Ver: Brasil (2009Brasil. “Auditoria nos sistemas do cadastro único para programas sociais do governo federal”. Relator Ministro Augusto Nardes. Brasília: TCU, 2009.).
  • 25
    Em 2018 foram inauguradas medidas de segurança, como o acesso com autenticação em duas etapas. Em contrapartida, ficou a cargo dos municípios operar as funcionalidades de controle de acesso do sistema e evitar fraudes e acessos indevidos. Ver: Brasil (2019______. “Boas práticas para gestão municipal em segurança da informação”. Informe Bolsa e Cadastro, Ministério da Cidadania, n. 674, 30/8/2019. Disponível em: https://bit.ly/2Sha5xg. Acesso em: 5/3/2021.
    https://bit.ly/2Sha5xg...
    ).
  • 26
    Nos EUA, nos anos 1980, Ronald Reagan cunhou o termo welfare queen para referir-se a mães beneficiá­rias como preguiçosas e promíscuas (Gilman, 2008Gilman, M. “Welfare, Privacy, and Feminism”. University of Baltimore Law Forum, 2008, v. 39, n. 1.).
  • 27
    Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que 63% das casas comandadas por mulheres negras e com filhos de até 14 anos encontram-se abaixo da linha da pobreza, com renda de US$ 5,5 per capita ao dia, cerca de R$ 420 mensais. O índice representa mais que o dobro de pontos percentuais se comparado à média nacional, igualmente alarmante: 25% de toda a população está abaixo da linha da pobreza. Para mulheres brancas e com filhos, a proporção de casas abaixo da linha da pobreza é de 39,6%. Ver: Ferreira, Bruno e Martins (2019Ferreira, L.; Bruno, M. M.; Martins, F. B. “No Brasil, 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza”. Gênero e Número, 12/12/2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.generonumero.media/casas-mulheres-negras-pobreza/ >. Acesso em: 5/3/2021.
    http://www.generonumero.media/casas-mulh...
    ).
  • 28
    Entre os elementos da Ponte para o futuro, lastro programático das articulações pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, estava o compromisso de “estabelecer uma agenda de transparência e de avaliação de políticas públicas, que permita a identificação dos beneficiários, e a análise dos impactos dos programas”, lastreada na percepção de que “o Brasil gasta muito com políticas públicas com resultados piores do que a maioria dos países relevantes” (PMDB, 2015PMDB - Partido do Movimento Democrático Brasileiro. Uma ponte para o futuro. Brasília: Fundação Ulysses Guimarães, 2015. Disponível em: <Disponível em: https://www.fundacaoulysses.org.br/wp-content/uploads/2016/11/UMA-PONTE-PARA-O-FUTURO.pdf >. Acesso em: 5/3/2021.
    https://www.fundacaoulysses.org.br/wp-co...
    ).
  • 29
    O relatório do TCU (TC 030. 760/2015-1) é explícito na ligação desses mecanismos com a garantia da qualidade dos dados (ver pars. 106 e 124). Uma primeira qualificação dos dados da base ocorre ainda na fase de “subida”, com “mecanismos de unicidade das informações” (regras de atribuição do NIS) e “mecanismos de crítica imediata”: na inserção dos dados, alguns campos, como CPF e título de eleitor, indicam inconsistências imediatamente, checando a validade do número, a correspondência ao titular ou duplicidade.
  • 30
    Portaria 617, de 11 de agosto de 2010.
  • 31
    Portaria 555, de 11 de novembro de 2005.
  • 32
    Portaria 177, de 16 de junho de 2011.
  • 33
    Portaria do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS 94, de 4 de setembro de 2013). O artigo 2-o menciona registros administrativos dos governos, de empresas concessionárias e prestadoras de serviços públicos, dados de pesquisas do IBGE, e “outras análises, a critério do MDS”.
  • 34
    Artigo 14-A da lei 10.836/2004; ver também: Brasil (2017______. Manual do entrevistador. 4. ed. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, 2017.).
  • 35
    Instrução Operacional 79/Senarc/MDS.
  • 36
    Informação obtida em conversa com Luiz Francischini em 2019.
  • 37
    Instrução Operacional Conjunta 3/2020/Sagi/Senarc/Ministério da Cidadania.
  • 38
    Nos EUA, nos anos 1980, Ronald Reagan cunhou o termo “welfare queen” para referir-se a mães beneficiá­rias como preguiçosas e promíscuas (Gilman, 2008Gilman, M. “Welfare, Privacy, and Feminism”. University of Baltimore Law Forum, 2008, v. 39, n. 1.).
  • 39
    O significado da titularidade feminina e das condicionalidades para as dinâmicas de gênero — e a igualdade entre mulheres e homens — vem sendo objeto de disputas em torno de polos que vão da avaliação de que elas geram “instrumentalização e naturalização do papel de cuidado” (Britto; Soares, 2010Britto, T.; Soares, F. Bolsa Família e Renda Básica de Cidadania: um passo em falso?. Brasília: Centro de Estudos da Consultoria do Senado Federal, 2010. (Texto para discussão, n. 75.); Carloto e Mariano, 2010Carloto, C. M.; Mariano, S. “As mulheres nos programas de transferência de renda: manutenção e mudanças nos papéis e desigualdades de gênero”. In: 13-º Congresso Internacional da Rede Mundial de Renda Básica de Cidadania, 2010. ) até a de que elas “aumentam a autonomia” e “permitem quebra do ciclo de pobreza intergeracional via acesso a outras políticas universais” (ver: Silva e Silva; Yazbek; Di Giovanni, 2006Silva e Silva, M.; Yazbek, M.; Di Giovanni, G. A política social brasileira no século XXI: a prevalência dos programas de transferência de renda. São Paulo: Cortez, 2006.; Coutinho, 2013Coutinho, D. Capacidades estatais do Programa Bolsa-Família: o desafio de consolidação do Sistema Único de Assistência Social. Rio de Janeiro: Ipea , 2013. (Texto para discussão n. 1.852.)). Um debate possível, também, é a respeito de como as condicionalidades afetam o aspecto de autodeterminação da privacidade.
  • 40
    O processo teve início via LAI e prosseguiu em trocas com gestores. São 44.339 as denúncias registradas entre 2006 e 2019. Recortamos uma amostra ao mesmo tempo representativa dos conteúdos e viável em termos de anonimização. Esse material constituiu fonte relevante para que acessássemos percepções e posicionamentos em torno dos beneficiários do programa e compreendêssemos dinâmicas de controle imperceptíveis a partir da análise do desenho da política em si. Observando o material dessa perspectiva, dialogamos e nos somamos a investigações cujo foco são os efeitos de uma política pública na sociabilidade de seus beneficiários bem como de moralidades construídas em suas relações entre si e/ou entre atores/atrizes da burocracia estatal (Pereira; Ribeiro, 2013Pereira, M.; Ribeiro, F. “No Areal das mulheres: um benefício em família”. Política & Trabalho, 2013, v. 30, n. 38, pp. 87-104.; Marins, 2017Marins, M. Bolsa Família: questões de gênero e moralidades. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Faperj, 2017.; Milanezi, 2019Milanezi, J. Silêncios e confrontos: a saúde da população negra em burocracias do Sistema Único de Saúde (SUS). Tese (doutorado em sociologia e antropologia). Rio de Janeiro: PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2019.).
  • 41
    O coordenador-geral da Ouvidoria do MC, Thadeu Normando, afirmou que 95% das manifestações que chegam ao órgão referem-se ao PBF, mas em 2019 pouco mais de 2% eram denúncias (informação verbal, 2019). Luiz Francischini, da Coordenadoria de Gestão de Benefícios da Secretaria Municipal de Assistência Social de São Paulo, relatou serem poucas as denúncias e em geral motivadas por desentendimentos familiares e entre vizinhos e, portanto, não determinantes quanto à continuidade do recebimento de benefício (informação verbal, 2019).
  • 42
    A presença de alguns desses campos nos formulários do Fala.br e do portal do Ministério da Cidadania certamente favorece a busca ativa pelos denunciantes. Em 2018, 39% das denúncias incluíam o NIS; 37%, outros dados pessoais; e 16%, ambos. Em 2019, proporções semelhantes: 32% apresentavam o NIS; 37%, outros dados pessoais; e 15%, ambos.
  • 43
    Lei 12.527/2011, que estabelece que informações de interesse público devem ser divulgadas independentemente de solicitações (art. 3, II) e que informações pessoais poderão ser divulgadas, quando consentido, conforme previsto em lei (art. 31, II), ou diante de interesse público preponderante (art. 31, § 3-o, V), ou ainda diante do envolvimento com irregularidades.
  • 44
    As postagens são de 10 de outubro e 11 de dezembro de 2019. Por meio de um script, raspamos e armazenamos os comentários de respostas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2020
  • Aceito
    18 Set 2020
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