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Unificação desigual: poder transnacional e crise de legitimação na Europa contemporânea

Resumos

A entrevista trata do processo de constituição da União Européia. O entrevistado passa em revista a estrutura institucional e jurídica da Europa unificada e a conjuntura política recente, considerando-se o crescimento da direita no Parlamento Europeu e o impacto da recusa da constituição européia nos referendos de 2005. Busca, ainda, construir um conceito operacional de legitimação que permita avaliar o caráter democrático dos processos de tomada de decisão política no âmbito transnacional.

União Européia; legitimidade democrática; estruturas transnacionais de poder


The interview deals with the constitution process of the European Union. Brunkhorst analyzes the juridical and institutional structure of unified Europe and the recent political conjuncture, regarding the growth of right wing parties in the European Parliament and the impact of the refusal of the European Constitution in 2005's referenda. He also formulates an operational concept of legitimation to evaluate the democratic character of political decision-making in transnational level.

European Union; democratic legitimacy; transnational structures of power


Unificação desigual

Poder transnacional e crise de legitimação na Europa contemporânea

Entrevista com Hauke Brunkhorst

Professor de sociologia da Universidade de Flensburg, Alemanha. Publicou, entre outros: Solidarity: from civic friendship to a global legal community. Cambridge/London: MIT Press, 2005; Adorno and Critical Theory. Cardiff: University of Wales Press, 1999

RESUMO

A entrevista trata do processo de constituição da União Européia. O entrevistado passa em revista a estrutura institucional e jurídica da Europa unificada e a conjuntura política recente, considerando-se o crescimento da direita no Parlamento Europeu e o impacto da recusa da constituição européia nos referendos de 2005. Busca, ainda, construir um conceito operacional de legitimação que permita avaliar o caráter democrático dos processos de tomada de decisão política no âmbito transnacional.

Palavras-chave: União Européia, legitimidade democrática, estruturas transnacionais de poder.

SUMMARY

The interview deals with the constitution process of the European Union. Brunkhorst analyzes the juridical and institutional structure of unified Europe and the recent political conjuncture, regarding the growth of right wing parties in the European Parliament and the impact of the refusal of the European Constitution in 2005's referenda. He also formulates an operational concept of legitimation to evaluate the democratic character of political decision-making in transnational level.

Keywords: European Union, democratic legitimacy, transnational structures of power.

Ao lado de transformações institucionais vultosas, o processo de constituição da União Européia desencadeou em todos os campos das ciências sociais uma vigorosa onda de investigações sobre o processo de integração. Pesquisadores mais eufóricos vêem no novo campo de estudo a possibilidade de libertar suas disciplinas do chamado nacionalismo metodológico e conseqüentemente de desenvolver ferramentas teóricas e analíticas que não sejam mais vinculadas lógica e congenitamente à sociedade e ao Estado nacionais. Hauke Brunkhorst, cientista social, filósofo e decano da pós-graduação em European Studies da Universidade de Flensburg, se notabilizou no debate público e acadêmico alemão como crítico do entusiasmo excessivo com o chamado processo de europeização da política e das sociedades nacionais européias.

Suas objeções, contudo, nada têm a ver com o clamor nacionalista e antidemocrático que se ouve da direita francesa ou alemã. Suas críticas não se dirigem à Europa unificada em si, mas ao tipo de unificação em curso, o qual desconsidera, segundo entende, princípios básicos da democracia. Mostra, ainda, como no corpo da Europa integrada se consolida uma nova classe dominante articulada transnacionalmente e que se vale dos vácuos de normatização legal para expandir e integrar suas estruturas de um poder informal e extremamente efetivo.

Nesta entrevista, concedida em julho último, numa rara tarde de sol e calor intenso na cidade de Flensburg, situada na fronteira entre a Alemanha e a Dinamarca, na orla do Mar Báltico, Hauke Brunkhorst analisa tanto fatos políticos recentes relacionados à União Européia quanto problemas da ordem da teoria democrática sugeridos pelo processo de unificação. (Sérgio Costa e Denilson Werle)1 [1 ] A entrevista foi feita por Sérgio Costa. A tradução é de Denilson Luis Werle.

Sérgio Costa — Quando a constituição européia foi recusada nos referendos francês e holandês em 2005, comentaristas políticos vislumbraram um futuro sombrio para a integração européia. Ao lado de outros especialistas, você mostrou que uma constituição européia já está em vigor com base nos acordos europeus vigentes. O que isso significa segundo os pontos de vista da teoria constitucional e dos cidadãos europeus?

Hauke Brunkhorst — É de fato correto que há muito já existe uma constituição européia no sentido técnico. Desde os tratados de Roma, cujo centenário será comemorado em 2007, existem órgãos de poder específicos da comunidade européia, com competências legislativas e jurisdições específicas, e uma série de novos direitos, que, no início, se concentraram num núcleo de liberdades comerciais e de movimentação econômica, mas que, no entanto, mais tarde se estenderam para muito além disso. Já em 1963, o tribunal europeu entendeu, a partir dos tratados comuns, que, com a fundação da comunidade, foram criados direitos de cidadania específicos para os cidadãos europeus em seu conjunto. Isso exigiria forçosamente, conforme o tribunal argumentou na ocasião, reconhecer e representar juridicamente, nos casos de direito de apelação, uma base dupla de legitimação da união. De um lado, está a clássica base de legitimação intergovernamental, os tratados entre os Estados; de outro, uma base de legitimação na qual, pode-se dizer, a comunidade européia de cidadãos, constituída ou em processo de constituição, representa um sujeito de legitimação independente dos tratados entre Estados e das nações, aos quais cada cidadão europeu pertence.

E o que isso significa praticamente para os cidadãos, no que diz respeito à sua relação com a Justiça nacional e européia?

Em primeiro lugar, isso significa naturalmente que os cidadãos, do ponto de vista prático, possuem de fato esses direitos. Eles estão no cerne dos clássicos direitos de indigenato, isto é, os países fazem um acordo no qual concedem aos seus cidadãos direitos iguais recíprocos nos seus respectivos países. Na França, alemães não podem ser discriminados juridicamente como estrangeiros e vice-versa. Nacionais e estrangeiros dos países da comunidade têm sempre os mesmos direitos em qualquer parte do território comunitário. Só fogem a essa regra umas poucas exceções ainda existentes, como determinados direitos eleitorais. Esses direitos de isonomia recíproca cidadã distinguem de saída os europeus como membros da Comunidade, hoje União Européia, dos não-membros, que na França, Dinamarca, etc. podem certamente contar com os direitos de todos (direitos humanos), mas não desfrutam dos direitos próprios à cidadania. A prerrogativa decisiva que constitui a pertença cidadã específica à comunidade e à União é a ampla liberdade de circulação. Atualmente, ela se estende a quase todos os domínios da vida e abrange quase todos os direitos dos cidadãos e por isso já existe também há muito tempo uma jurisprudência correspondente no tribunal europeu.

Em artigo publicado na revista "Constellations"2 [2 ] Hauke Brunkhorst, "The Legitimation Crisis of the European Union". Constellations, Vol.13, 2, 2006, pp. 165-180. [nota do entrevistador]. você defende, seguindo Rousseau, que a constituição européia deve representar mais do que uma associação de Estados e tribunais: deve apresentar-se como associação de cidadãos. Como uma tal associação pode realizar-se? Ela não requer dos cidadãos individuais um engajamento político e interesse pela Europa, dos quais não se encontra nenhum indício no cotidiano europeu?

Nesse ponto, o interesse ou a vontade manifesta, bem como o interesse latente dos cidadãos não são os pressupostos de minha argumentação. Defendo unicamente que, com a constituição jurídica de uma cidadania européia própria, já estabelecida pelo tribunal em 1963, o conjunto dos cidadãos europeus deve ter o mesmo peso no exercício do poder na União Européia do que os Estados, que não são legitimados democraticamente pelos cidadãos europeus, mas somente pelos respectivos cidadãos, no âmbito nacional. Assim, por meio de um contrato intergovernamental os Estados europeus criaram novos direitos dos cidadãos europeus, produzindo justamente a comunidade de cidadãos europeus, em sua totalidade, como um sujeito de legitimação próprio. Esse foi o ato de um poder constituinte originário, que com isso cria direitos de cidadania comunitária não mais passíveis de suspensão por meio de um mero contrato estatal ou uma simples alteração contratual. Quando os cidadãos têm direitos recíprocos, o Estado não pode simplesmente cassá-los sem o consentimento dos cidadãos. Já em 1963, o tribunal europeu concluiu que os cidadãos individuais podem reivindicar, judicialmente, a manutenção de seus direitos europeus, vale ressaltar, não seus direitos alemães ou franceses, mas sim seus direitos europeus. Segundo a doutrina do tribunal, esse é o chamado efeito direto do direito europeu e, por isso, existe então uma supremacia do direito europeu frente ao direito nacional. Essa possibilidade de apelação para além do direito nacional é uma das fontes indiretas de legitimação da União Européia. Contudo, em 1963, inexistia ainda aquela legitimação democrática por meio dos cidadãos da Europa. A legitimação está parcelada individualmente e o tribunal funciona, no melhor dos casos, como uma espécie de guardião dos interesses democráticos do novo sujeito da legitimação. Atualmente, existem os direitos eleitorais europeus, e, há algum tempo, um Parlamento Europeu, inclusive bastante forte, eleito pelos cidadãos europeus. Ainda que em segmentos nacionais, a eleição se dá por meio de um eleitorado único, de modo que os deputados não estão obrigados a representar os cidadãos alemães ou dinamarqueses, mas o conjunto dos cidadãos europeus. Antes como agora, porém, a situação é, do ponto de vista de teoria democrática, altamente insatisfatória.

O órgão intergovernamental específico, o Conselho da União Européia,3 [3 ] O Conselho da União Européia, antes chamado de Conselho de Ministros e referido normalmente apenas como Conselho, é constituído pelos respectivos ministros dos países membros, conforme as diferentes pastas. O Conselho Europeu é constituído pelos chefes de Estado e de governo dos países membros e se reúne quatro vezes por ano, contando ainda com a intervenção do Presidente do Parlamento Europeu. (cf. http://europa.eu/abc/12lessons/ index4_pt.htm, consultado em 28 de outubro de 2006) [nota do entrevistador] é também um órgão autônomo, no qual vale a decisão dos ministros reunidos, corresponda ou não às incumbências recebidas de seus respectivos primeiros-ministros ou gabinetes ministeriais no nível nacional. Não obstante, a europeização desses órgãos e a obrigação jurídica explícita de todo ministro específico ali alocado com os interesses europeus comuns não representa, de modo algum, um grande ganho para a democracia, pois promove, inicialmente, sua marginalização não apenas no plano europeu, mas também no plano dos Estados nacionais. O poderoso Conselho da União Européia, diferentemente do senado americano e do Conselho da Federação alemão, pode apenas agir através de seus fragmentos — os ministros específicos reunidos. Deveria exigir, por isso, a contrapartida de uma forte legitimação conferida pelo conjunto dos cidadãos europeus. Esse é o problema. Claro, existem contrapesos muito fortes, como o parlamento e o tribunal, e mesmo órgãos diretivos, como a Comissão Européia, cuja legitimação democrática, contudo, é extremamente frágil. Isso possibilita aos respectivos funcionários que controlam esses órgãos exercer sua dominação de modo não democrático e representar interesses poderosos completamente diferentes daqueles dos povos e cidadãos europeus.

No plano europeu, existe também uma divisão de poderes: o Conselho da União Européia e o Parlamento Europeu representam por assim dizer o poder legislativo; o poder executivo está representado no corpo da Comissão Européia; por fim, há o judiciário, representado na forma do Tribunal Europeu. Não obstante, você e outros constatam um déficit de legitimação. O que falta exatamente?

Também com respeito a esse ponto não argumento, a princípio, no plano sociológico-empírico, mas no plano da teoria constitucional. É relativamente claro que os contratos da União Européia determinam, em todos os níveis, que a democracia tenha vigência em seus próprios órgãos. Eles também concedem determinados direitos democráticos, como, por exemplo, o direito europeu de voto. Mas isso é altamente deficitário. Nós temos direitos igualitários, inclusive direitos em excesso, imensos catálogos de direitos fundamentais, que tudo duplicam e tornam tudo ainda mais complicado, os quais também nem sempre são incondicionalmente um ganho em termos de efetividade do Estado de direito; muitas vezes também são uma perda. Em todo caso, disso há o suficiente. Claro, as declarações, as expressões solenes que se encontram no teor dos tratados não são palavras vazias, podem tornar-se concretas juridicamente, por exemplo, por parte dos tribunais, pelo parlamento e assim por diante. Portanto, têm efeitos concretos para os cidadãos individuais, nações, populações regionais e a cidadania como um todo. Têm também efeitos externos vigorosos para os vizinhos, o terceiro mundo, a OECD, e assim por diante. O problema, porém, é que temos de um lado esses direitos igualitários e, de outro, uma organização constitucional não-igualitária. A organização constitucional é o aparato conjunto que ordena a máquina legislativa e estabelece quem pode fazer as leis, quem pode implementá-las, a quem elas vinculam, como elas vinculam, como se pode recorrer a elas, quem são os sujeitos que podem fazê-lo, e por aí vai. Precisamente aqui falta um procedimento igualitário que assegure que esses belos direitos sejam implementados de modo igual, e não arbitrário, no interesse de seus portadores. Note-se que a linha que demarca os ganhadores e perdedores do jogo não começa com aqueles atingidos pelas decisões européias situados fora da Europa, na África ou América Latina. A divisão começa no seio da própria Europa. Aqui se forma uma nova e desta feita efetiva classe dominante transnacional e cosmopolita, contra a qual o interesse democrático que emana de baixo não logra se fazer representar nas instituições de modo eficaz. Existe certamente o parlamento, e o parlamento também se tornou incrivelmente forte e está cada vez mais forte, mas apesar disso as eleições não têm nenhuma legitimação democrática real.

Qual é exatamente o problema com o Parlamento Europeu?

Bem, aqui se pode esclarecer adequadamente a crise de legitimação da União Européia. A crise de legitimação consiste na contradição entre direitos igualitários e normas organizacionais desiguais, isto é, uma organização iníqua da máquina legislativa. O Parlamento Europeu é escolhido de forma igualitária e conta, nesse sentido, com uma legitimação democrática. De mais a mais, ele é quase tão forte quanto o congresso americano. Não é um debating parliament, como o parlamento britânico de Westminster, mas, tal como o congresso americano, funciona como um working parliament, que exerce o poder através de comissões. Formalmente, o Parlamento Europeu tem apenas (como também o congresso americano) a metade do poder de um debating parliament que pode dispor sobre o primeiro-ministro e seu gabinete. O Parlamento Europeu tem de partilhar o poder legislativo com o Conselho da União Européia. De fato, ele tem inclusive mais poder do que o parlamento alemão ou o parlamento inglês. Estes podem, na verdade, conduzir belos debates, mas são completamente dependentes dos respectivos governos que, por sua vez, podem jogar com a maioria parlamentar e a disciplina partidária.

Porém, as eleições para o Parlamento Europeu são, diferentemente das eleições americanas, eleições de faz-de-conta, simplesmente porque os cidadãos que vão votar não têm alternativas de fato e, por isso, não decidem literalmente nada. Valem tanto quanto uma escolha feita na base do cara ou coroa. Eu mesmo não saberia em quem deveria votar e qual política européia o deputado no qual votei defenderia. Claro, eu sei se ele é do Partido Socialdemocrata ou do Partido Democrata-Cristão ou se ele é do Partido Verde, mas isso não diz praticamente nada sobre a constelação européia. Acredito que se eu dedicasse mais tempo a me informar melhor, isso não resultaria em nada. Naturalmente, os outros cidadãos sabem disso, como também os políticos e pesquisadores eleitorais, que lhes são leais e chegavam mesmo a dizer: 'pois é, os eleitores são tolos, não sabem pensar de modo europeu', e com isso, em vez de punir o governo europeu, punem o próprio governo nacional, tal como uma classe de garotos burros castiga o professor. Eleições nas quais não se pode ao menos escolher uma direção e um programa políticos são, para os cidadãos, completamente sem valor, sem qualquer significado democrático. Para a classe política, em compensação, elas são tanto mais proveitosas. Afinal, por essa via, a classe política garante, a partir de baixo, legitimação aparente na mídia e, pelo alto, se afasta do horizonte que pode ser controlado pelo sujeito de sua legitimação. Lá no alto se forma uma nova classe dominante, que, diferente da dos séculos 19 e 20, está de fato interconectada européia e globalmente e que, como classe transnacional, apesar das habituais oposições, lutas de interesse e atritos internos, é capaz de ação. Aqui existe algo a ganhar para o deputados europeus em termos de poder, opções de ação e, porque não dizê-lo, enriquecimento pessoal. Poucos desses propósitos impulsionam a história adiante. Trata-se do dado institucional, sistêmico ou estrutural de que os órgãos de poder (parlamentos, comissões, tribunais, etc — para não falar das instituições globais), que emergem no contexto da busca por legitimação democrática, têm contribuído, através de seu funcionamento, para fortalecer a Europa como organização desigual e, com isso, promover o crescimento do poder informal de decisão, preenchendo-se, assim, as lacunas crescentes na legitimação democrática por meio de novas estruturas de poder não democráticas. Naturalmente, tal poder se consolida sobretudo quando não pode mais ser realmente controlado ou desautorizado pelo povo.

Isso vale menos para os órgãos formais firmemente institucionalizados, como o parlamento, a comissão ou o conselho da União Européia, do que para o Conselho Europeu, que é informal e fracamente institucionalizado. Ele abrange um espectro de poder que excede largamente todos os outros. Ele deve ser unânime internamente, e de fato o é na maioria dos casos de definição das linhas políticas, mesmo que apenas as divergências sejam repisadas pela imprensa. Isso encobre apenas a unidade fática e o poder de classe do conselho. Os chefes de governo da Europa unida sabem perfeitamente que a unanimidade os fortalece, pois por meio da Europa os poderes executivos, quando unificados, ganham um imenso espaço de ação que há muito tempo já perderam em seus países. Esse ganho de poder enquanto ator europeu, porém, não mais é respaldado pela inconteste legitimação democrática intergovernamental desse grêmio. As eleições nacionais legitimam os chefes de Estado apenas para o exercício soberano, em princípio parlamentar, do poder exterior, portanto simplesmente para a representação de interesses nacionais, não para a representação e implementação de interesses da Europa como um todo. Para a política da Europa européia, que eles na realidade fazem, e que não mais pode ser controlada pelos parlamentos, eles precisariam de uma legitimação da Europa como um todo, e esta eles não possuem. Não são eleitos diretamente de modo europeu nem como conselho, nem como presidente — mesmo que fosse apenas o de uma comissão — e nem o parlamento eleito diretamente pode lhes fazer oposição. O Parlamento Europeu é forte vis à vis o Conselho da União Européia e a Comissão, mas não é nada contra o Conselho Europeu. Aqui, só mesmo uma legitimação democrática efetiva poderia transformar o parlamento em um controlling parliament que também controla os chefes de governo. Não dá para fazer isso com eleições de fachada, que tratam os cidadãos como colegiais. O parlamento somente estará em condições para uma luta real pelo poder quando, falando grosseiramente, tiver o apoio do poder das ruas e puder, no limite, mobilizá-lo, ainda que seja apenas nas próximas eleições. Isso tudo, aliás, já sabemos do 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx — não por acaso, o que hoje vivenciamos na Europa lembra a transição de um regime parlamentarista para um Bonapartismo, que os franceses vivenciaram de 1848 a 1851 — ainda que hoje seja um Bonapartismo suave, portanto, mais para de Gaulle que para Luís Bonaparte. No conjunto, ocorre um potente deslocamento do poder do primeiro para o segundo, isto é, do poder legislativo para o poder executivo.

Isso foi demonstrado, por exemplo, no "processo Bolonha", aparentemente inofensivo, mas rico em conseqüências, o qual reformou e modificou de modo profundo toda a universidade européia, como nunca antes em sua histórica recente, nem mesmo nos anos 1960, e atingindo o conjunto das universidades, fato absolutamente inédito. A reforma atual do ensino superior é um ato político amplo e, portanto, mostra que a política, ao contrário de todas as profecias nefastas de politólogos insolentes, é perfeitamente capaz de agir quando não se trata do Estado nacional, no qual os politólogos se fixam, mas da Europa e das organizações globais e associações informais. O "processo Bolonha" mostra bem como a política faz isso. Ela o faz através do poder informal, que na Europa está centralizado. Nesse caso, não existiu nem mesmo uma diretriz européia, mas apenas soft law: um protocolo dos ministros da educação que se reuniram num belo dia em Bolonha, sem qualquer competência conferida pela União Européia. Apesar disso, presenciamos como um protocolo informal sem força de lei é implementado em toda a União Européia e nos países vizinhos. Os ministros simplesmente retornam para casa e narram em seus parlamentos, "isso nós devemos implementar em nossas novas legislações para o ensino superior", nos quais ainda se comete o erro de inscrever — como é o caso do Estado alemão de Schleswig-Holstein — que o legislador estadual tem de fazê-lo com base no "processo Bolonha".

O poder de fato reside naturalmente no Conselho Europeu, que não é eleito. Esta é a primeira diferença em relação aos presidentes americanos: ele não pode ser controlado pelo parlamento, como o presidente americano é controlado, em cada detalhe, pelo congresso. Ele não pode ser intimado pelo tribunal, isto é, o tribunal europeu não dispõe de meios jurídicos efetivos para fazê-lo, pois apenas poucas decisões tomadas pelo tribunal possuem efeito jurídico vinculante imediato. Na verdade, apenas iniciativas de alteração dos contratos têm efeito jurídico imediato; todas as outras atividades do Conselho Europeu, suas recomendações, instruções, muitas vezes propostas muito concretas, seus protocolos, acertos, provocam imediatamente na Europa um turbilhão de atos legislativos. Como poder executivo unificado — e este é um poder que não fica atrás do poder do presidente dos EUA —, o Conselho Europeu tem a competência de definir diretrizes não apenas para um gabinete, mas para quase todos os poderes organizados europeus. Essa competência de orientação, porém, diferentemente da competência do chanceler alemão ou do presidente dos EUA, é uma "omni-competência" perfeita, não controlada. Trata-se, portanto, daquilo que antigamente denominávamos soberania. Os poderes executivos unificados de modo informal na Europa, em suas conexões estreitas com a OCDE, com os encontros do G8, com o Comitê de Supervisão Bancária da Basiléia, e assim por diante, constituem o núcleo organizatório, o centro articulador do poder da emergente classe dominante transnacional.

A comparação com os EUA é esclarecedora. Contudo, como muitos politólogos argumentam, no caso da Europa trata-se de uma democracia transnacional, para a qual é preciso encontrar novos conceitos para a análise. Eles vão ao ponto de não mais falar em governo, mas em governança; não mais de Estado de direito, mas de estruturas de produção de legalidade, conseqüentemente alterando o entendimento do que seja legitimação. Isto é, a legitimação não é mais assegurada através da participação direta dos cidadãos, mas pela transparência dos procedimentos e pela possibilidade aberta aos cidadãos de sempre poder ter conhecimento do que acontece politicamente. Além disso, a legitimação é antes de tudo assegurada pela aceitação ou recusa das decisões e dos resultados produzidos. A minha questão é: o conceito de legitimação que você usa para identificar esse déficit de legitimação não é um conceito que está fortemente vinculado a sua visão da democracia nacional e, portanto, não leva em conta a complexidade funcional e a relativamente baixa integração social no interior da União Européia? Será que seu conceito de legitimação ainda é compatível com a nova realidade?

Sim, você apresentou perfeitamente a posição dos cientistas políticos. Um argumento que ouvimos a todo momento é o de que tudo é tão complexo e que, afinal, a democracia não está apta para isso; sobretudo para aquela democracia clássica, que acopla estreitamente os discursos deliberativos, o conflito público e os procedimentos de decisão igualitários, a constelação pós-nacional é demasiado complexa. Ora, já se dizia isso do Estado nacional 100 ou 200 anos atrás, e os neoconservadores continuam dizendo a mesma coisa. Isso sempre vem à baila quando se levantam obstáculos à democratização, os quais, curiosamente, sempre vêm ao encontro de determinados interesses, desfavorecendo outros. Dito isso, vou ao ponto, conforme entendo, decisivo. Ora, inventa-se um punhado de conceituações novas, como supranacionalismo deliberativo, governar sem governo (para que isso? Muitas vezes temos autoridades de governo europeu e internacional em excesso: veja, por exemplo, o mandado de prisão europeu, ou a lista de terroristas do Conselho de Segurança das Nações Unidas, ou quando o Banco Mundial prescreve, e apóia com sanções poderosas, que os países na África ou América Latina têm de fazer determinadas reformas, independente de isso ser compatível ou não com o Estado democrático soberano) ou, a mais recente, auditive democracy, e se chama isso de democracia. Então, só posso dizer: a necessidade ativa a imaginação. A necessidade de legitimação da União Européia liberta as fantasias das ciências sociais e políticas. Basta olhar racionalmente para o mundo, já dizia Hegel, que ele se mostrará racional a nossos olhos; aqui, eu diria: quando contemplamos o mundo como democrático, ele retribui o olhar, se apresentando como democrático. Quando contemplamos a Europa como democrática, ela também retribui o olhar, se apresentando democrática, e aí encontramos a "democracia" em todos os mecanismos possíveis, nas pesquisas de opinião, nas consultas a especialistas, nas regras da discussão justa, no ponto de vista imparcial e nos juízes mais bem preparados para representar tal posição, ou, por que não, se referindo logo ao governo coletivo nebuloso da Europa, o Conselho Europeu, e assim por diante. Com isso desconsidera-se o essencial: a imprescindível segurança institucional e a garantia de procedimentos igualitários de formação da vontade política. Igualitário não significa somente que tudo tem de ser feito a partir de baixo, mas também que o que é feito de baixo continue a ser determinado através do respectivo efeito vinculante da lei, por meio dos respectivos direitos, que, por outro lado, controlam ainda o todo, portanto, estão organizados a partir da divisão dos poderes. Nos diferentes planos, procedimentos igualitários diferentes têm significado e forma distintos. Esse conceito de democracia, que tem como pressuposto a substituição, sempre renovada a partir de baixo, da dominação informal pelo direito coercitivo, retiro-o de fato das concepções constitucionais afeitas ao Estado nação. Contudo, não precisamos comprar a embalagem junto com o produto, o Estado nacional junto à constituição igualitária. O fundamental é se prender ao cerne dos procedimentos de decisão igualitários que são definidos no conceito da constituição no âmbito do Estado nação. Para tanto, não é imprescindível um Estado, ao menos naquele sentido de Estado nação clássico; as estruturas políticas podem ser outras. A totalidade do poder físico pode e deve ser monopolizada pelos Estados. Na União Européia, porém, com tantos órgãos de poder especializados, já deve ser possível ver uma estrutura semelhante à dos Estados Unidos. Os Estados Unidos, em sua constituição, não são também um Estado, mas uma União, uma união de Estados. Isso faz uma diferença significativa. Não é nada simples traduzir os conceitos jurídicos alemães, como direito de organização estatal, para o inglês americano e aplicá-los à constituição, já que tal não existe nos Estados Unidos. No inglês americano, isso significaria "direito constitucional de pesos e contrapesos" [constitutional law of checks and balances]. A palavra "Estado" nem caberia à Federação, se bem que os EUA tenham atualmente se tornado um Estado nacional — ainda que de modo hesitante.

Resulta disso que o conceito estreito de democracia que temos nos Estados nacionais deve ser abstraído do Estado nacional e, então, com o conceito ampliado de constituição, ser acrescentado às instituições e organizações pós-nacionais. Somente então se chega a um diagnóstico correto da crise de legitimação (latente).

Ao lado das estruturas institucionais jurídico-estatais, uma sociedade civil ativa e uma esfera pública política atuante representam elementos constitutivos das democracias nacionais modernas. Entretanto, a pesquisa sociológica mostra que uma esfera pública européia e uma sociedade civil européia, entendidas no singular, não estão emergindo na Europa. Os pesquisadores constatam antes redes transnacionais segmentadas segundo temas e independentes umas das outras. Uma democracia européia deve e pode abdicar de uma sociedade civil ativa e uma esfera pública européia? Ou existem outras saídas?

Como Klaus Eder e outros sociólogos observaram há muito tempo, em particular nos Estados Unidos, temos efetivamente um declínio relativo das identidades nacionais em favor de uma nova construção de identidades transnacionais, que se justapõem de modo complexo e não constituem imediatamente um sujeito de legitimação, isto é, não representam em si mesmas um sujeito de legitimação. Porém, também as pessoas que se orientam pela sociedade civil, pela democracia deliberativa e pela esfera pública investigam essas estruturas no modelo do Estado nação. Ora, tampouco no modelo do Estado nação a democracia deliberativa e a formação inclusiva da opinião pública funcionam de modo independente de um arcabouço sólido de normas de organização do Estado. É tal estrutura que permite a conversão dessa opinião pública em direito vinculante, possibilitando, ao mesmo tempo, a necessária agilidade nos processos de tomada de decisão. Temos, por assim dizer, a formação da opinião pública aqui e, do outro lado, um sistema que implementa o resultado, desfigurando-o o mínimo possível — claro, todo o processo tem de permanecer transparente inclusive para os tribunais. O essencial não é tanto a divisão de poderes, mas suas interpenetrações. Quando os poderes políticos não estão articulados uns com os outros de modo democrático e transparente, não pode haver uma formação da opinião pública minimamente livre e igual. Quando me censuram por partir de um ideal de democracia extraído do Estado nação, só posso dizer que o ideal da deliberação e da esfera pública é também extraído da mesmíssima forma do Estado nacional — e eu, a propósito, considero a formação deliberativa da vontade algo absolutamente indispensável. Porém, ela tem de estar, repito, acoplada institucionalmente a procedimentos de decisão igualitários. E esta é precisamente a questão: podem-se simplesmente extrair os discursos deliberativos das estruturas de organização do estado nacional e transplantá-los em outras instituições como as da União Européia ou a OMC, deixando-se ao mesmo tempo que os procedimentos de decisão igualitários apodreçam no ventre do Leviatã? Ou será que o preço que se paga por isso não é exatamente a perda daquela eqüidade, na verdade, aquele mínimo de eqüidade que caracteriza a democracia e é indispensável para seu funcionamento? Quando se retira a deliberação das estruturas de decisão nacionais, então, jamais se tem uma democracia, o que se tem é uma expertocracia, para dizê-lo de forma clara. Ou pior, uma democracia de fachada, que é o que temos na União Européia. Isso é perceptível no modo como a Comissão Européia lida com esse problema em uma linguagem que de qualquer forma só é produzida para ela mesma; mostra-se generosa, falando de auditive democracy, quando com isso quer dizer que se tem o direito de ouvir calado, ou então recorre ao vocabulário dissimulado da ciência política, falando de "good governance" ao invés de "good government", e de "legitimação pelos resultados" [Output-Legitimation] no lugar de "legitimação prévia" [Input-Legitimation]. Sem legitimação prévia, porém, não existe democracia. A legitimação dos resultados é importante, pois quando a loja não funciona, pode-se fechá-la. Mas um negócio que funciona de modo azeitado não é democracia — lembre-se que as coisas também andaram sob Pinochet ou com os nazistas nos primeiros anos.

Quanto às outras questões, primeiramente a objeção de que não existe uma esfera pública européia, um patriotismo constitucional europeu, etc., respondo que isso não está errado. Por isso falei de uma crise de legitimação latente. Mas no momento em que a crise irromper, eu diria que então vai existir uma esfera pública européia, pois a esfera pública política se constitui sempre no momento de crise, somente na crise se decide se existem questões públicas que atingem a todos os cidadãos de uma cidade, país ou de uma união de Estados. E então não é mais necessário se preocupar com o patriotismo constitucional, ele surgirá por si só, ou tudo se desmancha, o que pode acontecer a qualquer momento na Europa de hoje — certamente com conseqüências catastróficas. Mas, de uma maneira ou de outra: no momento, e sempre apenas no momento em que a crise acontecer, teremos uma esfera pública, uma vida pública, uma república elementar, como Jefferson a denominou. Junto a isso uma constatação: desde o referendo francês, ficou claro que estamos caminhando para uma crise manifesta de legitimação da União Européia. O referendo de 2005 foi a primeira vez que a Europa e a constituição européia, o que Europa é e deve ser, isto é, a própria Europa, foi a questão central de uma disputa eleitoral, uma disputa efetiva como há tempos não víamos nem mesmo em eleições nacionais. Quando se procura pela democracia deliberativa e não se é completamente ofuscado pelas teorias e por estudos meramente abstratos, pode-se encontrá-la na campanha eleitoral francesa. Eu mesmo estive na França dois meses antes do referendo, e lá se podia encontrar a democracia deliberativa, não nas comissões e grupos fechados de especialistas, onde a democracia deliberativa certamente é muito importante — fato que não subestimo —, mas nas ruas, no público de massa diante das televisões. Ali se dava uma luta eleitoral vigorosa, com as costumeiras falcatruas e truques e manipulações, e com quase a totalidade da imprensa respaldando o presidente, através de suas juras ao novo contrato constitucional europeu. Mas tudo isso caiu por terra diante da internet, diante das ruas e cafés, que hoje são cybercafés conectados globalmente, assim como Gerhard Schröder quase virou o pleito eleitoral contra Angela Merkel nas praças, e contra toda a máfia da imprensa. Com isso veio à tona um discurso normalmente silenciado pela correlação de poder. Isso fez com que nos programas de bate-papo na televisão fossem citadas, de repente, longas passagens da constituição e discutidos temas jurídicos de fato complexos, obrigando o governo francês a enviar um exemplar da constituição européia a cada domicílio francês. Quando se procura um exemplo emblemático para a democracia deliberativa, uma democracia que somente possui força legitimadora porque se argumenta intensiva e profundamente a partir de várias posições diferentes, e sob a consideração do maior número possível de vozes, mesmo aquelas normalmente excluídas, é possível encontrá-lo na luta em torno do referendo, certamente efetiva como uma esfera pública européia — também pelo fato de que uma parte grande dos eleitores que votaram "não" não eram contra a constituição européia, mas somente contra aquela constituição européia, e tinham muito boas razões para tal.

Em todo caso, pode-se dizer que a discussão em torno da constituição é mais convincente como marco característico da emergência de uma esfera pública européia do que as demonstrações de 2003 contra a guerra do Iraque, consideradas esse marco por Derrida e Habermas. Afinal, a discussão da constituição é uma questão que se refere à Europa e, portanto, expressa enfaticamente a esfera pública européia.

Na guerra do Iraque isso se esboçou, mas no fundo os protestos contra a guerra do Iraque foram desde o início globais e não especificamente europeus, também porque o desgastado pessoal que lidera a Europa não logrou se colocar na dianteira do movimento e torná-lo uma questão da Europa como um todo. Derrida e Habermas viram algo correto, mas o superestimaram no seu caráter europeu.

Outro aspecto diz respeito ao sujeito da legitimação. Na história da democracia nacional — no interior e fora da Europa — parece que a construção política de elementos culturais comuns foi um pressuposto para a solidariedade e engajamento dos cidadãos. Pode-se construir politicamente um cerne comum a partir das diferenças culturais existentes no interior da Europa hoje? Em outros termos, a democracia européia precisa de um povo?

Bom, é preciso diferenciar o sentido técnico, isto é, o sentido do cientista político que quase sempre (como Carl Schmitt) está orientado por uma definição muito forte (em minha opinião, forte em demasia) de homogeneidade. Nesta definição, a unidade do povo na Europa é uma ilusão. Assim argumenta Fritz Scharpf no que se pode talvez considerar o melhor livro escrito sobre a Europa, o pequeno volume sobre governar a Europa com o subtítulo "efetivo ou democrático"4 [4 ] F. Scharpf, Regieren in Europa: Effektiv und Demokratisch? Frankfurt a.M. / Nova York: Campus, 1999. [nota do entrevistador] . Contudo, o conceito técnico "povo do Estado" ou o conceito jurídico — à exceção da concepção enviesada de Carl Schmitt de uma máquina aclamatória homogênea que apenas transmite informações aos presentes — é muito mais fraco. O povo europeu já existe como sujeito da legitimação, mesmo que nenhum cidadão veja as coisas assim. A dimensão sociológica é importante, mas não deve ser sobrecarregada com representações de homogeneidade. Um "povo do Estado" democrático é sempre tão homogêneo ou heterogêneo conforme ele próprio se define. A autodeterminação é o mote essencial, e seus resultados são sempre abertos, do contrário não seria uma autodeterminação. Nesse sentido, às vezes, a democracia funciona muito bem com um mínimo de homogeneidade. Comparem-se os EUA de 50 anos atrás aos de hoje. Pode-se dizer, e o mesmo vale mais enfaticamente para a Alemanha: há 50 anos esses países eram extremamente homogêneos, e hoje são heterogêneos ao extremo. Pode-se também duvidar que os EUA de 1820, quando foram democratizados por Jackson, fossem muito homogêneos e não extremamente heterogêneos. Até agora, a democracia conseguiu se arranjar muito bem com graus diferenciados de homogeneidade. Até mesmo os produziu, como se pode ver no desenvolvimento impressionante desde os anos 60.5 [5 ] Para a sociologia já está claro, pelo menos desde Spencer e Durkheim, que a heterogeneidade social produz estruturas muito mais estáveis do que a homogeneidade. O público homogêneo, assim que a reunião se dispersa, corre desorientado para casa. Cf. Principles of Sociology (London, 1882, §154, §454), de Herbert Spencer: "É verdade tanto para um como para qualquer agregado social que o estado de homogeneidade é instável e mais: onde já existe alguma heterogeneidade, a tendência é haver cada vez mais heterogeneidade". [nota do entrevistado] Os elementos comuns necessários nascem, portanto, do fato de que os cidadãos chegam à convicção (justificada ou injustificada) de que as questões comuns importantes devem estar sobre a mesa e se pode discuti-las em conjunto. Os elementos comuns aparecem sempre, quando não são patológicos, como o nacionalismo extremo, na disputa e no conflito, e sucumbem quando não são mais úteis e quando desaparece o problema que os motivou. Nesse momento, os cidadãos voltam a se dedicar a seus interesses particulares, deixando para os comunitaristas a tarefa de se indignar e denunciar a "corrupção" dos cidadãos. Os elementos comuns nos diferentes graus podem produzir qualquer coisa, mesmo o multiculturalismo e os direitos humanos. Às vezes, como na disputa em torno do Estado social, a unidade é um caminho completamente equivocado e o que falta é a cisão ou, como se dizia antigamente, a luta de classe. Em primeiro lugar, tem de se ver que também aí existe algo a ser defendido, que não se trata apenas do incentive model de estímulo e ativação da força de iniciativa individual, por mais que isso seja importante, mas primeiramente daqueles que estão fora de todo sistema de estímulos e que por meio de novos sistemas de estímulo podem ser ainda mais excluídos. Essa deveria ser uma questão central da política européia, mas é exatamente isso o que a classe dominante européia procura evitar com todo seu poder e influência, através de seus altos executivos, astros da mídia e global players. A União Européia, como está configurada agora, exclui os banlieus e exclui as subclasses, que crescem no nível abaixo dos blue colour workers e, no fundo, exclui até mesmo esses últimos. Não foi por acaso que votaram no "não", depois que uma arrebatadora campanha eleitoral deliberativa os atraiu para as urnas. Os blue colour workers com idade de 18 até 24 anos votaram não, e com boa razão. Para eles, a reforma da educação européia não serve para nada — se é que serve mesmo para alguém! E eles não tinham nada a esperar da nova constituição, que praticamente não lhes concedia nenhum direito a mais do que os acordos anteriores. A Europa, tal como as coisas estão agora, pertence àquilo que o sociólogo norte-americano Craig Calhoun6 [6 ] Craig Calhoun, "The Class Consciousness of Frequent Travelers: Toward a Critique of Actually Existing Cosmopolitanism." The South Atlantic Quarterly, Vol. 101, 4, 2002, pp. 869-897. [nota do entrevistador] chamou de cosmopolitismo de poucos. Porém, na França, pelo menos de forma negativa, se fez sentir um cosmopolitismo de muitos, infelizmente contra a constituição, pois essa seria de fato muito melhor do que aquilo que temos agora. Não obstante, ela não era boa o suficiente para motivar realmente a todos os grupos da população a votar "sim" com base em razões convincentes, já que ela não alterava nada de substantivo na estrutura de perdas e ganhos na Europa. O cosmopolitismo de muitos se manifesta mais freqüentemente de modo negativo. Pode-se também observá-lo em outros fenômenos, por exemplo, nas eleições para o Parlamento Europeu. A população de votantes cada vez mais diminuta, encolhida e apática, que há 25 anos se arrasta para as urnas nas eleições européias, votou, até 1995, como as pesquisas mostram, sempre orientada por questões nacionais, em regra dando um puxão de orelha no governo nacional e enviando-lhe, por esse meio, seu recado de advertência. Os estrategistas eleitorais do governo souberam aproveitar isso bem. A Europa se proporcionou um pouco de legitimação e fôlego, e pôde além disso ordenar seus próprios frontes seguindo os pontos de vista internos que estruturam a divisão do poder entre uns poucos. Isso se modificou. Desde 1995, os partidos anti-Europa, um potencial bastante à direita, estão cada vez mais fortes e já são realmente a primeira coalizão européia de partidos eleita, legitimada democraticamente como oposição européia. Pela primeira vez temos uma oposição na Europa. Então eu me pergunto: se é possível politizar a Europa a partir da direita, por que isso não poderia ser possível a partir da esquerda, que é muito mais forte na Europa (graças a Deus!) e tem um potencial maior? Por que não seria possível estabelecer no Parlamento Europeu, a partir da esquerda, um agrupamento de partidos europeus contrários ao que a Europa é atualmente e a favor de uma configuração européia justa que vá além de Daniel Cohn-Bendit7 [7 ] Conhecido líder da revolta estudantil de maio de 1968, em Paris, é deputado no Parlamento Europeu. Já representou o Partido Verde francês e, no atual mandato, foi eleito como membro dos Verdes alemães, é co-líder da fração Verdes/Aliança Livre Européia naquele parlamento. [nota do entrevistador] e não apenas defenda diretrizes progressistas e uma linguagem política correta, o que certamente não é ruim, mas passa ao largo do cerne do problema? Por que não seria possível fazer uma oposição bem fundamentada à constituição tal qual ela é hoje? Poder-se-ia ao menos vislumbrar algo assim. Contudo, o que podemos observar nos novos comportamentos eleitorais, mesmo que isso se manifeste de modo tão negativo e perigoso, é o surgimento, aqui também evidente, de uma esfera pública política européia. Curiosamente, nesse caso, isso se dá através dos partidos anti-Europa. Estes estão no parlamento e da próxima vez, se as coisas saírem mal, eles chegarão a 50%. Então a crise se expressará definitivamente. Se esses partidos anti-Europa se tornam de repente um perigo para as maiorias, então os outros partidos têm de reagir, e isso pode ser uma oportunidade para uma reforma realmente democrática na Europa. Eu temo que sem crises desse tipo, pouco desejáveis, nada vai se alterar e a democracia vai desaparecendo pouco a pouco também nos Estados nacionais, como podemos observar atualmente nos EUA. Mas também ali, felizmente, existem movimentos contrários à metamorfose da democracia presidencial em um novo bonapartismo a la Dick Cheney.

Segundo sua opinião, as diferenças culturais na Europa seriam questões brandas. Mas quando se trata da religião, não se pode falar mais de uma questão branda, trata-se de tema absolutamente candente. A posição que gostaria de apresentar aqui seria a seguinte: as referências religiosas não mais se deixam classificar ou acomodar em um subsistema. Através do crescimento do Islamismo na Europa e das preocupantes reações islamofóbicas correspondentes, observa-se que a religião infiltrou-se na política e no sistema social. Você vê aí alguma ameaça para o futuro da integração européia?

Vejo mais uma ameaça global do que européia. Aqui existe algo relacionado ao que Habermas viu com muita precisão: a religião até hoje representou, goste-se ou não, uma fonte evidente e indispensável de solidariedade, primeiramente uma solidariedade pré-política e, depois, também cívica — e pelo menos nas religiões monoteístas também uma solidariedade igualitária, uma solidariedade que até agora pôde ser usada como fonte de legitimação por meio do Estado constitucional. Por um lado, o Estado constitucional tomou a religião sob o látego de seu poder, pois o Estado constitucional é muito poderoso, como o sabemos já antes de Foucault — ele não é mais fraco do que a ditadura, ao contrário muito mais forte, senão a Segunda Guerra Mundial teria terminado de outro modo. O Estado constitucional manteve sob seu controle policial os traços terroristas e fundamentalistas das religiões, que hoje são, em toda parte, modernas, individualistas e desenraizadas dos contextos concretos, mas ao mesmo tempo — e isto foi o genial — assegurou a liberdade de religião juntamente com a possibilidade de libertar-se da religião, de tal modo que o Estado constitucional pôde aproveitar ambas as fontes de solidariedade das quais brotam as solidariedades das sociedades modernas: por um lado, a fonte iluminista, a cultura dos direitos humanos, a democracia política secularizada etc.; por outro lado, as fontes religiosas da solidariedade. No entanto, isso claramente não funciona mais, levando a algo como uma crise global de legitimação. Os Estados nacionais não estão em condição de controlar a evolução impressionante e a modernização radical dos sistemas de crenças religiosas, que não são outra coisa — como Olivier Roy8 [8 ] Olivier Roy, L'islam mondialisé. Paris: Seuil, 2002. [nota do entrevistador] mostrou com propriedade — senão o fundamentalismo. São, sobretudo, duas coisas que o Estado nacional não pode mais controlar: a religião globalizada e o mercado globalizado. Wolfgang Streeck expressou isso na brilhante fórmula: nos anos 70 tínhamos ainda "mercados embebidos de Estado" [State embedded markets] e que se transformaram hoje em "Estados embebidos de mercado" [market embedded States]. Exatamente a mesma coisa acontece com a religião, e certamente com todas as grandes religiões, algo que é sempre obscurecido pela tese absurda do atraso de modernização e do tradicionalismo islâmico e arábico. Nos anos 70, mesmo no Egito, na Turquia, no Irã, onde ainda não havia acontecido a revolução, tínhamos, em toda parte, "religião embebida de Estado", com repressão mais autoritária, ou no ocidente, com liberdade e repressão latente, o que funciona muito melhor. Atualmente, temos globalmente "Estados embebidos de religião". Mesmo as seitas protestantes, que agora inundam a América Latina e que vêm dos EUA, já há muito não são um braço estendido da CIA ou do imperialismo americano. Na verdade, escapam do controle dos EUA, ainda que existam sempre superposições. Temos de analisar isso sempre de forma sóbria e advertir seriamente contra todas as teorias do imperialismo paranóicas e ingênuas. As religiões em rede, como as seitas protestantes ou as irmandades islâmicas organizadas heterarquicamente, conseguiram fincar raízes em todo lugar. O que vivenciamos nos últimos 30 anos é uma desconstitucionalização do capitalismo e da religião. A questão agora é a seguinte: como tudo isso pode ser reconstitucionalizado? Os regimes constitucionais que temos na Europa e no mundo, os regimes constitucionais pós-nacionais da União Européia, passando pela OMC até o conselho de segurança da ONU, não estão em condição de integrar normativamente os mercados e controlá-los e dominá-los de tal maneira que sejam ao mesmo tempo livres e produtivos, e permitam conduzir, de forma socialmente equilibrada, as redistribuições de riqueza gigantescas, das quais precisamos. Da mesma maneira, os regimes constitucionais pós-nacionais também não estão em condição de dominar as religiões de tal modo que sejam simultaneamente produtivas e não percam seu sentido próprio, que até o ampliem, mantendo ao mesmo tempo sob controle seus potenciais terroristas. A grande realização do Estado constitucional ocidental foi manter sob controle as tendências destrutivas do capitalismo e da religião. Até agora, não existe um equivalente a isso no âmbito pós-nacional, e o Estado nacional sozinho não consegue mais levar essa tarefa adiante, nem mesmo com boa vontade e com as maiores coalizões.

Na Europa também não...

Na Europa também não. Isso não vai acontecer enquanto a Europa não se der uma constituição que copie em si mesma o potencial democrático das constituições dos Estados membros, tal como a constituição dos Estados Unidos, em seu devido tempo, incorporou os potenciais democráticos e do Estado de direito das constituições estaduais da então Confederação americana existente. Todos os regimes pós-nacionais apresentam exigências diversas no que diz respeito à legitimação democrática. Na Europa, elas têm um caráter mais estatal do que no Conselho de Segurança da ONU, onde provavelmente mais formalismo jurídico e uma revisão judicial mais eficiente já constituiriam condição suficiente para a democracia. Cada pequena formalização é um ganho para a democracia, pois o problema desse entrelaçamento internacional consiste na formação de uma dominação informal, que sempre se aninha nas lacunas e zonas flexíveis de um sistema jurídico normativamente tão efetivo, como é o direito internacional atual — em comparação com o dos anos 1960. Do "cosmopolitismo de poucos" surge, pela primeira vez na história, uma nova dominação de classe realmente transnacional com grandes oportunidades de ganhos para os poucos mais bem sucedidos e grandes espaços de ação para o executivo político, e assim por diante. Por isso os executivos informalmente reunidos no G8, Conselho Europeu, no Comitê de Supervisão Bancária da Basiléia entram, admiravelmente, em acordo de forma tão rápida e freqüente. Eles sabem que a unidade fortalece. Eles têm um interesse particular comum na manutenção e ampliação de seu próprio poder como classe política dominante. Nos contratos europeus consta que a União Européia almeja a "unificação cada vez mais estreita dos povos". Os poderes executivos, esses já se associaram de forma estreita. Os povos ficaram para trás. Tudo depende de também se lograr promover, a partir das bases, formações correspondentes. Eu não sei como. Mas o que é importante é que novamente se fortaleça o conceito de crise, também a antiga idéia habermasiana de crise de legitimação, a qual foi abandonada prematuramente por seu criador. Eu acredito que as comunidades políticas podem se formar apenas por meio de crises, que sempre abrigam enorme risco. Os Estados Unidos se tornaram uma nação por meio da guerra civil. Talvez as coisas funcionem hoje na Europa sem uma guerra civil — uma guerra civil seria obviamente uma catástrofe de grandes proporções — mas certamente nada acontecerá sem conflitos substanciais. Nos Estados Unidos também ocorreram conflitos de classe vultosos antes de existir o governo nacional e o Estado social.

Ou seja, não existindo uma autoridade superior, esses conflitos podem levar a um caos generalizado?

Sim, mas vivenciamos o surgimento de uma crise européia. Isso está claro. Os cidadãos não suportam esse teatro por mais tempo. Se a Europa não produzir muito output, se ela não for mais efetiva do que é atualmente, então os políticos, que hoje têm a Europa nas mãos, não serão mais eleitos. Eles ainda são dependentes das eleições nacionais, mas seu poder depende do fato de eles terem se desvinculado o máximo possível das eleições nacionais. Eles estão diante de um dilema: não podem manter simultaneamente poder e legitimação nacional. Aqui a lacuna será cada vez maior. Cabe esperar que partidos de esquerda também percebam isso e pelo menos rompam em alguma medida com o jogo tácito de que tudo vai seguir seu caminho bem ordenado, basta ficarmos quietinhos e continuarmos agindo como reformistas bem comportados.

Recebido para publicação em 06 de novembro de 2006.

Sérgio Costa é pesquisador do Cebrap e professor visitante da Universidade de Flensburg. Publicou, entre outros: Dois Atlânticos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

Denilson Luis Werle é doutor em filosofia pela USP e pesquisador do núcleo "Direito e Democracia" do Cebrap.

  • [2] Hauke Brunkhorst, "The Legitimation Crisis of the European Union". Constellations, Vol.13, 2, 2006, pp. 165-180. [nota do entrevistador].
  • [4] F. Scharpf, Regieren in Europa: Effektiv und Demokratisch? Frankfurt a.M. / Nova York: Campus, 1999. [nota do entrevistador]
  • [6] Craig Calhoun, "The Class Consciousness of Frequent Travelers: Toward a Critique of Actually Existing Cosmopolitanism." The South Atlantic Quarterly, Vol. 101, 4, 2002, pp. 869-897. [nota do entrevistador]
  • [8] Olivier Roy, L'islam mondialisé. Paris: Seuil, 2002. [nota do entrevistador]
  • [1
    ] A entrevista foi feita por Sérgio Costa. A tradução é de Denilson Luis Werle.
  • [2
    ] Hauke Brunkhorst, "The Legitimation Crisis of the European Union".
    Constellations, Vol.13, 2, 2006, pp. 165-180. [nota do entrevistador].
  • [3
    ] O Conselho da União Européia, antes chamado de Conselho de Ministros e referido normalmente apenas como Conselho, é constituído pelos respectivos ministros dos países membros, conforme as diferentes pastas. O Conselho Europeu é constituído pelos chefes de Estado e de governo dos países membros e se reúne quatro vezes por ano, contando ainda com a intervenção do Presidente do Parlamento Europeu. (cf.
    http://europa.eu/abc/12lessons/ index4_pt.htm, consultado em 28 de outubro de 2006) [nota do entrevistador]
  • [4
    ] F. Scharpf,
    Regieren in Europa:
    Effektiv und Demokratisch? Frankfurt a.M. / Nova York: Campus, 1999. [nota do entrevistador]
  • [5
    ] Para a sociologia já está claro, pelo menos desde Spencer e Durkheim, que a heterogeneidade social produz estruturas muito mais estáveis do que a homogeneidade. O público homogêneo, assim que a reunião se dispersa, corre desorientado para casa. Cf.
    Principles of Sociology (London, 1882, §154, §454), de Herbert Spencer: "É verdade tanto para um como para qualquer agregado social que o estado de homogeneidade é instável e mais: onde já existe alguma heterogeneidade, a tendência é haver cada vez mais heterogeneidade". [nota do entrevistado]
  • [6
    ] Craig Calhoun, "The Class Consciousness of Frequent Travelers: Toward a Critique of Actually Existing Cosmopolitanism."
    The South Atlantic Quarterly, Vol. 101, 4, 2002, pp. 869-897. [nota do entrevistador]
  • [7
    ] Conhecido líder da revolta estudantil de maio de 1968, em Paris, é deputado no Parlamento Europeu. Já representou o Partido Verde francês e, no atual mandato, foi eleito como membro dos Verdes alemães, é co-líder da fração Verdes/Aliança Livre Européia naquele parlamento. [nota do entrevistador]
  • [8
    ] Olivier Roy,
    L'islam mondialisé. Paris: Seuil, 2002. [nota do entrevistador]
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Fev 2007
    • Data do Fascículo
      Nov 2006

    Histórico

    • Recebido
      06 Nov 2006
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