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ALINHAVANDO QUESTÕES1 1 Último capítulo de Contraponto, Heidegger/Wittgenstein, livro a ser publicado pela Companhia das Letras em 2019.

Tacking Questions

RESUMO

No século XX, dois filósofos, M. Heidegger e L. Wittgenstein, revisitaram os princípios de nossa filosofia - aquela dos gregos - e questionaram suas bases. Em outras palavras, examinaram o próprio conceito de fundamento: o “Ser” como totalidade, tomado em múltiplos sentidos mediante os quais os entes ganham sentido. Se o Ser deve ser pensado como o tempo se apropriando do homem, Heidegger precisa definir a própria linguagem como exercício de apropriação de cada ente que é e o próprio Ser. Wittgenstein, em contrapartida, considera a linguagem como jogo que se ocupa de signos e objetos. Consequentemente, questionar o ser é um erro gramatical. Para ambos os filósofos, o conceito de razão carece de sentido, independentemente de como é concebido.

PALAVRAS-CHAVE:
Ser; jogo de linguagem; crítica da razão

ABSTRACT

In the twentieth century, two philosophers, M. Heidegger and L. Wittgenstein, revisited the principles of our philosophy - that of the Greeks - and questioned its basis. In other words, they inquired about the concept of foundation itself: “Being” as wholeness, taken in multiple senses, through which any being that is receives meaning. If Being should be thought as time appropriating the man, Heidegger needs to define language itself as an exercise of approprieting every thing that is and the Being itsef. Wittgenstein, on the other hand, considers language as a game that deals with signs and objects. Therefore, questioning about being is a grammatical mistake. Consequently, for both philosophers, the concept of reason lacks meaning, independently of how we conceive it.

KEYWORDS:
Being; language-game; critique of reason

Tentei, como me foi possível, aliviar o pensamento de Heidegger e de Wittgenstein do peso de seus primeiros sucessos, que terminaram bloqueando o entendimento de suas últimas inovações. Ambos se libertaram, a seu modo, do imperialismo da lógica formal como lógica da verdade, elegendo a linguagem natural como paradigma do pensamento filosófico. As soluções, porém, não poderiam ser mais opostas. Heidegger dela se livra através do jogo de espelho (sem espelhos) dos apelos e respostas no âmbito do Ereignis;2 2 Em vez de pensar o Ser como criador ou fundamento, Heidegger o considera como um acontecimento que se apropria historicamente dos homens mortais determinando-se em vista dos imortais diante da luta entre a terra e o céu. No lugar da causalidade baseada na oposição entre forma e matéria, o Ser tem sua epocalização pastoreada pela linguagem. Wittgenstein projeta pedaços da linguagem em jogos de linguagem em que se explicitam os vínculos objetivantes das palavras e das ações. O primeiro abandona de vez a proposição apofântica e o julgar como bússola de sua meditação; o segundo situa o juízo em geral no aprendizado de uma técnica, de sorte que ele se abre na tentativa de acertos e erros, de ajustes, sempre, contudo, fincando o pé em uma experiência coletiva, pois a bipolaridade do falso e do verdadeiro se associa a uma situação lógica que, quando expressa, o é mediante expressões monopolares.

Nos últimos anos, grande parte da reflexão filosófica tentou escapar desses abismos, mas, em geral, recuando diante deles, o que nos leva a repisar terrenos tradicionais. Nesse caminho se sobressai a Teoria Crítica, na medida em que, embora aceitando diferentes formas de racionalidade, todas elas seguem a mesma matriz segundo a qual o conceito se liga a um modo formal de estruturar objetos, ainda que seja pelo excesso que deixa na sua impressão. E se a filosofia não mais se apoia em um fundamento, não mais lhe cabe desenhar uma revolução total que nos salve da crise da modernidade e venha ser capaz de “regenerar o ser humano” como um todo. Por outro lado, a massificação dos estudos filosóficos reforça práticas “moralizantes”. No nosso tempo, a meditação filosófica não poderia escapar das exigências do tipo de sociedade em que vivemos: demanda por filósofos de massa, cuja presença regular - mensal, semanal, até mesmo diária - tende a transformar o pensar em um comentário banal do cotidiano. O grosso, porém, da pesquisa filosófica se concentra ainda nas universidades, onde o comentário de texto prevalece, às vezes formando lojas maçônicas em que os membros trocam entre si secretas chaves interpretativas.

A genialidade de um filósofo não o protege de paixões políticas abjetas. Heidegger derrapou nesse desfiladeiro. É bem verdade que o século XX foi muito turbulento: duas guerras mundiais despertaram paixões e conflitos sagrados. Desde o século XIX uma contradição sociopolítica sui generis ameaça a unidade da sociedade e do Estado nacional: a produção da riqueza social se faz segundo o modo de produção capitalista, que cria riqueza a partir de certa riqueza já dada, mas que somente se move se tiver no horizonte a possibilidade de ser aumentada. Isso cria riqueza e miséria, desenvolvimento econômico e depressão, expressando-se em conflitos políticos mais ou menos violentos. Seja qual for a interpretação desse procedimento econômico, os vários modelos de seu funcionamento não ensinam a evitar a longo prazo o desequilíbrio social e político que ele produz. São muitos os farrapos humanos vivendo à margem dos mercados de trabalho. Além do mais, todas as formas de superar esse tipo de produção mercantil, que o comunismo ou o socialismo tentaram implantar, criaram contradições, crises violentas, que abriram caminho para reinstalar alguma forma de mercado. Desde que não se confunda produção mercantil com produção sob a égide do capital, a unidade do Estado nacional se torna uma tarefa a ser reposta continuadamente.

O capital de Karl Marx, o primeiro e genial exame do modo de produção capitalista, termina num impasse. Tendo no horizonte a lógica hegeliana, Marx esperava que a contradição entre capital total e trabalho total resultasse em um conflito cuja radicalidade poderia dar margem à superação do próprio sistema. No entanto, a publicação dos múltiplos manuscritos, utilizados por Engels para dar a redação final ao terceiro volume da obra, mostra que os dados recolhidos caminhavam na direção inversa daquela esperada pelo neo-hegeliano, multiplicando formas de capital e de agir, dissolvendo formas tradicionais de trabalho.3 3 Ver os diversos escritos de Michael Heinrich a respeito. Cem anos depois, essa tendência somente aumentou, desapontando aqueles que ainda esperam um conflito perfeito entre o capital e o trabalho, a verdadeira Revolução capaz de cumprir as promessas da “Internacional”. A política tende a perder de vez a esperança numa parousia. Por isso mesmo, diante dessa contradição interna na sociedade civil, prefiro pensar a política a partir da dualidade entre amigos e inimigos, em que o acordo provisório da democracia pode estabelecer situações de diálogo entre representantes das partes. É o que tenho procurado descrever em outros lugares.

Heidegger, como vimos, refletiu sobre os abalos da modernidade influenciado pelos padrões da direita alemã e interpretou as crises do capitalismo ocidental como a crise da própria metafísica, que, esquecida do Ser, pensa todo ente como uma variável. A isso não foi levado porque o capitalismo transforma todo produto num objeto intercambiável? Quando se sustenta uma visão técnica do ente na totalidade, isto é, cada ente valendo como qualquer outro, fundo a receber trabalho, leva-se ao limite o esquecimento do Ser. No entanto, como a essência da técnica não é técnica, a Revolução deveria surgir de uma nova temporalização, podemos dizer epocalização, do Ser, anunciada por um novo deus que ainda não se revelou. Essa interpretação da “crise do Ocidente”, a meu ver, tão só generaliza a alienação da mercadoria sem atingir o cerne da produção desigual do capital. Heidegger mergulhou no nazismo, socialismo nacional capaz de salvar a Alemanha das duas potências técnicas, América do Norte e União Soviética, na esperança de esclarecê-lo. Caberia um exame detalhado de como a maquinação (Machenschaft), ao transformar a totalidade dos entes em algo factível, produz uma violência que soterra toda decisão.

A maquinação exige em muitos mascaramentos da violência múltipla, a calculabilidade de antemão completamente abarcável do apoderamento submissor do ente ao erigir disponível: dessa exigência essencial, mas ao mesmo tempo velada, nasce a técnica moderna. (Heidegger, 2010_____. Meditação. Petrópolis: Vozes, 2010 [Besinnung, GA 66]., p.16)

E o texto segue indicando como essa maquinação libera o homem massificando-o, qualquer uma de suas peculiaridades sendo superpotencializada para que seja integrado no processo como sujeito cofeitor.

Por mais escabrosa que a julguemos, a posição política de Heidegger tem seus refinamentos e merece estudo pormenorizado, pois há de revelar aspectos, a meu ver, monstruosos, daquele pensamento político que acriticamente aceita se subordinar a uma missão totalizante e que termina, assim, se envolvendo numa atmosfera sagrada. O próprio Heidegger nos leva a refletir sobre a presença cotidiana do sagrado sem que esteja configurada num deus. Nazismo e comunismo exploraram ao limite essa ambiguidade. Basta refletir sobre a morte de grandes líderes autocratas cujo impacto, nunca previsto, inibe a ação. Sob esse aspecto a morte de Stálin é exemplar: o líder cai de supetão, e os camaradas em volta não sabem o que fazer, nem mesmo tocam no cadáver. Outro exemplo é a morte de Getúlio Vargas, que se sacraliza ao se suicidar e, assim, congela o jogo político, no qual continua a agir por vários anos. Esse é um tema que agora foge de nossos propósitos, embora sejamos obrigados a mencioná-lo por estar no limite de nossa investigação. No entanto, reconhecer a genialidade de Heidegger não é silenciar sobre os abusos de seu comportamento político-moral. Durante a desnazificação, foi suspenso de dar aulas por um breve período; eu preferiria que fosse obrigado, por uns tempos, a fazer visitas periódicas a Auschwitz.

Wittgenstein nunca se deixou levar pelas missões a que se entrega o mandarinato universitário nem pelas paixões políticas que assaltam os diferenciados. O rico dandy, que chega a Cambridge em 1911 para estudar com Bertrand Russell, logo se converte num modesto excêntrico refinado: desfaz-se de sua herança, serve nas forças austríacas da Primeira Guerra Mundial ao mesmo tempo que redige o Tractatus. Por uns tempos pretende trabalhar na União Soviética. Seu horror à cultura contemporânea nasce de suas posições e reflexões, sobretudo morais. Embora tenha sido amigo de dois grandes intérpretes do capitalismo, Piero Sraffa e John Maynard Keynes, nunca se interessou por questões econômicas. O Tractatus pretende resolver de vez questões levantadas pela formalização da lógica e da linguagem, por conseguinte, da verdade formal do mundo, mas já inicia o livro lembrado que “o valor desse trabalho consiste, em segundo lugar, em mostrar como importa pouco resolver esses problemas”. Somente os céticos antigos tinham desprezado a tal ponto a vida intelectual. Embora ele a pratique tenazmente, importa-lhe o modo de viver. É notável, contudo, que nos seus últimos anos escasseiem suas reflexões sobre a moral.

Wittgenstein tentou mostrar como as questões filosóficas se montam a partir de erros gramaticais. Em vez de puxar a linguagem cotidiana para seu abismo (Ab-grund) em busca de significâncias não verbais, Wittgenstein, opondo-se a toda forma de hermenêutica, cria jogos de linguagem para que espelhem maneiras de dizer coisas e ações nas suas práticas mundanas limitadas. Práticas que decidem ou suspendem decisões dos tipos mais variados e complicados, mas que se ligam, apesar de tudo, a processos de julgar, depurando o que vem a ser seguro para um grupo de atores, enfrentando uma oposição entre verdadeiro e falso, mas tendo no horizonte situações lógicas indubitáveis, formas de vida que, quando ditas, o são de modo monopolar. A história dessas construções linguísticas fica fora de sua investigação, ou seja, ficam de fora quaisquer considerações que se ocupem da gênese de tais construções. Ao contrário, portanto, de Heidegger, para quem “as palavras fundamentais são historializantes” (Heidegger, 1971_____. Nietzsche I. Paris: Gallimard, 1971., p. 134), isto é, determinantes das epocalizações do mundo ocidental: “A meditação sobre a linguagem e sobre sua potência historializante sempre equivale à própria ação de estruturar a existência” (Idem, ibidem). Nada a ver com a narração sucessiva dos fatos, mas com o sentido do Ser tal como é configurado numa época pelos grandes criadores. Em contrapartida, para Wittgenstein, se as linguagens possuem suas histórias, estas estão cristalizadas nas suas formas gramaticais. E só elas interessam ao filósofo como tal. Por certo, importa-lhe a história da Grécia, do Mediterrâneo ou da sexualidade, que ela seja global e linear ou siga os passos de cada instituição, mas isso não se reflete nas articulações gramaticais objetivantes. Remeter a palavra “verdade” ao seu equivalente grego alêthêia desvenda, para Heidegger,o sentido original desse conceito, mas que se acoberta no falar. Wittgenstein nunca penetra nos campos da hermenêutica, isto é, dos sentidos pré-verbais, a não ser nas situações de vida que rodeiam o falar e que são ditas, quando o são, de modo monopolar.

Creio que vale a pena ressaltar dois pontos nos estudos sobre os últimos textos de Wittgenstein a que acabamos de aludir. Tentando agarrar estruturas gramaticais que ficam à margem de suas respectivas vivências, esses textos se tornam cada vez mais complicados. Um deles diz respeito à visão da mudança de aspecto como ocorre na imagem pato/lebre: na imagem vê-se a própria mudança. Em vez da sobreposição de duas imagens, tese ainda defendida no Tractatus, esse ver a mudança agora é vivenciado (erlebtet) por alguém como isto e aquilo, o que implica alterar o próprio conceito de vivência (Wittgenstein, 2009Wittgenstein, Ludwig. Investigações filosóficas. Petrópolis: Vozes, 2014[1953] [Philosophical Investigations. Wiley-Blackwell, 2009] [1953], p. 219 [Philosophie der Psychologie]). A nova visão é mais do que a soma da percepção e pensamento, mas, sendo aparentada à primeira, pertence ao ciclo da representação (Vorstellung), que se dá assim juntando elementos por semelhança de família e não mais pela captura de marcas semelhantes a serem juntadas num conceito. A vivência alterada resulta do aprendizado de uma técnica, por conseguinte, de um juízo corretamente aprendido (Idem, p. 239). Por certo um juízo fazendo parte de um jogo de linguagem que, como ato, se junta ao estado de vivência, ecoa nele, re-presenta-o, sem que possamos separar sensação e juízo de percepção segundo a tradição kantiana.

Note-se que esse aprendizado é coletivo e nada tem a ver com atos de um eu transcendental. Mistura vivências que, como tais, cruzam dois vetores, interiorização e exteriorização, marcados pela estrutura meramente gramatical da alma. Daí a importância da distinção entre sicher sein e gewiss sein, verbos cujas gramáticas, embora semelhantes, são diferentes. Vimos que a vivência de estar seguro chega àquela de estar certo ao se fixar mediante técnicas coletivas de decidir por este ou aquele caso, levando em conta os diversos resultados das tentativas feitas. Insisto: esse julgar está ligado ao aprendizado de uma técnica que depende tanto da uniformidade dos resultados como do preparo do falante. Isso não reforça, contudo, o pressuposto de que as regras lógico-gramaticais dependem da práxis? Estão na práxis, mas não se fundam nela, porque é a ideia de fundamento que foi alterada. Lembremos a crítica ao silogismo, aliás, comum a ambos os autores: o encadeamento dedutivo retira as frases de seus contextos significativos.

O próprio Wittgenstein ressalta que, na visão da mudança do aspecto, estamos diante de outro conceito de vivência (Erlebnis), ligado a outro conceito de ver, que lembra o sentimento de vertigem quando estudamos certos conceitos matemáticos (a teoria dos números transfinitos me parece um exemplo clássico); mas ao texto segue-se uma frase solta que nos desnorteia: “Falamos, fazemos exteriorizações (Äusserungen) e depois temos uma imagem da vida delas” (Idem, pp. 220-4). O segredo dessa passagem reside, a meu ver, no conceito de exteriorização: o grito de dor, por exemplo, é substituído pela palavra “dói”, que como tal já pertence à língua portuguesa, deixando, pois, de ser mero comportamento. A imagem está ligada à gramática, à regulação do agir, complexo de sintomas, critérios de casos e pontos de referência, mas o entendimento da frase falada ou escrita depende da mudança ao ver o aspecto do som dito ou escrito. E a verdade, mais do que se dando na clareira que desvenda e oculta, se processa em um acordo de juízos práticos. Lembremo-nos do exemplo ligado à gramática das cores: esse acordo pode repousar no fato de que, quando digo falsamente que algo é vermelho, esse algo não se torna vermelho. E, quando quero explicar a alguém a palavra “vermelho” na frase “isto não é vermelho”, aponto para algo vermelho (Idem, p. 135 § 429). Desde que a frase audível ou visível mude de aspecto, sua verdade se liga ao próprio jogo do dizer das cores, que, ao ser falso, não sai de si mesmo, mas, ao ser verdadeiro, necessita tomar algo existente como critério coletivo para outros juízos. A existência é sempre aquela de um caso apontado junto ao sistema de regras, não de uma coisa, mas daquilo a que a palavra se refere num lance de um jogo em determinadas circunstâncias, isto é, de um fato. Se digo “A rosa é vermelha”, o fato de “que ela é vermelha” é verdadeiro no escuro? Sim ou não, conforme os propósitos de nosso discurso. Ao dar significado, ao querer dizer algo (meinen), estamos sempre pressupondo que os fatos vão seguir, até certo ponto, as regras empregadas. As limitações aparecem no dizer e no ver como os fatos são. Parece-me que é nessa linha que as vivências mudam de sentido: meros estados de alma exteriorizados se ligam a uma gramática e a certas imagens associadas. Não é assim que decisões individuais se tornam técnicas e juízos coletivos?

Já vimos que essa possibilidade de ver a própria mudança de aspecto altera o conceito tradicional de representação. Uma firma de São Paulo pode ser representada por outra no Rio de Janeiro. Se me referir à “minha fortuna”, digo algo que não existe, mas, se disser “vejo esta imagem como aquela de Santo Antônio”, o “como” indica “algo” que transpassa essa e outras figuras. Somente assim é possível afirmar: “O conceito de aspecto é aparentado ao conceito de representação (Vorstellung)”. Ou: o conceito “vejo isso agora como...” é aparentado com “represento-me agora isto” (Idem, p. 224 § 254). Note-se que essa semelhança aparece tão logo se nota que o aprendizado dos dois conceitos se faz conjuntamente, de sorte que a técnica de ver como, associando semelhanças de família, se torna a chave para que se compreenda o conceito de representação de algo e vice-versa. Esse algo não é um conjunto de individualidades marcadas por um traço específico, mas individualidade parecidas. Não é à toa que perceber o iluminar (Aufleuchten) do aspecto não é propriedade de um objeto mas o estabelecimento de relações internas entre ele e outros objetos (Idem, p. 223 § 248),não mais entre suas notas marcantes, como ensinam os manuais de lógica.

Trata-se, pois, de um enorme engano supor que Wittgenstein, ao usar insistentemente a palavra Vorstellung, retoma a filosofia clássica que junta representação a objetos e nada mais. Nem esconder a dificuldade traduzindo essa palavra alemã por outras ligadas à “faculdade” da imaginação. Ver um aspecto e representá-lo dependem da vontade. E, se no ver a mudança de aspecto ecoa um pensamento, não é por isso que um estado e um agir se juntam como duas vivências sobrepostas; elas se interpenetram para ligar o “ver como” à vivência da significação de uma palavra, juntando os planos em que esta passa a ser compreendida. O compreender, além de projetar-se para o mundo, também abre a cesura da interioridade.

“A essência (Wesen) é expressa na gramática” (Wittgenstein, 2009, p. 123 § 371). Para entender essa afirmação, parece-me conveniente lembrar as duas funções que, no Tractatus, 4.022, aparecem atribuídas à proposição: ela mostra (zeigt) seu sentido, isto é, quando verdadeira, mostra como é o caso (wie es ist verhält). E diz que isto é o caso, é assim e assim. De um lado, as condições de verdade, de outro, que isto é assim, caso da regra selecionada. Abolido o isomorfismo entre a forma da proposição e a forma do fato, este passando a ser dito num jogo de linguagem, seguem-se ao menos duas consequências. Cada pessoa reconhece a verdade conforme os jogos dizíveis se exercem configurando o verdadeiro e desenhando-se por juízos coletivos. Por isso o § 368 das Investigações prepara a frase sobre a essência imaginando um exemplo. Depois de ter descrito para alguém um quarto, peço-lhe que desenhe um quadro impressionista desse dormitório. Recebo um desenho colorido cujas cores, porém, nada têm a ver com os padrões do impressionismo; mas assim mesmo me declaro satisfeito. O que valeu na imagem nessa situação? A posição dos móveis, por exemplo, conforme vou usar a descrição. Essa estética não foge da oposição forma e matéria?

Antes de tudo cabe notar que Wittgenstein não usa a palavra “imagem” (Bild), mas sistematicamente “representação” (Vorstellung). Não é indício de que o quarto visto e o quarto representado estão sendo ligados por semelhanças de família que deixaram de lado os padrões coloridos usados pelos impressionistas? O fato, aceito como correto, foi instalado por traços que não são imagens de um eidos, marcas de um carimbo. Apresenta-se como resultante de juízos confluentes que se juntam a representações associadas que mostram o modo de ser dos objetos participantes do jogo de linguagem em questão. Segundo a teoria figurativa da proposição, esta mostrava seu sentido, como o caso é caso, e dizia que é assim. A partir das Investigações, a gramática - as regras de um jogo de linguagem - exprime a essência, como cada lance de um jogo deve vir a ser para manter a integridade do significado, e assim o representar como algo (coisa, ato, mente etc.) ganha sua objetualidade situada. Isso vale até mesmo quando a teologia fala de Deus, ou dos deuses.

Heidegger inverte esse movimento: o Seer (Seyn) determina as figuras da quaternidade, as travações do mundo segundo o Ereignis, mas são as palavras doadas que terminam a configuração dos entes como coisas. Durante todo o predomínio da metafísica, dando-se o Ser como fundamento, o ente é sempre fundado; de um modo ou de outro, a forma conforma a matéria desenhando “sistemas” causais. No entanto, quando Heidegger passa a investigar o ser pelo Seer esquartejado pelo Ereignis, quando cabe ao homem a guarda do Seer que se dá sem se fundamentar, o sistema metafísico da causalidade é substituído pelos acenos e contra-acenos tecidos pela trama da virada. Três verbos exprimem esse novo travejamento: bauen (construir) ligado ao habitar, este habitar (wohnen), o modo como os mortais estão sobre a Terra, sendo que o próprio habitar consiste num erigir que cultiva o seu redor pensando (denken) no limite o Seer.

A partir, como Heidegger, dos parâmetros da filosofia grega traz graves consequências, nem sempre aparentes. Usar a língua grega como se fosse um grego que, depois de longo treino numa escola de filosofia, fugisse para a Floresta Negra tinge o pensar com novas tonalidades afetivas: o Dasein, o homem entendido como ente que cuida de seu ser, é marcado pela cura e assim deixa de ser definido como animal racional. Discutir com um colega de Cambridge, mas sendo remoído por fiapos explosivos de filosofia continental, que até mesmo perderam a memória de suas origens, empurra os últimos escritos de Wittgenstein para uma crítica desnorteante e surpreendente da dualidade objeto e sua representação. No fundo, os dois filósofos pagaram o preço de não conservar no horizonte os tradicionais marcos de uma lógica formal e os ideais da razão, para se meter na aventura de pensar a linguagem seja pastoreando o ser, seja pastoreando a si mesma. Porém, deixaram-nos livres caminhos abertos nunca antes entrevistos.

Segundo Heidegger, a história do Ser evoca um novo início para o Ocidente, para os povos que vivem para o lado em que o sol se põe. Esse anúncio, porém, pode ser frustrado, pois permanece à espera de uma doação imprevisível do próprio Ser. Wittgenstein não lida com a história porque lhe interessam, sobretudo, as marcas que deixou no leito do rio onde corre o fluxo das palavras. Atenta apenas para os enganos gramaticais que o pensar é levado a praticar ao percorrer seus vários afluentes, filosóficos ou científicos. No entanto, se a esperança heideggeriana só pode ser preenchida por uma dádiva oracular, Wittgenstein espera que os próprios homens, mediante suas ações, consigam se livrar dos horrores provocados pela civilização técnica. Não os fustiga, porém, para armar uma revolução salvadora. Depois que se perde o ideal da unicidade da razão, não cabe mais à filosofia traçar o diagnóstico do mundo; só resta a ela voltar a ser o que diz que é: amor pelo saber e, nos tempos de hoje, também um amor por aqueles que procuraram raspar até o fundo desses saberes.

Quando a civilização se torna de massa e a reflexão filosófica segue seus percalços, o filosofar se converte numa profissão que se afunila. Muitos acreditam que, ao adotarem fervorosamente certas posições teóricas, poderiam romper os casulos em que os professores de filosofia se meteram e, assim, participar da vida pública. Esquecem-se de que, quando a res publica traz consigo uma maquinaria interna que produz riqueza na base da miséria relativa, ela só se regenera, como nos ensina Maquiavel, pela intervenção do príncipe, isto é, uma alavanca de poder. Mas é preciso que ele seja contemporâneo, que não repita a experiência de César Bórgia, que, assassinando os inimigos em Senigalha, alimentou uma cadeia de assassinatos que também o atingiu. O príncipe moderno há de ser democrata: lidar com o inimigo como inimigo perdurando, vale dizer, como adversário, costurando por conseguinte instituições em que a lei expressa uma vitória passageira sobre o adversário. Ninguém espera que o futuro seja pacífico, revoluções explodirão matando inocentes e culpados, mas que se desate o elo entre religião e política, que não se caia mais no engano de imaginar uma revolução que viesse emancipar o gênero humano na totalidade.

A crítica da razão não deixa margem para racionalidades fundantes, ainda que limitadas. Ouçamos primeiramente Heidegger:

Precisamos desaprender (verlernen) a pensar (segundo efeitos) e o pensamento racional (mediante fundamentos regulados). Pois desaprender não significa apenas terminar e despachar. Desaprender é para nós um aprender de outra sorte e por certo o mais difícil. Aprender significa aqui ensaiar uma experiência do mundo. Essa é uma velha sabedoria que não se pode saber mediante provas. A prova remete de modo contínuo a fundamentos e causas, afasta-se da coisa (Sache) e nunca [chega] até ela. Ela já aceitou todos os enigmas (Heidegger, 2018Heidegger, Martin. Anmerkungen vi-ix (Schwarze Hefte 1948/49-1951). Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2018, GA 98., p. 63 [GA, 98]).4 4 Devo essa citação a Róbson Ramos dos Reis.

A filosofia é considerada assim como o descontínuo questionar do ser enquanto metafísica, do Seer enquanto o novo início provocado pelo Ereignis. Onde esse questionamento se torna “correto”, no pensamento kantiano, “não está em discussão se Kant fez ou não algo correto ou falso, mas se conseguimos repensar a verdade de seu pensamento, isto é, se conseguimos copesá-la de maneira mais originária (não mais correta)” (Heidegger, 2010_____. Meditação. Petrópolis: Vozes, 2010 [Besinnung, GA 66]., p. 74 [GA, 66]). Os textos de Heidegger, porém, não caem na mesma vala gloriosa?

Wittgenstein tentou mostrar como as questões filosóficas se montam a partir de erros gramaticais. Não havendo, porém, uma linguagem universal, cada gramática só pode objetivar a seu modo. Por exemplo, o leque, participando de jogos tão diversos em português e em japonês, tanto se junta num mesmo objeto para os que falam ambas as línguas como se diferencia nas suas direções divergentes. Os grandes textos de filosofia podem estar montados sobre erros gramaticais, mas é toda a língua que participa da montagem de seus significados. Não é à toa que somos obrigados a lê-los no original. De modo semelhante: o Papa Inocêncio x é o mesmo personagem pintado por Velásquez e Francis Bacon, mas ele mesmo se apresenta tão outro que recua diante da enorme diferença entre as telas. Ainda que aceitássemos a tese de Heidegger de que os textos da metafísica falam da totalidade dos entes e não do ser, eles ganham sentido diante da especificidade grandiosa de cada um, de cada livro. Não é como se víssemos o mundo por óculos de graduação e cores variadas? Esses erros gramaticais engrandecem nossa vida e relativizam os preconceitos que nos chegam pela linguagem comum. Por certo, a reflexão filosófica se ocupa das gramáticas das línguas cotidianas, extremamente complicadas, como nota o próprio Wittgenstein, mas os enganos filosóficos monumentais conferem uma amplitude incomum à nossa vida. Não sejamos, porém, provincianos: o mesmo não acontece com as matemáticas, a teoria da relatividade, a genética contemporânea, e assim por diante? As ciências possuem, contudo, seus campos de objetos possíveis, o que falta à filosofia. Atualmente, a vida intelectual é muito diversificada. Cada um que nela se mete, se for honesto, procura seu Deus absconso, apostando que ele possa ser na sua imortalidade. E assim nos aproximamos da aposta de Pascal: se não podemos provar a existência de Deus, que apostemos nela. A diversidade, porém, dos grandes textos filosóficos nos induz ao politeísmo, invocando um sagrado que, ao morar unicamente em cada texto, perde sua sacralidade. Nós, os historiadores da filosofia, não somos os manipuladores dessa perda? Não somos pascalianos incréus?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Heidegger, Martin. Anmerkungen vi-ix (Schwarze Hefte 1948/49-1951). Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2018, GA 98.
  • _____. Meditação. Petrópolis: Vozes, 2010 [Besinnung, GA 66].
  • _____. Nietzsche I. Paris: Gallimard, 1971.
  • Wittgenstein, Ludwig. Investigações filosóficas. Petrópolis: Vozes, 2014[1953] [Philosophical Investigations. Wiley-Blackwell, 2009]
  • 1
    Último capítulo de Contraponto, Heidegger/Wittgenstein, livro a ser publicado pela Companhia das Letras em 2019.
  • 2
    Em vez de pensar o Ser como criador ou fundamento, Heidegger o considera como um acontecimento que se apropria historicamente dos homens mortais determinando-se em vista dos imortais diante da luta entre a terra e o céu. No lugar da causalidade baseada na oposição entre forma e matéria, o Ser tem sua epocalização pastoreada pela linguagem.
  • 3
    Ver os diversos escritos de Michael Heinrich a respeito.
  • 4
    Devo essa citação a Róbson Ramos dos Reis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2018
  • Aceito
    29 Nov 2018
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