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MAIS LENIENTES COM AS MULHERES? O fluxo de processamento do tráfico de drogas numa cidade brasileira

More Lenient with Women? The Flow of Drug Trafficking Processing in a Brazilian City

RESUMO

A teoria das preocupações focais foi aplicada como framework para análise de uma amostra de processos penais encerrados entre 2007 e 2017 e entrevistas com operadores do direito que atuavam nas Varas de Tóxicos. Os resultados indicam que as mulheres são tratadas mais severamente, ao contrário do observado nos Estados Unidos. Em Belo Horizonte, elas são mais susceptíveis à prisão preventiva, uma “condenação imediata” na visão dos entrevistados.

PALAVRAS-CHAVE:
padrão de decisão; justiça criminal; prisão preventiva; tráfico de drogas; teoria das preocupações focais

ABSTRACT

Focal concerns theory was applied as a framework for analyzing a sample of criminal cases closed between 2007 and 2017 and interviews with legal operators who worked in the drug courts. The results indicate that women are treated more severely, contrary to what was observed in the United States. In Belo Horizonte, they are more susceptible to pretrial detention, an “immediate conviction”, as stated by the interviewees.

KEYWORDS:
decision-making; criminal justice; pretrial detention; drug trafficking; focal concerns theory

INTRODUÇÃO1 1 A pesquisa “Fluxo de processamento do tráfico de drogas em Belo Horizonte: uma década de seletividade”, iniciada em 2019, a partir do apoio do CNPq (auxílio 301402/2018-3), teve como objetivo mapear os determinantes do fluxo de processamento do tráfico de drogas em Belo Horizonte entre 2007 e 2017, período que encobre uma década de vigência da Nova Lei de Drogas (lei n. 11.343/2006). As pesquisadoras do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp), coordenadas pela professora Ludmila Ribeiro, estruturam uma base de dados a partir da consulta a uma amostra dos processos arquivados no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, além de um banco de entrevistas com profissionais que atuavam nas Varas de Tóxico (juízes, promotores e defensores) para compreender como ocorre o processamento e sentenciamento de sujeitos autuados por tráfico de drogas, além das justificativas dadas para a condenação ou absolvição.

Os estudos brasileiros sobre os determinantes das decisões judiciais têm se inspirado nas pesquisas realizadas nos Estados Unidos (Vargas, 2014Vargas, Joana Domingues. “Fluxo do sistema de justiça criminal: crime, polícia e justiça no Brasil”. In: Lima, Renato Sérgio de; Ratton, José Luiz; Azevedo, Rodrigo Ghiringhelli (orgs.). Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014, pp. 412-23.; Raupp, 2015Raupp, Mariana. “As pesquisas sobre o ‘sentencing’: disparidade, punição e vocabulários de motivos. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 2, n. 2, 2015.). Nesse país, a teoria das preocupações focais é a pedra angular para verificar em que medida fatores legais (como os dispositivos que regulamentam as condenações) e extralegais (como raça, idade e grau de escolaridade do suspeito) influenciam as decisões tomadas ao longo do fluxo de processamento (Galvin; Ulmer, 2021Galvin, Miranda A.; Ulmer, Jeffery T. “Expanding Our Understanding of Focal Concerns: Alternative Sentences, Race, and ‘Salvageability’”. Justice Quarterly, 2021, pp. 1-22.; Holmes; Feldmeyer; Kulig, 2020Holmes, Bryan; Feldmeyer, Ben; Kulig, Teresa C. “Sentencing Departures and Focal Concerns: The Joint Effect of Race and Gender on Departures in United States District Courts, 2014-2016”. Journal of Crime and Justice, 2020, pp. 1-25.; Ulmer, 2019Ulmer, Jeffery T. “Criminal Courts as Inhabited Institutions: Making Sense of Difference and Similarity in Sentencing”. Crime and Justice, v. 48, n. 1, 2019, pp. 483-522.; Lynch, 2019Lynch, Mona. “Focally Concerned about Focal Concerns: A Conceptual and Methodological Critique of Sentencing Disparities Research”. Justice Quarterly , v. 36, n. 7, 2019, pp. 1.148-75.).

A teoria das preocupações focais foi desenvolvida por Darrell Steffensmeier e colaboradores para explicar por que as decisões judiciais beneficiavam as mulheres, destacando que elas não são vistas como responsáveis pela prática do crime em razão da narrativa de amor por alguém que tem uma carreira ilegal (Steffensmeier, 1980Steffensmeier, Darrell J. “Assessing the Impact of the Women’s Movement on Sex-Based Differences in the Handling of Adult Criminal Defendants”. Crime, Delinquency, v. 26, n. 3, 1980, pp. 344-57.). Elas não representam ameaças palpáveis à comunidade porque não cometem o delito com o uso de armas de fogo (Steffensmeier; Kramer; Streifel, 1993Steffensmeier, Darrell; Kramer, John; Streifel, Cathy. “Gender and Imprisonment Decisions”. Criminology, v. 31, n. 3, 1993, pp. 411-46.) e seu encarceramento causa mais prejuízos do que benefícios, desencadeando o empobrecimento das famílias e o abandono dos filhos (Steffensmeier; Painter-Davis; Ulmer, 2017Steffensmeier, Darrell; Painter-Davis, Noah; Ulmer, Jeffery. “Intersectionality of Race, Ethnicity, Gender, and Age on Criminal Punishment”. Sociological Perspectives, v. 60, n. 4, 2017, pp. 810-33.).

No Brasil, a literatura indica que as mulheres também seriam tratadas de forma mais leniente pelo sistema de justiça criminal, em razão da tese comumente difundida do “amor bandido como chave de cadeia” (Pimentel, 2008Pimentel, Elaine. “Amor bandido: as teias afetivas que envolvem a mulher no tráfico de drogas”. In: VI Congresso Português de Sociologia, 2008, Lisboa. Anais: VI Congresso Português de Sociologia. Mundos sociais: saberes e práticas. Lisboa: Universidade de Lisboa. 2008, pp. 3-14.). Seus ilícitos seriam mais “desculpáveis”, porque elas seriam coagidas a ingressar nos mercados ilegais pelo parceiro (Bassani, 2011Bassani, Fernanda. “Amor bandido: cartografia da mulher no universo prisional masculino”. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 4, n. 2, 2011, pp. 261-80.). Por não serem as líderes do comércio e não praticarem o crime com o uso de armas, seriam beneficiadas com as sanções menores do “tráfico privilegiado” (Campos; Alvarez, 2017Campos, Marcelo da Silveira; Alvarez, Marcos César. “Pela metade: implicações do dispositivo médico-criminal da ‘Nova’ Lei de Drogas na cidade de São Paulo”. Tempo Social, v. 29, n. 2, 2017, pp. 45-74.). Como são responsáveis pela maternidade e pela sobrevivência do lar, receberiam penas alternativas, como a prisão domiciliar (Angotti; Tramontina; Vieira, 2020Angotti, Bruna; Tramontina, Robison; Vieira, Regina Stela Corrêa. “Cuidado e direitos fundamentais: o caso do habeas corpus coletivo para pais e responsáveis por crianças e pessoas com deficiência”. Espaço Jurídico: Journal of Law, v. 21, n. 2, 2020, pp. 563-76.).2 2 Em 2019, o Supremo Tribunal Federal “concedeu a substituição da prisão preventiva por domiciliar em favor de todas as mulheres submetidas à prisão cautelar que fossem gestantes, puérperas ou mães com crianças de até 12 anos de idade” (Angotti; Tramontina; Vieira, 2020, p. 1). Como essa decisão foi tomada após o encerramento da pesquisa, ela não teve efeito nos casos analisados, mas reconhece que as mulheres recebem decisões piores do que os homens nas etapas iniciais do fluxo de processamento.

Considerando a suposta semelhança entre Estados Unidos e Brasil no que se refere ao tratamento das mulheres suspeitas de tráfico de drogas, a proposta deste artigo é compreender se a teoria das preocupações focais pode ser aplicada no entendimento do fluxo de processamento por tráfico de drogas. Para tanto, será utilizada a base de dados construída a partir da consulta a uma amostra de processos penais encerrados na capital mineira entre 2007 e 2017. Para entender como os operadores do direito justificam suas decisões serão utilizadas entrevistas com promotores, defensores e juízes que atuavam nas Varas de Tóxicos em 2018. Os depoimentos iluminaram o que estava escrito nos documentos escrutinados, desvelando as crenças, atitudes e percepções desses operadores quando precisam decidir o futuro de homens e mulheres implicados no tráfico de drogas.

REVISÃO DA LITERATURA

No Brasil, a Lei n. 11.343/2006, denominada Nova Lei de Drogas,3 3 Assim chamada em oposição à Velha Lei de Drogas, a Lei n. 6.368/1976. procurou diferenciar traficantes de usuários. Reservou aos traficantes as punições mais severas (encarceramento em regime fechado, por longos períodos de tempo) e, aos usuários, penas mais brandas (prestação de serviços à comunidade) (Campos; Alvarez, 2017Campos, Marcelo da Silveira; Alvarez, Marcos César. “Pela metade: implicações do dispositivo médico-criminal da ‘Nova’ Lei de Drogas na cidade de São Paulo”. Tempo Social, v. 29, n. 2, 2017, pp. 45-74.). Desde a sua publicação, multiplicaram-se os estudos destinados a compreender como os policiais diferenciam traficantes de usuários (Grillo; Policarpo; Veríssimo, 2011Grillo, Carolina Christoph; Policarpo, Frederico; Veríssimo, Marcos. “A ‘dura’ e o ‘desenrolo’: efeitos práticos da nova lei de drogas no Rio de Janeiro”. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 40, 2011, pp. 135-48.) e quais são os caminhos percorridos dentro do sistema de justiça para a punição daqueles enquadrados como “traficantes” (Ribeiro; Rocha; Couto, 2017Ribeiro, Ludmila; Rocha, Rafael Lacerda Silveira; Couto, Vinícius Assis. “Nas malhas da justiça: uma análise dos dados oficiais de indiciados por drogas em Belo Horizonte (2008-2015)”. Opinião Pública, v. 23, 2017, pp. 397-428.; Azevedo; Sinhoretto, 2017Azevedo, Rodrigo Ghiringhelli; Sinhoretto, Jacqueline. “O sistema de justiça criminal na perspectiva da antropologia e da sociologia”. BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, n. 84, 2017, pp. 188-215.; Jesus, 2020Jesus, Maria Gorete Marques de. “Verdade policial como verdade jurídica: narrativas do tráfico de drogas no sistema de justiça”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 102, 2020.).

Parte desse interesse decorre da inexistência de indicadores sobre a quantidade de drogas a partir da qual os sujeitos podem ser enquadrados em porte para uso ou porte para comércio (Campos, 2015Campos, Marcelo da Silveira. Pela metade: as principais implicações da nova lei de drogas no sistema de justiça criminal em São Paulo. Tese (doutorado em sociologia). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015.). Para fazer a diferenciação, o operador deve considerar elementos como o local em que o delito foi praticado (Azevedo; Sinhoretto, 2017Azevedo, Rodrigo Ghiringhelli; Sinhoretto, Jacqueline. “O sistema de justiça criminal na perspectiva da antropologia e da sociologia”. BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, n. 84, 2017, pp. 188-215.), o sexo do autuado (Campos, 2015); as circunstâncias da prisão (Jesus, 2020Jesus, Maria Gorete Marques de. “Verdade policial como verdade jurídica: narrativas do tráfico de drogas no sistema de justiça”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 102, 2020.); e os antecedentes criminais (Ribeiro; Rocha; Couto, 2017Ribeiro, Ludmila; Rocha, Rafael Lacerda Silveira; Couto, Vinícius Assis. “Nas malhas da justiça: uma análise dos dados oficiais de indiciados por drogas em Belo Horizonte (2008-2015)”. Opinião Pública, v. 23, 2017, pp. 397-428.). É uma legislação que concede aos profissionais do sistema de justiça criminal, sobretudo aos que atuam na linha de frente, enorme discricionariedade (Grillo; Policarpo; Veríssimo, 2011Grillo, Carolina Christoph; Policarpo, Frederico; Veríssimo, Marcos. “A ‘dura’ e o ‘desenrolo’: efeitos práticos da nova lei de drogas no Rio de Janeiro”. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 40, 2011, pp. 135-48.). Encarregados do policiamento ostensivo, os policiais se transformam em vozes da verdade judicial e, por serem as únicas testemunhas dos atos enquadrados como tráfico, suas falas são utilizadas como fundamentos para a decisão judicial (Jesus, 2020Jesus, Maria Gorete Marques de. “Verdade policial como verdade jurídica: narrativas do tráfico de drogas no sistema de justiça”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 102, 2020.; Semer, 2019Semer, Marcelo. “Sentenciando tráfico: pânico moral e estado de negação formatando o papel dos juízes no grande encarceramento”. Tese (doutorado em direito). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2019.). O fluxo de processamento do tráfico de drogas opera de modo similar a uma linha de montagem (Ribeiro; Rocha; Couto, 2017Ribeiro, Ludmila; Rocha, Rafael Lacerda Silveira; Couto, Vinícius Assis. “Nas malhas da justiça: uma análise dos dados oficiais de indiciados por drogas em Belo Horizonte (2008-2015)”. Opinião Pública, v. 23, 2017, pp. 397-428.), em que os presos em flagrante saem condenados como “traficantes” num curto espaço de tempo, mas não em razão de sua conduta e, sim em virtude de sua aparência. São homens, negros e de baixa escolaridade, residentes de áreas de periferia das grandes cidades, flagrados pelo policiamento ostensivo com pequena quantidade de drogas os que recebem a privação de liberdade (Campos, 2015Campos, Marcelo da Silveira. Pela metade: as principais implicações da nova lei de drogas no sistema de justiça criminal em São Paulo. Tese (doutorado em sociologia). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015.; Lemgruber; Fernandes, 2015Lemgruber, Julita; Fernandes, Marcia. “Tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro: prisão provisória e direito de defesa”. Boletim Segurança e Cidadania, v. 17, 2015, pp. 1-50.; Semer, 2019Semer, Marcelo. “Sentenciando tráfico: pânico moral e estado de negação formatando o papel dos juízes no grande encarceramento”. Tese (doutorado em direito). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2019.).

Nesse contexto, um elemento dissonante é o aumento sem precedentes de mulheres encarceradas por esse delito (Cortina, 2015Cortina, Monica Ovinski de Camargo. “Mulheres e tráfico de drogas: aprisionamento e criminologia feminista”. Revista Estudos Feministas, v. 23, n. 3, 2015, pp. 761-78.). Hoje, as mulheres representam 6% da população prisional brasileira (FBSP, 2022FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública). Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP 2022.) e o tráfico de drogas é responsável por mais de 70% dos encarceramentos (entre os homens, esse percentual é de 30%) (Depen, 2019Lima, Roberto Kant de. “Sensibilidades jurídicas, saber e poder: bases culturais de alguns aspectos do direito brasileiro em uma perspectiva comparada”. Anuário Antropológico, v. 35, n. 2, 2010, pp. 25-51.). Desde a publicação da Nova Lei de Drogas, o encarceramento feminino cresceu mais de 650%, enquanto a taxa de encarceramento masculino aumentou 150%. As pesquisas quantitativas indicam que as mulheres pobres têm mais chances de serem enquadradas como traficantes, em vez de usuárias, especialmente quando são presas em sua residência (sem mandado judicial) ou em visita ao sistema prisional. Elas também são condenadas a longas penas privativas de liberdade, o que indicaria maior “dureza” do sistema de justiça criminal para com elas (Cortina, 2015Cortina, Monica Ovinski de Camargo. “Mulheres e tráfico de drogas: aprisionamento e criminologia feminista”. Revista Estudos Feministas, v. 23, n. 3, 2015, pp. 761-78.; Campos, 2015Campos, Marcelo da Silveira. Pela metade: as principais implicações da nova lei de drogas no sistema de justiça criminal em São Paulo. Tese (doutorado em sociologia). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015.; Castro; Valença, 2018Castro, Helena Rocha Coutinho; Valença, Manuela Abath. “Mulheres e drogas sob o cerco policial”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 146, 2018, pp. 483-514.; Bassani, 2011Bassani, Fernanda. “Amor bandido: cartografia da mulher no universo prisional masculino”. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 4, n. 2, 2011, pp. 261-80.; Sena, 2017Sena, Lúcia Lamounier. “Funcionalidade moral: gênero e diferença no tráfico ilegal de drogas”. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, v. 7, n. 2, 2017, pp. 393-416.).

De acordo com as pesquisas qualitativas, a narrativa do “amor bandido” seria uma forma de beneficiar as mulheres com decisões menos severas (Ribeiro; Lopes, 2019Ribeiro, Ludmila. “Excesso de prazo no processo penal: a gramática do Supremo Tribunal Federal”. Revista Brasileira de Sociologia, v. 7, n. 16, 2019, pp. 50-81.). A mulher não seria traficante, mas alguém que entrou no mercado ilegal por amor a um homem, submetendo-se à vontade deste (Pimentel, 2008Pimentel, Elaine. “Amor bandido: as teias afetivas que envolvem a mulher no tráfico de drogas”. In: VI Congresso Português de Sociologia, 2008, Lisboa. Anais: VI Congresso Português de Sociologia. Mundos sociais: saberes e práticas. Lisboa: Universidade de Lisboa. 2008, pp. 3-14.). Sem agência, ela não poderia ser punida como tal, devendo ser enquadrada num tipo penal específico: o “tráfico privilegiado” (Campos, 2015Campos, Marcelo da Silveira. Pela metade: as principais implicações da nova lei de drogas no sistema de justiça criminal em São Paulo. Tese (doutorado em sociologia). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015.). Receberiam, portanto, menos tempo de encarceramento em comparação com os homens, os “verdadeiros traficantes” (Helpes, 2013Helpes, Sintia Soares. “Mulheres na prisão: uma reflexão sobre a relação do Estado brasileiro com a criminalidade feminina”. Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v. 2, n. 3, 2013, pp. 160-85.).

Esses são os pontos de partida da teoria das preocupações focais (focal concerns theory), desenvolvida por Darrell Steffensmeier (1980Steffensmeier, Darrell J. “Assessing the Impact of the Women’s Movement on Sex-Based Differences in the Handling of Adult Criminal Defendants”. Crime, Delinquency, v. 26, n. 3, 1980, pp. 344-57.) para explicar o tratamento mais leniente com as mulheres pelo sistema de justiça criminal estadunidense. Os operadores do direito (homens, em sua maioria) seriam susceptíveis a uma postura paternal em relação às mulheres (Steffensmeier; Kramer; Streifel, 1993Steffensmeier, Darrell; Kramer, John; Streifel, Cathy. “Gender and Imprisonment Decisions”. Criminology, v. 31, n. 3, 1993, pp. 411-46.), já que as preocupações que elas suscitam seriam menores, em comparação com as suscitadas pelos homens (Steffensmeier; Kramer; Ulmer, 1998). A decisão final seria o acumulado da avaliação que promotores, defensores e juízes fazem de homens e mulheres quanto: (i) à culpabilidade, que é a responsabilidade do sujeito na prática do crime, mensurada pela gravidade do delito (Lynch, 2019Lynch, Mona. “Focally Concerned about Focal Concerns: A Conceptual and Methodological Critique of Sentencing Disparities Research”. Justice Quarterly , v. 36, n. 7, 2019, pp. 1.148-75.); (ii) à proteção à comunidade, que é a incapacitação daqueles sujeitos entendidos como perigosos para a sociedade em razão de terem cometido o delito com o uso de arma de fogo ou por serem reincidentes (Steffensmeier; Painter-Davis; Ulmer, 2017Steffensmeier, Darrell; Painter-Davis, Noah; Ulmer, Jeffery. “Intersectionality of Race, Ethnicity, Gender, and Age on Criminal Punishment”. Sociological Perspectives, v. 60, n. 4, 2017, pp. 810-33.); e (iii) às considerações práticas, que dizem respeito aos efeitos da punição na vida do sujeito e de sua rede de contatos (Holmes; Feldmeyer; Kulig, 2020Holmes, Bryan; Feldmeyer, Ben; Kulig, Teresa C. “Sentencing Departures and Focal Concerns: The Joint Effect of Race and Gender on Departures in United States District Courts, 2014-2016”. Journal of Crime and Justice, 2020, pp. 1-25.).

Os estudos que têm como base a teoria das preocupações focais indicam que os operadores do direito veem as mulheres como menos culpáveis porque elas não se envolvem voluntariamente no crime, mas por pressão dos homens, numa lógica que reitera sua incapacidade de agência (Steffensmeier, 1980Steffensmeier, Darrell J. “Assessing the Impact of the Women’s Movement on Sex-Based Differences in the Handling of Adult Criminal Defendants”. Crime, Delinquency, v. 26, n. 3, 1980, pp. 344-57.). Elas não representam danos à comunidade, posto que não estariam envolvidas em dinâmicas criminais, sendo a detenção por tráfico de drogas seu primeiro registro criminal (Steffensmeier; Kramer; Streifel, 1993Steffensmeier, Darrell; Kramer, John; Streifel, Cathy. “Gender and Imprisonment Decisions”. Criminology, v. 31, n. 3, 1993, pp. 411-46.). Por fim, o aprisionamento feminino teria consequências muito danosas para sua rede familiar, aumentando a chance de a prole entrar para organizações criminais (Steffensmeier; Painter-Davis; Ulmer, 2017Steffensmeier, Darrell; Painter-Davis, Noah; Ulmer, Jeffery. “Intersectionality of Race, Ethnicity, Gender, and Age on Criminal Punishment”. Sociological Perspectives, v. 60, n. 4, 2017, pp. 810-33.). Portanto, as mulheres teriam menos chances de privação de liberdade por serem vistas como menos “transgressoras” e “perigosas”, além de indispensáveis às funções de cuidado na família (Steffensmeier; Kramer; Ulmer, 1998Steffensmeier, Darrell; Ulmer, Jeffery; Kramer, John. “The Interaction of Race, Gender, and Age in Criminal Sentencing: The Punishment Cost of Being Young, Black, and Male”. Criminology, v. 36, n. 4, 1998, pp. 763-98.).

Darrell Steffensmeier, Noah Painter-Davis e Jeffery Ulmer (2017Steffensmeier, Darrell; Painter-Davis, Noah; Ulmer, Jeffery. “Intersectionality of Race, Ethnicity, Gender, and Age on Criminal Punishment”. Sociological Perspectives, v. 60, n. 4, 2017, pp. 810-33., p. 813) entendem que as dimensões da teoria das preocupações focais interagem com o status social dos suspeitos, favorecendo alguns estereótipos. Negros receberiam decisões piores do que brancos, pois seriam vistos como “naturalmente desviantes”, e mais visados pelo policiamento ostensivo (Galvin; Ulmer, 2021Galvin, Miranda A.; Ulmer, Jeffery T. “Expanding Our Understanding of Focal Concerns: Alternative Sentences, Race, and ‘Salvageability’”. Justice Quarterly, 2021, pp. 1-22.). Jovens seriam mais punidos, dada a demanda de que a sanção atue como mecanismo de dissuasão, evitando uma carreira criminal (Steffensmeier; Kramer; Ulmer, 1995Steffensmeier, Darrell; Kramer, John; Ulmer, Jeffery. “Age Differences in Sentencing”. Justice Quarterly , v. 12, n. 3, 1995, pp. 583-602.). Outros vieses estariam relacionados à dependência de drogas, ausência de educação e emprego ou histórico familiar de envolvimento com o crime (Steffensmeier; Kramer; Ulmer, 1998Steffensmeier, Darrell; Ulmer, Jeffery; Kramer, John. “The Interaction of Race, Gender, and Age in Criminal Sentencing: The Punishment Cost of Being Young, Black, and Male”. Criminology, v. 36, n. 4, 1998, pp. 763-98.).

METODOLOGIA

Publicada em 2006, a Nova Lei de Drogas orienta a “guerra às drogas” no Brasil (Boiteux, 2016Boiteux, Luciana. “Encarceramento feminino e seletividade penal”. Boletim da Rede Justiça Criminal, 2016, pp. 5-6.). Em decorrência da promulgação da lei, em 2007 foram instaladas em Belo Horizonte três seções especializadas nesses crimes. Denominadas “Varas de Tóxicos”, contam com juízes, promotores e defensores públicos responsáveis por processar e julgar exclusivamente os crimes previsos na Lei n. 11.343/2006 que são punidos com a privação da liberdade.4 4 Crimes relacionados ao uso de drogas são encaminhados aos Juizados Especiais Criminais porque não são passíveis de punição por meio da privação da liberdade. Não são de competência das Varas de Tóxicos.

Para a realização desta pesquisa, foi solicitado ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) uma planilha com informações de todos os processos encerrados por tráfico de drogas entre 2007 e 2017.5 5 Um mesmo processo pode ter vários acusados e estes podem ser considerados participantes iguais na prática do delito ou apenas ajudantes secundários. Considerando-se uma margem de confiança de 95% e erro de 4,5 pontos percentuais, foram amostrados 448 processos penais, representando os 6.983 processos encerrados entre 2007 e 2017. No entanto, é preciso relembrar o alerta de Darrell Steffensmeier, John Kramer e Cathy Streifel (1993Steffensmeier, Darrell; Kramer, John; Streifel, Cathy. “Gender and Imprisonment Decisions”. Criminology, v. 31, n. 3, 1993, pp. 411-46.), que destacam que a discriminação de gênero nunca é adequadamente desvelada, dada a pequena quantidade de casos referentes às mulheres. Consequentemente, a segunda etapa da pesquisa consistiu na construção de uma amostra representativa dos casos em que elas aparecem como “acusadas principais”. Para cobrir esse universo de 1.508 processos penais, foram amostrados 299 casos, os quais geraram uma base de dados suplementar, com confiança de 95% e erro de 4,7 pontos percentuais.

Ao final, foram escrutinados 747 processos penais relativos a 1.495 indivíduos indiciados por tráfico de drogas, dos quais 29,8% eram mulheres (446) e 70,2% eram homens (1.049). Para a consulta dessa documentação, foi criado um formulário dividido em duas partes: (i) sobre o perfil do indivíduo, focalizando os documentos policiais com informações a respeito do autor do delito (Lima, 2010Lima, Roberto Kant de. “Sensibilidades jurídicas, saber e poder: bases culturais de alguns aspectos do direito brasileiro em uma perspectiva comparada”. Anuário Antropológico, v. 35, n. 2, 2010, pp. 25-51.); (ii) sobre as movimentações do sujeito dentro do sistema de justiça criminal, com informações sobre abordagem policial, motivos para a denúncia, pedidos da defesa, oitiva de testemunhas e peritos, tipo de droga apreendida, prisão preventiva, condenação e regime de pena.

Para a análise quantitativa foi utilizado o teste Qui-quadrado, que verifica se as variáveis estão associadas ao acaso ou se existe algum padrão, num nível de significância estatística de P<0,050. Todas as variáveis de interesse foram codificadas como dummies, em que um (1) indicava a presença da categoria e zero (0) a sua ausência (Tabela 1).

TABELA 1
Descrição das variáveis mobilizadas neste estudo (Belo Horizonte, 2007-17)

As variáveis relativas ao status social foram as tradicionalmente consideradas em estudos sobre fluxo do sistema de justiça criminal (Vargas, 2014Vargas, Joana Domingues. “Fluxo do sistema de justiça criminal: crime, polícia e justiça no Brasil”. In: Lima, Renato Sérgio de; Ratton, José Luiz; Azevedo, Rodrigo Ghiringhelli (orgs.). Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014, pp. 412-23.; Raupp, 2015Raupp, Mariana. “As pesquisas sobre o ‘sentencing’: disparidade, punição e vocabulários de motivos. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 2, n. 2, 2015.). Receberam codificação um (1) pessoas negras (pretas ou pardas), com idade entre 18 e 25 anos na data do delito, com menos de nove anos de estudo (nem sequer tinham começado o ensino médio) e sem ocupação legal que pudesse ser comprovada (muitas vezes relacionada a trabalhos domésticos e serviços na construção civil). A ausência dessas características recebeu valor zero (0).

Para a mensuração da culpabilidade, foram utilizados os elementos que, segundo Marcelo Campos (2015Campos, Marcelo da Silveira. Pela metade: as principais implicações da nova lei de drogas no sistema de justiça criminal em São Paulo. Tese (doutorado em sociologia). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015.), são mobilizados pelas polícias para o enquadramento do “tráfico de drogas”. São eles: (i) uso de arma de fogo para a prática do delito; (ii) detenção com mais de uma droga; e (iii) apreensão de “dinheiro trocado”. A proteção da comunidade foi quantificada pela trajetória, utilizando a reincidência (ter uma condenação anterior na justiça) ou os maus antecedentes (registros de ocorrência policial em que o sujeito foi qualificado como autor do crime). As implicações práticas mensuraram o esforço feito pelos juízes para validar as vozes policiais, transformando-as em verdades jurídicas para viabilizar a condenação (Jesus, 2020Jesus, Maria Gorete Marques de. “Verdade policial como verdade jurídica: narrativas do tráfico de drogas no sistema de justiça”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 102, 2020.). O fato de a área em que foi feita a prisão estar sob o domínio do tráfico de drogas apareceu em distintas sentenças como razão para a condenação, sendo considerado, portanto, elemento de considerações práticas.6 6 Os processos penais não trazem qualquer informação e/ou preocupação sobre o impacto das decisões na estrutura familiar.

Na parte qualitativa, foram utilizadas as entrevistas semiestruturadas de três juízes, cinco promotores e cinco defensores públicos que atuavam nas três varas de tráfico de drogas de Belo Horizonte, além do delegado titular da delegacia de tóxicos.7 7 Trabalho aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE: 84242418.4.0000.5149). Em termos de perfil, todos eram brancos e, em sua maioria, do sexo feminino. Em média, tinham 42 anos de idade e 14 anos de exercício da profissão (Tabela 2).

TABELA 2
Perfil dos operadores do direito entrevistados (Belo Horizonte, 2018)

Para análise do material qualitativo, foi criada uma planilha de Excel em que os entrevistados são as linhas e os temas específicos são as colunas. Para garantir o anonimato, cada qual recebeu um número de 1 a 14 e seus depoimentos foram examinados à luz das indagações previstas no roteiro de entrevista, o que incluía a forma pela qual os casos de drogas chegavam às varas, a inserção das mulheres nos mercados ilegais e os papéis representados por elas nessa dinâmica.

HOMENS E MULHERES ACUSADOS DE TRÁFICO DE DROGAS: EXISTE DIFERENÇA?

De maneira geral, os acusados de tráfico de drogas em Belo Horizonte são homens (87%), com idade entre 18 e 25 anos (61%), identificados nos registros policiais como pretos ou pardos (82%). São o tipo ideal do “elemento suspeito” que direciona as abordagens da polícia militar (Ramos et al., 2005Ramos, Silvia et al. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.), perfil que contrasta com o dos operadores do direito: brancos e, em sua maioria, do sexo feminino. Como os que manejam a lei têm longa carreira, eles têm idade superior às dos acusados, presos no início da vida adulta.

Os “traficantes” são pessoas com baixa escolaridade: apenas 33% chegaram a iniciar o ensino médio, o que significa que 67% tinham menos de nove anos de estudo. Do total de réus, 83% contavam com uma ocupação legal passível de comprovação e, destes, 46% trabalhavam como comerciantes (empregados em lojas ou vendedores autônomos). Outros 20% estavam ocupados na construção civil, atividade que tende a ser precariamente remunerada. Em termos de assistência jurídica, pouco mais da metade (58%) foi atendida por defensor público, o que muitas vezes é utilizado como proxis da renda, dada a impossibilidade de arcar com as despesas de um advogado privado (Adorno, 1995Adorno, Sérgio. “Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo”. Novos Estudos Cebrap, v. 43, 1995, pp. 45-63.).

Ao desagregar essas informações por sexo (Tabela 3), constata-se que mulheres e homens são majoritariamente negros (72%), de baixa escolaridade (a maior parte com menos de nove anos de estudo) e atendidos pela defensoria pública, sem diferença estatisticamente significativa. Na data do crime, as mulheres eram mais velhas do que os homens, o que também era visível em suas representações nos documentos policiais como mães de “traficante” ou “esposas do tráfico”. Elas também aparecem em maior percentual no item “sem ocupação”, já que o trabalho doméstico e de cuidado com os filhos não é visto como uma “profissão” pelos policiais responsáveis pelo Registro de Ocorrências.

TABELA 3
Estatísticas descritivas das variáveis de status socioeconômicos, por sexo do acusado (Belo Horizonte, 2007-17)

Nas entrevistas, a homogeneidade de perfil de homens e mulheres foi atribuída à pobreza, principal motivação para ingresso no tráfico de drogas. Para o Operador 10, eles “caem no tráfico pelo fato de serem pobres, então caem no chamado tráfico formiguinha”. Quando incitados a dizer se a pobreza afeta de forma diferenciada homens e mulheres, os entrevistados afirmaram que elas são empurradas pelo “amor bandido”, ao contrário dos homens, que buscam “renda”. De partida, as mulheres são apresentadas como sem força para resistir às seduções masculinas, o que as levaria para o crime. Ao detalharem o amor bandido, a pobreza feminina (de renda e status social) aparece como pano de fundo para essa escolha.

Aí você me pergunta, o que levou essas mulheres ao mundo do tráfico? São vários fatores! É… Primeiro: a questão é… Do chamado… É… Fica parecendo piegas, mas não é, é a realidade... É o amor bandido. Não é? É a paixão que não tem explicação, que a mulher mantém pelo traficante. E ela é, vamos dizer assim, convidada para esse mundo do crime pelo risco, pela adrenalina, pela situação ou posição de destaque na sociedade, no meio em que ela vive, onde a mulher é o chefe do tráfico, não é? O poder financeiro que isso… Ela não tem às vezes condições financeiras para bancar cabeleireiro, coisas úteis que as mulheres nessa situação gostam, e que o dinheiro de tráfico proporciona. E ela fica naquele status de “mulher do traficante”, é... Chega a ir em baile funk com toda a pompa e circunstância, e isso é um atrativo, e isso atrai a mulher no tráfico. (Operador 1; grifos nossos)

Apesar de afirmarem o “amor bandido” como alavanca para a entrada da mulher no tráfico, o que deveria pressupor submissão e obediência ao parceiro, os entrevistados reforçam que essa atividade tem finalidades muito práticas. Visa à busca de alternativas para a ausência de reconhecimento social onde elas vivem, além da amortização das restrições econômicas que a pobreza impõe à mulher, inclusive para que ela atenda às expectativas de gênero (como estar com o cabelo bem arrumado). Dos homens pobres, de baixa escolaridade e sem atividade lícita, os operadores esperam o envolvimento no comércio de drogas como geração de renda e conquista de status social. Porém, de certa maneira, as mesmas explicações são mobilizadas para o enquadramento da mulher como “traficante”, ainda que os entrevistados insistam na tese do amor bandido.

HOMENS E MULHERES ACIONAM PREOCUPAÇÕES FOCAIS DISTINTAS?

Para a identificação das preocupações focais, o primeiro item examinado foi a culpabilidade, mensurada pela presença de drogas, armas e dinheiro trocado no momento da abordagem policial. Em 98% dos processos penais, o suspeito estava com alguma substância ilícita, como maconha (48,7%), cocaína (48,9%) e crack (49,6%). Apenas 17% dos sujeitos foram flagrados em posse de arma de fogo, 42% portavam mais de uma droga e 77% estavam com “dinheiro trocado”. Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas dessas dimensões por sexo (Tabela 4). Ou seja, a ocorrência típica do tráfico de drogas é aquela de apenas uma droga, em pouca quantidade, como observado em pesquisas no Rio de Janeiro (Lemgruber; Fernandes, 2015Lemgruber, Julita; Fernandes, Marcia. “Tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro: prisão provisória e direito de defesa”. Boletim Segurança e Cidadania, v. 17, 2015, pp. 1-50.); São Paulo (Campos, 2015Campos, Marcelo da Silveira. Pela metade: as principais implicações da nova lei de drogas no sistema de justiça criminal em São Paulo. Tese (doutorado em sociologia). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015.); Recife (Castro; Valença, 2018Castro, Helena Rocha Coutinho; Valença, Manuela Abath. “Mulheres e drogas sob o cerco policial”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 146, 2018, pp. 483-514.), entre outras cidades.

TABELA 4
Estatísticas descritivas das variáveis relacionadas à teoria das preocupações focais, por sexo do acusado (Belo Horizonte, 2007-17)

Como resumiu um dos entrevistados, o flagrante “normal” é aquele em que o indivíduo “foi pego na entrada da pedreira, com um punhado de pedras de crack e alguns trocados no bolso, ele estava vendendo uma pedra ou outra” (Operador 13). Esse padrão confirma que os réus jamais seriam submetidos ao sistema de justiça criminal se o Brasil tivesse uma lei de drogas que estabelecesse a quantidade mínima para diferenciação entre uso e tráfico (Boiteux, 2016Boiteux, Luciana. “Encarceramento feminino e seletividade penal”. Boletim da Rede Justiça Criminal, 2016, pp. 5-6.). É a existência dessa guerra às drogas, já superada em muitos países e distintos estados dos Estados Unidos (Campos; Alvarez, 2017Campos, Marcelo da Silveira; Alvarez, Marcos César. “Pela metade: implicações do dispositivo médico-criminal da ‘Nova’ Lei de Drogas na cidade de São Paulo”. Tempo Social, v. 29, n. 2, 2017, pp. 45-74.), que permite o enquadramento de negros e pobres, flagrados com pouca droga, como traficantes por juízes brancos (Alves, 2017Alves, Dina. “Rés negras, juízes brancos: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana”. Revista Cs, 2017, pp. 97-120.).

Para vários entrevistados, a quantidade de drogas não é baliza para a diferenciação entre “traficantes” e “usuários”, haja vista a necessidade de se considerar “a pessoa”. O Operador 8 foi taxativo: “Sou contra, a princípio, taxar quantidade porque é singular, você precisa analisar a conduta do indivíduo no contexto”. Já o Operador 5 complementou: “Pode estar com um grama de maconha, mas qual que é o passado da pessoa, qual é o lugar, onde a pessoa foi abordada, o horário que a pessoa foi abordada, o dia que a pessoa foi abordada….”.

Para saber se a “pessoa” é traficante, seu passado e onde ela foi abordada são perscrutados. Do total de réus, 72% contavam com passagens anteriores na polícia, mas somente 38% tinham antecedentes criminais (anteriormente condenados) e, desse total, 50% tinham cumprido pena por tráfico de drogas. Nesse quesito, existem diferenças estatisticamente significativas entre homens e mulheres. Os homens têm percentuais maiores de “registro anterior pela polícia”, “reincidência em geral” e “reincidência específica”.8 8 Qui-quadrado: 89,111; DF=1, P<0,001. Dos acusados do sexo masculino reincidentes (39% do total), 2/5 (40%) tinham sido condenados anteriormente por tráfico de drogas. Das mulheres reincidentes (23% do total), 27% tinham sido condenadas pela Lei n. 11.343/2006.

Apesar das diferenças entre homens e mulheres, há um grupo de indivíduos que experimenta o que os operadores chamam de “porta giratória do sistema de justiça criminal”. A vigilância policial os flagra vendendo drogas, eles são processados, condenados e, quando saem do sistema prisional, voltam para o ponto em que estavam, são novamente identificados pela polícia e o ciclo recomeça. Para os entrevistados, essa é a ameaça à comunidade que o sistema de justiça criminal deve evitar:

Como é que você vai soltar uma pessoa que foi pega vendendo droga, no dia seguinte vai estar vendendo droga de novo, né, então ela vai vender droga de novo. O traficante não é aquele traficante que “ah, vendi uma vez e nunca mais vou vender”, não. Tem o traficante eventual e tem o traficante reiterado, esse a gente prende, o critério objetivo vai ser se ele é reincidente, se ele já foi preso vendendo droga. (Operador 2; grifos nossos)

Outro elemento que entra nas considerações práticas é o papel exercido pela polícia na articulação do fluxo de processamento (Jesus, 2020Jesus, Maria Gorete Marques de. “Verdade policial como verdade jurídica: narrativas do tráfico de drogas no sistema de justiça”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 102, 2020.). A maioria absoluta dos casos começa com a prisão em flagrante dos acusados (93%), dos quais 18% foram detidos em lugares rotulados como “área de tráfico”. Se não há diferença estatisticamente significativa quanto ao sexo para a prisão em flagrante, o mesmo não pode ser dito sobre a “área de tráfico”, dado que quase 1/3 das mulheres (30%) foram detidas nesses espaços (contra 1/5 dos homens). Das mulheres, 34% foram presas em casa, sem mandado de prisão, embora os policiais afirmem que “a entrada foi franqueada pela suspeita”. Padrão semelhante foi observado por Monica Cortina (2016), Helena Castro e Manuela Valença (2018Castro, Helena Rocha Coutinho; Valença, Manuela Abath. “Mulheres e drogas sob o cerco policial”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 146, 2018, pp. 483-514.), que argumentam que a vigilância policial em espaços de periferia contribui para o maior aprisionamento de mulheres, sem drogas, sem armas e sem qualquer participação que possa ser comprovada no comércio ilegal.

Os entrevistados confirmaram esses padrões de detenção feminina, justificando que elas seriam forçadas a: (i) substituir os maridos já presos no comércio ilegal; ou (ii) guardar drogas que seriam distribuídas nos dias de visita. Há uma presunção de culpa de mulheres cujos parceiros estão privados de liberdade, o que justificaria a prisão em sua própria residência, sem qualquer questionamento de qual seria o efetivo envolvimento delas nessas redes de comércio ilegal. Nas palavras de um dos entrevistados:

Acontece às vezes desses parceiros serem presos e elas, por estarem no núcleo, no aglomerado, continuarem ali guardando droga para o traficante ou por razão de dívida desse marido. A maioria é isso. Estabelecimento penal para que o parceiro utilize, raramente eu vi uma mãe levar droga para filha presa ou aprendida, não vi não, mas para namorado, marido e companheiro [ela] leva, sim. Não é essa só a situação que a gente vê hoje, não, a gente vê situação de mulheres que guardam [drogas] em casa, e a maioria delas foi envolvimento pelo namorado, pelo marido, [ela] se viu envolvida naquela situação, e umas moças no sentido de boa aparência, assim bonitas, que você se questiona por que se deixaram envolver dessa forma. (Operador 6; grifos nossos)

Esse depoimento traz elementos importantes para compreensão da narrativa do amor bandido. As mulheres acusadas de tráfico de drogas são negras e pobres, residentes em áreas conhecidas como “perigosas” em razão do comércio ilegal. A maioria delas não possui envolvimento anterior com o crime, ao contrário dos homens que são acusados de tráfico de drogas. São presas em suas residências guardando drogas, e não na rua, vendendo-as. Como não possuem uma ocupação legal (porque se dedicam às tarefas domésticas), mas são “extremamente bonitas”, elas só podem sobreviver da droga. Não há, nessa construção social da traficante, nenhum elemento que fale de sua atuação no comércio varejista, de sua posição na cadeia de distribuição da droga. O que existe é uma expectativa de que elas se subjuguem à vontade do homem que está envolvido nessa dinâmica, porque elas são mulheres e tal conduta estaria no script de gênero (Cortina, 2015Cortina, Monica Ovinski de Camargo. “Mulheres e tráfico de drogas: aprisionamento e criminologia feminista”. Revista Estudos Feministas, v. 23, n. 3, 2015, pp. 761-78.). Considerando-se essa ginástica mental para enquadrar as mulheres pobres como traficantes pela legislação vigente, seria de esperar que os homens recebessem punições mais duras do que as mulheres, que poderiam ser enquadradas na figura do tráfico privilegiado (Semer, 2019Semer, Marcelo. “Sentenciando tráfico: pânico moral e estado de negação formatando o papel dos juízes no grande encarceramento”. Tese (doutorado em direito). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2019.).

MAIS DUROS COM ELAS?

De todos os acusados de tráfico de drogas, 36% receberam prisão preventiva, aguardando a investigação policial e o processo penal privados de liberdade.9 9 A maioria dos processos analisados (76%) não conta com Audiência de Custódia, que foi instituída em Belo Horizonte em setembro de 2015. Quanto à sentença, 59% foram condenados por tráfico de drogas, 18% foram absolvidos; 14,2% foram considerados usuários (em detrimento de traficantes); e em 8,8% dos casos houve a morte do acusado, o que levou à extinção da punibilidade. Entre os que receberam a condenação, 74% foram encaminhados ao regime fechado (o mais gravoso de todos), enquanto 7% foram enviados ao regime semiaberto e 19% ao regime aberto. Desagregando essas informações por sexo (Tabela 5), as mulheres receberam mais a prisão preventiva do que os homens (47% versus 42%), mas eles foram mais condenados ao regime fechado do que elas (75% versus 68%). Ambos receberam a condenação em percentuais iguais (60%).

TABELA 5
Estatísticas descritivas das variáveis relacionadas às decisões no fluxo de processamento, por sexo do acusado (Belo Horizonte, 2007-20)

Apesar de homens e mulheres serem condenados na mesma proporção, elas são mais susceptíveis a receber a prisão preventiva, a medida mais gravosa que se pode receber em qualquer momento do processo penal, seja de acordo com a literatura internacional (Ulmer, 2019Ulmer, Jeffery T. “Criminal Courts as Inhabited Institutions: Making Sense of Difference and Similarity in Sentencing”. Crime and Justice, v. 48, n. 1, 2019, pp. 483-522.; Lynch, 2019Lynch, Mona. “Focally Concerned about Focal Concerns: A Conceptual and Methodological Critique of Sentencing Disparities Research”. Justice Quarterly , v. 36, n. 7, 2019, pp. 1.148-75.) e nacional (Lages; Ribeiro, 2021Lages, Lívia; Ribeiro, Ludmila. “El castigo silencioso de los detenidos en prisión preventiva”. Estudios Sociológicos, v. 39, n. 117, 2021, pp. 865-97.), seja de acordo com os operadores entrevistados em Belo Horizonte. Essa situação de “piora” decorre da detração de pena, que permite que o tempo de prisão preventiva seja descontado do lapso final de punição. Mulheres recebem menos o regime fechado não porque o sistema é mais benévolo com elas, mas porque já estão atrás das grades há tanto tempo que o montante de pena a ser cumprido torna-se menor que oito anos, requisito para a condenação ao regime fechado. Então, o que permite o tratamento mais severo dado a elas no começo do fluxo de processamento?

Nos Estados Unidos, a decretação da prisão preventiva obedece aos requisitos de gravidade do delito, reincidência e capacidade de pagamento da fiança. Homens recebem mais a prisão preventiva porque são mais autuados com arma de fogo, longas fichas criminais e sem capacidade de pagar fianças elevadas (Steffensmeier; Painter-Davis; Ulmer, 2017Steffensmeier, Darrell; Painter-Davis, Noah; Ulmer, Jeffery. “Intersectionality of Race, Ethnicity, Gender, and Age on Criminal Punishment”. Sociological Perspectives, v. 60, n. 4, 2017, pp. 810-33.). Como a prisão preventiva aumenta a chance de condenação e o tempo de privação de liberdade, as mulheres receberiam sentenças mais brandas, mesmo quando acusadas de crimes mais graves (Steffensmeier; Painter-Davis; Ulmer, 2017Steffensmeier, Darrell; Painter-Davis, Noah; Ulmer, Jeffery. “Intersectionality of Race, Ethnicity, Gender, and Age on Criminal Punishment”. Sociological Perspectives, v. 60, n. 4, 2017, pp. 810-33.; Steffensmeier; Kramer; Ulmer, 1998Steffensmeier, Darrell; Ulmer, Jeffery; Kramer, John. “The Interaction of Race, Gender, and Age in Criminal Sentencing: The Punishment Cost of Being Young, Black, and Male”. Criminology, v. 36, n. 4, 1998, pp. 763-98.; Steffensmeier, Kramer; Streifel, 1993Steffensmeier, Darrell; Kramer, John; Streifel, Cathy. “Gender and Imprisonment Decisions”. Criminology, v. 31, n. 3, 1993, pp. 411-46.; Steffensmeier, 1980Steffensmeier, Darrell J. “Assessing the Impact of the Women’s Movement on Sex-Based Differences in the Handling of Adult Criminal Defendants”. Crime, Delinquency, v. 26, n. 3, 1980, pp. 344-57.).

No Brasil, para a decretação das prisões preventivas, o Código de Processo Penal (CPP) estabelece outras balizas, quais sejam: (i) a pena prevista para o crime ser superior a quatro anos (no tráfico de drogas, a pena mínima é de cinco anos); (ii) ser reincidente por crime doloso (condenado há menos de cinco anos); (iii) ter descumprido medida cautelar; (iv) não se saber sobre a identidade civil do suspeito. Contudo, a prisão preventiva não é mandatória, e sim excepcional, devendo ser enquadrada nas seguintes possibilidades: garantia da ordem pública; garantia da ordem econômica; conveniência da instrução criminal, ou necessidade de assegurar a aplicação da lei penal. Porém, essas categorias são vagas e dão enorme discricionariedade ao juiz, que decide sem amarras sobre a prisão preventiva em caso de tráfico de drogas (Lemgruber; Fernandes, 2015Lemgruber, Julita; Fernandes, Marcia. “Tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro: prisão provisória e direito de defesa”. Boletim Segurança e Cidadania, v. 17, 2015, pp. 1-50.). A garantia da ordem pública, por exemplo, pode servir tanto para justificar a prisão preventiva de alguém que portava uma arma de fogo como para fundamentar a detenção de quem levava pequenas quantidades de drogas (Lages; Ribeiro, 2021Lages, Lívia; Ribeiro, Ludmila. “El castigo silencioso de los detenidos en prisión preventiva”. Estudios Sociológicos, v. 39, n. 117, 2021, pp. 865-97.).

Após a decretação da prisão preventiva no Brasil, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, não há um prazo para sua revogação e/ou encerramento do processo penal. É possível que processos de pessoas presas preventivamente se arrastem por décadas. Mesmo quando os processos são questionados em razão da demora excessiva, o Supremo Tribunal Federal entende que não cabe a liberação imediata do preso (Ribeiro, 2019Ribeiro, Ludmila. “Excesso de prazo no processo penal: a gramática do Supremo Tribunal Federal”. Revista Brasileira de Sociologia, v. 7, n. 16, 2019, pp. 50-81.). Caso o réu seja absolvido ao final do processo em que esteve preso preventivamente, não cabe ressarcimento em dinheiro, o que significa que não há custos para o Estado com essa medida (Magalhães, 2019Magalhães, Breno Baía. “O estado de coisas inconstitucional na ADPF 347 e a sedução do direito: o impacto da medida cautelar e a resposta dos poderes políticos”. Revista Direito GV, v. 15, n. 2, 2019.). A prisão preventiva torna-se, então, uma condenação antes do processo, converte-se numa pena imediata dada pelo juiz, com o aval do promotor de justiça (Lages; Ribeiro, 2021Lages, Lívia; Ribeiro, Ludmila. “El castigo silencioso de los detenidos en prisión preventiva”. Estudios Sociológicos, v. 39, n. 117, 2021, pp. 865-97.). Os entrevistados concordam com essa visão e legitimam a prisão preventiva como uma “pena imediata”.

A possibilidade de dar uma pena que não é tão grande, mas que é imediata, porque o cara vai ser pego ali no flagrante, vai responder preso. É pena imediata [a prisão preventiva], essa é uma pena que responde àquilo que a gente chama de os princípios de Beccaria. (Operador 5; grifos nossos)

A prisão preventiva, ela tem que ser bem usada, até mesmo para dar uma resposta estatal e uma resposta à sociedade, que, se você traficar drogas, a punição, “punição” entre aspas porque aí é provisória, mas as consequências, melhor dizendo, as consequências elas não são... você tem que tornar o tráfico de drogas menos atraente. (Operador 7; grifos nossos)

Isso [a prisão preventiva] é um meio para chegar a um fim por maneira transversa. Eu vou explicar: o que era para acontecer era a condenação não demorar tanto, e ele ser condenado em peso, só que em virtude do sistema, [em] que a condenação é uma coisa tão distante que a própria justiça se adaptou de maneira a, entre aspas, “começar a cumprir a pena antes de ser condenado”. (Operador 14; grifos nossos)

Darrell Steffensmeier, John Painter-Davis e Cathy Ulmer (2017Steffensmeier, Darrell; Painter-Davis, Noah; Ulmer, Jeffery. “Intersectionality of Race, Ethnicity, Gender, and Age on Criminal Punishment”. Sociological Perspectives, v. 60, n. 4, 2017, pp. 810-33.) afirmam que, nos Estados Unidos, os homens recebem mais a prisão preventiva porque precisam ser contidos imediatamente. Eles representam um perigo à comunidade e sua retirada de circulação não altera substantivamente as dinâmicas familiares, posto que as mulheres são as responsáveis pelas tarefas de cuidado (Steffensmeier; Kramer; Ulmer, 1998Steffensmeier, Darrell; Ulmer, Jeffery; Kramer, John. “The Interaction of Race, Gender, and Age in Criminal Sentencing: The Punishment Cost of Being Young, Black, and Male”. Criminology, v. 36, n. 4, 1998, pp. 763-98.). No Brasil, acontece o oposto. As mulheres são contidas no início do fluxo, porque devem receber uma lição imediata, que repudie com maior rigor a transformação da moradia em “pontos de droga” e o compartilhamento da residência com “traficantes”. A prisão preventiva atua como mecanismo de reenquadramento na lógica de respeito às regras, porque a mulher saiu do papel de “sexo frágil”, como descreveu um dos operadores:

O caso clássico, o marido chefia uma boca de fumo e é preso. E a mulher, ela assume o controle da boca de fumo. E ela assume com desenvoltura, então você tem áudio dela falando: “o quê que aquelas ali tão pensando que vão fazer? A quebrada aqui é minha e do meu marido. Eu tenho uma arma guardada com fulano, outra com ciclano, vou mandar matar”. Ou então: “tem aqueles dois ali, vou pedir pro fulano bater no beltrano e ciclano bater no fulaninho”. E isso tudo [são] diálogos em que essa mulher, essa frágil mulher, é que era a interlocutora? (Operador 1; grifos nossos)

Se homens e mulheres são semelhantes em termos de status socioeconômico e praticam a mesma conduta (culpabilidade), as motivações para o delito são diversas, segundo os operadores (elas o “amor bandido”, eles a renda e o status). Considerando-se que os homens têm “longa ficha criminal” e elas são primárias, sendo detidas em casa, seria de esperar que as decisões tomadas ao longo do fluxo de processamento fossem mais “leves” para elas. Contudo, os resultados indicam que o sistema de justiça criminal é, em verdade, mais duro com as mulheres.

As mulheres não são processadas pela Lei n. 11.343/2006, mas pelas expectativas de gênero. Apesar de a conduta delas ser vista como “menos gravosa” do ponto de vista jurídico, elas são vistas como “mais perigosas”, porque deixaram de ser o “sexo frágil”. As ilegalidades delas estão associadas ao seu baixo status socioeconômico (raça, escolaridade, ocupação e lugar de moradia), que as transformam em “bandidas” a amargar o cárcere. A preocupação dos operadores é contê-las a qualquer custo, o que explica o crescimento do número de mulheres presas por tráfico de drogas, ainda que seu maior desvio seja residir em “área de tráfico”, “ter drogas em sua residência” ou “morar com alguém que foi preso”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A teoria das preocupações focais diz que as mulheres são mais beneficiadas que os homens no processamento penal, porque têm menos chances de serem percebidas como “criminosas” (elemento da culpabilidade) e “perigosas” (elemento da proteção da comunidade), além de serem “indispensáveis às tarefas de cuidado” (elemento das implicações práticas) (Steffensmeier; Painter-Davis; Ulmer, 2017Steffensmeier, Darrell; Painter-Davis, Noah; Ulmer, Jeffery. “Intersectionality of Race, Ethnicity, Gender, and Age on Criminal Punishment”. Sociological Perspectives, v. 60, n. 4, 2017, pp. 810-33.; Steffensmeier; Kramer; Ulmer, 1998Steffensmeier, Darrell; Ulmer, Jeffery; Kramer, John. “The Interaction of Race, Gender, and Age in Criminal Sentencing: The Punishment Cost of Being Young, Black, and Male”. Criminology, v. 36, n. 4, 1998, pp. 763-98.; Steffensmeier; Kramer; Streifel, 1993Steffensmeier, Darrell; Kramer, John; Streifel, Cathy. “Gender and Imprisonment Decisions”. Criminology, v. 31, n. 3, 1993, pp. 411-46.; Steffensmeier, 1980Steffensmeier, Darrell J. “Assessing the Impact of the Women’s Movement on Sex-Based Differences in the Handling of Adult Criminal Defendants”. Crime, Delinquency, v. 26, n. 3, 1980, pp. 344-57.). A análise de dados coletados em Belo Horizonte revelou que as mulheres recebem decisões desfavoráveis por serem “namoradas” ou “esposas” de traficantes, e isso as torna “bandidas”. As implicações práticas, relacionadas à valorização do trabalho policial para a condenação por esse delito, também se sobressaiu nos discursos dos entrevistados, contribuindo para piorar a situação da mulher. Se ela reside em “área de tráfico” e consegue ir ao cabeleireiro, ela só pode ser traficante.

As entrevistas indicam que o processo decisório do tráfico de drogas se estrutura pelo sexo do acusado, um marcador de destaque. Ao contrário do que Steffensmeier e colegas previam, as mulheres são as mais penalizadas em Belo Horizonte: elas são “condenadas” com a prisão preventiva, que significa “sanção imediata”, “condenação antes do processo”. Entre os motivos apontados para esse padrão estão as expectativas de retidão, impossíveis de serem satisfeitas em razão da pobreza em que elas vivem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 1
    A pesquisa “Fluxo de processamento do tráfico de drogas em Belo Horizonte: uma década de seletividade”, iniciada em 2019, a partir do apoio do CNPq (auxílio 301402/2018-3), teve como objetivo mapear os determinantes do fluxo de processamento do tráfico de drogas em Belo Horizonte entre 2007 e 2017, período que encobre uma década de vigência da Nova Lei de Drogas (lei n. 11.343/2006). As pesquisadoras do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp), coordenadas pela professora Ludmila Ribeiro, estruturam uma base de dados a partir da consulta a uma amostra dos processos arquivados no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, além de um banco de entrevistas com profissionais que atuavam nas Varas de Tóxico (juízes, promotores e defensores) para compreender como ocorre o processamento e sentenciamento de sujeitos autuados por tráfico de drogas, além das justificativas dadas para a condenação ou absolvição.
  • 2
    Em 2019, o Supremo Tribunal Federal “concedeu a substituição da prisão preventiva por domiciliar em favor de todas as mulheres submetidas à prisão cautelar que fossem gestantes, puérperas ou mães com crianças de até 12 anos de idade” (Angotti; Tramontina; Vieira, 2020Angotti, Bruna; Tramontina, Robison; Vieira, Regina Stela Corrêa. “Cuidado e direitos fundamentais: o caso do habeas corpus coletivo para pais e responsáveis por crianças e pessoas com deficiência”. Espaço Jurídico: Journal of Law, v. 21, n. 2, 2020, pp. 563-76., p. 1). Como essa decisão foi tomada após o encerramento da pesquisa, ela não teve efeito nos casos analisados, mas reconhece que as mulheres recebem decisões piores do que os homens nas etapas iniciais do fluxo de processamento.
  • 3
    Assim chamada em oposição à Velha Lei de Drogas, a Lei n. 6.368/1976.
  • 4
    Crimes relacionados ao uso de drogas são encaminhados aos Juizados Especiais Criminais porque não são passíveis de punição por meio da privação da liberdade. Não são de competência das Varas de Tóxicos.
  • 5
    Um mesmo processo pode ter vários acusados e estes podem ser considerados participantes iguais na prática do delito ou apenas ajudantes secundários.
  • 6
    Os processos penais não trazem qualquer informação e/ou preocupação sobre o impacto das decisões na estrutura familiar.
  • 7
    Trabalho aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE: 84242418.4.0000.5149).
  • 8
    Qui-quadrado: 89,111; DF=1, P<0,001.
  • 9
    A maioria dos processos analisados (76%) não conta com Audiência de Custódia, que foi instituída em Belo Horizonte em setembro de 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2021
  • Aceito
    13 Jul 2022
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