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O ANJO CAÍDO NA TERRA PROMETIDA: Propriedade, regulação e conflitos na reurbanização periférica da São Paulo do século XXI

The Fallen Angel in the Promised Land: Property, Regulation, and Conflicts in the Peripheral Reurbanization of the 21st-Century São Paulo

RESUMO

Refletindo criticamente sobre a urbanização periférica contemporânea e sobre a propriedade privada como categoria estruturante dos processos de produção do espaço, o texto parte da atuação de uma empresa privada de mediação de conflitos fundiários para debater a trajetória da política pública de regularização fundiária no Brasil e o papel do Estado como instância reguladora diante daquilo que vem se realizando como política urbana neoliberal.

PALAVRAS-CHAVE:
conflitos fundiários; regularização fundiária; propriedade; regulação

ABSTRACT

Reflecting critically on contemporary peripheral urbanization and on private property as a structuring category in the processes of space production, the text starts from the performance of a private company that mediates land conflicts in order to debate the trajectory of public policy for land regularization in Brazil and the role of the State as a regulatory instance, in view of what has been taking place as a neoliberal urban policy.

Keywords:
land tenure conflicts; land regularization; property; regulation

O MENSAGEIRO DE DEUS (OU A INTRODUÇÃO)

Maria Soledad era uma mulher guerreira. Ela sempre lutou pela água. Tendo a casa, mas não tendo a água, lutou e morreu pela água contaminada e submetida pela propriedade privada. Maria Soledad foi privada da vida. Morreu na luta coletiva que é a luta pela água, que impôs a Maria Soledad a maior solidão da vida, a solidão brutal da propriedade privada. Maria Soledad pagou o preço com a vida, o tributo em nome do diabo, para o anjo caído na terra prometida.

Maria Soledad é uma personagem de um bairro da Zona Leste de São Paulo. Uma liderança comunitária que emergiu através da experiência de organização popular orientada pela reivindicação da ação pública de fornecimento da água, que, apesar de ser uma necessidade vital, é mediada pelo poder da propriedade privada nas atuais condições de reprodução social: a concessionária não executava o serviço de abastecimento porque o conflito em torno da irregularidade da propriedade privada do terreno a impedia. Muita água passou por esse moinho da luta social (ou por suas mangueiras improvisadas, que eram a efetiva infraestrutura de abastecimento). A liderança mencionada faleceu e a sua “solidão brutal”1 1 “Que tipo de sociedade é esta, em que se encontra a mais profunda solidão no seio de tantos milhões; em que se pode ser tomado por um desejo implacável de matar a si mesmo, sem que ninguém possa prevê-lo? Tal sociedade não é uma sociedade; ela é, como diz Rousseau, uma selva, habitada por feras [bestas] selvagens” (Marx, 2006, p. 28, grifos do original). se definiu por uma doença que a acometera em função da contaminação da água. A propriedade, parceira da contaminação, seguiu viva e sendo reproduzida.

A morte de Soledad e a organização popular em torno do acesso à água são eventos que se realizam no seio de um conflito fundiário na situação urbana em questão, da qual um grupo de professores e pesquisadores de universidades paulistas tomou conhecimento em meados de 2018.2 2 O conflito fundiário em questão é objeto de uma pesquisa em curso, sob financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da qual participam os autores deste artigo. As reflexões aqui presentes fazem parte dos achados preliminares desse trabalho investigativo, com previsão de término no início de 2022. Esse conflito se refere à ocupação coletiva (iniciada em 1995, atualmente com cerca de 7 mil famílias) de uma gleba com área aproximada de oitenta hectares, pertencente a um único proprietário privado e registrada sob uma única matrícula. No que se refere à forma, essa urbanização não difere das experiências de produção do espaço que, de modo geral, caracterizam a periferia da metrópole paulistana, indiferenciação resultante da forma comum de provisão doméstica de moradias e infraestrutura (Oliveira, 2003Oliveira, Francisco de. Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo , 2003.; Kowarick, 1993Kowarick, Lúcio. A espoliação urbana. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.). Ainda que esse território venha contando também, ao longo dos anos, com intervenções públicas (que são, por sua vez, condicionadas pela situação de irregularidade do terreno), elas se mostram insuficientes para atender às demandas mínimas de habitabilidade da população moradora. Além disso, esse conflito fundiário se alinha a outros exemplos espraiados no território da metrópole (Rolnik, 2015______.. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.), com disputas que perduram há anos, envolvendo mandados de reintegração de posse jamais cumpridos e a participação de diversos agentes políticos, usualmente presentes nesse tipo de negociação: representantes do Poder Executivo, Defensoria Pública, Ministério Público Estadual e Poder Judiciário, além, evidentemente, das partes diretamente interessadas, o proprietário da área e as famílias residentes.

No entanto, apesar da aparente recorrência desses fatos, resultantes da “cartilha-padrão” de uma determinada forma de urbanização (que, conforme se argumenta, tem como elemento estruturante a disputa pela propriedade), um ponto específico chamou atenção na trajetória recente do bairro estudado: a presença de um agente político “novo”, uma empresa privada especializada em mediação de conflitos e em soluções conciliatórias para processos de regularização fundiária. Esse agente “novo”, ainda pouco conhecido (embora já acumule experiência de anos de mediação), será aqui identificado como “Empresa Regularizadora”.3 3 O nome da empresa e as fontes de coleta de dados sobre ela serão mantidos em sigilo.

Tal empresa, criada no acender das luzes do século XXI, autointitula-se “empresa social” e propõe-se a resolver pacificamente conflitos relacionados à posse da terra, garantindo que proprietários sejam indenizados por suas perdas em caso de ocupação irregular e que moradores obtenham a titulação dos lotes em que vivem mediante “esforço próprio”, ou seja, o trabalho doméstico de construir. Trata-se de um intermediário privado que atua à margem das iniciativas públicas relacionadas aos processos de regularização fundiária, embora encontre respaldo no arcabouço jurídico-institucional construído nas últimas décadas para normatizar e regular a mediação de tais conflitos. Invoca-se aí uma retórica de “autoridade” e “competência” para produzir consensos em caso de disputas que, pela lógica defendida, podem (e devem) ser equacionadas por meios não judiciais, construindo compromissos por vias harmônicas e de cooperação, com alegados resultados positivos para todas as partes, os acordos win-win propostos pelas práticas de resolução negociada de conflitos.4 4 Sobre a chamada Alternative Dispute Resolution, questão que será retomada mais adiante, veja-se especialmente Nader (1994).

Este é o ponto de partida para a reflexão crítica que o presente ensaio pretende desenvolver: a novidade, desvelada em campo, do papel de “agente mediador”, que emerge no interior de uma relação comumente estabelecida entre proprietário privado, Estado e ocupação da classe trabalhadora. Essa mediação se dá na seara das disputas fundiárias, que se redefinem no atual contexto brasileiro, de avanço neoliberal, levando em conta a trajetória dos marcos regulatórios da política fundiária no país e a “readequação” do lugar dos agentes políticos aí envolvidos, sejam eles estatais, paraestatais ou não estatais (Holston, 2013Holston, James. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. Trad. Claudio Carina. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.; Telles, 2015Telles, Vera da Silva. “Cidade: produção de espaço, formas de controle e conflitos”. Revista de Ciências Sociais, 2015, v. 46, n. 1.).

Argumenta-se que a regularização fundiária de interesse social no Brasil vem passando por um processo de intensa normatização e realinhamento do ponto de vista jurídico-institucional ao longo dos últimos trinta anos, o que ratifica a centralidade do Estado como agente regulador dos processos conflituosos de disputa pela propriedade da terra e, de certo modo, assegura (ao menos na letra da lei) a defesa dos direitos e interesses da população pobre moradora de áreas ocupadas. Mesmo com as mudanças recentes na legislação, discutidas mais adiante, entende-se que a trajetória da política aponta para uma condição jurídico-institucional de sobrerregulação, ainda que os instrumentos que são (re)definidos indiquem uma tendência de abertura para a participação de estratos específicos do setor privado em sua implementação: caso da “Empresa Regularizadora”, uma das únicas a prestar serviços de mediação de conflitos fundiários no país.

Portanto, à luz das especificidades que marcam a atuação dessa empresa, a maneira como ela estrutura seu discurso em prol da conciliação e as práticas que efetivamente encampa, sua relação com as diferentes partes envolvidas na disputa e seu papel no tocante à política pública de regularização fundiária, pretende-se pontuar questões que permitam, justamente, discutir a própria trajetória dessa política, os compromissos firmados ao longo do tempo e os constrangimentos gerados para sua realização. A presença de agentes privados em relação com o Estado, nesse sentido, interessa especialmente na medida em que parece ser fundamental entender que lugar eles de fato ocupam quando da efetivação da “política pública”, a rigor, quais as funções assumidas, quais recursos de poder se detêm para a implementação das ações pretendidas, onde e como o Estado se coloca como instância reguladora diante de tal participação.

Como perspectiva de reflexão crítica, no entanto, o que se pretende problematizar extrapola os limites do bairro em questão, da “Empresa Regularizadora” e mesmo da própria política de regularização. Ensaiam-se notas mais amplas sobre os processos políticos que determinam a produção do urbano no Brasil deste início do século XXI (Pereira, 2018Pereira, Paulo Cesar Xavier (org.). Imediato, global e total na produção do espaço: a financeirização da cidade de São Paulo no século XXI. São Paulo: FAU/USP, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/302 >. Acesso em: 28/2/2020.
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), numa perspectiva de acirramento do projeto neoliberal, entendido aqui como “racionalidade política” (Dardot; Laval, 2016Dardot, Pierre; Laval, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo , 2016.; Brown, 2019______.. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. Trad. Mario A. Marino e Eduardo A. Camargo Santos. São Paulo: Politeia, 2019.), o que pressupõe admitir que se trata de um movimento com implicações econômicas, mas também implicações nos modos de governar, como enuncia a matriz foucaultiana. Remodelam-se, ao mesmo tempo, a dinâmica capitalista em grande escala, assim como os princípios que relacionam Estado, sociedade e sujeito sob novos registros de conduta política e moral (Brown, 2019______.. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. Trad. Mario A. Marino e Eduardo A. Camargo Santos. São Paulo: Politeia, 2019.).

Laval (2020Laval, Christian. Foucault, Bourdieu e a questão neoliberal. Trad. Márcia Pereira Cunha; Nilton Ken Ota. São Paulo: Editora Elefante, 2020.), também guiado pela leitura foucaultiana, discute a reformulação neoliberal proposta pelo autor através de uma síntese sobre a necessidade de se entender o Estado não como causa ou origem de modos de governar, mas sim como seu efeito. Nessa perspectiva, mirar o protagonismo da regulação como expressão de uma nova conduta socialmente produzida no neoliberalismo recoloca o problema do Estado, erroneamente pensado a partir de um exercício de poder central, vertical e sempre idêntico, como o inverso disso, ou seja, como resposta a práticas e relações específicas de um espaço-tempo que evidentemente o transbordam, mas também o definem.

Por essa chave, permite-se atribuir especificidade aos conteúdos e detalhes normativos do neoliberalismo quando se trata de olhar os contextos singulares de seu espraiamento como racionalidade. Brown (2018Brown, Wendy. Cidadania sacrificial: neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Trad. Juliane Bianchi Leão. Rio de Janeiro/Copenhague: Zazie Edições, 2018., pp. 13-4) pontua que ele de fato nomeia, de modo geral, reações políticas e econômicas historicamente situadas contra o Estado de Bem-Estar Social, assim como a “prática mais generalizada de transformar em econômicas as esferas e atividades até então governadas por outras ordens de valor”. Contudo, como lembra a autora, ao encarnar em diferentes países, regiões e setores, interseccionando-se com culturas e tradições políticas existentes, o neoliberalismo toma formas distintas, denunciando, portanto, suas irregularidades, falta de autoidentidade e variabilidades espaçotemporais.

Nessa perspectiva, ao mirar a política urbana e de regularização fundiária no Brasil em tempos mais recentes, ao realçar sobretudo aquilo que se evidencia como inconstante ou mesmo contraditório nessa trajetória, o significado do imbricamento entre público e privado e as relações transformadas entre Estado e mercado tendem a se complexificar, e é esse o ponto que particularmente interessa desenvolver neste ensaio. Por exemplo, um conjunto de questões relacionadas que se desdobram como a ideia mistificada de um “Estado que sempre esteve ausente” no planejamento e na promoção de políticas públicas na periferia. Ou, algo como o suposto contrário disso, a noção de que as proposições mais recentes de política urbana, especialmente o Estatuto da Cidade, teriam sido “capturadas” e “corrompidas” pelas dinâmicas do mercado, desvirtuando sua proposição original - como se a proteção do Estado à participação de agentes privados no contexto neoliberal do ajuste urbano (Arantes, 2004Arantes, Pedro Fiori. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação (mestrado em arquitetura e urbanismo). São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2004.), por seus instrumentos de “condução de condutas” socialmente constituídos,5 5 A ideia da “condução de condutas” está em O nascimento da biopolítica, de Michel Foucault, e é longamente trabalhada nos textos de Wendy Brown (2018, 2019) e Christian Laval (2020). não fosse ela mesma produzida como contradição no seio do progressismo estatal da primeira década dos anos 2000.

É a partir, portanto, do caso da “Empresa Regularizadora” e de sua relação com a trajetória da política nacional de regularização fundiária que serão apresentadas outras possibilidades de leitura sobre o papel do Estado e das políticas públicas setoriais na e da urbanização contemporânea, realçando as configurações institucionais e os agenciamentos regulatórios que, ao serem observados de perto, tencionam o reducionismo das apreciações usuais, ensaiando novas perspectivas críticas sobre a produção do urbano e seus agentes no Brasil.

Isso posto, além desta “introdução mensageira”, o artigo apresenta ainda outras duas partes: “O anjo caído”, que pontua elementos sobre a “Empresa Regularizadora” e sua atuação no nicho da mediação de conflitos fundiários, e “A terra prometida”, que discute a trajetória da política de regularização fundiária no Brasil, seus avanços, constrangimentos e impasses. Partes que são seguidas pelas considerações finais, “O anjo, a terra: o limbo”, que apontam para problemas em torno de desdobramentos desse encontro “celeste-infernal” da centralidade da propriedade na produção do espaço e na reprodução social.

Essas partes são nomeadas como alegorias que parodiam o sagrado.6 6 “De qualquer modo, ficam marcadas as duas características canônicas da paródia: a dependência de um modelo preexistente, que de sério é transformado em cômico, e a conservação de elementos formais em que são inseridos conteúdos novos e incongruentes” (Agamben, 2007, p. 38). Nascem do aparente dualismo divino-diabólico, mas têm o “anjo” e a “terra prometida” como relações complementares. O anjo, mensageiro de um deus moderno (liberal e burguês), ao cobiçar mais poder, entrega-se a toda sorte de pecados e, assim, cai sobre a terra prometida, uma terra-bem-terrena apreendida como propriedade privada (ao fim e ao cabo, regularizada). Essa terra, constituída a partir do trabalho concreto dos vivos-profanos, desdobra-se em uma propriedade abstrata, um jurídico que “equivale a um capital” ao “representar valor” (Grespan, 2019Grespan, Jorge. Marx e a crítica do modo de representação capitalista. São Paulo: Boitempo , 2019.), também divino-diabólico. Ela se separa das condições objetivas da produção e reprodução da vida, das coisas no espaço e do espaço como coisa. Redimida, sobe aos céus, levitando como cadeiras que dançam sobre nossa cabeça em um apocalíptico retorno ascendente ao divino. Ascensão que acentua o estranhamento de uma forma, historicamente determinada, de produção do espaço, ao se estruturar pela inversão, como fetiche e reificação, do valor da vida em relação ao valor do capital. O diabólico dessa aparição, do pecado original e primitivo7 7 Tal qual a “acumulação original ou primitiva” (Marx em O capital…), que, reposta e reproduzida cotidianamente, constitui-se como “acumulação por espoliação (Harvey, 2005). que se reproduz como um ato de fé, introjeta em nossa alma pecadora a propriedade jurídica da terra como se fosse uma propriedade da vida, dos direitos do cidadão. Limbo que purga as faltas da consciência e emerge do todo-poderoso como legitimação de toda a sociedade.

O ANJO CAÍDO (OU A “EMPRESA REGULARIZADORA”)

“Uma grande parceria em que todos ganham.” Esse é o slogan da “Empresa Regularizadora”, que se particulariza pela exclusividade do nicho de mercado em que se insere. Não trabalha com nenhum outro tipo de serviço que não seja a mediação de conflitos em casos de ocupação irregular de terras de propriedade privada, promove acordos judiciais entre moradores e proprietários, fundamentados no instrumento da desapropriação judicial8 8 A desapropriação judicial corresponde a instituto previsto no Código Civil: “O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante”. Nessa hipótese, caberá ao Judiciário o arbítrio de indenização devida ao proprietário, havendo ampla discussão jurídica sobre quem deve arcar financeiramente com ela (moradores ou Estado). No entanto, o enunciado n. 308 do Conselho da Justiça Federal/Superior Tribunal de Justiça (CJF/STJ) consagrou a interpretação de que, em se tratando de situação na qual se identifiquem como possuidores de baixa renda, inseridos no contexto de políticas públicas para reforma urbana, caberá à administração pública o desembolso dos respectivos valores indenizatórios. previsto nos parágrafos 4º e 5º do artigo 1.228 do Código Civil Brasileiro e também no artigo 15, III da lei federal n. 13.465, aquela que estabeleceu, em 2017, mudanças importantes no marco regulatório da gestão fundiária nos assentamentos informais brasileiros, sobre a qual este ensaio se debruçará mais adiante.

Formada por equipe multidisciplinar, que reúne advogados, arquitetos, assistentes sociais e outros profissionais, a empresa atua em processos de reintegração de posse, interpondo-se como agente conciliador em situações nas quais existe ameaça de remoção das famílias pela condição de irregularidade da ocupação. Para evitar a retirada dos moradores, a empresa entra como mediadora, negociando um acordo entre as partes do qual, no limite, se pode dizer que funciona como um instrumento de compra e venda, construído sob a analogia do direito de permanência na área pelo interesse social relevante que ela apresenta, conforme dispõe o Código Civil.

O processo sob mediação da empresa se inicia junto ao Poder Judiciário, que, uma vez acionado, incide no conflito, evita a reintegração e homologa o acordo realizado entre os moradores e o proprietário (com compensação econômica pela perda da área). Segundo a empresa, evita-se assim o despejo, e os moradores conquistam por esforço próprio o título de propriedade, “recuperando a autoestima ao saírem da condição de ocupantes irregulares”. Além disso, uma vez titulados, o acesso a linhas de crédito é facilitado, permitindo novos investimentos nas casas e valorização dos imóveis. Do lado dos proprietários, ainda conforme a empresa, garante-se que sejam indenizados de forma justa e que possam reaver, sem maiores desgastes com ações possessórias ou reivindicatórias, grande parte do valor de sua propriedade, que, transformado em direito creditório, potencialmente adquire maior liquidez no mercado financeiro. Quanto ao Estado, a empresa argumenta que o sucesso da mediação e do acordo preserva o emprego de recursos públicos em desapropriações de áreas privadas, possibilitando que sejam investidos na implantação de infraestrutura e de equipamentos em bairros que antes não os recebiam e permaneciam em condições precárias justamente por conta do conflito.

No caso do bairro estudado e citado na introdução deste artigo, o acordo proposto pela empresa definiu que os moradores pagariam uma parcela relativa à metragem quadrada de suas unidades e que o montante total seria redistribuído à razão de 38,44% referentes à indenização do proprietário; 26,98%, à constituição de um fundo de obras e realocações de famílias; 26,98%, ao pagamento dos serviços da “Empresa Regularizadora”; e 7,55%, aos honorários advocatícios e ao desenvolvimento social das associações de moradores, que deveriam funcionar como instância de representação dos ocupantes.9 9 Conforme dados coletados com os moradores, como parte do cumprimento da pesquisa citada na nota 2. Vale ainda registrar que, para que o acordo se efetivasse, precisaria alcançar a adesão de 30% das famílias ocupantes (o que não chegou a acontecer). Desse modo, os 70% restantes permaneceriam sob ameaça de despossessão, caso de fato não chegassem a aderir, em nenhum momento, às condições colocadas em contrato pela empresa.

A incidência da empresa no bairro e a proposição do “fundo de urbanização”, que traria à área melhorias “autofinanciadas” (sem que se solicitasse ao Estado a necessária responsabilidade de fazê-las), aparecem como ponto importante para a discussão sobre o papel do agente público em processos dessa natureza. Pelo que as evidências apontam, o afastamento do Estado se dá em duas vias: de um lado, por uma “oficialidade” da entrega da responsabilidade de financiar, administrar e produzir o hábitat aos próprios moradores e, de outro, pela delegação da organização e gestão de tudo isso a uma empresa privada, “especializada”. Isso não quer dizer, no entanto, que o Estado não controle mais procedimentos e práticas, que eles tenham sido entregues incondicionalmente ao manejo do mercado. Trata-se de admitir que o modo como hoje esse controle opera indica um deslocamento do papel da institucionalidade. Como se verá adiante, não falta no Brasil arcabouço regulatório a delinear a política, o que de certo modo desmistifica noções de “desregulação” ou de “minimização da função estatal”, ainda que haja uma reorientação importante na trajetória da regulação urbana, que aponte para a flexibilização e para a maiores garantias à participação do setor privado.

A ideia de um mercado potente e eficaz em contraponto a um Estado moroso (que, portanto, necessita de reformas) tem conquistado hegemonicamente as narrativas políticas desde a virada neoliberal dos anos 1970, impactando com mais intensidade em solo brasileiro a partir da década de 1990. Temas corriqueiros ao setor privado, como a competitividade e a produtividade, passam então a guarnecer, de forma mais efetiva, o terreno das estruturas estatais, numa orquestração entre “ajuste estrutural” (de natureza financeira) e “reforma gerencial” (de natureza institucional), capa e contracapa da mesma cartilha de liberalização econômica que se tentava vender aos países em desenvolvimento, em especial aos da América Latina, particularmente afetados pelo redirecionamento do fluxo de capitais e pela recessão nos anos 1980.

Importante destacar, nesse processo, o papel das agências multilaterais de desenvolvimento e cooperação internacional, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial, na construção do consenso (consensus-building, expressão utilizada pelos próprios bancos) em torno da necessidade de “ajustar as cidades”, com suas exigências de captação e mobilização de recursos privados, reestruturação do sistema financeiro habitacional, redução do papel público no fornecimento de serviços urbanos, incentivos ao mercado, aplicação de conceitos de gestão corporativa à gestão urbana (Arantes, 2004Arantes, Pedro Fiori. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação (mestrado em arquitetura e urbanismo). São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2004.). Isso sem falar na própria regularização fundiária de assentamentos populares, defendida como prática de titulação em massa por essas mesmas agências, a fim de converter o “capital morto”- fruto de trabalho não remunerado decorrente da produção doméstica -, que repousa na moradia dos pobres, em ativos circulantes na economia,10 10 Portanto, algo que originalmente não é capital, pois é fruto de trabalho desmercantilizado, transforma-se em capital fictício, ao passar a representar valor sem a realização de um novo “trabalho vivo”. tal como descrito em O mistério do capital, de Hernando De Soto.

Note-se que é desse mesmo período (anos 1990 e 2000), também como recomendação do Banco Mundial, a legitimação de métodos de arbitragem como alternativa ao sistema jurisdicional. Segundo Acselrad e Bezerra (2007Acselrad, Henri; Bezerra, Gustavo. Inserção econômica internacional e “resolução negociada” de conflitos ambientais na América Latina. Reunião do Grupo de Trabalho Ecología Política del Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales “Territorios, Recursos Naturales y Ecologismo Popular”. Quito, out. 2007.), a proposta do banco no “Documento técnico número 319 - O setor judiciário na América Latina e no Caribe” é a de criar “mecanismos alternativos de resolução de conflitos”, extrajudiciais, cuja vantagem, de acordo com o documento, residiria justamente em poder tratar os conflitos de forma “amigável” e, portanto, “supostamente de maneira mais ágil do que se os mesmos viessem a ser judicializados” (Acselrad; Bezerra, 2007Acselrad, Henri; Bezerra, Gustavo. Inserção econômica internacional e “resolução negociada” de conflitos ambientais na América Latina. Reunião do Grupo de Trabalho Ecología Política del Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales “Territorios, Recursos Naturales y Ecologismo Popular”. Quito, out. 2007., p. 7, grifo do original).

Tornado lei em diversos países da América Latina no final dos anos 1990,11 11 No Brasil, trata-se da lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996, que dispõe sobre a arbitragem. o expediente da mediação de conflitos vem sendo disseminado e praticado desde então por uma profusão de agentes e instituições, conforme o registro de Acselrad e Bezerra (2007Acselrad, Henri; Bezerra, Gustavo. Inserção econômica internacional e “resolução negociada” de conflitos ambientais na América Latina. Reunião do Grupo de Trabalho Ecología Política del Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales “Territorios, Recursos Naturales y Ecologismo Popular”. Quito, out. 2007., p. 21), que alegam se tratar de “parte da constituição dos sistemas ditos de ‘governança’, próprios às dinâmicas extra-estatais das reformas liberalizantes”. A ideia do conflito como situação a ser mediada através da pacificação e da construção da harmonia está nos fundamentos da retórica win-win, aquela que, justamente, afirma que o consenso asseguraria vencedores de lado a lado após findada a contenda, supostamente emancipando indivíduos de redes de regulamentações estatais restritivas à sua própria liberdade. O enfoque na mediação e na arbitragem como perspectiva ideológica de substituição do litígio e do confronto pela harmonia e pelo consenso remete aos anos 1970 (Nader, 1994Nader, Laura. “Harmonia coerciva: a economia política dos modelos jurídicos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 1994, v. 9, n. 26, pp. 18-29.; Acselrad; Bezerra, 2007Acselrad, Henri; Bezerra, Gustavo. Inserção econômica internacional e “resolução negociada” de conflitos ambientais na América Latina. Reunião do Grupo de Trabalho Ecología Política del Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales “Territorios, Recursos Naturales y Ecologismo Popular”. Quito, out. 2007.), fazendo engrossar o caldo neoliberalizante que, desde então, tem se alastrado como racionalidade, em diferentes planos e escalas.12 12 Importante lembrar que a construção de uma narrativa que esvazia o sentido político do conflito, convertendo-o em mais uma dimensão da economicização neoliberal da vida social e política, constitui-se como parte importante da estruturação de uma outra cidadania, erigida sob novos princípios de orientação, orquestração e relação entre Estado, sociedade e sujeitos, implicando novas condutas e sociabilidades baseadas em competição, empreendedorismo, responsabilização e sacrifício, tal como formula Wendy Brown (2018). Essa observação não é acessória, na medida em que o discurso do esforço próprio das famílias, em favor de contribuir para a resolução das situações de conflito fundiário em que estão envolvidas, só pode ecoar como consenso numa sociedade em que a desproteção, a governança privatista, a responsabilização e a delegação fragmentária de decisões passam a funcionar como métrica e prática de valoração em todas as esferas da vida.

Todo esse léxico consagrado no meio empresarial e mobilizado para legitimar a participação do setor privado em “ações sociais”, dirigidas às populações mais pobres, com vistas a atenuar suas múltiplas condições de vulnerabilidade, também aparece nos discursos da “Empresa Regularizadora”: “geração de impacto social”, “transformação social”, “ações sustentáveis”. Sob esse verniz, a empresa defende as soluções conciliatórias e de pacificação que promove, elencando benefícios desencadeados em favor das partes envolvidas, incluídos aí não apenas a população moradora e o proprietário, como também o próprio Estado.

Ou seja, o clássico papel do Estado, que do ponto de vista liberal-burguês emerge como mediador dos conflitos de toda a sociedade, da “luta de todos contra todos”, passa a ser realizado, a partir da reestruturação contemporânea neoliberal, por uma parte interessada, a “Empresa Regularizadora”, um ente privado contratado por outro ente privado, o proprietário do terreno contido na contenda. Nesse caso, o Estado dá anuência à ação de regularização e de reurbanização,13 13 Aqui se utiliza o termo “reurbanização”, e não “urbanização”, porque a terra já está urbanizada, já é espaço urbano (não sendo rural nem natural, além de participar das relações urbanas de reprodução social). Ainda que seja um urbano em contradição. Um urbano e um habitar que não aparecem como tal sob a óptica institucional, setorial e parcelar, pois percebidos a partir de uma visão estrita. Se o urbano é mais do que a forma que assume enquanto “cidade”, o processo de transformação espacial ali engendrado é a reurbanização. mas não se sustenta como protagonista. Ao contrário, chega mesmo a “retirar-se” de suas responsabilidades, o que, de certo modo, coloca à prova sua própria condição de garantidor de direitos, ainda que se saiba que a gramática de atuação do Estado extrapola, e muito, uma natureza que se poderia supor como justa e essencialmente distributiva.

Permitir que a lógica de direitos possa ser facilmente substituída por uma lógica negocial não se configura como uma novidade na seara da produção e da implementação de políticas públicas no Brasil, considerando os arranjos político-institucionais historicamente constituídos, o grau de permeabilidade e de superposição de competências que se verifica entre os agentes estatal e privados aí envolvidos e a própria dinâmica de acumulação tal como ela vem se realizando, sobretudo em tempos mais recentes. A descrição da natureza jurídica e da atuação técnica da “Empresa Regularizadora” por certo se assemelha a um conjunto de outras empresas e instituições privadas voltadas à prestação de serviços e à execução de políticas, com incidência direta na produção do espaço urbano. O caráter de especialidade do caso em análise se refere justamente ao fato de essa empresa atuar diretamente sobre a dimensão fundiária, ponto sensível na regulação urbana no Brasil e que aponta para um feixe de questões fundamentais sobre a esfera do direito e da propriedade, seus entrelaçamentos com a produção e a apropriação desigual do espaço nas cidades brasileiras. Questões sem as quais não seria possível sequer inferir sobre os significados complexos da emergência das práticas tratadas até aqui.

A TERRA PROMETIDA (OU A POLÍTICA FUNDIÁRIA COMO PONTO SENSÍVEL DA REGULAÇÃO URBANA NO BRASIL)

Conforme já explorado pela literatura especializada, as relações entre capital, terra e trabalho (Marx, 1986______.. O capital: crítica da economia política, livro III: O processo global da produção capitalista. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1986) são elementos-chave para a compreensão da conformação do urbano brasileiro e de seus desdobramentos relativos a segregação socioespacial, manutenção de privilégios e distribuição assimétrica de direitos nas cidades (Holston, 2013Holston, James. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. Trad. Claudio Carina. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.; Maricato, 2013Maricato, Ermínia. “As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias”. In: Arantes, Otília; Vainer, Carlos; Maricato, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2013.; Angotti, 2015Angotti, Tom. “América Latina urbana: violência e enclaves e lutas pela terra”. Margem Esquerda - Ensaios Marxistas, 2015, n. 24.). Em toda a formação social nacional, a propriedade da terra e o seu título de registro representaram não apenas um parâmetro de inteligibilidade e proteção do patrimônio valorizado pela gramática jurídica, mas, sobretudo, uma condição transposta ao âmbito da personalidade do indivíduo-proprietário, que se torna sujeito de direitos por excelência, com status qualificado de cidadania. No outro lado do mesmo processo jurídico-urbanístico, a ausência de propriedade acaba por significar o interdito permanente de acesso a um espectro de direitos e a existência no espaço urbano submetida à condição de “transitoriedade permanente” (Rolnik, 2015______.. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.), em contínua situação de insegurança e precariedade.

Partindo-se dessa leitura, que inscreve a questão fundiária na dimensão da economia política da produção do espaço urbano, não é possível analisar as condições de surgimento e ascensão da “Empresa Regularizadora” sem levar em conta, mesmo que brevemente, a trajetória de regulação jurídico-institucional da terra urbana no Brasil. É bem verdade que tal digressão remonta às origens do processo de formação social nacional (vide os efeitos do modelo luso-brasileiro das sesmarias, do regime de posses e da inauguração da propriedade privada da terra, com a Lei de Terras de 1850). Para os fins deste ensaio, entretanto, a reflexão recairá esquematicamente sobre quatro momentos estratégicos de disputa sobre os sentidos da política e da gestão fundiária, compreendidos entre o período de redemocratização e os dias atuais.

O primeiro momento corresponde à inserção original da política urbana na Carta constitucional, com a transposição das pautas elaboradas pela “agenda da reforma urbana” ao plano normativo e à gramática juridicizada. Conforme sistematiza Rolnik (2012______.. “Dez anos do Estatuto da Cidade: das lutas pela reforma urbana às cidades da Copa do Mundo”. In: Ribeiro, Ana Clara Torres; Vaz, Lilian Fessler; Silva, Maria Lais Pereira da (orgs.). Leituras da cidade. Rio de Janeiro: Letra Capital/Anpur, 2012.), é ao final dos anos 1970, diante do desfazimento do “milagre brasileiro” e do contexto internacional de globalização dos mercados e crise fiscal dos Estados que o movimento identificado com a pauta da reforma urbana amplia sua base e passa a congregar não apenas moradores de espaços informais e favelas, como também setores da classe média formados por profissionais do urbanismo. Esse campo político, autorreconhecido como “democrático-popular”, defendia a transformação do modelo excludente de desenvolvimento das cidades brasileiras em uma agenda que pode ser sintetizada em três pilares, como sugere a autora: “reconhecimento dos direitos dos posseiros; luta contra a ‘especulação imobiliária’ e a democratização do processo decisório sobre as políticas urbanas” (Rolnik, 2012______.. “Dez anos do Estatuto da Cidade: das lutas pela reforma urbana às cidades da Copa do Mundo”. In: Ribeiro, Ana Clara Torres; Vaz, Lilian Fessler; Silva, Maria Lais Pereira da (orgs.). Leituras da cidade. Rio de Janeiro: Letra Capital/Anpur, 2012., p. 90).

Na redemocratização e, de forma particular, no contexto de elaboração da Constituição Federal de 1988, esse conjunto de reflexões críticas e reivindicações foi incorporado (com consideráveis cortes da emenda popular inicial) em capítulo específico dedicado à política urbana, inserido no título correspondente à ordem econômica e financeira do país. O texto constitucional elegeu como objetivo da política de desenvolvimento urbano a realização das funções sociais da cidade vocacionadas ao bem-estar de seus habitantes (artigo 182, caput). E, além disso, reconheceu o caráter normativo da função social da propriedade urbana atrelada às diretrizes previstas no Plano Diretor Municipal, instituindo instrumentos político-jurídicos para sua realização.

Na perspectiva de incidência sobre a regulação fundiária urbana, a racionalidade preponderante no período pode ser sintetizada em uma aposta da ampliação da cidadania pela “inclusão socioterritorial” e pelo vislumbre do espaço jurídico-institucional como arena prioritária a ser disputada para a consecução desse objetivo. Sob tal raciocínio, e dentro da discursividade alinhada a essa agenda, identifica-se um avanço no texto constitucional, no sentido de matizar o caráter discricionário das políticas de regularização fundiária, antes circunscritas a experiências municipais e a contextos de assentamentos restritos. Aponta-se para a construção de um “direito da população à regularização fundiária” capaz de conferir vivacidade à pauta política da reforma urbana e desdobrar-se na reivindicação contínua por instrumentos jurídico-urbanísticos e arranjos institucionais que viabilizassem sua concretização.

Não é possível deixar de mencionar que essa narrativa de reconhecimento da “cidade real” pela via da institucionalidade coexistiu, nas décadas de 1980 e 1990, com um conjunto de práticas populares voltadas ao acesso à moradia e à terra urbana. Práticas estas que incluíram as ocupações de terras por movimentos de moradia, a organização de mutirões de produção habitacional e as iniciativas de moradores fundadas na autogestão e na economia solidária. No entanto, sem ignorar a importância de tais experiências, a elaboração substancial da reforma urbana elegeu como interlocutor fundamental o Estado e como caminho prioritário à ascensão da cidadania a formalização dos assentamentos ditos informais/irregulares/ilegais, na dimensão da regularização fundiária (majoritariamente estabelecida pela aquisição da propriedade privada individual) (Arantes, 2013______. “Da (Anti)Reforma Urbana brasileira a um novo ciclo de lutas nas cidades”. Correio da Cidadania, 9 nov. 2013.).

O segundo momento regulatório, subsequente à promulgação constitucional, coincide com o avanço neoliberal nos Estados latino-americanos e seu espraiamento ao âmbito do planejamento urbano e da respectiva regulação. A racionalidade do “empresariamento urbano” (Harvey, 2005Harvey, David. A produção capitalista do espaço. Trad. Carlos Szlak. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2005.), disseminada nos países centrais do capitalismo nas décadas anteriores, chega ao Brasil em meados dos anos 1990 sob a fórmula da “imperativa” reestruturação do Estado, pautada no estímulo à competitividade entre as localidades para atração de investimentos internacionais e na articulação, cada vez mais íntima, entre Estado e capital, por meio das parcerias público-privadas (Vainer, 2013Vainer, Carlos. “Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano”. In: Arantes, Otília; Vainer, Carlos; Maricato, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes , 2013.). Assim, já nesse período, sob a argumentação do necessário crescimento econômico como condição anterior à transferência com teor redistributivo, introduziram-se mecanismos e instrumentos de privatização da cidade, como “operações urbanas, operações interligadas, concessões urbanísticas, vendas de certificados de potencial construtivo adicional […]”, entre outros (Arantes, 2013______. “Da (Anti)Reforma Urbana brasileira a um novo ciclo de lutas nas cidades”. Correio da Cidadania, 9 nov. 2013.). Um processo que, ao mesmo tempo, propagou a retirada do Estado das políticas sociais e se realizou por meio de forte intervenção legislativa, que inovou no ordenamento jurídico com normativas capazes de proporcionar o ambiente regulatório necessário à reprodução e expansão do capital.

Evidentemente, o pacote discursivo, econômico e de práticas administrativas do neoliberalismo se fez sentir também no âmbito das gestões fundiárias. No plano internacional, é nesse período que se fortalece a perspectiva de intervenção nos territórios informais, primordialmente localizados nos países periféricos do capitalismo, com vistas à formalização desses espaços por meio da titulação em massa pelo acesso à propriedade privada. É nesse ambiente político que a formulação de Hernando De Soto, já mencionada, ganha força e passa a ser incorporada aos programas financiados por agências multilaterais, a exemplo do Banco Mundial.

A hipótese central da argumentação, defendida pelo economista em O mistério do capital, de 2001, corresponde à vinculação direta entre a pobreza dos países periféricos e a presença expressiva de territórios sem vínculo de propriedade privada. Para o economista, a titulação em massa nesses territórios permitiria o “despertar” de um “capital existente, mas morto”, que, ao se transmutar para a forma de propriedade, poderia ser mobilizado na forma de ativos. E, em consequência, seria capaz de fornecer aos novos sujeitos-proprietários a garantia real que viabilizasse o acesso ao crédito necessário para o investimento em empreendimentos e atividades econômicas (De Soto, 2001De Soto, Hernando. O mistério do capital. Trad. Zaida Maldonado. Rio de Janeiro: Record, 2001.).

Entre nós, é possível afirmar que a assimilação desse conjunto de ideias teve um impacto relativo. Embora elas estivessem afinadas ao tom neoliberal que conduzia as políticas públicas durante a década de 1990 e início dos anos 2000, e a despeito de experiências de regularização fundiária e urbanização de favelas levadas a cabo por gestões públicas locais, inexistiram programas ou marcos jurídico-normativos voltados à gestão fundiária urbana com escala significativa. A racionalidade do período pode ser, portanto, sintetizada como prelúdio da confluência entre a manifestação do embrião neoliberal nas políticas urbanas e as iniciativas progressistas pontuais, que almejam avançar na criação e no aperfeiçoamento de instrumentos de regularização fundiária.

Um terceiro momento na trajetória da regulação da política fundiária refere-se à primeira década dos anos 2000 e está associado à ascensão do Partido dos Trabalhadores à Presidência da República e à relativa consolidação do marco jurídico institucional da política urbana no Brasil. Com a criação do Ministério das Cidades, em 2003, a temática alça locus específico no âmbito do governo federal, estabelecendo-se pela primeira vez um Programa Nacional de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável pautado no estabelecimento de bases jurídicas, urbanísticas, institucionais e financeiras, com vistas a permitir a atuação municipal e estadual em situações de regularização. Desse fortalecimento institucional resultaram experiências interessantes, mas novamente realizadas em pequena escala e com parcos investimentos para sua execução.

Não obstante tais limitações objetivas, no âmbito normativo houve a consolidação paulatina de um sentido de regularização fundiária plena, que transcendia a titulação individual da propriedade e abarcava conjuntamente as dimensões ambiental, urbanística e social. No campo da doutrina urbanística, a regularização fundiária passou à condição de direito dos moradores, afastando-se do caráter discricionário que a mobilizava como moeda político-eleitoral, característico dos períodos anteriores (Alfonsin; Fernandes, 2006Alfonsin, Betânia de Moraes; Fernandes, Edésio (orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.). É bem verdade que essa transição se operou mais no plano da legislação e da doutrina do que nas experiências concretas e na interpretação do Poder Judiciário, cujo comportamento típico diante das decisões envolvendo a propriedade fundiária e os conflitos daí decorrentes ainda tem mais permanências do que rupturas (Milano, 2017Milano, Giovanna Bonilha. Conflitos fundiários urbanos e Poder Judiciário. Curitiba: Ithala, 2017.).

Nessa racionalidade, merece destaque a aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, com a ampliação de instrumentos jurídico-urbanísticos que serviriam a essa finalidade, incidindo sobre áreas públicas e áreas privadas. E, principalmente, a aprovação da lei n. 11.977/2009, criada para disciplinar o programa Minha Casa Minha Vida, mas que, em seus dispositivos, tratou igualmente da regularização fundiária em áreas urbanas. Das contribuições de seu conteúdo, merecem destaque o status de política pública conferido à regularização fundiária plena (multidimensional), além da articulação ao conjunto dos outros diplomas normativos que tangenciam a regulação do solo urbano e o acesso formal à terra. Além disso, houve novamente a ampliação dos instrumentos de regularização fundiária voltados a traduzir situações fácticas de não propriedade ao âmbito jurídico-formal, como a demarcação urbanística e a legitimação de posse. E, ainda, o tratamento diferenciado, com flexibilização de critérios e parâmetros dos casos de regularização de interesse social, envolvendo população de baixa renda.

Quando se argumenta que a racionalidade-síntese do período reflete um processo de consolidação dos marcos institucionais e jurídicos da política fundiária no Brasil, a referência é precisamente a essas produções legislativas e a esses espaços institucionais que surgiram durante as gestões petistas. Em uma avaliação menos normativa e mais centrada na perspectiva da economia política, entretanto, é possível perceber os enormes limites da incidência desse aparato jurídico-institucional na efetividade da democratização de acesso à terra e na reversão do quadro estruturante de informalidade e segregação em nossas cidades. Isso porque, paralelamente ao processo de positivação das intenções de formalização da “cidade real/oculta” permaneceram intocados os mecanismos econômicos que impulsionam a concentração proprietária no espaço urbano, sendo que, em alguns casos, a própria política pública catalisou o aprofundamento dos conflitos. Portanto, se o caminho inaugurado, desde a reforma urbana, para construção e aperfeiçoamento da institucionalidade logrou positividades nesse período, a ausência da revisão de um modelo “proprietariocêntrico”, combinada ao perfil neodesenvolvimentista, impediu avanços materiais mais significativos nas desigualdades urbanas.

Finalmente, o quarto momento regulatório refere-se ao período que se inicia em meados de 2016, com significativa alteração de percurso acerca da regulação do acesso à terra e de sua formalização. Por meio da edição da Medida Provisória n. 759/2016, posteriormente convertida na lei n. 13.465/2017, modificaram-se substancialmente os parâmetros legais acerca da regularização fundiária rural, amazônica e também urbana. Na perspectiva formal, a mutação normativa operada na forma de Medida Provisória (cuja previsão constitucional é restrita a situações de urgência) foi interpretada como violação ao processo histórico de construção da política de regularização fundiária, apoiado no princípio da gestão democrática e da participação popular. Materialmente, e restringindo-nos aqui à leitura dos dispositivos que versam sobre as áreas urbanas, os pontos sensíveis são muitos e foram explorados em algumas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, ainda à espera de julgamento. O mais abrangente desses pontos talvez seja o recuo na compreensão do caráter multidimensional da regularização fundiária e a priorização da titulação dos “núcleos urbanos informais”, nomenclatura cunhada pela legislação, sem maiores parâmetros técnicos, em um movimento de aproximação às ideias de De Soto, anteriormente exploradas. Em que pese a menção à necessária elaboração de projeto urbanístico, com a indicação dos componentes mínimos que devem estar presentes, flexibiliza-se a ideia de projeto integral, permitindo a aprovação em etapas e o adiamento da execução em momento posterior à regularização. Desvincula-se, ao final das contas, a titulação dos moradores da qualificação urbanística e ambiental do espaço regularizado.

Para além disso, há um divórcio entre os mecanismos previstos nessa legislação em relação a outros diplomas urbanísticos e seu respectivo repertório instrumental, por exemplo as Zonas Especiais de Interesse Social, seccionando explicitamente a política de controle do uso e ocupação do solo, a política habitacional e os processos de formalização da propriedade. Uma separação artificial, dado o caráter de interdependência entre esses circuitos diante da política fundiária mais ampla, mas absolutamente funcional, quando desvelada a racionalidade de aprofundamento dos traços neoliberais que informam o momento regulatório contemporâneo. Um exemplo útil a esse argumento pode ser extraído da própria lei, com a criação do instrumento de “legitimação fundiária”, que corresponde a “uma forma de aquisição originária do direito de propriedade conferido por ato discricionário do Poder Público àquele que detiver área pública ou possuir área privada como sua, unidade imobiliária com destinação urbana integrante de núcleo urbano informal consolidado” (Brasil, 2017Brasil. Lei n. 13.465, de 11 de julho de 2017.). Em síntese, um instrumento que permite a transferência de terras a particulares (inclusive áreas oriundas do patrimônio público), por mero ato discricionário da administração, constituindo objetivamente um movimento apto a potencializar a privatização do espaço e a grilagem.

Duas constatações importantes dessa trajetória brevemente delineada. A primeira delas é que todos os períodos, inclusive aqueles de maior aposta “na inclusão socioterritorial” e na juridificação de demandas populares, foram marcados por ambiguidades. Não se pode esquecer, como já dito, que ao mesmo tempo que a função social da propriedade ingressa no conteúdo constitucional da política urbana - e, posteriormente, como princípio norteador do Estatuto da Cidade - incluem-se instrumentos declaradamente voltados à realização dos interesses do mercado e à ampliação da acumulação pelo capital. A virtude na análise das molduras jurídico-institucionais reside justamente na possibilidade de vislumbrar tais enunciações de sentidos, embora estas não possam ser tomadas unicamente em sua intenção prescritiva, e sim como parte da economia política de disputa pelo espaço.

O segundo ponto refere-se a uma falsa compreensão acerca das políticas urbanas neoliberais, gestadas já na década de 1990 e agudizadas no período atual. Não se trata, tal como observado no início do texto, de retirada do Estado, minimização ou flexibilização de sua capacidade regulatória, mas de um outro agenciamento regulatório por meio do qual se minoram os riscos dos agentes privados. A retirada se dá na arquitetura de políticas sociais e investimentos diretos para consecução dos direitos fundamentais, mas o Estado é ator essencial desse arranjo contemporâneo, normatizando, regulando, produzindo leis que criem estabilidade e segurança para a incidência do capital. O caso da “Empresa Regularizadora” projeta luz nessa nova arquitetura da política urbana neoliberal: articulam-se proprietário e empresa, protegidos pelo arcabouço da desapropriação judicial e da nova lei de regularização fundiária, com o aval do poder público local e a legitimação conferida pelo Poder Judiciário, por meio da homologação do acordo.

O ANJO, A TERRA: O LIMBO (OU POR ALGUMAS NOTAS INCONCLUSIVAS)

Nesse movimento, o conflito fundiário enunciado na introdução do texto, segundo as tramitações jurídicas, plenas de idas e vindas, sofreu redefinições ao longo dos últimos dois anos. Como decisão final da contenda, o Poder Judiciário determinou que cabe ao Estado indenizar o proprietário, tornando pública a propriedade da terra. Porém, ao indenizar o proprietário pela ocupação dos trabalhadores, o Estado acaba por realizar a pressuposição de valorização imobiliária antes interditada pelos meandros da (ir)regularidade da posse e da propriedade. Nesse sentido, o recurso público alocado na “justa indenização” funciona como equivalente de capital, que é privatizado em função do monopólio de propriedade. Paralelamente a esse movimento, sai de cena a “Empresa Regularizadora”, que já não atua mais na área, uma vez que o acordo não foi adiante.14 14 Antes mesmo da decisão final do Judiciário, que determinou a desapropriação da terra e a indenização do proprietário pelo Estado (ainda em 2018), esvaziando de sentido o papel mediador da “Empresa Regularizadora” no conflito, as negociações com os moradores já vinham se apresentando como um impedimento para a atuação da empresa na área, uma vez que o mínimo de adesão ao acordo, estipulado em 30% das famílias residentes, não havia sido alcançado. Como resultado, o contrato com a empresa foi desfeito, e as famílias que já haviam iniciado o pagamento das parcelas foram reembolsadas. Com a indenização, tampouco a regularização e a reurbanização se põem em curso, ao menos até agora. Ela, a empresa, ascende aos céus, ainda que sua passagem deixe marcas e transborde para outras paragens; a lógica proprietária e sua correspondente forma de representação de valor e de equivalência de capital (Grespan, 2019Grespan, Jorge. Marx e a crítica do modo de representação capitalista. São Paulo: Boitempo , 2019.), porém, firmam-se, uma terra monopolizada que pode ser remunerada pela privatização do bem público, dos recursos destinados à desapropriação, dos eventuais custos da produção de infraestrutura que contribuem com a valorização dos imóveis e dos terrenos. Nesse processo, a classe trabalhadora também perde seu lugar. Ao se “resolver” o conflito, ao se tornar pública a terra ocupada, permanecem na seara do “prometido” tanto a regularização fundiária quanto a reurbanização. Daquele encontro entre anjo e terra, resta apenas o limbo da indeterminação.

A alegoria de “estar no limbo” significaria estar em uma condição prévia e intermediária entre paraíso e inferno: nem os inocentes e bem-aventurados do primeiro caso nem a punição aflitiva e declarada do segundo. A indeterminação da “perpétua carência da visão de Deus” é a inconsciência de sua condição de carência, pois “a falta do bem supremo não lhe causa o menor pesar” (Agamben, 2007Agamben, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 42): uma solução adotada entre Estado e mercado que submete a reurbanização e a regularização à expressão econômica da propriedade.

A simbiose entre Estado e mercado não é nova na história brasileira, pois desde a empresa colonial o “liberalismo no Brasil” sempre foi definido pelo imbricamento entre público e privado - como prática social que antecede, até mesmo, a própria formação da propriedade moderna no Brasil a partir da Constituição Imperial de 1824 (ver Prieto, 2016Prieto, Gustavo Francisco Teixeira. Rentismo à brasileira, uma via de desenvolvimento capitalista: grilagem, produção do capital e formação da propriedade privada da terra. Tese (doutorado em geografia humana). São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2016.). Porém, na atualidade, intensifica-se essa forma de reprodução, que se sobrepõe às condições de reprodução social. Nesse sentido, parece ser possível pôr em xeque a formulação que opõe o “desenvolvimentismo de Estado” ao “neoliberalismo sem Estado” na experiência brasileira recente. Se, como reação política e econômica, o neoliberalismo se diferencia do laissez-faire liberal clássico pela natureza da participação do Estado (Dardot; Laval, 2016Dardot, Pierre; Laval, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo , 2016.), há de se refletir, em paralelo à política de regularização fundiária que se desenrola nos últimos anos, sobre as singularidades da trajetória do projeto neoliberal que encarnou por aqui, uma mistura de desenvolvimento econômico e privatização; políticas sociais, capitalização da renda da terra e produção do espaço. Complementaridades que atenuam distinções entre a “inclusão socioterritorial” promovida por instrumentos urbanísticos, tais como “função social da propriedade” e “Estatuto da Cidade”, e a realização de interesses do mercado na absorção e reprodução do capital. Indeterminação não exclusivamente alegórica.

Por outro lado, ainda que a “Empresa Regularizadora” pareça estar saindo de cena, momentaneamente, o papel da propriedade privada na reprodução do capital em contradição com a reprodução social se intensifica: sua reprodução ampliada se realiza ao privatizar a riqueza socialmente produzida. Uma privatização que se dá sem a contrapartida de um novo trabalho ou uma nova produção, espoliando no presente o “já produzido” (passado) e condicionando o “a produzir” (futuro) - dimensões da espoliação urbana (Kowarick, 1993Kowarick, Lúcio. A espoliação urbana. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.) e da espoliação imobiliária e financeira (Pereira, 1986Pereira, Paulo Cesar Xavier. “Valorização imobiliária, movimentos sociais e espoliação”. Sinopses 9, jun. 1986, pp. 203-32.; Petrella, 2018Petrella, Guilherme Moreira. “Aprendendo com a São Paulo delirante: reestruturação imobiliária, movimentos sociais e espoliação”. In: Pereira, Paulo Cesar Xavier (org.). Imediato, global e total na produção do espaço: a financeirização da cidade de São Paulo no século XXI. São Paulo: FAU/USP , 2018. Disponível em: <Disponível em: http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/302/262/1141-1 >. Acesso em: 28/2/2020.
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). Desse modo, ilumina-se uma “crítica à economia política” da propriedade, da produção do espaço, da urbanização, à luz da experiência dos conflitos deflagrados na atualidade. O deslocamento entre propriedade (regularização) e produção (reurbanização) aponta para a centralidade da primeira como elemento estruturante: seu lugar de domínio, correlato às forças sociais que a monopolizam, e o predomínio de suas formas de reprodução, pela capitalização da renda e capital fictício.

Uma compreensão da economia política da urbanização a partir da propriedade e da relação entre Estado e mercado, e entre produção do espaço e produção de relações sociais, merece ser aprofundada e discutida num movimento contínuo de pesquisa e interpelação crítica sobre nossos processos. Por enquanto, ressalta-se o movimento. Um movimento de ruínas e de emergências.

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  • Prieto, Gustavo Francisco Teixeira. Rentismo à brasileira, uma via de desenvolvimento capitalista: grilagem, produção do capital e formação da propriedade privada da terra. Tese (doutorado em geografia humana). São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2016.
  • Rolnik, Raquel. “Democracia no fio da navalha: limites e possibilidades para a implementação de uma agenda de Reforma Urbana no Brasil”. Revista de Estudos Urbanos e Regionais, 2009, v. 11, n. 2.
  • ______.. “Dez anos do Estatuto da Cidade: das lutas pela reforma urbana às cidades da Copa do Mundo”. In: Ribeiro, Ana Clara Torres; Vaz, Lilian Fessler; Silva, Maria Lais Pereira da (orgs.). Leituras da cidade. Rio de Janeiro: Letra Capital/Anpur, 2012.
  • ______.. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.
  • Telles, Vera da Silva. “Cidade: produção de espaço, formas de controle e conflitos”. Revista de Ciências Sociais, 2015, v. 46, n. 1.
  • Vainer, Carlos. “Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano”. In: Arantes, Otília; Vainer, Carlos; Maricato, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes , 2013.
  • 1
    “Que tipo de sociedade é esta, em que se encontra a mais profunda solidão no seio de tantos milhões; em que se pode ser tomado por um desejo implacável de matar a si mesmo, sem que ninguém possa prevê-lo? Tal sociedade não é uma sociedade; ela é, como diz Rousseau, uma selva, habitada por feras [bestas] selvagens” (Marx, 2006______.. Sobre o suicídio. Trad. Rubens Enderle e Francisco Fontanella. São Paulo: Boitempo, 2006., p. 28, grifos do original).
  • 2
    O conflito fundiário em questão é objeto de uma pesquisa em curso, sob financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da qual participam os autores deste artigo. As reflexões aqui presentes fazem parte dos achados preliminares desse trabalho investigativo, com previsão de término no início de 2022.
  • 3
    O nome da empresa e as fontes de coleta de dados sobre ela serão mantidos em sigilo.
  • 4
    Sobre a chamada Alternative Dispute Resolution, questão que será retomada mais adiante, veja-se especialmente Nader (1994Nader, Laura. “Harmonia coerciva: a economia política dos modelos jurídicos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 1994, v. 9, n. 26, pp. 18-29.).
  • 5
    A ideia da “condução de condutas” está em O nascimento da biopolítica, de Michel Foucault, e é longamente trabalhada nos textos de Wendy Brown (2018Brown, Wendy. Cidadania sacrificial: neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Trad. Juliane Bianchi Leão. Rio de Janeiro/Copenhague: Zazie Edições, 2018., 2019______.. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. Trad. Mario A. Marino e Eduardo A. Camargo Santos. São Paulo: Politeia, 2019.) e Christian Laval (2020Laval, Christian. Foucault, Bourdieu e a questão neoliberal. Trad. Márcia Pereira Cunha; Nilton Ken Ota. São Paulo: Editora Elefante, 2020.).
  • 6
    “De qualquer modo, ficam marcadas as duas características canônicas da paródia: a dependência de um modelo preexistente, que de sério é transformado em cômico, e a conservação de elementos formais em que são inseridos conteúdos novos e incongruentes” (Agamben, 2007Agamben, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 38).
  • 7
    Tal qual a “acumulação original ou primitiva” (Marx em O capital…______.. O capital: crítica da economia política, livro III: O processo global da produção capitalista. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1986), que, reposta e reproduzida cotidianamente, constitui-se como “acumulação por espoliação (Harvey, 2005Harvey, David. A produção capitalista do espaço. Trad. Carlos Szlak. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2005.).
  • 8
    A desapropriação judicial corresponde a instituto previsto no Código Civil: “O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante”. Nessa hipótese, caberá ao Judiciário o arbítrio de indenização devida ao proprietário, havendo ampla discussão jurídica sobre quem deve arcar financeiramente com ela (moradores ou Estado). No entanto, o enunciado n. 308 do Conselho da Justiça Federal/Superior Tribunal de Justiça (CJF/STJ) consagrou a interpretação de que, em se tratando de situação na qual se identifiquem como possuidores de baixa renda, inseridos no contexto de políticas públicas para reforma urbana, caberá à administração pública o desembolso dos respectivos valores indenizatórios.
  • 9
    Conforme dados coletados com os moradores, como parte do cumprimento da pesquisa citada na nota 2.
  • 10
    Portanto, algo que originalmente não é capital, pois é fruto de trabalho desmercantilizado, transforma-se em capital fictício, ao passar a representar valor sem a realização de um novo “trabalho vivo”.
  • 11
    No Brasil, trata-se da lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996, que dispõe sobre a arbitragem.
  • 12
    Importante lembrar que a construção de uma narrativa que esvazia o sentido político do conflito, convertendo-o em mais uma dimensão da economicização neoliberal da vida social e política, constitui-se como parte importante da estruturação de uma outra cidadania, erigida sob novos princípios de orientação, orquestração e relação entre Estado, sociedade e sujeitos, implicando novas condutas e sociabilidades baseadas em competição, empreendedorismo, responsabilização e sacrifício, tal como formula Wendy Brown (2018Brown, Wendy. Cidadania sacrificial: neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Trad. Juliane Bianchi Leão. Rio de Janeiro/Copenhague: Zazie Edições, 2018.). Essa observação não é acessória, na medida em que o discurso do esforço próprio das famílias, em favor de contribuir para a resolução das situações de conflito fundiário em que estão envolvidas, só pode ecoar como consenso numa sociedade em que a desproteção, a governança privatista, a responsabilização e a delegação fragmentária de decisões passam a funcionar como métrica e prática de valoração em todas as esferas da vida.
  • 13
    Aqui se utiliza o termo “reurbanização”, e não “urbanização”, porque a terra já está urbanizada, já é espaço urbano (não sendo rural nem natural, além de participar das relações urbanas de reprodução social). Ainda que seja um urbano em contradição. Um urbano e um habitar que não aparecem como tal sob a óptica institucional, setorial e parcelar, pois percebidos a partir de uma visão estrita. Se o urbano é mais do que a forma que assume enquanto “cidade”, o processo de transformação espacial ali engendrado é a reurbanização.
  • 14
    Antes mesmo da decisão final do Judiciário, que determinou a desapropriação da terra e a indenização do proprietário pelo Estado (ainda em 2018), esvaziando de sentido o papel mediador da “Empresa Regularizadora” no conflito, as negociações com os moradores já vinham se apresentando como um impedimento para a atuação da empresa na área, uma vez que o mínimo de adesão ao acordo, estipulado em 30% das famílias residentes, não havia sido alcançado. Como resultado, o contrato com a empresa foi desfeito, e as famílias que já haviam iniciado o pagamento das parcelas foram reembolsadas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    04 Set 2019
  • Aceito
    11 Set 2020
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