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Respeitável público...: performance e organização dos movimentos antes dos protestos de 2013

Resumos

O texto aborda as metáforas dramatúrgicas e as realidades teatrais evocadas pela performance do Movimento Passe Livre (mpl) e dos Comitês Populares da Copa (cpc). Inspirado pelas categorias de uma sociologia teatral, concentra-se nos eventos anteriores à eclosão das manifestações. Na análise são destacadas a dramaticidade da violência, a alta dose de contingência das performances públicas, bem como as modalidades organizacionais.

Movimentos sociais; Protestos de junho de 2013; Movimento passe livre; Comitês populares da copa; Performance


The text considers the dramaturgical metaphors and the theatrical realities called on upon by the Free Fare Movement (mpl) and by the World Cup's Popular Committees (cpc). Leaning on the analytical categories of a theatrical sociology, it focuses on the events prior to the eruption of street protests in June 2013 in Brazil. The analysis highlights the drama of violence, the high dose of contingency of social movements performances.

Social movements; June 2013 protests; Free fare movement; World cup's popular committees; Performance


DOSSIÊ: MOBILIZAÇÕES, PROTESTOS E REVOLUÇÕES

Respeitável público... Performance e organização dos movimentos antes dos protestos de 2013* * Versão desenvolvida a partir do texto apresentado no ciclo de seminários Protesto, Reforma Política e Políticas Públicas (São Paulo: CEBRAP, 20 de setembro de 2013). Agradecemos a Jessica Voigt e a Mariana Toledo pelas informações valiosas sobre os protestos e movimentos.

Monika DowborI; José SzwakoII

IDoutora em Ciência Política (USP) e pesquisadora do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do Cebrap

IIPesquisador do Programa de Pós-graduação em Ciência Política (UFPR) e do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do Cebrap

RESUMO

O texto aborda as metáforas dramatúrgicas e as realidades teatrais evocadas pela performance do Movimento Passe Livre (mpl) e dos Comitês Populares da Copa (cpc). Inspirado pelas categorias de uma sociologia teatral, concentra-se nos eventos anteriores à eclosão das manifestações. Na análise são destacadas a dramaticidade da violência, a alta dose de contingência das performances públicas, bem como as modalidades organizacionais.

Palavras-chave: Movimentos sociais; Protestos de junho de 2013; Movimento passe livre; Comitês populares da copa; Performance

ABSTRACT

The text considers the dramaturgical metaphors and the theatrical realities called on upon by the Free Fare Movement (mpl) and by the World Cup's Popular Committees (cpc). Leaning on the analytical categories of a theatrical sociology, it focuses on the events prior to the eruption of street protests in June 2013 in Brazil. The analysis highlights the drama of violence, the high dose of contingency of social movements performances.

Keywords: Social movements; June 2013 protests; Free fare movement; World cup's popular committees; Performance

"Calma, calma! Não deixa a tropa perder a cabeça."

Coronel Reynaldo S. Rossi (Polícia Militar de São Paulo)

"Power of any kind must be clothed in effective means of displaying it, and it will have different effects depending upon how it is dramatized."

Erving Goffman

Espetáculo que merece o nome tem hora, data e local marcados. Dia 13 de junho de 2013, após três "grandes atos", o Movimento Passe Livre (mpl) convocava simpatizantes para ir às ruas e dar sequência ao seu script, despertando a ira e a paixão dos antagonistas: no mesmo dia, a Folha de S.Paulo publica um editorial em que pede um ponto final nas manifestações.

[...] No quarto dia de protestos, que junta milhares de pessoas e paralisa avenidas em São Paulo, a polícia [...] reprime violentamente os manifestantes com gás lacrimogêneo e balas de borracha. Há muitos feridos, entre eles muitos repórteres da própria Folha de S.Paulo. As imagens dos feridos chamam a atenção mundial para os protestos. A Anistia Internacional condena a repressão; Alckmin e Haddad não aceitam rever o preço das passagens dos transportes; uma sondagem aponta: a população apoia os protestos1 1 Cf. < http://www.esquerda.net/dossier/cronologia-dos-vinte-dias-que-abalaram-o-brasil/28450>. .

Tendo como palco a avenida Paulista, o coração histórico do capitalismo brasileiro, o drama entre manifestantes e repórteres digladiando com "violentos" policiais tocou o grande público. Os números do episódio da noite do dia 13 variam: 5 mil manifestantes de acordo com as forças repressivas e 20 mil segundo os organizadores. Se os conflitos com a polícia não são exatamente uma novidade na trajetória do MPL, o que surpreendeu a ambos, aos protagonistas e ao público, foi a desproporcionalidade com que a corporação policial paulista atuou, reprimindo e adequando-se perfeitamente ao papel de vilão. A mídia hesitou inicialmente, chegando a criminalizar a performance do MPL, mas logo mudou de lado. Apaixonada, a plateia mais ampla não apenas elogiou a peça, mas saiu das fileiras do público para ser ator e autor dela - "não são só 20 centavos". Naquela noite encerrava-se o prólogo do ciclo de protestos mais espetacular que o Brasil conheceu desde a queda de Fernando Collor.

Os "grandes atos" do mpl alavancaram uma onda de protestos cujas dimensões e sentidos políticos ainda estão por ser compreendidos. Tratamos neste texto de levantar as metáforas dramatúrgicas e as realidades teatrais evocadas pela performance do MPL e dos Comitês Populares da Copa (cpc). Inspirados pelas categorias de uma sociologia teatral, nosso olhar se concentra nos eventos anteriores à eclosão das manifestações. O que havia antes dos protestos de junho de 20132 2 No que tange ao MPL, os principais dados dizem respeito à chamada Revolta do Buzu e à Revolta da Catraca - ou Guerra da Tarifa (Cf. Vinicius, Leo. Guerra da Tarifa 2005. Uma visão de dentro do movimento passe-livre em Floripa. São Paulo: Faísca Publicações Libertárias, 2005) - ocorridas em Salvador e em Florianó polis, respectivamente. Já no que tange aos CPC, focaremos na sua construção organizacional e nos dois atos públicos, um paulista e carioca, que retratam sua forma de dar visibilidade a suas causas. ? Como mpl e cpc se organizam internamente, isto é, como organizam seus bastidores? Por outro lado, como se dão suas formas públicas de exposição e teatralização3 3 É possível estabelecer uma analogia entre as categorias da sociologia de Goffman, tais como palco, bastidores ou performance, e as categorias da sociologia do confronto nas quais operam conceitos como repertórios de ação, campanhas, organizações, enquadramentos. Ambas ajudam a apreender a complexidade desse fenômeno que são os movimentos sociais; todavia, neste texto optamos pelo uso das metáforas teatrais porque elas conseguem, neste caso, descrever a lógica performática do processo. Cf. Alonso, Angela. "A teatralização da política: a propaganda abolicionista". Tempo Social, vol. 24, nº 2, pp. 101-22, 2012; Szwako, José. "Presentación y representación. Las vitrinas públicas del feminismo paraguayo a la luz de C. Tilly". Texto apresentado no VI Congresso Latinoamericano de Ciência Política da Associação Latinoamericana de Ciência Política (ALACIP). Quito, 2012. ? Nosso intuito é argumentar que o ferramental analítico extraído do diálogo da sociologia das dinâmicas de confronto4 4 McAdam, D., Tarrow, S. e Tilly, C. Dynamics of contention. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. com a veia dramatúrgica do interacionismo simbólico5 5 Goffman, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Trad. Maria Célia Santos Raposo. Rio de Janeiro: Vozes, 2006. não apenas nos ajuda a entender a performance desses atores, como também enriquece a compreensão dos processos por eles desencadeados.

Uma abordagem teatralizada dos movimentos sociais permite entendê-los como "dramas nos quais protagonistas e antagonistas competem para afetar as interpretações do público a respeito das relações de poder em vários domínios"6 6 Benford, R. D. e Hunt, S. A. "Dramaturgy and social movements: the social construction and communication of power". Sociological Inquiry, vol. 62, nº 1, p. 38, 1992. . Nessa competição pela interpretação da plateia e por uma reação positiva do público, a performance dos movimentos visa transformar aquilo que é uma plateia desde sempre virtual (seja ela as autoridades estatais, a opinião pública ou quaisquer outras personagens da sociedade civil) em um público espectador cativo, um aliado. Para esse trabalho de convencimento e adesão, os movimentos dramatizam ações, forjando ou emprestando palcos e vitrines e encenando atos que dependem da cooperação entre seus protagonistas (os militantes) e do esforço deles para a perfeição de cada parte do seu espetáculo (a cenografia, a trilha sonora, o figurino).

Longe de serem espontâneos, esses palcos, atos e espetáculos são construídos ao longo e através das trajetórias acumuladas pelos próprios militantes protagonistas e são inspirados em formas já existentes. Os movimentos se conformam como equipes7 7 Goffman, op. cit., p. 76. , cuja cooperação íntima e duradoura entre suas personagens constrói uma disposição estético-ideológico-estratégica amparada no acúmulo prévio de saberes e de experiências vividas coletiva e individualmente. Uma leitura dramatúrgica dos movimentos não tira deles seu componente estratégico; os meios para alcançar seus objetivos tanto podem ser lidos a partir de metáforas teatrais como delas se nutrem. Essa leitura permite, ainda, compreender como os objetivos e meios dos movimentos são prévia e internamente construídos a partir das interações e investimentos nos chamados bastidores e encenados publicamente nos palcos. Por fim, a utilização das metáforas teatrais não tem por objetivo despolitizar a atuação dos movimentos; consideramos apenas um enquadramento analítico alternativo ao da semântica do confronto e das metáforas bélicas. Ambos, interacionismo e confronto político, são formas ricas e não excludentes de se aproximar desse universo heterogêneo e complexo.

Três categorias analíticas intermediárias vão nos apoiar nessa aproximação teatral ao mpl e aos cpc: a noção de bastidores, pela qual Goffman enfatiza aquilo que não é dado à percepção pública e que, para nós, remete à forma de organização interna dos movimentos e ao espaço de deliberação estratégica do movimento8 8 A concepção do plano ou do roteiro nos bastidores é, decerto, coisa distinta da sua atualização, que é a própria performance. O caráter distintivo da performance, entendida como atualização da estratégia do movimento num palco de interação concreta com outros, está no seu caráter improvisado e, portanto, contingente. Assim, a relação entre o planejado nos bastidores e a performance não é unívoca, isso porque o resultado exitoso, ou não, de determinado protesto ou manifestação depende da performance de suas personagens e de dimensões contingentes por elas não manipuladas. ; as noções de palco, também goffmaniana, e de vitrine (public display)9 9 Cf. Tilly, C. "Social movement as historically specific clusters of political performances". Berkeley Journal of Sociology, 38, p. 1-30, 1993/94: "A social movement consists of a sustained challenge to powerholders in the name of a population living under the jurisdiction of those powerholders by means of repeated public displays of that population's numbers, commitment, unity, and worthiness". Cf. também Tilly, C. e Tarrow, S. Contentious politics. Boulder: Paradigm Publishers, 2007. . Dispostos em um continuum que vai das vitrines aos palcos, os movimentos constroem formas pelas quais expõem suas causas para um público maior e dramatizam suas questões.

Essas noções fornecem um instrumento simples porém adequado para abordar os atos e as performances do mpl e dos cpc antes que a audiência mais ampla se tornasse massa ativa, invadindo e tomando para si o palco dos protestos. Além disso, e de um ponto de vista analítico, ambas as noções falam a língua de uma sociologia relacional, em cujo centro estão as relações travadas entre atores, bem como as estratégias dramáticas e dramatúrgicas empregadas nessas mesmas relações10 10 A aproximação sistemática entre Goffman e Tilly é tarefa ainda a ser feita, mas que certamente pode enriquecer a teoria dos movimentos sociais. Àqueles interessados nessa empreitada teórica fica a sugestão de que as noções de "representação do eu" e de "vitrine pública" têm um agudo parentesco intelectual. Na tradução de The presentation of self in everyday life o termo " performance" foi vertido ao português como "representação" ao longo de toda a obra. Sobre a possível e provável proximidade entre as noções veja-se: "[nós analistas] inclinamo-nos a nos manter cegos para o fato de que representações diárias seculares [ everyday secular performances] [...] devem passar por uma rigorosa prova de idoneidade, conveniência, propriedade e decoro" (p. 57); ao passo que, em sua última obra com Sidney Tarrow, Tilly subsume vitrine à definição de " self-representation", entendida como "an actor's or coalition's public display of worthiness, unity, numbers, and commitment" (Tilly e Tarrow, op. cit., 2007: 217). .

NOS BASTIDORES: A EXPERIÊNCIA ACUMULADA E A VOCALIZAÇÃO DO ATOR-EVENTO

O Movimento Passe Livre

Embora a gênese oficial do MPL tenha se dado no Fórum Social Mundial de 2005, suas raízes organizacionais e de ação podem ser encontradas em três episódios de conflito e confronto entre jovens (a maior parte deles estudantes de ensino médio) e as autoridades (executivas e repressivas) em duas capitais brasileiras: Salvador (Revolta do Buzu, em 2003) e Florianópolis (Revolta da Catraca, em 2004 e 2005). Segundo a autoimagem do MPL paulista, a luta pela democratização da mobilidade e do transporte no Brasil "não começou em Salvador nem termina em São Paulo". Para o movimento, "as revoltas populares em torno do transporte coletivo assaltam a história das metrópoles brasileiras desde sua formação"11 11 Movimento Passe Livre. Carta de princípios do Movimento Passe Livre, 2007 < http://mpl.org.br/?q=node/2>, acessado em 20/10/2013. . Exemplo disso seriam os "bondes virados" pela Revolta do Vintém12 12 Cf. Jesus, R. P. "A Revolta do Vintém e a crise na monarquia". História Social, vol. 12, pp. 73-89, Campinas, 2006. , que, mesmo ocorrida em pleno fim do império brasileiro, traz elementos para uma possível comparação entre ciclos distantes, porém com lógicas paralelas e objetos comuns de disputa. O movimento social estabelece limites e pontes entre si e outros, neste caso, seus antecedentes, forjando linhas imaginárias de continuidade com lutas "contra os sucessivos aumentos das passagens"13 13 mpl, op. cit. e com "as revoltas populares contra as condições do transporte coletivo urbano"14 14 Cf. Manolo. "Teses sobre a Revolta do Buzu", 2011, < http://passapalavra.info/2011/09/46384>, acessado em 20/10/2013. .

Salvador e Florianópolis foram dois marcos na constituição do MPL. São a eles, portanto, que vamos nos remeter para falar sobre o que havia antes das manifestações deste ano. Os dois episódios importam na medida em que deixaram heranças e aprendizados de peso não só para a performance pública do mpl, mas também em seus bastidores.

Data: setembro de 2003. Enredo e cenário: uma "linda e emocionante história" das "lutas sociais" na capital baiana. Estrelas de um drama conhecido: "filhos e filhas de pais desempregados". "Entre final de agosto e começo de setembro de 2003 a cidade de Salvador-BA foi palco de uma impressionante onda de protestos estudantis contra o aumento do preço da passagem de ônibus urbano"; "setembro de 2003, mês que marcou a história de lutas sociais em Salvador nos últimos 30 anos. Os protagonistas desta linda e emocionante história seriam indivíduos comuns"; "filhos e filhas desta população afetada pelo desemprego, pelo trabalho precário ou pelo empobrecimento progressivo, foram os principais protagonistas da Revolta do Buzu". Com esse perfil em mãos, dizer que as narrativas dos movimentos sociais se valem de metáforas dramatúrgicas seria algo óbvio. A distinção mesma entre metáfora e realidade deve ser revista, se não abandonada, dado que e na medida em que a ação dramática daqueles jovens atores fez de Salvador o palco para sua interpretação15 15 Veja-se A Revolta do Buzu, documentário de Carlos Pronzato < http://memorialatina.net/2013/08/13/a-revolta-do-buzu-salvador-10-anos-de-luta-pelo-passe-livre/>. Cf. também Mercês. "O exemplo da revolta do Buzu, em Salvador/ba" < http://www.midiaindependente.org/pt/red/2004/03/275678.shtml> e Manolo, op. cit. Tal perfil permite entrever as linhas de organização que extrapolaram o episódio de Salvador e se imprimiram no repertório organizacional e ideológico do mpl alguns anos depois, quais sejam, apartidarismo, horizontalidade e anticapitalismo. .

É nos bastidores que os movimentos sociais formulam seu roteiro estratégico. Mas como falar de "bastidores" no caso de manifestações nas quais seus protagonistas evocam e conseguem não só um alto grau de adesão, mas também de espontaneidade ou "espontaneísmo" que, no caso do "Buzu", "atemorizava" as "antigas lideranças estudantis partidárias"? Ora, o chamado espontâneo não é totalmente espontâneo nem pode ser inteiramente fabricado ou, para falar como Goffman, maquinado; o "espontâneo" tanto pressupõe como tem uma base organizacional prévia, mesmo que mínima, a partir da qual são erguidos os tablados para a ação. No caso de Salvador, essa base foi um "fórum formado por grêmios estudantis das principais escolas", oposto àquelas "lideranças antigas", predominantemente partidarizadas, que fizeram as vezes de antagonistas. A concepção desse "fórum" era "rearticular um movimento que fortalecesse os grêmios e pudesse dar-los [sic] maior autonomia frente a ação centralizadora e manobrista de algumas entidades e partidos"16 16 Mercês, op. cit. .

Essa relação autônoma diante de personagens partidários é também traço distintivo do mpl. "Horizontal, autônomo, independente, apartidário" - são os adjetivos que caracterizam a organização interna do mpl segundo sua Carta de princípios. Existem variações nada desprezíveis nas modalidades e intensidades de laço que, em cada conjuntura, os jovens mobilizados podem estabelecer com os partidos. "Se houve um marco na participação estudantil dentro da Revolta do Buzu foi a recusa às entidades representativas e a partidos políticos - e mesmo aos anarquistas"17 17 Manolo, op. cit. Antes de influenciar organizacionalmente o mpl em 2005, a recusa apartidária do episódio baiano tocou outras mobilizações, como as de Santa Catarina em 2004 e 2005, por meio da difusão do documentário já citado. Por exemplo, ver Ludd, Mané. "A Guerra da Tarifa. Memórias sobre as últimas semanas em Florianópolis". In: < http://www.midiaindependente.org/es/red/2004/07/286542.shtml>, acessado em 20/09/2013: "Do Buzu à Revolta [da Catraca]. Era o dia 5 de março deste ano [2004], e fui ao Centro Integrado de Cultura (cic) assistir o vídeo A Revolta do Buzu, [...] O documentário tratava da revolta, primordialmente estudantil, que paralisou Salvador por três semanas contra o aumento da tarifa de ônibus. Revolta essa que teve um caráter autônomo, apartidário, sem líderes... Cerca de quarenta pessoas estavam naquela sala, naquele dia. Não poderia imaginar que aquelas pessoas ali, boa parte com cerca de metade da minha idade, iriam pôr a cidade de pernas para o ar alguns meses depois [...]. Após a exibição do vídeo, discussão sobre as insuficiências do movimento de Salvador, dos seus erros e acertos, e do porquê não terem conseguido alcançar a reivindicação central que era baixar a tarifa de ônibus". . Aquilo que era "recusa" no contexto soteropolitano foi apropriado pelo mpl, que, em defesa de sua "autonomia", é "apartidário" porém não "antipartidário". Isso significa que qualquer camarada pode participar nos bastidores, nas discussões e decisões internas, se e porquanto o fazem como indivíduos e não qua partidos; "militantes de partidos políticos são totalmente bem-vindos para colaborar na luta por passe livre". Como se nota, apartidário não é sinônimo de não relação com atores partidários18 18 Cf. < http://tarifazero.org/mpl/>. Como veremos no caso de 2005 em Florianópolis, em razão dos recursos político-jurídicos acumulados pelos partidos, é fundamental e também funcional a presença de personagens e siglas partidárias nos palcos e espetáculos com altas doses de repressão e violência. .

Além do apartidarismo, a horizontalidade também é marca do mpl. Seu desenho organizacional estruturado em formas pouco institucionalizadas de decisão e espaços abertos de deliberação foi inspirado pelo episódio baiano. Neste, os "mecanismos de participação no movimento estudantil definiram-se [...] de uma forma ad hoc e improvisada [...]: as múltiplas assembleias nos bloqueios, o localismo de algumas reuniões, a recusa às entidades gerais, a deslegitimação de comissões" foram alguns desses mecanismos. O mpl nutriu-se internamente da "Revolta do Buzu [que] exigia, na prática, nas ruas, um afastamento dos modelos hierarquizados; expunha outra maneira, ainda que embrionária, de organização"19 19 mpl, Carta de princípios. . Na sua prática organizacional, ser horizontal significa que o mpl resiste à separação base/líderes por meio da instauração, por exemplo, de grupos de trabalho e de resoluções tomadas por consenso, em vez de votações, na maior parte de suas deliberações.

Nos bastidores, o MPL vem forjando seu script, mantendo e ao mesmo tempo inovando a carga herdada de episódios anteriores. Enquanto compartilha com as revoltas do Buzu e da Catraca, seu tom marcadamente anticapitalista faz do seu roteiro uma obra de dimensões mais elevadas.

Quando as tarifas aumentam, evidenciam-se contradições que afetam a todos, não somente os estudantes [...]. A luta por transporte tem a dimensão da cidade e não desta ou daquela categoria. [...] A organização descentralizada da luta é um ensaio para uma outra organização do transporte, da cidade e de toda a sociedade20 20 Ibidem. .

Os Comitês Populares da Copa

A leitura dos bastidores dos cpc, "que protestam contra violações de direitos, em especial o direito de moradia"21 21 < http://www.portalpopulardacopa.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=377&Itemid=282>, acessado em 15/10/2013. , chama atenção para a reprodução estratégica de uma mesma estrutura organizacional em todas as doze cidades-sedes da Copa 2014, bem como para a criação de uma articulação nacional dos comitês. Ambas as soluções organizacionais agregam de forma fluida diversos atores coletivos em ações e atividades comuns e, ao mesmo tempo, procuram potencializar a voz e criar maior impacto da ação coletiva.

A ideia da constituição dos cpc surgiu no final de 2010, como decisão do coletivo reunido em dois seminários sobre megaeventos esportivos, impactos urbanos e violações de direitos22 22 Dois seminários foram realizados no segundo semestre de 2010: o primeiro, intitulado Impactos Urbanos e Violações de Direitos Humanos nos Megaeventos Esportivos, foi realizado em São Paulo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU/USP), pela Relatoria Especial da onu para o Direito à Moradia Adequada e pelo Núcleo de Direito à Cidade do Departamento Jurídico xi de Agosto; o outro, no Rio de Janeiro, foi encabeçado por diversos movimentos populares que já vinham se articulando na cidade em torno das questões que envolviam os impactos dos Jogos Panamericanos, denominado O Desafio Popular aos Megaeventos Esportivos". (IHU on-line (2013). "Comitês Populares da Copa, o nascimento de uma resistência". Entrevista com Claudia Favaro. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, 10/06/2013, < http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5055&secao=422)>, acessado em 10/09/2013. . Esses eventos de debate viabilizaram uma oportunidade de encontro dos representantes das sedes que receberiam a Copa do Mundo de 2014. Optou-se por adotar uma forma organizacional já vivenciada em Fortaleza e foi encaminhada sua instalação em todas as demais cidades da Copa. O objetivo era criar uma entidade guarda-chuva articuladora das ações no nível municipal que agregasse as comunidades afetadas pelas remoções e os atores envolvidos com o monitoramento da política pública da Copa 2014. O número de comitês por cidade não é limitado: eles têm sido constituídos junto às comunidades afetadas pelas remoções, mas há sempre um comitê municipal que agrega os demais. Cada qual tem sua própria pauta local, lança suas campanhas e interage com as autoridades de acordo com sua leitura de oportunidades e ameaças para sua causa. Em Porto Alegre, por exemplo, foram os cpc 2014 do Morro Santa Teresa, Cristal e Centro que lançaram o cpc 2014 de Porto Alegre.

O formato de um cpc é de uma entidade que é, ao mesmo tempo, um evento. Por um lado, como organização, ele congrega e articula de forma aberta e sem muita formalização as diversas entidades e atores coletivos. Vale-se do reconhecimento, da legitimidade e das redes de seus integrantes - entre estes últimos estão tanto atores da sociedade civil como representantes das instâncias do Estado imbuídas de fiscalizar os demais poderes, a exemplo do Ministério Público e da Defensoria Pública23 23 Ibidem. . Um comitê possui uma expressão organizacional suficiente para indicar seus representantes e se conectar com os demais comitês. Por outro lado, seu funcionamento não consiste em uma vida organizacional propriamente dita e se expressa mais no caráter de plenária, reunião ou evento. É nesses espaços que o vínculo de pertencimento se concretiza para os participantes. Fruto de um estudo de caso, a descrição do CPC do Rio de Janeiro mostra essa dinâmica que possibilita aos atores a atuação fluida entre bastidores, vitrines e performance:

Sem uma estrutura organizacional rígida, o Comitê Popular constituiu-se como um fórum híbrido, agregando novos atores da sociedade civil, representantes de movimentos sociais, organizações não governamentais, lideranças de localidades atingidas pelas obras, políticos socialistas, pesquisadores e estudantes universitários. [...] Internamente, o Comitê Popular funciona através da realização de reuniões semanais, realizadas em espaços cedidos por sindicatos e organizações que apoiam a sua luta, alternando-se entre plenárias, onde se discutem assuntos de interesse geral do coletivo, como denúncias de violações de direitos e atos do poder público, e reuniões de grupos de trabalho, nos quais os participantes se dividem a partir de interesses em temas e ações específicos, como a produção de um manifesto e a organização de estratégias para enfrentar as remoções. 24 24 Freire, Leticia de Luna. "Mobilizações coletivas em contexto de megaeventos esportivos no Rio de Janeiro". O Social em Questão, ano XVI, nº 29, 2013, pp. 101-28.

As ações foram agregadas também no nível supralocal por meio da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (ancop) que permite construir a voz nacional desses atores e promover ações conjuntas. A ideia da fundação da ancop surgiu na mesma época da proposta da constituição dos comitês, em novembro de 2010, encabeçada por organizações tais como o Fórum Brasil do Orçamento, a Assembleia Popular, o Jubileu Sul, a Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, a Associação Brasileira de ongs (abong) e a Central de Movimentos Populares (cmp). O objetivo era "articular as comunidades impactadas com os megaeventos e as organizações e redes que estão tratando do tema, visando ações conjuntas e articuladas, evitando sua sobreposição"25 25 < http://direitoamoradia.org/?p=8053&lang=pt>, acessado em 29/10/2013. . Em termos concretos, a ANCOP montou diversas vitrines de visibilidade das causas dos comitês de modo a impactar o processo de decisão política. A Articulação elaborou e divulgou um amplo diagnóstico sobre a implementação da política da Copa no país, no qual denunciava a precariedade de condições de trabalho nas obras dos estádios, o processo de remoções nas regiões das obras de infraestrutura e as violações do meio ambiente26 26 Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (2011). Megaeventos e violações de direitos Humanos no Brasil. < http://direitoamoradia.org/?p=4639&lang=pt>, acessado em 12/09/2013. . Além disso, enviou cartas ao Congresso para se manifestar sobre a Lei Geral da Copa e promoveu encontros dos representantes dos cpc das doze cidades.

A atuação de bastidores dos cpc consiste basicamente em acionar um conjunto de organizações com a capacidade transversal de atuação, dos processos locais aos nacionais e internacionais. Quando acionadas, essas organizações tornam visíveis seus palcos de ação política, trazendo à tona sua capacidade de articular diversos e numerosos atores. Exemplo disso é o manifesto para "Jornada de Lutas", de 10 de junho de 2013, assinado por 300 entidades27 27 < http://blogdojuca.uol.com.br/2013/06/copa-pra-quem/>, acessado em 08/09/2013. , dentre as quais muitas de alcance nacional. Em razão de sua plasticidade organizacional como ator-evento, os cpc também podem atuar por meio das instituições do Estado, bem como na organização de manifestações nas ruas. A ancop, por sua vez, desempenhou o papel de representante dos cpc na 22ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da onu, em Genebra, na Suíça, onde fez uma exposição sobre as remoções forçadas no contexto da Copa do Mundo e das Olimpíadas no Brasil, e solicitou ao Conselho uma intermediação:

Excelências, nós imploramos a este conselho que diga ao Governo Brasileiro que pare imediatamente as remoções forçadas e, em parceria com as comunidades afetadas, crie um Plano Nacional de Reparações às remoções forçadas e um protocolo que garante os direitos humanos em caso de remoções causadas por projetos ligados a Mega Projetos, e à Copa do Mundo e Olimpíadas 28 28 Cf. < http://www.anonymousbrasil.com/brasil/remocoes-forcadas-para-a-copa-sao-denunciadas-no-conselho-de-direitos-humanos-da-onu/>, acesso em 28 de outubro de 2013. .

ENTRE VITRINES E PALCOS: PLATEIA, VIOLÊNCIA E PERFORMANCE

Os níveis de violência e combatividade vistos nas manifestações de 2013 não são novidade na trajetória dos e das militantes do mpl. Os episódios de Salvador e, sobretudo, de Florianópolis permitem notar como a interação conflituosa e de risco é a performance privilegiada do mpl, é seu roteiro posto e encenado num palco de interação com antagonistas igualmente dispostos ao conflito. Na base do continuum vitrine-palco opera um gradiente de violência que vai das dinâmicas apenas tácitas de tensão a formas abertas de conflito físico. As modalidades de atuação dos cpc e do mpl podem ser dispostas nos dois polos desse gradiente.

As organizações articuladoras dos cpc recorrem a uma série de táticas para influenciar o processo da decisão política. Ganhar a visibilidade para suas causas é uma delas. Diferentemente do mpl, os cpc não trazem na sua trajetória anterior a 2013 elementos explícitos de violência ou confronto. O conteúdo violento de suas manifestações e atos públicos está inscrito nas entrelinhas. A dramaticidade de sua ação está nas denúncias das remoções forçadas, das ordens do despejo, dos incêndios criminosos; está expressa em palavras de ordem vocalizadas nos atos públicos, convocados, não raro, em paralelo a grandes eventos relacionados com a causa, mas realizados por terceiros. Nesse sentido, os palcos forjados por outras equipes são aproveitados pelos CPC para suas atuações e performances.

Um protesto em São Paulo mostra essa dinâmica. O cpc de São Paulo convocou um "grande ato" para o dia 1-º de dezembro de 2012, data do sorteio das chaves da Copa das Confederações da fifa em São Paulo. O evento ocorreu de acordo com o script estabelecido durante as reuniões preparatórias, abertas a todos os interessados. Os manifestantes marcharam pacificamente pelas ruas cujo trajeto foi definido com antecedência, passando perto do local do sorteio, no Centro de Convenções Anhembi, mas forçaram sua entrada no local. O contraste entre o tom pacífico da manifestação e os dizeres dos cartazes é dramático: "genocídio", "assassinato", "repressão", "morte", "remoções". As expressões e frases repetidas pelos participantes - "polícia mata"; "tempo de guerra", "tempo sem sol"; "Copa para quem?" ou "A nossa luta não vai parar até a gente tomar conta dessa cidade"29 29 Veja-se < http://www.youtube.com/watch?v=D-jWhrxIGyg>, acessado em 28/10/2013. - traduzem e vocalizam o drama. A polícia protegeu a manifestação, delimitando o espaço para seu trajeto contra o trânsito. O "grande ato" foi palco das manifestações nas quais se consubstanciava a dramaticidade dos processos de violação dos direitos humanos30 30 Seis meses antes, o clima de tensão se instalou quando uma manifestação de quase duas mil pessoas, organizada pelo Comitê Popular do Rio de Janeiro, chegou ao cordão do Batalhão de Choque da Polícia Militar que impedia o acesso ao Riocentro, onde estavam reunidos os chefes de Estado, durante a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável. Os holofotes da imprensa estavam voltados para esse megaevento, e o Comitê do Rio estrategicamente emprestava para si uma parte desse palco para dar visibilidade à recém- lançada campanha "Viva a Vila Autódromo", contra a remoção de famílias que vivem numa região nobre do Rio. Não houve conflito, apenas tensão entre os PMs armados com cassetetes, bombas de gás lacrimogêneo e coletes à prova de balas e os manifestantes. Cf. http://racismoambiental.net.br/2012/06/indios-moradores-da-vila-autodromo-e-representantes-de-varios-segmentos-da-sociedade-civil-fazem-protestos-perto-do-riocentro-onde-ocorre-a-rio20/, acessado em 28/10/2013. .

Talvez resida aí a fortaleza e simultaneamente a debilidade das vitrines como formas públicas de demonstração: por não serem necessariamente disruptivas, não ganham a visibilidade dos episódios perpassados pelo confronto. Ora, "as demonstrações não falam por si mesmas, elas são performances que devem ser ensaiadas e encenadas, assim como serem vistas e interpretadas [por um público]"31 31 Eyerman, Ronald. "Performing Opposition Or, How Social Movements Move". In: Social performance: symbolic action, cultural pragmatics, and ritual. Cambridge: University Press, 2006, pp. 193-217. . Nesse sentido, a estratégia performática que toma a rua sem autorização, distintiva do MPL, tem maiores alcances e efeitos que vitrines tais como aquelas forjadas pelo CPC, sobretudo por causa da midiatização do conflito na grande imprensa32 32 McAdam, Doug. "The framing function of movement tactics: stratigic dramaturgy in the American civil rights movement". In: McAdam, Doug, McCarthy, D. John e Zald, N. Mayer (orgs.). Comparative perspectives on social movements. Political opportunities, mobilizing structure, and cultural framings. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, pp. 338-57. .

A partir das narrativas sobre a Revolta do Buzu e o primeiro ano da Revolta da Catraca33 33 Ainda está por ser empreendida uma análise específica dos mecanismos de apropriação entre ciclos próximos como foram os das capitais baiana e catarinense; seja como for, quase todas as descrições dos episódios em Florianópolis se remetem a "uma revolta anterior, que exerceu grande influência sobre os princípios e a ideia do Movimento Passe Livre . Ocorrida em 2003, [...] 'A Revolta do Buzu' também levou às ruas milhares de jovens, estudantes, trabalhadores e trabalhadoras, que também fecharam as vias públicas, protestando contra o aumento da tarifa". Cf. Cruz, Carolina e Cunha, Leonardo. "Sobre os 5 anos das Revoltas da Catraca", < http://revoltadacatraca.wordpress.com/about/>, acessado em 20/10/2013. , em 2004, é possível afirmar que a dinâmica de confronto entre policiais e estudantes foi signo marcante daquelas manifestações. No entanto, em razão do tom notadamente mais conflituoso do episódio de 2005 em comparação com os anteriores, escolhemos como fonte o relato do segundo episódio na capital catarinense, intitulado "Guerra da Tarifa 2005"34 34 A reconstrução a seguir é baseada no relato contido em Vinicius, Leo, op. cit. . Além de ter roteiro estruturado, nos dá indícios dos dilemas sofridos na construção de palcos abertos, bem como da função desempenhada pelo acaso - fortuna - nesses palcos.

Era 27 de maio de 2005, uma sexta-feira de feriado prolongado. Nesse dia, o aumento das passagens de ônibus é oficialmente anunciado para o domingo, dia 29. Reunidos nos bastidores, numa "atividade de formação", os militantes do então recém-nascido MPL tinham oportunidade e vontade nas mãos. "Em meio ainda às oficinas de formação, à reunião ordinária do Passe-Livre, realizadas aos sábados, foi acrescentada a importante pauta da resistência ao aumento." Da concepção à ação: transformar uma paisagem urbana (um terminal de ônibus) em um palco para a ação exige uma divisão artística e estética do trabalho:

Tarefas foram dividas. Um panfleto iria ser (e foi) feito, assinado por 'Comitê de Resistência' [...]. Conseguir algum som, fazer contato com associações do norte da ilha [...]. Combinou-se que todos se encontrariam às 7h da manhã de segunda-feira [dia 30] [...] em frente ao ticen (terminal do centro), dando início às mobilizações de rua.

O movimento dirigiu-se ao respeitável público: "com um megafone chamávamos a população para resistir ao aumento".

As personagens dessa peça foram os aliados do mpl e outros interpelados pelo megafone. Isso incluía a participação não espontânea de estudantes do ensino médio35 35 "Não foi simples acaso que os alunos do[colégio] Aplicação e do Simão Hess estavam entre os mais engajados. Não se pode falar das manifestações deste ano sem exaltar a participação desses estudantes nas manifestações da trindade, e a participação e importância dos militantes do MPL que estudam nesses colégios". Vinicius, Leo, op. cit. , mas também associações de bairro e de moradores, que faziam "bloqueios"36 36 E note-se que "bloqueio" é, por sua vez, herança oblíqua de Salvador: " bloqueio é, como se convencionou chamar em alguns meios militantes, a aglomeração de pessoas num só lugar, geralmente uma via pública, que tem como objetivo paralisar algum fluxo de trânsito". Manolo, op. cit., grifo no original. em diversos pontos da ilha, bem de como representantes de partidos e sindicatos que foram indispensáveis ao desenrolar da trama. Mas o movimento tinha acumulado mais do que aliados; sobre sua vontade e oportunidade pesou também a experiência vitoriosa de 2004, quando as manifestações conseguiram baixar a tarifa. Se o planejado nos bastidores visava os terminais, os manifestantes em cena, para muito além do mpl, tinham outro palco em mente: a ponte que liga a ilha ao continente.

A experiência e a memória do ano passado iriam definir também o que seria este ano [2005]. Entre outras coisas, acredito que elas definiram uma maior 'radicalização' dos manifestantes [...]. O que faríamos? 'Ponte, ponte!' seria um grito ouvido à exaustão durante as assembleias em frente ao ticen durante as semanas de manifestação.

Aquele palco mal começava a ser armado e o rumo assumido pela peça escapava das mãos dos seus autores e cenógrafos. A contingência pesa, atravessa a ação direta e exige o melhor da performance do ator. Ao terem deslocado o cenário dos protestos para a ponte, os manifestantes celebravam aquilo que foi o "signo"37 37 "As pontes que ligam a ilha ao continente se tornaram uma espécie de signo para boa parte dos jovens que se concentravam diariamente na frente do ticen, fruto das jornadas do ano passado e das passeatas sobre as mesmas que aconteceram ineditamente na ocasião. Um signo de vitória? Um signo de poder (popular)? Um signo de colhão? Um signo de humilhação do adversário, como uma embaixada ou um gol entre as pernas? Bem, para as autoridades a ponte se tornara também um signo, e uma questão de honra. Um signo da sua própria autoridade" (Vinicius, 2005, p. 14). de uma vitória prévia e ao mesmo tempo impunham aos militantes do mpl que improvisassem. O movimento de pronto não conseguiu persuadir os demais nem mudar a decisão de o protesto seguir rumo à ponte - decisão "suicida" dado que a ponte já estava interditada por policiais. Não houve violência na ponte. A peça tomou outro caminho: primeiramente, rumo à Câmara de Vereadores, onde ovos, como lembrança de 2004 ou a sua "radicalização", são jogados contra o prédio público e "respingam" nos policiais. Em seguida, sem lideranças claras, a manifestação vai para uma esquina, na qual, ao estopim de um pneu esvaziado, começam os conflitos com os policiais. Disparos e bombas estouram, e alguns militantes do mpl catarinense são presos.

O som do conflito foi o prelúdio de um ciclo de protestos, a semana apenas começava e o volume das manifestações só fez aumentar. No dia 31 de maio, uma terça-feira, o segundo dia dos protestos foi aproveitado como oportunidade por terceiros, convidados à massa que, passando dos milhares, ocupou as duas pistas de uma avenida da ilha. "A manifestação de hoje", dizem os teóricos do confronto, "se desenrola de forma diferente a partir de ontem"38 38 McAdam e outros, op. cit., 138. . Mais uma vez o elemento de contingência se impõe ao movimento. A questão, neste caso, era: o que fazer quando sua peça está se desenrolando e os diretores foram presos, isto é, retirados à força dos palcos públicos de atuação? A prisão de vários militantes foi duplamente auxiliada por companheiros de siglas partidárias. Por um lado, eles foram importantes não só na figuração de massa necessária à estética do protesto, mas também substituindo provisoriamente a liderança das personagens que, presos ou soltos, "não podem ser presos novamente, e estão fazendo as articulações de bastidores"39 39 Vinicius, Leo, op. cit., 30. . Por outro lado, o laço com camaradas de partido foi funcional também no sentido de ajudar juridicamente a liberar os militantes detidos.

Livre ou solto, a questão permanece: o que fazer? Sem lideranças do movimento e com "aquelas milhares de pessoas ali [...] para onde ir? [...] Como aquela multidão iria entrar num acordo sobre o que fazer?"40 40 Vinicius, Leo. op. cit., pp. 24; 25. . Uma personagem ex-militante do MPL respondeu essas questões com uma performance virtuosa; improvisa ou te devoro:

[Lucas de Oliveira] foi a única pessoa capaz de conseguir fazer os manifestantes sentarem, ouvirem propostas, votarem as propostas e se guiarem em um rumo comum. Tudo na base do jogral. Além da sua habilidade em falar em público e expor de forma clara as ideias nessas situações, jogou a favor o fato de ele ter uma linguagem mais próxima dos manifestantes [jovens] [...] e de ele não ser ligado a nenhum partido ou entidade.

Virtuosa do ponto de vista da capacidade de coordenação, a direção de arte de Lucas levava o protesto para a maior via de circulação de Florianópolis. Milhares em marcha e sem vez para carros era, em 2005, uma "novidade". A descrição do evento soa como um duelo hipercontemporâneo, com bombas e balas que, daquela vez, não tiraram o "gosto de vitória. Havíamos vencido naquele dia, sem dúvida. Ocupamos a Beira-Mar, como nunca antes havia sido feito. A polícia teve que expor toda sua brutalidade, e mesmo assim a manifestação continuou".

Os militantes aprendem na própria interação conflituosa com as forças repressivas. Aproximando Goffman de Tilly e Tarrow41 41 "The most dramatic element in the self-representation of the [polish] Solidarity strikers was their identification with the 'martyred workers' of previous suppressed strikes" (Tilly & Tarrow, 2007, p. 120). , podemos dizer que esse é um trabalho dramático de martirização e que a violência dramatizada exige vítimas, de modo que o poder dessa dramatização depende de como ela é comunicada e encenada. De um lado, um "nós" construído nas e pelas trocas violentas produz personagens "totalmente pacíficos"42 42 E o trabalho de vitimização percorreu e estruturou boa parte daquele ciclo de protestos. Cf. "É difícil dizer que houve confronto, porque na verdade o que houve foi uma ação unilateral da polícia, que atirou [...] para afastar os manifestantes, que corajosamente estavam na linha de frente. [...] [E dias depois:] Dezesseis [pessoas] foram presas, entre homens e mulheres, todas arbitrariamente" (Vinicius, 2005: 36-37, pp. 41). . De outro, para cada mártir, seu algoz, neste caso os policiais antagonistas colocados no papel de "brutais". Mas não é apenas a militância que aprende, pois a equipe policial também acumula experiência nessas interações43 43 No dia 1º de junho, no terceiro e menos conflituoso dia dos protestos, a polícia parecia já saber que "impedir passeatas por via repressiva causa arranhões na imagem da polícia e do governo" (Vinicius, op. cit., p. 33). À diferença, por exemplo, do primeiro dia, no qual os policiais aparentavam não ter "aprendido a lição do ano anterior [2004]: quanto mais repressão policial e confronto, mais as manifestações engrossavam... mas não, e a prepotência da força física caiu de quatro" (idem, p. 19). .

O drama se arrastaria um pouco mais. Durante a semana seguinte, alguns bloqueios "mantinham acesa a chama das manifestações", enquanto uma malograda ocupação da secretaria de transportes de rua não levou o MPL muito longe. Na quinta-feira, dia 16, uma manifestação não liderada pelo movimento tem o enredo modular seguido à risca: ela começa pacífica, mas ouvem-se "as primeiras bombas de efeito moral da polícia, fazendo os manifestantes recuar [...]. A tropa de choque começou a avançar também [...] com o mesmo arsenal de sempre". A audiência, porém, já tinha escolhido o seu lado. "Até a população que assistia jogou pedra na polícia. A ação da tropa de choque fez com que a única saída para os manifestantes fosse correr para dentro do centro comercial. E a indignação pela situação fez começar um quebra-quebra". Diante desse grau de conflito, o prefeito da capital catarinense mostrou sua falta de virtù esperando ainda mais uma semana para revogar o aumento da passagem de ônibus. Foi, afinal, uma vitória do mpl e da "resistência ao aumento".

Cotejadas com as vitrines forjadas pelos cpc, as manifestações alavancadas pela ação inicial do mpl em Florianópolis em 2005 se distinguem pelo grau de conflitividade. Por um lado, vê-se que a violência não é algo apenas, nem sobretudo, físico; ela é também evocada e anunciada nas vitrines do CPC que expõem a dura realidade, por exemplo, das remoções forçadas. Por outro, a violência é dramatizada e fornece a matéria-prima do trabalho de martirização para o mpl, extraída de suas interações com as forças repressivas. Dizer isso significa enfatizar a parte teatral da chamada "estratégia dramatúrgica"44 44 McAdam, Doug. "The framing function of movement tactics: stratigic dramaturgy in the American civil rights movement". In: McAdam, Doug, McCarthy, D. John e Zald, N. Mayer (orgs.). Comparative perspectives on social movements. Political opportunities, mobilizing structure, and cultural framings. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 338-57. e que o recurso à violência não é, por si só, uma estratégia desse movimento: é, antes, uma modalidade de interação pela qual e a partir da qual os militantes se representam como personagens "vítimas", isto é, vitimizados e antagonizados por "vilões". Mas a violência não é tudo. Os palcos de rua, à diferença das vitrines, são atravessados do começo ao fim pela contingência e pelo acaso. Diante desse cenário cuja estabilidade é instável por definição, o que pode fazer alguma diferença é a performance do ator, isto é, a sua capacidade ou não de improvisar.

UMA HIPÓTESE DRAMÁTICA

Ironia da pesquisa empírica: se, ao dialogar com a sociologia teatral, a intenção era se afastar da grade do confronto, isso não nos afastou do conflito. Pelo contrário, com a ajuda de Goffman, os modos de vocalização da violência no caso do cpc e o grau de conflitividade das interações do mpl foram lidos por sua dramaticidade. Nos palcos observados, a contingência pesa e a violência é dramatizada e, tal como um recurso cênico, pode ser acionada por uma das partes e em seu favor, forjando figuras de herói, vítima, traiçoeiro... Ora, foi exatamente isso que ocorreu mais recentemente na noite de 25 de outubro de 2013, na capital paulista. Dessa feita, foi a vez de a equipe policial se vitimizar. Pelas cenas de um coronel dramaticamente linchado e que pedia uma calma teatral a seu batalhão ensandecido, a polícia passou o papel de vilão para outro ator em cena, os "mascarados" ou apenas black blocs. A partir de nossa incursão empírica anterior a 2013 e com o reconhecimento dos usos cênicos do confronto, podemos colocar a violência no centro de nossa hipótese: a mola que dispara o ciclo de protestos de 2013 está na vitimização performatizada pelos militantes do mpl nos fortes confrontos da noite de 13 de junho. Ou, visto de outro prisma, mas dizendo o mesmo: a luta pelo "passe livre" transbordou a própria performance do mpl, tornando-se um ciclo de protestos e sendo apropriado pelo público maior, a partir do momento em que a plateia acessou e criticou a reação desproporcional da polícia paulista diante do movimento àquela mesma noite. Se essa hipótese tem força ou não, só outras pesquisas poderão dizer.

Recebido para publicação em 30 de outubro de 2013.

  • 2 No que tange ao MPL, os principais dados dizem respeito à chamada Revolta do Buzu e à Revolta da Catraca - ou Guerra da Tarifa (Cf. Vinicius, Leo. Guerra da Tarifa 2005. Uma visão de dentro do movimento passe-livre em Floripa. São Paulo: Faísca Publicações Libertárias, 2005) - ocorridas em Salvador e em Florianó
  • 3 É possível estabelecer uma analogia entre as categorias da sociologia de Goffman, tais como palco, bastidores ou performance, e as categorias da sociologia do confronto nas quais operam conceitos como repertórios de ação, campanhas, organizações, enquadramentos. Ambas ajudam a apreender a complexidade desse fenômeno que são os movimentos sociais; todavia, neste texto optamos pelo uso das metáforas teatrais porque elas conseguem, neste caso, descrever a lógica performática do processo. Cf. Alonso, Angela. "A teatralização da política: a propaganda abolicionista". Tempo Social, vol. 24, nº 2, pp. 101-22, 2012;
  • Szwako, José. "Presentación y representación. Las vitrinas públicas del feminismo paraguayo a la luz de C. Tilly". Texto apresentado no VI Congresso Latinoamericano de Ciência Política da Associação Latinoamericana de Ciência Política (ALACIP). Quito, 2012.
  • 4 McAdam, D., Tarrow, S. e Tilly, C. Dynamics of contention. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
  • 5 Goffman, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Trad. Maria Célia Santos Raposo. Rio de Janeiro: Vozes, 2006.
  • 6 Benford, R. D. e Hunt, S. A. "Dramaturgy and social movements: the social construction and communication of power". Sociological Inquiry, vol. 62, nº 1, p. 38, 1992.
  • 9 Cf. Tilly, C. "Social movement as historically specific clusters of political performances". Berkeley Journal of Sociology, 38, p. 1-30, 1993/94: "A social movement consists of a sustained challenge to powerholders in the name of a population living under the jurisdiction of those powerholders by means of repeated public displays of that population's numbers,
  • commitment, unity, and worthiness". Cf. também Tilly, C. e Tarrow, S. Contentious politics Boulder: Paradigm Publishers, 2007.
  • 12 Cf. Jesus, R. P. "A Revolta do Vintém e a crise na monarquia". História Social, vol. 12, pp. 73-89, Campinas, 2006.
  • 17 Manolo, op. cit. Antes de influenciar organizacionalmente o mpl em 2005, a recusa apartidária do episódio baiano tocou outras mobilizações, como as de Santa Catarina em 2004 e 2005, por meio da difusão do documentário já citado. Por exemplo, ver Ludd, Mané. "A Guerra da Tarifa. Memórias sobre as últimas semanas em Florianópolis". In: <http://www.midiaindependente.org/es/red/2004/07/286542.shtml>, acessado em 20/09/2013: "Do Buzu à Revolta [da Catraca].
  • 24 Freire, Leticia de Luna. "Mobilizações coletivas em contexto de megaeventos esportivos no Rio de Janeiro". O Social em Questão, ano XVI, nº 29, 2013, pp. 101-28.
  • 31 Eyerman, Ronald. "Performing Opposition Or, How Social Movements Move". In: Social performance: symbolic action, cultural pragmatics, and ritual. Cambridge: University Press, 2006, pp. 193-217.
  • 32 McAdam, Doug. "The framing function of movement tactics: stratigic dramaturgy in the American civil rights movement". In: McAdam, Doug, McCarthy, D. John e Zald, N. Mayer (orgs.). Comparative perspectives on social movements. Political opportunities, mobilizing structure, and cultural framings. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, pp. 338-57.
  • 44 McAdam, Doug. "The framing function of movement tactics: stratigic dramaturgy in the American civil rights movement". In: McAdam, Doug, McCarthy, D. John e Zald, N. Mayer (orgs.). Comparative perspectives on social movements. Political opportunities, mobilizing structure, and cultural framings. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 338-57.
  • *
    Versão desenvolvida a partir do texto apresentado no ciclo de seminários Protesto, Reforma Política e Políticas Públicas (São Paulo: CEBRAP, 20 de setembro de 2013). Agradecemos a Jessica Voigt e a Mariana Toledo pelas informações valiosas sobre os protestos e movimentos.
  • 1
    Cf. <
  • 2
    No que tange ao MPL, os principais dados dizem respeito à chamada Revolta do Buzu e à Revolta da Catraca - ou Guerra da Tarifa (Cf. Vinicius, Leo.
    Guerra da Tarifa 2005. Uma visão de dentro do movimento passe-livre em Floripa. São Paulo: Faísca Publicações Libertárias, 2005) - ocorridas em Salvador e em Florianó polis, respectivamente. Já no que tange aos CPC, focaremos na sua construção organizacional e nos dois atos públicos, um paulista e carioca, que retratam sua forma de dar visibilidade a suas causas.
  • 3
    É possível estabelecer uma analogia entre as categorias da sociologia de Goffman, tais como palco, bastidores ou
    performance, e as categorias da sociologia do confronto nas quais operam conceitos como repertórios de ação, campanhas, organizações, enquadramentos. Ambas ajudam a apreender a complexidade desse fenômeno que são os movimentos sociais; todavia, neste texto optamos pelo uso das metáforas teatrais porque elas conseguem, neste caso, descrever a lógica performática do processo. Cf. Alonso, Angela. "A teatralização da política: a propaganda abolicionista".
    Tempo Social, vol. 24, nº 2, pp. 101-22, 2012; Szwako, José. "Presentación y representación. Las vitrinas públicas del feminismo paraguayo a la luz de C. Tilly". Texto apresentado no VI Congresso Latinoamericano de Ciência Política da Associação Latinoamericana de Ciência Política (ALACIP). Quito, 2012.
  • 4
    McAdam, D., Tarrow, S. e Tilly, C.
    Dynamics of contention. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
  • 5
    Goffman, Erving.
    A representação do eu na vida cotidiana. Trad. Maria Célia Santos Raposo. Rio de Janeiro: Vozes, 2006.
  • 6
    Benford, R. D. e Hunt, S. A. "Dramaturgy and social movements: the social construction and communication of power".
    Sociological Inquiry, vol. 62, nº 1, p. 38, 1992.
  • 7
    Goffman, op. cit., p. 76.
  • 8
    A concepção do plano ou do roteiro nos bastidores é, decerto, coisa distinta da sua atualização, que é a própria
    performance. O caráter distintivo da
    performance, entendida como atualização da estratégia do movimento num palco de interação concreta com outros, está no seu caráter improvisado e, portanto, contingente. Assim, a relação entre o planejado nos bastidores e a
    performance não é unívoca, isso porque o resultado exitoso, ou não, de determinado protesto ou manifestação depende da
    performance de suas personagens e de dimensões contingentes por elas não manipuladas.
  • 9
    Cf. Tilly, C. "Social movement as historically specific clusters of political performances".
    Berkeley Journal of Sociology, 38, p. 1-30, 1993/94: "A social movement consists of a sustained challenge to powerholders in the name of a population living under the jurisdiction of those powerholders by means of repeated public displays of that population's numbers, commitment, unity, and worthiness". Cf. também Tilly, C. e Tarrow, S.
    Contentious politics. Boulder: Paradigm Publishers, 2007.
  • 10
    A aproximação sistemática entre Goffman e Tilly é tarefa ainda a ser feita, mas que certamente pode enriquecer a teoria dos movimentos sociais. Àqueles interessados nessa empreitada teórica fica a sugestão de que as noções de "representação do eu" e de "vitrine pública" têm um agudo parentesco intelectual. Na tradução de
    The presentation of self in everyday life o termo "
    performance" foi vertido ao português como "representação" ao longo de toda a obra. Sobre a possível e provável proximidade entre as noções veja-se: "[nós analistas] inclinamo-nos a nos manter cegos para o fato de que representações diárias seculares [
    everyday secular performances] [...] devem passar por uma rigorosa prova de idoneidade, conveniência, propriedade e decoro" (p. 57); ao passo que, em sua última obra com Sidney Tarrow, Tilly subsume vitrine à definição de "
    self-representation", entendida como "an actor's or coalition's public display of worthiness, unity, numbers, and commitment" (Tilly e Tarrow, op. cit., 2007: 217).
  • 11
    Movimento Passe Livre.
    Carta de princípios do Movimento Passe Livre, 2007 <
    http://mpl.org.br/?q=node/2>, acessado em 20/10/2013.
  • 12
    Cf. Jesus, R. P. "A Revolta do Vintém e a crise na monarquia".
    História Social, vol. 12, pp. 73-89, Campinas, 2006.
  • 13
    mpl, op. cit.
  • 14
    Cf. Manolo. "Teses sobre a Revolta do Buzu", 2011, <
    http://passapalavra.info/2011/09/46384>, acessado em 20/10/2013.
  • 15
    Veja-se
    A Revolta do Buzu, documentário de Carlos Pronzato <
    http://memorialatina.net/2013/08/13/a-revolta-do-buzu-salvador-10-anos-de-luta-pelo-passe-livre/>. Cf. também Mercês. "O exemplo da revolta do Buzu, em Salvador/ba" <
    http://www.midiaindependente.org/pt/red/2004/03/275678.shtml> e Manolo, op. cit. Tal perfil permite entrever as linhas de organização que extrapolaram o episódio de Salvador e se imprimiram no repertório organizacional e ideológico do mpl alguns anos depois, quais sejam, apartidarismo, horizontalidade e anticapitalismo.
  • 16
    Mercês, op. cit.
  • 17
    Manolo, op. cit. Antes de influenciar organizacionalmente o mpl em 2005, a recusa apartidária do episódio baiano tocou outras mobilizações, como as de Santa Catarina em 2004 e 2005, por meio da difusão do documentário já citado. Por exemplo, ver Ludd, Mané. "A Guerra da Tarifa. Memórias sobre as últimas semanas em Florianópolis". In: <
    http://www.midiaindependente.org/es/red/2004/07/286542.shtml>, acessado em 20/09/2013: "Do Buzu à Revolta [da Catraca]. Era o dia 5 de março deste ano [2004], e fui ao Centro Integrado de Cultura (cic) assistir o vídeo
    A Revolta do Buzu, [...] O documentário tratava da revolta, primordialmente estudantil, que paralisou Salvador por três semanas contra o aumento da tarifa de ônibus. Revolta essa que teve um caráter autônomo, apartidário, sem líderes... Cerca de quarenta pessoas estavam naquela sala, naquele dia. Não poderia imaginar que aquelas pessoas ali, boa parte com cerca de metade da minha idade, iriam pôr a cidade de pernas para o ar alguns meses depois [...]. Após a exibição do vídeo, discussão sobre as insuficiências do movimento de Salvador, dos seus erros e acertos, e do porquê não terem conseguido alcançar a reivindicação central que era baixar a tarifa de ônibus".
  • 18
    Cf. <
    http://tarifazero.org/mpl/>. Como veremos no caso de 2005 em Florianópolis, em razão dos recursos político-jurídicos acumulados pelos partidos, é fundamental e também funcional a presença de personagens e siglas partidárias nos palcos e espetáculos com altas doses de repressão e violência.
  • 19
    mpl,
    Carta de princípios.
  • 20
    Ibidem.
  • 21
    <
  • 22
    Dois seminários foram realizados no segundo semestre de 2010: o primeiro, intitulado Impactos Urbanos e Violações de Direitos Humanos nos Megaeventos Esportivos, foi realizado em São Paulo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU/USP), pela Relatoria Especial da onu para o Direito à Moradia Adequada e pelo Núcleo de Direito à Cidade do Departamento Jurídico xi de Agosto; o outro, no Rio de Janeiro, foi encabeçado por diversos movimentos populares que já vinham se articulando na cidade em torno das questões que envolviam os impactos dos Jogos Panamericanos, denominado O Desafio Popular aos Megaeventos Esportivos". (IHU on-line (2013). "Comitês Populares da Copa, o nascimento de uma resistência". Entrevista com Claudia Favaro. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, 10/06/2013, <
  • 23
    Ibidem.
  • 24
    Freire, Leticia de Luna. "Mobilizações coletivas em contexto de megaeventos esportivos no Rio de Janeiro".
    O Social em Questão, ano XVI, nº 29, 2013, pp. 101-28.
  • 25
    <
    http://direitoamoradia.org/?p=8053&lang=pt>, acessado em 29/10/2013.
  • 26
    Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (2011).
    Megaeventos e violações de direitos Humanos no Brasil. <
    http://direitoamoradia.org/?p=4639&lang=pt>, acessado em 12/09/2013.
  • 27
    <
  • 28
    Cf. <
  • 29
    Veja-se <
    http://www.youtube.com/watch?v=D-jWhrxIGyg>, acessado em 28/10/2013.
  • 30
    Seis meses antes, o clima de tensão se instalou quando uma manifestação de quase duas mil pessoas, organizada pelo Comitê Popular do Rio de Janeiro, chegou ao cordão do Batalhão de Choque da Polícia Militar que impedia o acesso ao Riocentro, onde estavam reunidos os chefes de Estado, durante a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável. Os holofotes da imprensa estavam voltados para esse megaevento, e o Comitê do Rio estrategicamente emprestava para si uma parte desse palco para dar visibilidade à recém- lançada campanha "Viva a Vila Autódromo", contra a remoção de famílias que vivem numa região nobre do Rio. Não houve conflito, apenas tensão entre os PMs armados com cassetetes, bombas de gás lacrimogêneo e coletes à prova de balas e os manifestantes. Cf.
  • 31
    Eyerman, Ronald. "Performing Opposition Or, How Social Movements Move". In:
    Social performance: symbolic action, cultural pragmatics, and ritual. Cambridge: University Press, 2006, pp. 193-217.
  • 32
    McAdam, Doug. "The framing function of movement tactics: stratigic dramaturgy in the American civil rights movement". In: McAdam, Doug, McCarthy, D. John e Zald, N. Mayer (orgs.).
    Comparative perspectives on social movements. Political opportunities, mobilizing structure, and cultural framings. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, pp. 338-57.
  • 33
    Ainda está por ser empreendida uma análise específica dos mecanismos de apropriação entre ciclos próximos como foram os das capitais baiana e catarinense; seja como for, quase todas as descrições dos episódios em Florianópolis se remetem a "uma revolta anterior, que exerceu grande influência sobre os princípios e a ideia do Movimento Passe Livre . Ocorrida em 2003, [...] 'A Revolta do Buzu'
    também levou às ruas milhares de jovens, estudantes, trabalhadores e trabalhadoras, que
    também fecharam as vias públicas, protestando contra o aumento da tarifa". Cf. Cruz, Carolina e Cunha, Leonardo. "Sobre os 5 anos das Revoltas da Catraca", <
  • 34
    A reconstrução a seguir é baseada no relato contido em Vinicius, Leo, op. cit.
  • 35
    "Não foi simples acaso que os alunos do[colégio] Aplicação e do Simão Hess estavam entre os mais engajados. Não se pode falar das manifestações deste ano sem exaltar a participação desses estudantes nas manifestações da trindade, e a participação e importância dos militantes do MPL que estudam nesses colégios". Vinicius, Leo, op. cit.
  • 36
    E note-se que "bloqueio" é, por sua vez, herança oblíqua de Salvador: "
    bloqueio é, como se convencionou chamar em alguns meios militantes, a aglomeração de pessoas num só lugar, geralmente uma via pública, que tem como objetivo paralisar algum fluxo de trânsito". Manolo, op. cit., grifo no original.
  • 37
    "As pontes que ligam a ilha ao continente se tornaram uma espécie de signo para boa parte dos jovens que se concentravam diariamente na frente do ticen, fruto das jornadas do ano passado e das passeatas sobre as mesmas que aconteceram ineditamente na ocasião. Um signo de vitória? Um signo de poder (popular)? Um signo de colhão? Um signo de humilhação do adversário, como uma embaixada ou um gol entre as pernas? Bem, para as autoridades a ponte se tornara também um signo, e uma questão de honra. Um signo da sua própria autoridade" (Vinicius, 2005, p. 14).
  • 38
    McAdam e outros, op. cit., 138.
  • 39
    Vinicius, Leo, op. cit., 30.
  • 40
    Vinicius, Leo. op. cit., pp. 24; 25.
  • 41
    "The most dramatic element in the self-representation of the [polish] Solidarity strikers was their identification with the 'martyred workers' of previous suppressed strikes" (Tilly & Tarrow, 2007, p. 120).
  • 42
    E o trabalho de vitimização percorreu e estruturou boa parte daquele ciclo de protestos. Cf. "É difícil dizer que houve confronto, porque na verdade o que houve foi uma ação unilateral da polícia, que atirou [...] para afastar os manifestantes, que corajosamente estavam na linha de frente. [...] [E dias depois:] Dezesseis [pessoas] foram presas, entre homens e mulheres, todas arbitrariamente" (Vinicius, 2005: 36-37, pp. 41).
  • 43
    No dia 1º de junho, no terceiro e menos conflituoso dia dos protestos, a polícia parecia já saber que "impedir passeatas por via repressiva causa arranhões na imagem da polícia e do governo" (Vinicius, op. cit., p. 33). À diferença, por exemplo, do primeiro dia, no qual os policiais aparentavam não ter "aprendido a lição do ano anterior [2004]: quanto mais repressão policial e confronto, mais as manifestações engrossavam... mas não, e a prepotência da força física caiu de quatro" (idem, p. 19).
  • 44
    McAdam, Doug. "The framing function of movement tactics: stratigic dramaturgy in the American civil rights movement". In: McAdam, Doug, McCarthy, D. John e Zald, N. Mayer (orgs.).
    Comparative perspectives on social movements. Political opportunities, mobilizing structure, and cultural framings. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 338-57.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Nov 2013

    Histórico

    • Recebido
      30 Out 2013
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