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A ousadia da formação: discurso de agradecimento

HOMENAGEM: PRÊMIO JOHN W. KLUGE 2012

A ousadia da formação* [* ] Transcrição editada de fala improvisada. : discurso de agradecimento

Fernando Henrique Cardoso

Boa noite a todos.

Aos amigos que me saudaram de uma maneira tão generosa: à Paula, à Elza e ao Fernando, que fez um esforço enorme de encontrar motivos para me elogiar. E, sobretudo, a todos os presentes, alguns companheiros de longa data.

É sempre uma grande emoção rever pessoas e recordar fatos. Eu não lembrava mais que houvesse uma ata de fundação do Cebrap, mas lembro, certamente, daqueles momentos. Nunca deixei de reconhecer o significado da solidariedade de pessoas que não haviam sido afastadas da universidade e que se arriscaram ao apoiar a formação do Cebrap, como, notadamente, Candido Procópio Ferreira de Camargo, que continuou professor, e, não obstante, emprestou seu nome para a presidência do Cebrap. Receávamos, àquela altura, colocar em evidência qualquer pessoa que tivesse sido afastada e provocar uma reação mais violenta das autoridades.

Outros professores que não eram tão próximos de nós também ajudaram. As primeiras reuniões sobre o Cebrap aconteceram na Fundação Getúlio Vargas, e Antonio Angarita e Roberto Gusmão foram muito solidários ao emprestar os seus nomes. Recentemente, na cerimônia de entrega do Prêmio Kluge, reencontrei Peter Bell. Peter era um jovem que trabalhava na Fundação Ford, e nessa época nós, da esquerda, tínhamos horror às fundações, embora eu, que havia trabalhado na Cepal no exílio e convivido com esse mundo mais modernizado, já não tivesse tanto. Havia um entrosamento muito grande entre certas fundações que preservavam sua independência em relação a seus mantenedores e que tinham um papel muito grande na formação e na transformação de setores acadêmicos pelo mundo afora. No Brasil, aliás, a Fundação Rockfeller foi fundamental na criação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Mesmo assim, no entanto, a aproximação com uma fundação, sobretudo americana, era difícil.

Peter, que teria depois um papel enorme no Chile, ao resgatar cientistas sociais e salvar da morte certa muitos intelectuais chilenos, agiu incisivamente para convencer seus patrocinadores de que valia a pena dar algum recurso para uma organização como o Cebrap, que nascia numa área cinzenta: não se sabia se seria aceito com legitimidade, ou se seria considerado uma organização subversiva.

Para criar uma organização como o Cebrap era preciso buscar respaldo, o que não era fácil. Nós o encontramos em pessoas que estavam "do outro lado", ou seja, que haviam apoiado o movimento de 1964, mas que ao mesmo tempo haviam preservado parte da sua formação liberal. Em Severo Fagundes Gomes, que tinha prestígio entre aquele grupo e que sempre respaldou as iniciativas do Cebrap, encontramos um forte apoio, assim como em Paulo Egydio Martins, que não tinha participação política ativa na época mas se tornaria governador de São Paulo em 1975.

Essas pessoas sempre dialogaram conosco. Quando meu pai me contava histórias do tempo que esteve preso na Fortaleza da Laje (onde ficou presa uma parte dos tenentes revolucionários do movimento de 1922), sempre insistia na importância de conversar com os que não estão na mesma situação que nós.

Meu pai era tenente na época, e na mesma prisão estava um irmão dele. (A minha família toda estava presa, aliás, incluindo meu avô, que era general, o único que apoiou o movimento de 1922. Ele e o Hermes da Fonseca ficaram presos em um navio por algum tempo.) A maneira que achou para se comunicar com o irmão foi cativar o soldado que o prendia. Com o tempo, estabeleceu-se uma relação, e ele e o irmão passaram a se comunicar frequentemente. Aprendi desde cedo que é indispensável na vida não afastar aqueles que são diferentes de nós. Isso talvez tenha me ajudado, inclusive na formação do Cebrap: ampliar o leque com aqueles que, embora não fossem como nós, podiam aceitar que houvesse algum grau de legitimidade no que estávamos fazendo.

Os primeiros anos do Cebrap, no entanto, não foram nada fáceis. A suspeita era enorme e não tínhamos recursos nem tampouco como obtê-los. Nessa altura, outra pessoa que teria um papel importante na política brasileira, Dilson Funaro, nos ajudou também. Dilson era irmão da Dalva Gasparian, e o Fernando Gasparian muito amigo meu, assim como a Dalva muito amiga da Ruth. Por meio do Dilson, que virou secretário da Fazenda em São Paulo, e com a ajuda de outras pessoas que estavam ligadas ao seu gabinete, conseguimos um contrato de assessoria com a Secretaria do Planejamento de São Paulo, que passava recursos diretamente para o Cebrap.

Sempre houve, assim, uma articulação que ia além do nosso núcleo. Assim como alguns outros componentes desse núcleo, eu não tinha uma visão fechada sobre quem é bom e quem é mau. O bem e o mal variam no tempo, e o objetivo na vida, na vida prática, na vida política, não é apenas distinguir entre quem é bom e quem é mau, mas tentar transformar o mau em bom (se é que somos nós os bons). Mas, na expectativa de que estejamos com a razão, devemos tentar convencer e atrair os outros, e não afastá-los, nem condená-los, nem injuriá-los porque não pensam como nós. Esse sentimento, que é a essência mesma do jogo democrático, sempre esteve presente em mim e em muitos, talvez em todos nós. Assim foi criado o Cebrap.

No entanto, essa distância que supostamente sempre existiu entre a ciência e a política, entre a vida intelectual e a vida prática, é mais teórica do que real. Muitos grandes pensadores das ciências sociais tiveram participação ativa na política. Weber era deputado, Marx era líder de uma facção importante da vida política prática, e um dos grandes pensadores da democracia, Tocqueville, foi deputado várias vezes. Os autores que pensaram o Brasil com mais vigor participaram igualmente da vida política. José Bonifácio, deputado das cortes de Coimbra e depois regente do Brasil (exercendo grande influência sobre a formação de dom Pedro ii), é para mim um ser excepcional: iluminista, tinha um domínio extraordinário da literatura da época. Até hoje seu livro Um projeto para o Brasil é contemporâneo. Bonifácio queria, já no fim do século xviii e começo do século XIX, acabar com a escravidão, fazer a reforma agrária e empreender um esforço enorme para acabar com o analfabetismo no Brasil.

Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre e meu mestre Florestan Fernandes foram deputados. Eu acho curioso que nós insistamos nessa ideia de que existe uma barreira (permeável, como Fernando Limongi mostrou) entre o que é pensar e o que é agir, embora nem todo cientista esteja condenado a se transformar em político, e muito menos, para a sorte da ciência, todos os políticos a se transformarem em cientistas. Mas existe, mesmo assim, uma formação rígida que separa os que pensam dos que agem.

Há, certamente, tensões entre ação e pensamento. Isaiah Berlin abordou em seus ensaios a questão da escolha entre valores incompatíveis de uma mesma cultura: entre a injunção "não matarás" e a decisão de ir à guerra, por exemplo. Situações agônicas como essa são recorrentes. Também o político se encontra recorrentemente diante de dilemas como esse, porque está submetido a tensões sempre em transformação e precisa fazer escolhas. E escolhas, em última análise, se baseiam muito mais em juízos, ou seja, em avaliações, do que em certezas. Isso é próprio da prática política. Mas quantas vezes também o cientista, ao invés de ter certeza, intui e segue sua capacidade de discernir o que é certo do que é errado, confirmando apenas depois aquilo que ele intuiu como se fosse uma verdade cientificamente demonstrada?

Nunca paramos de aprender, e no decorrer da vida as vocações se fazem e se refazem; o importante é ter alguma formação. Nesse sentido o Cebrap e o trabalho do Cebrap (e aqui destaco a paixão do Giannotti pela formação) são muito significativos. Tivemos, os mais velhos aqui presentes (e certamente os demais também), a sorte de receber uma formação razoável. Quando entrei na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que funcionava ainda na praça da República onde hoje é a Secretaria da Educação, eu não sabia muito bem o que era sociologia. Eu queria fazer , transformar o mundo, ou, mais modestamente - eu nunca fui muito modesto -, transformar o Brasil. Mas ainda não tínhamos muita ideia da diferença entre a prática social e o pensamento sobre essa prática. No começo, para mim pelo menos, foi um choque ver os professores de avental branco. Éramos submetidos a uma intoxicação indigenista: havia uma paixão por pensar a partir das sociedades mais simples. O Florestan tinha escrito A organização social dos Tupinambá, que é um primor de livro, e estava começando a escrever A função social da guerra. Era, por assim dizer, índio para todo lado. Líamos muito, mas com denodo principalmente a literatura antropológica, sobretudo a inglesa. Tínhamos que estudar os nuer. Eu nem sabia o que era um nuer, mas nós tínhamos que estudá-los. No entanto, a relação entre isso e a luta de classes, que nos apaixonava, era muito longínqua. Quem nos forneceu uma alguma pista inicial foi o Mannheim de Ideologia e utopia . Weber, de certa maneira, também nos ajudou a recolocar de maneira mais precisa as questões que nos intrigavam.

O lado positivo é que essa formação nos obrigava a ler e a ler . Quando cheguei ao segundo ano da faculdade havia um professor chamado Martial Guéroult, do Collège de France. Guéroult ministrava um curso sobre Kant que havia começado no ano anterior, e cuja bibliografia era em alemão. Eles nos lia suas anotações, e não entendíamos nada. Não entendi Kant naquela época, e acho que hoje ainda não entendo. Lívio Teixeira nos ensinou a ler Descartes. Nesse caso acho que aprendi alguma coisa, e não foi difícil passar da filosofia de Descartes para a sociologia de Durkheim.

No entanto, sem perceber, estávamos aprendendo um modo de pensar, que é o mais importante. Pensar, afinal, implica perguntar. As respostas são sempre provisórias, e incluem a procura por métodos adequados. Com o amadurecimento esquecemos os métodos um pouco, embora no começo nos apaixonemos por eles. No entanto, devemos sempre responder às perguntas que nos afligem com certo rigor, o que pressupõe, de saída, saber perguntar. Foi o que aprendemos na faculdade: saber perguntar e, por consequência, duvidar (uma lição que, aliás, já acharamos em Descartes).

Alguém disse que eu tentei destruir dogmas, o que muito me agrada; confesso que é verdade. Acho que todo pensamento parte dessa intenção. Questionar, não ter certeza, perguntar, duvidar metodicamente das coisas, inclusive daquilo que a gente mesmo produz, e por uma razão muito simples: as ciências humanas são históricas, elas mudam. Florestan dizia isso As ciências humanas e seus conceitos são saturados de história. Valem em um dado momento, e no outro têm que ser refeitos, porque a própria realidade se transforma. É essa transformação permanente que faz a ciência avançar. São também ciências morais: têm um conteúdo valorativo. Estão submersas no movimento de vontades, que não é simplesmente o movimento natural, não é algo dado e definitivo. As condições históricas e sociais são estruturas reais, mas podem ser transformadas. Isso no fundo é a essência das questões que nós discutimos a vida inteira a respeito das transformações das estruturas sociais, políticas e econômicas.

Quando comecei a estudar a realidade brasileira (inspirado principalmente pelo Florestan e pelo Roger Bastide), foi com essa bagagem que procurei entender, de uma maneira criativa, o que era a escravidão contemporânea, ou seja, a escravidão capitalista moderna do negro no Brasil. Fomos obrigados a isso, por assim dizer, por força de nossa formação na dialética marxista: como é que abordaríamos a escravidão? Não podíamos simplesmente transferir os conceitos capitalistas "puros" para um capitalismo escravista, ainda que essa escravidão fosse capitalista, já que a produção brasileira era capitalista, mercantil, toda ela voltada para exportação, e o escravo sua mão de obra. Ora, como usar a noção de mais-valia relativa num sistema produtivo baseado na escravidão? Um escravo é capital fixo, ele é comprado, é propriedade perpétua, é uma máquina, um instrumentum vocale, como se dizia. Como usar os conceitos tradicionais? Era preciso proceder a uma transformação conceitual para entender as características específicas desse sistema. Não era possível simplesmente transferir os conceitos clássicos. Talvez fosse a mesma ideia, mas transferida para outros contextos, para a questão do desenvolvimento e do subdesenvolvimento.

Quem mais chamou nossa atenção para isso na época foi Alain Touraine, que ao ler os trabalhos que eu, Juarez Brandão, Octavio Ianni e Leôncio Martins tínhamos feito na ocasião para publicar na revista francesa Temps Modernes editada por Sartre, me disse jeitosamente: "O que vocês estão fazendo é ótimo, mas vocês estão pensando que o Brasil vai repetir a história da Europa. Vocês estão estudando as classes aqui, sem entender que aqui o Estado pesa muito. Não estão entendendo que aqui a ideia de formação da nação é importante, enquanto lá isso já está dado. Vocês estão só vendo um aspecto das questões". Ou seja, tínhamos que repensar nossa abordagem, perseguir esse movimento entre o particular e o geral para ter um todo concreto que não se explica no isolamento, tampouco simplesmente como um subproduto de uma lei geral universal.

A teoria do desenvolvimento dependente mostra isso. Na época da Cepal fazíamos até esquemas de reprodução do capital, para mostrar como eram diferentes segundo o tipo de dependência. Havia esquemas abstratos, quase de lógica pura (como o Giannotti certamente gostaria), para mostrar que havia diferentes segundo o tipo de dependência. Havia esquemas abstratos, quase de lógica pura (como o Giannotti certamente gostaria), para mostrar que havia diferentes encadeamentos em cada situação de dependência. Éramos obrigados, num certo sentido, a ver o novo, ver o que estava acontecendo naquela realidade específica e produzir conceitos que fossem capazes de explicar os momentos específicos, novos, do desenvolvimento histórico. A esse método, creio, tentei ser fiel a vida toda, mesmo hoje, dentro das limitadas possibilidades que tenho para produzir qualquer análise teórica.

Tenho muito orgulho em ter contribuído, como muitos outros, para a criação do Cebrap. A Elza e o Giannotti foram esteios formidáveis da instituição. Não quero deixar de me referir à Ruth, que me substituiu quando eu fui embora para Brasília. Já me referi a tantos outros e serei injusto com muitos outros que lá trabalhavam e tantos outros mais. Realmente tenho muito orgulho de ter participado desse processo e acho que o que a Paula disse é verdade: a instituição se manteve, avançou, se diversificou. Os tempos são outros.

Para terminar, gostaria de fazer algumas reflexões típicas da velhice, apesar de o envelhecimento ser coisa de que eu não gosto. Lembro muito bem como debatíamos vigorosamente, com enorme entusiasmo, como brigávamos até a morte nos debates do chamado "mesão" (provavelmente era uma mesa pequena, mas naquele tempo nos parecia enorme). Economistas, cientistas políticos, sociólogos: quem pensava contra o governo militar, contra o sistema autoritário, ia lá. Não havia tanta diferenciação disciplinar. Conceição Tavares, Celso Furtado, Luciano Martins, Luciano Coutinho, José Serra: tínhamos a chama íntima, queríamos desvendar as coisas, e tínhamos certa pureza de alma, o que é muito importante. Acreditávamos que é possível melhorar; acho que acredito até hoje.

E isso me faz lembrar o tempo em que fui (junto com o Serra) membro do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, aonde chegamos pela vinculação com Albert O. Hirschman. Lá acontecia algo muito assustador. O instituto é uma torre de marfim criada quando o Einstein foi para os Estados Unidos nos anos 1930; no entanto, ele não desenvolveu nada de relevante no instituto: suas grandes ideias já haviam aflorado em décadas anteriores. Ainda assim, era uma pessoa fora de série, extraordinária, e assim é cultuado até hoje pelos jovens estudantes de física teórica e matemática. O Instituto recruta jovens, entre os melhores, que terminaram o doutorado e se dedicam furiosamente aos estudos. Mas lá vivem em uma condição de extrema angústia. A tensão é imensa, porque esses jovens cientistas sabem que, pelo menos nessas áreas, a criatividade aflora até, no máximo, os trinta anos de idade. Para ter imaginação suficiente para ousar inventar algo nessas disciplinas muito abstratas você não pode saber muita coisa. Quem sabe muito acaba restringindo sua audácia criativa, pois sabem que muito do que imaginam ser novo já foi descoberto ou inventado por outros cientistas. Assim, quanto mais jovem maior a chance de criar algo novo. Quem inova passará o resto de seus dias passeando pelas alamedas do Institute for Advanced Study ou em algum outro lugar de sábios, fazendo jogging e, vez por outra, dando conferências, coberto de glórias. Entretanto quem não conseguir inovar passará seus dias como professor universitário, como muitos. Vai ganhar pouco e ensinar as descobertas dos outros...

É uma angústia enorme. Mas será que nas ciências humanas é assim também? Sempre podemos inventar uma desculpa para dizer que não: as ciências humanas são históricas, na sociologia, na filosofia, quem sabe até na economia, com o tempo a maturidade permite ver melhor. Hoje tenho as minhas dúvidas. Talvez seja verdade que a idade ajude a enxergar melhor. Mas acho que a pureza de espírito, que vem de certa ignorância, de certa ingenuidade, leva à ousadia. O pior que pode acontecer no desenvolvimento da vida intelectual é deixar de ousar. Quando sabemos muito, temos muita desculpa para não ousar.

O Cebrap foi um local que permitiu que as pessoas continuassem ousando. Eram momentos difíceis; ainda assim ousamos. Vocês continuaram ousando. Não sei se continuo a ter coragem para ousar, mas, quando posso, tento ser contra tudo o que está aí. Contra os meus. Contra mim mesmo. Para tentar, muitas vezes, ir mais longe. Confesso que, a essa altura da vida, é difícil. De modo que eu fico muito agradecido por vocês ainda se lembrarem de mim. Muito obrigado.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, sociólogo, foi presidente da República (1995-2002).

  • [*
    ] Transcrição editada de fala improvisada.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Nov 2012
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