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Literatura na alcova

CRÍTICA

Literatura na alcova

Elias Thomé Saliba

Historiador, professor da USP e autor de As utopias românticas e Raízes do riso

Lições de sade: ensaios sobre a imaginação libertina, de Eliane Robert Moraes. São Paulo: Iluminuras, 2006.

Sade virou marca de champanhe e atração turística, já que fornece nome a um pitoresco Café, situado próximo às ruínas de um castelo no sul da França — local onde supostamente o Marquês teria vivido algumas de suas ruidosas aventuras. Seu nome virou uma espécie de marca desprotegida, inspirando um enorme aparato pornográfico, sites clandestinos e butiques de produtos eróticos. Nada mais distante de Sade do que tais anestésicos do desejo, produzidos unicamente para satisfazer a grande massa de consumidores. Mas todo este processo de árida trivialização — fruto da tirania mercadológica de nossa época — parece que só conseguiu desfocar ainda mais a obra de Sade, classificando-a, no máximo, como registro de um escritor pervertido, dotado de algum talento literário. Mas resistindo ao silêncio, à omissão, à censura, à diabolização, à medicalização e, até mesmo, às infinitas perplexidades, hesitações e equívocos dos intérpretes, a obra de Sade continua a ser um enigma. Esta talvez seja a principal afirmação contida nos ensaios de Eliane Robert de Moraes — a mais abalizada intérprete brasileira da obra de Sade —, que nos fornece, em Lições de Sade: ensaios sobre a imaginação libertina, um panorama completo e abrangente da obra e dos inumeráveis, oblíquos e tortuosos caminhos de sua leitura e decifração.

Num dos ensaios mais sugestivos do livro, a autora analisa a sintonia entre as novelas de Sade e a atmosfera sombria do roman noir, prenunciando a sensibilidade romântica. Mas a febre gótica e os cenários sinistros — nos quais o Castelo medieval, esta fortaleza lúgubre, ocupa um lugar central — só fizeram por desinfetar e aparar as rebarbas dos significados mais fortes e profundos desse "mito noturno". O maior exemplo desse processo de desinfecção é a história de Gilles de Rais, um pedófilo do século XV, que nossa época só veio a conhecer na figura infantil do Barbazul, personagem inofensivo das fábulas de Perrault. Até hoje, as ruínas dos castelos onde viveu o "Marechal das Trevas" são designadas pelos turistas de "Fortalezas do Barbazul". Sade, contudo, leva essa lógica noturna do roman noir aos extremos do transbordamento e do insuportável. Dentro ou fora dos castelos, a obra sadiana ilumina as paixões mais tenebrosas, clandestinas e proibidas da humanidade. "E ao fazê-lo — argumenta a autora — dá voz à violência de cada um, responsabilizando cada indivíduo, e não a 'nação', pelo crime cometido, desmascarando, assim, o que está por detrás do republicano sensível e virtuoso: a crueldade e a morte". E o Marquês sabia, também, como testemunho privilegiado, qual espaço de significações ele teria que forjar: "não havia um único indivíduo" — escreveu Sade — "que não tivesse experimentado, em quatro ou cinco anos, uma soma de desgraças que nem em um século o mais famoso romancista da literatura poderia descrever. Era, pois, necessário pedir auxílio aos infernos para produzir obras de interesse, e encontrar na região das quimeras o que era de conhecimento corrente dos que folheavam a história do homem neste século de ferro".

Já no ensaio mais longo do livro, "Um libertino no salão dos filósofos", Eliane de Moraes busca contextualizar a obra de Sade na modalidade do deboche — um gênero particularmente cultivado e popularizado na cultura da época revolucionária.

A autora conecta suas análises aos estudos de historiadores como Darnton, Hunt e Antoine de Baecque, que têm mostrado a notável proliferação de uma literatura que se servia de gêneros populares como o diálogo burlesco, o chiste indecente, a balada ofensiva, a arenga injuriosa e a narrativa voyeurista. Enquanto Sade estava na prisão, alguns dos seus poucos escritos, verdadeiros ou falsamente atribuídos a ele, entravam no obscuro e clandestino circuito de circulação de livros e informações. O circuito legal era centralizado em um ou dois grandes negociantes que controlavam a maior parte do setor e eram donos de estoques bem sortidos de livros. Mas a periferia do comércio livreiro, que colocava sua mercadoria fora do alcance da lei, era enorme: centenas de pequenos lojistas mambembes juntavam-se a um bando heterogêneo de encadernadores, mascates, escrevinhadores, mestres-escolas, padres paupérrimos, charlatães, falsificadores e aventureiros intelectuais. Uma gente que teimava em fazer circular uma literatura obscena, difamatória, irreligiosa, atéia, pornográfica e obscura. Representavam a legião boêmia dos subliteratos, traficantes de livros, trapaceiros, sempre às voltas com a polícia, com a ameaça da Bastilha — enfim, uma legião de escritores que se transformaria, na conjuntura crítica da Revolução, numa geração de rancorosos, sempre pronta a escrever qualquer coisa para sobreviver. A circulação dos livros do Marquês, em livros falsos ou numerosas contrafações, seguiu um pouco a lógica espúria desses circuitos clandestinos. Não era uma questão de plágio, porque tal noção — como demonstrou Darnton — não se aplicava à literatura clandestina, pois os livros, tal como as canções, dificilmente tinham autores individuais. Era um caso típico de intertextualidade desenfreada.

Deitando raízes tanto nas vertentes clássicas do estoicismo e do epicurismo, quanto em fontes da libertinagem renascentista e barroca, a autora mostra como Sade foi o catalisador das mais díspares fontes da filosofia libertina. Quando Sade escreve La philosophie dans le boudoir, em 1795, operava uma síntese original de uma notável tradição de pensamento. A alcova, espaço privilegiado da experiência libertina, aposento estrategicamente localizado entre o salão, onde reinava a conversação, e o quarto, destinado ao amor, simbolizava também o lugar de união da filosofia e do erotismo. Em Sade, a alcova é o avesso do lar, mas nada a estranhar, numa obra na qual tudo é pelo avesso. Um lugar que se qualifica no próprio andamento estapafúrdio dos textos de Sade, onde se alternam as cenas lúbricas e as discussões filosóficas num movimento vertiginoso, até o ponto de reuni-las num só ato.

Daí porque sua obra reúna não apenas a libertinagem erudita com o deboche da conduta, como também se desdobra e se desentranha dessa síntese a sua própria filosofia. É um momento-chave na sua obra irregular, pois é o momento no qual ela se conecta com a área mais subversiva do materialismo iluminista. O ponto de partida do ateísmo de Sade é o desamparo humano. Ninguém nasce livre, o homem, lançado ao mundo como qualquer outro animal, está acorrentado à natureza — "hoje homem, amanhã verme, depois de amanhã mosca".

"O homem custa alguma coisa para a natureza? E supondo que possa custar, custa mais do que um macaco, um elefante, uma pulga, uma couve ou uma alcachofra?" Há um toque de realismo explosivo, mas também de grotesco escancarado nessa frase do personagem libertino em A filosofia na alcova. Explosivo porque as referências à carne e ao desejo humano constituíam uma arma política contra o medo paranóico que dominava, não apenas a mentalidade dominante da aristocracia como também a própria sensibilidade burguesa. A experiência e a imaginação estão a serviço da matéria e as idéias só ganham estatuto de verdade ao se corporificarem. Ao encerrar seus personagens no interior de uma alcova, o marquês denunciava uma sociedade que buscava diluir todo desejo particular na "vontade geral da nação", reduzindo o indivíduo ao cidadão. Uma pedrada de Sade nos seus confrades filósofos, sobretudo naqueles que desejavam forçar a ordem social a enquadrar-se nos moldes da Vontade Geral.

Mas também com um toque de grotesco escancarado porque ultrajava os vôos abstratos do enleio das paixões humanas descarnadas com a aparição súbita e repentina dos espasmos de erotismo e gozo dos desejos humanos. Sade, queiram ou não os antologistas e revisores de manuais filosóficos, transforma-se no filósofo que pôs em prática a "física experimental da alma", anunciada por D'Alembert, encaminhando-a para os recantos mais sombrios da crueldade. Mas encaminhando-a também ao excessivo e ao grotesco. Há um toque cômico entrevisto nas fímbrias da narrativa sadiana, sintetizados na frase supimpa de Mirabeau, cunhada pelo filósofo em provável estado etílico: "Na cópula, como na gravitação, tudo pode reduzir-se ao idêntico princípio da matéria em movimento".

Nesse passo, a comédia é a zombeteira vingança do desejo em face da abstrata busca racional pelo interesse próprio. Ela irrompe quase sempre travestida no prosaico e na singularidade irredutível do desejo. É o Werther, de Goethe, que vive intensamente todas as figuras desse mito ocidental do amor-paixão: a espera, a ausência, a entrega, o sofrimento, a morte — evidenciando um comportamento que merece do libertino apenas um profundo desprezo, que beira a irrisão. Como na célebre paródia de Thackeray ao momento deflagrador da paixão de Werther:

Werther amou Charlotte assim que a viu,

Tomado de indescritível paixão.

Sabem vocês como ele a conheceu?

Ela passava manteiga no pão.

Eliane de Moraes não aborda diretamente essa espécie de fisiologia da comédia, mas todos os seus elementos estão indicados nos férteis ensaios do livro — e, sobretudo, nos diálogos que estabelece com intérpretes notáveis, como Foucault, Barthes, Octavio Paz, e todos aqueles que buscaram compreender — "para além da história, do sexo, da vida e da morte" — aquele algo mais que a obra sadiana ainda guarda. Paz definiu o sistema libertino de Sade como uma pluralidade renitente, hostil a toda unidade: o homem de quem fala Sade é um ser único e singular, irredutível a qualquer dimensão coletiva. Aí, o erotismo é o reino da singularidade, pois "escapa continuamente à razão e constitui um domínio oscilante, regido pela exceção e pelo capricho". Nesse sentido, a obra de Sade traduz a exceção levada ao extremo: "nela, não há espécies, família, gênero, nem, mesmo por acaso, indivíduos, pois o homem muda e seu desejo de ontem nega o de hoje". Ora, como poderia alguém completar o conhecimento de um domínio invariavelmente marcado pela exceção? Nesse aspecto, é impossível não se lembrar de Fourier e sua tresloucada tentativa de articular uma classificação das paixões humanas. Ou, mais propriamente na modalidade do registro cômico, a Patafísica, do impagável Alfred Jarry, definida pelo próprio como "a ciência das leis que governam as exceções". Embora a autora não cite diretamente tais exemplos, eles se entrecruzam no ensaio "O divino Marquês dos surrealistas" — uma síntese cheia de inúmeras sugestões para pesquisas posteriores.

Sade foi durante muito tempo — e continua sendo — admitido como categoria psicológica ou exemplo sociológico, mas negado enquanto texto. Diz Simone de Beauvoir: "não é pela crueldade que se realiza o erotismo de Sade, é pela literatura. (...) habitado pelo gênio da contradição, seu pensamento emprega-se em frustrar quem quiser fixá-lo e desse modo ele atinge seu objetivo, que é preocupar-nos". Tanto os ensaios reunidos em Lições de Sade, quanto os livros anteriormente publicados de Eliane Robert de Moraes, constituem não apenas uma inteligente contribuição para admitir a obra como texto, como também para reiterar seu objetivo final, que ainda é — e continua sendo, cada vez mais — o de preocupar-nos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Fev 2007
  • Data do Fascículo
    Nov 2006
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