RESUMO
Este artigo aborda a “Apresentação” da revista Les Temps Modernes, manifesto no qual Sartre expõe o essencial de suas teses sobre a função intelectual e o sentido político do ato de escrever. Trata-se de verificar como essas teses ganham corpo no entrecruzamento dos pressupostos filosóficos do autor com os impasses de sua época. O objetivo é reconstruir um momento-chave das origens intelectuais da noção de engajamento.
PALAVRAS-CHAVE:
Sartre; engajamento; literatura; política; intelectuais
ABSTRACT
This essay addresses the “Introduction” of the journal Les Temps Modernes, a manifesto in which Sartre presents the essence of his theses on the intellectual function and political significance of writing. It aims to examine how these theses take shape at the intersection of the author’s philosophical assumptions with the challenges of his time. The goal is to reconstruct a key moment in the intellectual origins of the notion of commitment.
KEYWORDS:
Sartre; commitment; literature; politics; intellectuals
INTRODUÇÃO
A partir do imediato pós-guerra, Sartre não apenas encarna de maneira exemplar a figura do intelectual engajado, mas formula um programa e uma fundamentação para o engagement. A compreensão de suas teses e a discussão sobre a pertinência delas exige, por um lado, reconstruir o debate francês em torno da função intelectual e da relação entre literatura e política, debate em que Sartre toma parte, alterando-lhe o rumo; por outro, é preciso explicitar alguns pressupostos de sua obra crítica, ficcional e filosófica. No cruzamento desses dois eixos configura-se a questão do engajamento. Essa questão ganhou corpo na trajetória intelectual de Sartre em meio à conflagração da Segunda Guerra, na noite da ocupação, quando a intelligentsia que se aproximou da resistência não podia eludir o problema das relações entre escrever e agir. A “Apresentação” da revista de Les Temps Modernes, redigida em dezembro de 1944 e publicada em outubro de 1945, condensa essa experiência num texto polêmico e programático.
MANIFESTO 1945
A “Apresentação” de Les Temps Modernes é um manifesto do engajamento. Desde as primeiras linhas fica explícita a filiação do texto de Sartre a esse gênero de escrita de combate que se estabeleceu no século das Luzes: trata-se de um ato público, cuja procedência é marcada e o raio de ação, delimitado. A virulência retórica, a argumentação organizada em torno de binarismos, a frase arranjada de modo a alcançar o efeito de slogan, toda essa estética comum aos manifestos - de Marx a Breton - comparece na “Apresentação”. Defende-se uma literatura transitiva, imiscuída até a raiz nos dilemas da época, voltada não apenas à contemplação e ao registro - muito menos à gratuidade autorreferente da art pour l’art -, mas à ação. Esse manifesto deixa ver, em seu modo de apresentação, algo do conteúdo das teses que propõe.2
Como Sartre se empenha em datar sua empreitada, vale a pena notar que o gesto declaratório que caracteriza esse texto liminar tem parte com a vaga de manifestos que se ergueu após a Libertação de Paris, assim como a temática em torno da qual firma posição - o problema da “função social” da literatura e da “responsabilidade do escritor” - estava na ordem do dia. Depois da viagem ao fim da noite que fez durante os anos de ocupação, em que passou para a clandestinidade, a intelligentsia que se reuniu em volta da resistência enfim se manifestava, e a relação entre as letras e a política, que se tornou uma questão incontornável naquela “situação extrema”, vindo à tona, impunha-se: estouro de luz e estrépito depois de uma longa noite de ruminação silenciosa.3 Não parece aliás descabido reconhecer nesse impulso explosivo, que a “Apresentação” interioriza em todos os níveis, certo paralelo com a própria Libertação de Paris, ao menos com o modo como Sartre reconstruiu esse acontecimento - manifestação exemplar.4Que é a literatura? tematiza a passagem da ocupação ao imediato pós-guerra, atendo-se às transformações da situação do escritor, às quais correspondem metamorfoses nos gêneros de intervenção intelectual. Em linhas gerais, a literatura clandestina da resistência foi eminentemente destrutiva, tendendo para o panfleto. Sartre sugere que aí reacendeu certo “espírito de pura negatividade”, o que implica filiar essa intervenção, que por ser arriscada tornou plausível assimilar as palavras a pistolas carregadas, ao gesto inaugural do écrivain setecentista (Sartre, 2008, pp. 229-30). Se a libertação fez emergir à luz do dia os valores incubados na República do silêncio e da noite, consagrando-os, essa passagem da sombra à luz também incidiu sobre o sentido da “negatividade”: a recusa, consumada a festa insurrecional da libertação, converte-se em projeto. É o que dá o élan da conversão do panfleto em manifesto.
Para exemplificar - restituir um pouco do brilho concreto dessa passagem - tome-se um texto de Camus, “De la Résistance à la Révolution”, editorial do jornal Combat publicado imediatamente após a Libertação de Paris.
Foram necessários cinco anos de luta obstinada e silenciosa para que um jornal, nascido do espírito da resistência, publicado sem interrupção através de todos os perigos da clandestinidade, pudesse aparecer enfim à luz do dia numa Paris liberta de sua vergonha. Isso não se pode escrever sem emoção. Essa alegria comovida que começamos a ler nos rostos dos parisienses é também, e talvez ainda mais, a nossa. Mas a tarefa dos homens da resistência não está terminada. Houve o tempo da provação e vemos o seu fim. É fácil, para nós, entregar-nos ao tempo da alegria. Ela ocupa, em nossos corações, o lugar que durante cinco anos foi da esperança. A ela também seremos fiéis. Mas o tempo que vem agora é o do esforço em comum. A tarefa que nos espera é de tal ordem e de tal grandeza que nos obriga a calar o grito de nossa alegria para refletir sobre os destinos deste país pelo qual tanto combatemos. No primeiro dia de sua aparição pública, o desígnio dos homens do Combat é dizer tão alto e tão claramente quanto possível o que cinco anos de obstinação e de verdade lhes ensinaram sobre a grandeza e as fraquezas da França (Camus, 2002, pp. 141-2).
Ao desafogo que sucede o sufoco corresponde uma mudança afetiva - passagem da esperança à alegria -, e esses dois momentos, que se articulam como o passado ao presente, são imantados por um futuro iminente, que chega a roubar ao presente a possibilidade de se experimentar como presente, pois assume a forma de uma tarefa: “o tempo que vem agora” é de esforço comum. Situado nessa charneira da história, o editorialista manifesta seu intento de clarificação, que é antecedido por uma declaração de engajamento (na acepção corrente do termo, isto é, mettre en gage, afiançar, prometer, comprometer-se: “seremos fiéis”), assumido na primeira pessoa do plural (“nós”, “os homens da resistência”, “os homens do Combat”). - O que se manifesta? Conforme anunciado, um balanço de cinco anos de educação pela noite.5 Mas essa experiência é transfigurada pelo momento atual e entronca numa curva ascensional; inscrevendo-se nessa curva, Camus não contempla um processo consumado, tampouco prevê um porvir inevitável: intervém. Daí o emprego do modo optativo, bem como a ênfase declaratória e voluntarista:
tendo apenas fé em 1940, eles têm uma política, no sentido nobre do termo, em 1944. Tendo começado pela resistência, querem encerrá-la pela Revolução. [...] Não acreditamos nem nos princípios prontos de uma vez por todas nem nos planos teóricos [...]. Eis porque queremos obter imediatamente a elaboração de uma Constituição na qual a liberdade e a justiça recobram todas as suas garantias... (Camus, 2002, pp. 142-3, grifos meus).
Entranhado em uma experiência histórica irruptiva, que o propulsiona, a qual registra e sobre a qual quer agir, esse manifesto não carrega no lado prescritivo e monumental que geralmente enrijece e bitola os “manifestos de escola”; por sua linguagem emotiva, por sua apreensão quente do “agora”, por ser expressão não de um grupo institucionalizado e burocratizado, mas, digamos, de um grupo em fusão, aproxima-se do que se poderia chamar “manifesto-manifestação” (cf. Idt, 1980).
A “Apresentação” de Les Temps Modernes desdobra esse estilo de intervenção, assim como aponta para a experiência histórica em que se enraíza o editorial de Camus. Mas o arco das considerações de Sartre estende-se ao âmbito literário: é uma tomada de posição sobre o ato de escrever e a função intelectual. Aí a prosa política, de viés manifestário - polêmica, programa, performatividade -, espelha-se na afirmação do caráter essencialmente político da prosa.
ESTA VIDA PARA VIVER, NO MEIO DESTA GUERRA, DESTA REVOLUÇÃO TALVEZ
Posto que o escritor não tem nenhum meio de se evadir, queremos que abrace forte sua época; ela é sua chance única: foi feita para ele e ele para ela. Lamentamos a indiferença de Balzac diante das jornadas de 48, a incompreensão amedrontada de Flaubert em face da Comuna; lamentamos por eles: há algo aí que eles perderam para sempre. Não queremos perder nada de nosso tempo: talvez haja outros mais belos, mas é o nosso; temos apenas esta vida para viver, no meio desta guerra, desta revolução talvez. Nem por isso se conclua que professamos algum tipo de populismo: é exatamente o contrário. O populismo é um filho de velhos, o triste herdeiro dos últimos realistas: é ainda uma tentativa de tirar o corpo fora. Estamos convencidos, ao contrário, de que não se pode tirar o corpo fora. Fôssemos mudos e tranquilos como pedregulhos, nossa própria passividade seria uma ação. Aquele que consagrasse sua vida a escrever romances sobre os hititas, sua própria abstenção seria uma tomada de posição. O escritor está em situação em sua época: cada palavra tem ressonâncias. Cada silêncio também. Considero Flaubert e Goncourt responsáveis pela repressão que se seguiu à Comuna porque não escreveram uma linha para impedi-la. Dirão que não era da conta deles. Mas o processo de Calas era da conta de Voltaire? A condenação de Dreyfus era da conta de Zola? A administração do Congo era da conta de Gide? Cada um desses autores, numa circunstância particular de sua vida, mediu sua responsabilidade de escritor. A ocupação nos ensinou a nossa. Posto que agimos sobre nosso tempo pela nossa própria existência, decidimos que essa ação será voluntária (Sartre, 2012, pp. 210-1).
Esse trecho, em que tudo está dito, é carregado pela disposição de amplificação e talvez possamos caracterizá-lo como hiperbólico, na medida em que, pelo desdobramento de binarismos (tudo ou nada, responsabilidade ou irresponsabilidade, nós ou eles), enseja despertar pateticamente no leitor afetos partidários. O quadro de oposições montado por Sartre é disposto num tempo apressado, que resulta em abreviatura e condensação: em poucas frases, ele salta séculos. E vem dar no presente imediato, que embora alegue ser o correlato necessário de todo ato de escrever, portanto iniludível, decide abraçar com força (“Não queremos perder nada de nosso tempo”). Assim, esse discurso que institui a própria gênese encontra seu fulcro na situação contemporânea, “no meio desta guerra, desta revolução talvez”. A reiteração dos pronomes demonstrativos em itálico (esta vida, desta guerra, desta revolução) visa evidentemente enraizar o texto no aqui e agora da enunciação, o que é facultado pela referência implícita que esses dêiticos fazem à situação da instância que os enuncia, o sujeito que se manifesta. Recorde-se que, desprovidos de referência material extra discursiva, os dêiticos demonstrativos só cumprem sua função indicativa quando referidos à instância do discurso que contém o indicador de pessoa (eu, nós, tu...), donde extraem seu caráter a cada vez único e particular. Por isso a condição do emprego dos dêiticos demonstrativos só pode ser “a situação discursiva e nenhuma outra” (Benveniste, 1966, pp. 251-7). Especificando, chama a atenção como são empregados de forma anômala nos manifestos, o que entra em consonância com a estilística teatralizante e agônica do gênero. Ao contrário dos textos narrativos, nos quais os dêiticos remetem a situações explicitadas no próprio texto, nos manifestos, como nos textos de teatro, eles apontam para fora, concorrendo para que os leitores se impliquem no conflito em jogo (Abastado, 1980, p. 11). A insistência de Sartre em grifar os demonstrativos dá parte, assim, de uma dupla intenção: à afirmação da impossibilidade de sobrevoar a própria época conjuga-se a firme deliberação de intervir sobre esta época. O sentido mais geral dessa reiteração pode ser apreendido se observarmos como os embrayeurs aparecem na prosa filosófica de Sartre. Estudando o uso dos demonstrativos em O ser e o nada, Gilles Phillippe observa como essa aplicação está de acordo com uma exigência interna da fenomenologia sartriana:
com efeito, o real na fenomenologia sartriana não se doa a nós como o real, mas como esse real. Enquanto o artigo (definido ou indefinido) apresenta o objeto fora do quadro fenomenológico de uma visada, o demonstrativo o devolve a seu estatuto de fenômeno que aparece para uma consciência: “este homem que sou” assinala o estatuto fenomenológico do objeto visado, “o homem que sou” o nega. O dêitico assinala que o objeto considerado é estudado tão somente como perceptum que se manifesta à consciência (ver toda a reflexão sartriana sobre “o isto”). O que Sartre utiliza aqui é precisamente um efeito de discurso próprio ao demonstrativo: um efeito de presença (Phillippe, 1995, p. 105).
Isso posto, não será descabido ver na insistência de Sartre em sublinhar os demonstrativos na “Apresentação” a expressão pontual de um ideal da escrita que anseia pela pura transitividade, pela extenuação de si na visada que oferece de sua época, que se tornaria assim, correlativamente, manifesta. Não é outro seu ideal da prosa.6
Voltando ao trecho em destaque. As teses que aí se apresentam têm o caráter de declarações que instauram ou fundam determinada coletividade numa circunstância particular em que essa coletividade intervém. Sendo a circunstância de crise, essa intervenção assume a forma de uma decisão, o que seria emblemático do “profetismo político dos intelectuais” (Boschetti, 1985, pp. 149-52). Ativismo intelectual e imersão deliberada na época, sendo assunto e programa, por assim dizer bandeiras do engagement, confluem no gesto manifestário da “Apresentação”. Falta especificar o conteúdo desse gesto.
NÃO SE PODE TIRAR O CORPO FORA
Engagement significa contrato e obrigação. Significa também estouro e libertação. Essa ambivalência perpassa o uso mais especificado do termo, que remete ao vínculo entre os intelectuais e a política.7 Datam do período posterior à Primeira Guerra as primeiras ocorrências desse uso. No contexto da discussão acerca do “dever” dos homens de letras, era intercambiável com enrôlement ou embrigadement, provenientes do vocabulário militar. Em 1922, Romain Rolland atacava Henri Barbusse, que propugnava o compromisso dos escritores com a revolução, sugerindo que essa injunção implicava submeter a atividade intelectual à mesma servidão a que o exército submetera os soldados em 1914. Engagement era sinônimo de heteronomia, figurava no lado oposto da liberdade de espírito e dava margem a mais uma predicação moral do que a um debate estético. Embora pouco frequentes, as ocorrências durante os anos 1920 confirmam essa acepção negativa. É no contencioso que seguiu a publicação da Trahison des clercs (1927), de Julien Benda, em que se pode verificar uma oscilação semântica. Não é por imiscuir-se nos problemas temporais, mas por supor-se limpo dos antagonismos que dividem os leigos, que o clerc se converte em traidor, diziam os antagonistas de Benda. No interior dessa discussão, que é contemporânea do processo de politização da intelligentsia francesa que resultou na criação da Associação dos Artistas contra o Fascismo, engagement se tornava um mandamento positivo, designando algo entre a promessa solene e a atualidade de uma luta mais ou menos arriscada em que o escritor empenha sua palavra. Converteu-se enfim num dever que passou a pesar sobre o homme de lettres. É o que fica explícito numa passagem de Jean Guéhenno: “le devoir des écrivains est dans l’engagement” (apud Baty-Delalande, 2006, p. 221). O excesso dá sinal da míngua: a severidade moral do imperativo mal disfarça a má consciência de quem o enuncia. É que, embora possa estimar sua atividade em alto grau e empenhar seu prestígio mundano em benefício de causas temporais justas, um escritor apenas escreve.
A parte programática da “Apresentação” de Les Temps Modernes principia esconjurando o fardo da má consciência: “Não queremos ter vergonha de escrever” (Sartre, 2012, p. 209). Sartre, que jamais cogitou assimilar a literatura a uma atividade gratuita, muito menos edificante - pelo contrário, o escritor “dá à sociedade uma consciência infeliz” (Sartre, 2008, p. 89) -, intenta devolver a “boa consciência profissional” ao homme de lettres delineando qual seria a “função social” da literatura.8 A explicitação do modo como ele compreende essa “função social” conduz ao núcleo de sua concepção de engajamento. É o que está condensado na passagem destacada acima. A tese nuclear é enunciada nos seguintes termos: “não se pode tirar o corpo fora [on ne peut pas tirer son épingle du jeu]”. Esse enunciado se contrapõe a certa tradição que Sartre caracteriza como tocada pela “tentação da irresponsabilidade”. De acordo com ele, essa tentação irmana tendências rivais da literatura do século XIX, os partidários da art pour l’art e do realismo: os primeiros, ao propugnarem a gratuidade da literatura, e os segundos, ao mimetizarem a imparcialidade do cientista, supõem ambos permanecerem fora da sociedade. Essa presunção de exterioridade, que resulta na alegação de irresponsabilidade, assume feição dramática nos processos de depuração que então corriam contra os escritores colaboracionistas: “‘O quê?’, dizem eles, ‘então o que escrevemos nos engaja?’” (Sartre, 2012, p. 209). Sartre não pretende dissipar a “tentação da irresponsabilidade” incitando ou propondo aos escritores que tomem parte nas questões candentes de seu tempo; ele afirma que o escritor não pode não estar dentro - está “enfiado até o pescoço [dans le coup]”. Sendo a literatura um “fato social”, por mais que ambicione subtrair-se a seu tempo, mesmo essa evasão já é uma tomada de posição: “Aquele que consagrasse sua vida a escrever romances sobre os hititas, sua própria abstenção seria uma tomada de posição”. Uma digressão ajudará a medir o peso desse enunciado.
Nos escritos de Sartre, o termo engagement aparece pela primeira vez com sentido enfático no Diário de uma guerra estranha. Instado por uma carta de Beauvoir, que se inquietava com o fato de Jacques-Laurent Bost, amigo mais jovem, partir para a guerra, ele se pergunta: o abstencionismo político de que fizera praça durante os anos 1930, e que o levou a não mexer um dedo para tentar evitar a guerra, não o tornava “culpado” pelo fato de Bost agora ser enviado para o front?9 Embora a má consciência seja inevitável - algo como o remorso do pai por não ter impedido a desgraça do filho -, é também desproporcional - algo como o remorso da formiga por não ter interrompido a marcha do elefante. Mas Sartre nela não se detém, e passa a rever o modo como vinha pensando a guerra:
O que penso é que ela é da ordem dos grandes irracionais, o nascimento, a morte, a miséria, o sofrimento, em meio dos quais cada homem está lançado e a respeito dos quais se abster é ainda se engajar. [...] Estou totalmente engajado numa época cujo sentido é que, lenta e penosamente, ela procura pensar a guerra (Sartre, 1995, pp. 136-7).
O uso que aqui se faz do verbo “engajar”, primeiro na forma pronominal e depois na passiva, resolve o impasse com o qual Sartre vinha brigando desde a mobilização. Que atitude tomar em relação à guerra? De saída ele não adotou atitude muito diferente da que recriou em Sursis: “Mathieu perambulava pelo cais do Porto Velho, pensando: ‘É uma doença, exatamente uma doença; caiu sobre mim por acaso, não me diz respeito, preciso tratá-la com estoicismo, como a gota ou a dor de dentes’” (Sartre, 1981, p. 1.035). Essa presunção de exterioridade em relação ao acontecimento, que por seu turno é assimilado a um evento inumano - assim, aliás, a alegoria da ocupação transfigurada em epidemia por Camus em A peste - é que está em xeque. Note-se que a ideia de engagement “não se traduz necessariamente por uma ação deliberada”, mas pela “plena consciência da liberdade” (Idt, 1996, p. 401), que paradoxalmente se revela na impossibilidade de não escolher no interior de fatos à primeira vista impermeáveis a escolha: “o nascimento, a morte, a miséria, o sofrimento”. Esse uso do termo engagement havia aparecido algumas páginas antes: “De todo modo, um lento trabalho se operava em mim, que me fazia sentir minha consciência tanto mais livre e absoluta quanto minha vida estava mais engajada, mais contingente e mais escrava” (Sartre, 1995, p. 88). A formulação não está explicitada, mas, lida retrospectivamente, percebe-se que é um esboço do que o capítulo sobre a liberdade de O ser e o nada trocará em miúdos. De modo esquemático, uma apresentação em três tempos. No primeiro, engagement indica a dimensão inapelavelmente comprometida da liberdade com a “escolha”. Embora seja possibilidade permanente de desengajamento (dégagement), afinal se identifica com a negação do dado, a liberdade jamais se apreende como pura possibilidade indeterminada de negação, como uma reserva de abstenção que preexistisse à escolha: é sempre já uma escolha. Desse ângulo, o “peso” do engagement é menos o peso do dado, que de acordo com essa descrição jamais condiciona a liberdade, mas o peso da escolha, que, conforme a fórmula repetida diversas vezes (“estou condenado a ser livre”), embora seja fundamento do ser-escolhido, nunca é fundamento de si mesma. Não escolher é escolher ou, como está formulado no Diário: “se abster é ainda se engajar”.10 No segundo tempo, engagement indica a dimensão inapelavelmente comprometida da liberdade com a “situação”. Como a inevitabilidade da escolha vai junto com a inevitabilidade de escolher numa circunstância contingente - a facticidade sem qual a liberdade não seria poder de nadificação, e que, correlativamente, não seria descoberta desta ou daquela maneira sem a liberdade -, encontro-me sempre “engajado no mundo”: “Assim, não importa o momento, apreendo-me como engajado no mundo, em meu lugar contingente. Mas é precisamente esse engajamento que dá seu sentido a meu lugar contingente e que é minha liberdade” (Sartre, 2009, p. 535). Desse ângulo, o “peso” do engagement por assim dizer aumenta, pois não só não posso não escolher como sou constrangido a assumir a situação em que me encontro lançado ou abandonado (délaissé) como minha situação.11 No terceiro tempo, deslocando-se do terreno das considerações precedentes, que concerniam ao projeto pré-reflexivo do para-si, Sartre assume o ângulo do moralista e procura tirar delas consequências “éticas”. Nesse passo enfim retorna às páginas do Diário:
se sou mobilizado numa guerra, esta guerra é minha guerra, ela é feita à minha imagem e eu a mereço. Mereço-a, em primeiro lugar, porque poderia sempre dela me subtrair, pelo suicídio ou pela deserção: esses possíveis últimos são os que devem sempre estar presentes para nós quando se trata de considerar uma situação. Por ter deixado de me subtrair a ela, eu a escolhi [...]. Mas, além disso, ela é minha porque, pelo simples fato de surgir numa situação que faço ser e de só poder descobri-la engajando-me contra ou a favor dela, não posso mais distinguir, no presente, a escolha que faço de mim da escolha que faço da guerra: viver esta guerra é me escolher por meio dela e escolhê-la por meio de minha escolha de mim mesmo. [...] Assim, totalmente livre, indiscernível do período de que escolhi ser o sentido, tão profundamente responsável pela guerra como se eu mesmo a houvesse declarado, não podendo nada viver sem integrá-la à minha situação, sem me engajar nela totalmente e imprimir nela minha marca, devo ser sem remorsos como sou sem desculpa, pois, desde o instante de meu surgimento no ser, carrego o peso do mundo totalmente só, sem que nada nem ninguém possa aliviá-lo (Sartre, 2009, pp. 599-600).
Se o leitor voltar à “Apresentação” de Les Temps Modernes notará a referência à mesma situação (“esta guerra”), o mesmo tom patético da formulação que vaza para o juízo moral (“Considero Flaubert e Goncourt responsáveis pela repressão que seguiu à Comuna”), o mesmo estilo argumentativo que desliza entre o projeto pré-reflexivo e a assunção da escolha, entre o plano existencial e o ético (“Posto que o escritor não tem nenhum meio de se evadir, queremos que abrace forte sua época”). Sartre começa a responder à questão do engajamento, que concerne à relação entre os escritores e a política, fazendo o “princípio do engajamento” inscrever-se “na própria estrutura ontológica da subjetividade enquanto processo existencial marcado pela contingência” (Silva, 2006, p. 74). Nesse passo ele foi precedido pelos “personalistas”, que no período entreguerras reconduziam o problema da “ação profética”, aquela que se dá no âmbito do gesto e da palavra, a uma visão acerca da “condição humana”. Uma passagem de Mounier sintetiza essa visão: “O absoluto não é deste mundo e não é comensurável a este mundo. Engajamo-nos tão somente nos combates discutíveis sobre causas imperfeitas. De modo que recusar o engajamento é recusar a condição humana” (Mounier, 1961, p. 111). O que Mounier chama de “causas imperfeitas” cumpre a função que a “situação” cumpre na “Apresentação”: designa a parte do diabo na relação do intelectual com a História. Noutros termos, trata-se da contingência em relação à qual não é possível não tomar parte, o que implica “risco”. Sem poder ser reduzido a uma ação qualquer, engajamento tampouco pode ser reduzido à “militância”: num período de conflagração política em que o dégagement era sinal de traição e o engagement arriscava virar “adesão” aos “partidos”, os “não conformistas”, construindo um chão para a ação intelectual na “condição humana”, visavam atar autonomia e compromisso.12 Quase uma década depois, tocado pelas antinomias que dilaceravam o campo intelectual após a Libertação - por um lado, a oposição entre pensamento e ação (a má consciência daqueles que escrevem enquanto os outros combatem)13 e, por outro, a oposição entre liberdade e responsabilidade (o problema da responsabilização penal dos escritores colaboracionistas) (Sapiro, 2011, pp. 676-7) -, Sartre chega a uma concepção semelhante por uma via própria. Contudo declarar que “não se pode tirar o corpo fora” e remeter essa inelutabilidade do engagement a um fato da existência não basta para fundamentar a “responsabilidade do escritor”.
LUTAR COM PALAVRAS
Num artigo intitulado “Heureux les écrivains qui meurent pour quelque chose” (“Felizes os escritores que morrem por alguma coisa”), René Étiemble inclui engagement num fictício “dicionário de bolso de termos da moda” (Étiemble, 1947, p. 2). Nesse Febeapá da vida intelectual do pós-guerra, ele registra como o termo aparece em textos dos mais diversos matizes, uma salada que vai de comunistas a católicos passando por Jean Genet. Indica assim a rotinização do engagement, palavra-fetiche que por ficar muito genérica se torna imprestável. Depois de abandonar sua primeira definição - “o escritor engajado se deu em garantia ao partido [l’écrivain engagé s’est donné en gage au parti]” -, ele reabre a “Apresentação” de Les Temps Modernes:
Eu ia revisar meu pequeno dicionário quando o acaso me colocou debaixo do nariz três linhas de Jean-Paul Sartre: “Com efeito, para nós o escritor não é nem Vestal, nem Ariel: está enfiado até o pescoço, não importa o que faça, marcado, comprometido, até mesmo em seu mais longínquo retiro”. Estar enfiado até o pescoço, metido numa fria. Eu reconhecia aí algo próximo à frase de Blaise Pascal: “Estamos embarcados [Nous sommes embarqués]”. Mas nesse instante via o engajamento perder todo valor, reduzido subitamente ao fato mais banal, o fato do príncipe e do escravo, à condição humana (Étiemble, 1947, p. 2).14
Sartre responde a essa objeção explicando o que colocou em palavra de ordem no manifesto de 1945. Em primeiro lugar, não é porque todo homem está embarcado que disso tem consciência: “a maioria passa seu tempo a dissimular seu engajamento” (Sartre, 2008, p. 83). A diferença entre embarquement e engagement se traduz na assunção refletida da situação. Na “Apresentação”, esse intento é declarado: “Posto que agimos sobre nosso tempo pela nossa própria existência, decidimos que essa ação será voluntária” (Sartre, 2012, p. 211). Em Que é a literatura?, esse “modo de ação”15 será explicitado:
Direi que um escritor é engajado quando ele procura tomar a mais lúcida e inteira consciência de estar embarcado, isto é, quando faz passar para si e para os outros o engajamento da espontaneidade imediata para a refletida. O escritor é mediador por excelência e seu engajamento é a mediação (Sartre, 2008, p. 84).
Essa passagem arremata uma sequência construída em torno da oposição entre sombra e luz, que desemboca na identificação do engajamento com a “lucidez” (uma lucidez que chega a ser luciferina ou mefistofélica, pois a “mediação” de que aqui se fala encontra sua mola na negação das “forças conservadoras”). Oposição simples: à dissimulação, ao obscurecimento, ao adormecimento, a todas as formas de “atitude sonhadora” - recorde-se a querela com o surrealismo e também o modo como essa expressão aparece nas cartas de ruptura com Merleau-Ponty (Chauí, 2002, p. 277) -, Sartre opõe uma atitude vigilante, a “plena consciência”, a “tomada de consciência”, à qual identifica o engagement. Esse anseio de ver claro e lançar luz emerge já no modo como ele caracteriza a prosa no ponto de partida de Que é a literatura?. Reatando com certa ideia da prosa característica do século XVIII, retendo dessa matriz a identificação da prosa ao campo dos instrumentos e por consequência da prática, afinando com o ideal estilístico da transparência da prosa, Sartre tenciona caracterizar o médium específico do engajamento literário.16 A novidade não reside na distinção estanque entre a prosa e a poesia; o que é novo - aqui o x da questão - é a entronização do engagement na essência da prosa, que por seu turno é convertida em pilar da redefinição da própria literatura. Lutar com palavras? Se o poeta briga com as palavras, o prosador combate por meio delas. Trata-se da circunscrição do que seria uma política da prosa, levando em conta o pressuposto de que a prosa é por essência política. Uma inversão da questão do engajamento: em vez de sobrepor a política à literatura, é como se Sartre absorvesse a política na literatura. Para concretizar, tome-se a passagem a seguir:
Assim, falando, desvelo a situação por meio de meu próprio projeto de mudá-la; desvelo-a a mim mesmo e aos outros para mudá-la; atinjo-a em pleno coração, transpasso-a e fixo-lhe sob os olhos; agora disponho dela, a cada palavra que digo, engajo-me um pouco mais no mundo e, ao mesmo tempo, surjo dele um pouco mais, pois o ultrapasso rumo ao porvir. Assim, o prosador é um homem que escolheu certo modo de ação secundária que se poderia nomear ação por desvelamento. É portanto legítimo endereçar-lhe esta segunda questão: qual aspecto do mundo você quer desvelar, qual mudança você quer trazer ao mundo por meio desse desvelamento? O escritor “engajado” sabe que a palavra é ação; sabe que desvelar é mudar e que não se pode desvelar senão projetando mudar. Ele abandonou o sonho impossível de fazer uma pintura imparcial da sociedade e da condição humana (Sartre, 2008, p. 28).
Nessa passagem está a síntese do modo de ação da prosa e a figura do escritor engajado, aquele que sabe que a prosa é um modo de ação. É um retrato do sujeito que fala na “Apresentação” de Les Temps Modernes. Antes de entrar no quadro, recorde-se por onde Sartre começa: “O escritor é um falante: ele designa, demonstra, ordena, recusa, interpela, suplica, insulta, persuade, insinua” (Sartre, 2008, p. 25). Vemos um homem em vivo movimento, que parece muito confiante em sua empreitada. O espectro que vai da designação à insinuação faz suas ações passarem da constatação à performance, modos de referir os objetos e influir nos outros. Esses verbos pressupõem uma situação na qual esse homem se move, a qual se revela assim ou assado, a depender de sua fala, que por sua vez, correlativamente, significará x ou y a depender de sua situação.
No centro, certa relação com as palavras: ele “se serve” das palavras. Esse é o espírito da prosa. Em primeiro lugar, dizer que na prosa, como na fala, nos servimos das palavras significa que não tomamos as palavras por “objetos”, mas por “designações de objetos” (Sartre, 2008, p. 25). Em suma, são instrumentos. Essa instrumentalidade do signo é paralela à instrumentalidade do corpo, o que é um modo de frisar que o prosador fala de dentro da linguagem: não pode das palavras se ausentar para vê-las de fora, elas são seu ponto de vista e seu ponto cego; delas tem consciência lateral e retrospectiva, pois as ultrapassa no rumo da significação.17 Em segundo lugar, a prosa anda junto com a fala, pois ambas têm parte com a ação. Trata-se é claro de uma ação pela linguagem, cuja função de designação se integra ao “espírito objetivo”: sacode ou apazigua, a depender do modo como desvela aquilo que designa. Em suma: “Falar é agir: toda coisa que nomeamos já não é inteiramente a mesma, perdeu sua inocência” (Sartre, 2008, p. 27). Essa subtração da “inocência” das coisas por meio da nomeação é o que Sartre chama de “mediação”: porque tira a limpo ou joga na sombra, a palavra faz que as coisas de imediatas sejam mediatizadas.18 Como corolário do que ficou dito, desenha-se o quadro que destaquei antes. Nele Sartre enfim define o “modo de ação” da literatura. Olhando em perspectiva, é uma solução para o problema atávico da legitimidade da ação intelectual. Formulado sumariamente, mais ou menos o seguinte: o que legitima a intromissão política do escritor? Não é necessário trocar em miúdos a “sagração do escritor” no século XVIII para ver como esse problema é coetâneo ao próprio nascimento da figura moderna do écrivain (Bénichou, 1985), tampouco é preciso esmiuçar as discussões acerca do “Poder Espiritual” contemporâneas do caso Dreyfus para verificar como é essa a questão em jogo na querela em torno dos intellectuels.19 A solução sartriana é radical: como escrever é agir, o escritor que age conscientemente não faz mais do que se responsabilizar por seu próprio ofício.
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O presente artigo retoma o argumento de um dos capítulos de Lutar com palavras: Sartre e a questão do engajamento, tese de doutorado defendida em julho de 2022, na Universidade de São Paulo.
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Os primeiros leitores da “Apresentação” não tiveram dúvidas de que estavam diante de um manifesto. Por exemplo, Jean Paulhan, em carta a André Gide, escreve: “Sartre acaba de redigir, para Les Temps Modernes [...] um manifesto cuja parte marxista parece bem consistente e a parte metafísica quimérica” (apud Cohen-Solal, 1986, p. 292). Thierry Maulnier acusa o texto de ser um “manifesto de Escola”, expressão francamente pejorativa, denegada pelo próprio Sartre ao cabo de Que é a literatura? (cf. Maulnier, 1948, pp. 195-210). Para a tipologia e a história dos manifestos, apoio-me em Marcel Burger (2002) e Claude Abastado (1980). Nas citações de obras estrangeiras, quando não indicado seu equivalente em língua portuguesa, a tradução foi feita pelo autor.
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Sobre o projeto de Les Temps Modernes no contexto da Libertação, ver Simone Beauvoir (1984, pp. 558-9; 2009, pp. 25, 52, 55, 62) e Jean-Paul Sartre (1990, pp. 150-9). Para um panorama, ver Cristina Diniz Mendonça (1998, pp. 137-47) e Howard Davies (1987, pp. 1-13).
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Por ocasião do primeiro aniversário da Libertação de Paris, Sartre fez um balanço desse acontecimento. Afastando-se da representação oficial, que foi forjada no calor da hora e sobre a qual se erigiu o mito gaullista da Libertação - “Paris! Paris ultrajada! Paris destroçada! Paris martirizada! Mas Paris liberta! Liberta por si própria...” -, ele começa por lembrar o óbvio: a sublevação dos resistentes teria feito água sem o concurso das forças aliadas. Mas admitir que o “destino de Paris se decidia a cinquenta quilômetros” não implica diminuir a relevância da insurreição das Forças Francesas do Interior. Em vez de avaliar a eficácia real do levante, Sartre chama a atenção para a sua dimensão simbólica ou, noutros termos, procura mostrar como naquele ato se cristalizou um gesto exemplar. De acordo com ele, desafiando o poderio do ocupante, os resistentes “quiseram mostrar aos futuros vencedores que a resistência não era um mito, [...] quiseram afirmar a soberania do povo francês. [...] O que dependia deles era dar testemunho, através de seus atos [...] da vontade francesa” (Sartre, 1970, p. 659, grifos meus). Por isso Geneviève Idt diz que a Libertação de Paris, nessa reconstrução que retoma o registro efetuado pelo próprio Sartre durante os acontecimentos (Sartre, 2010a, pp. 342 ss.), aparece como um “ato manifestário [manifestaire] perfeito”, uma “manifestação pura” (Idt, 1980, pp. 61-71). Se nos manifestos ressalta a função performativa do discurso, isto é, se neles o enunciado da ação intenta colar-se à própria ação, de fato parece plausível reconhecer certa homologia do manifesto de Sartre com o modo como ele caracterizou esse acontecimento. Assim como os manifestos são atravessados por um ímpeto genealógico que lhes confere sobrecarga simbólica, afinal entroncam numa linhagem que eles próprios instituem, nas manifestações de caráter apocalíptico ou fusional, Sartre reconhece certo aspecto “cerimonial”, que consiste justamente numa reencenação da história. Inspirado pelas análises de Roger Caillois acerca da festa, ele diz sobre a Libertação: “o caráter simbólico da insurreição já estava fixado enquanto seu desenlace ainda era incerto. [...] Toda a história de Paris estava aí, sob esse sol, sobre esses pavimentos desempedrados” (Sartre, 1970, p. 662).
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Nas Cartas a um amigo alemão (1943-1944), Camus já mobilizava essa imagética que reaparecerá nos editoriais do Combat. Por exemplo: “A meditação se faz na noite. Há três anos, vocês fizeram cair uma noite sobre nossas cidades e em nossos corações. Há três anos, perseguimos nas trevas o pensamento que, hoje, sai armado diante de vocês” (Camus, 1972, p. 36).
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Variando o ângulo, não posso deixar de mencionar um curto-circuito sugerido por Bento Prado Júnior. Ao comentar o estilo dos críticos da revista Clima, ele depara com a mesma reiteração dos demonstrativos. Gilda de Mello e Souza caracterizando a prosa de Paulo Emílio Sales Gomes: “O seu diálogo é sempre uma relação privada com a imagem, cuja palpitação profunda procura acolher com humildade. Mas desta imagem, deste filme, deste autor, feito nestas condições e nesta época”. Bento Prado Júnior comentando o estilo de Gilda de Mello e Souza: “Digamos: uma espécie de vaivém constante entre o imediato fenomenológico das obras de arte e o aprofundamento de suas precondições históricas e sociais. [...] Eram especialmente as ‘análises concretas’ (este quadro, este poema, este filme) que provocavam frisson na audiência”. Embora os críticos da Clima alegassem que essa “paixão pelo concreto” vinha da falta de “cabeça teórica” dos membros do grupo, Bento Prado Júnior procura vinculá-la à incidência no Brasil da transformação da filosofia francesa que se desenrolou durante os anos 1930 sob a palavra de ordem Vers le concret. Lições de Jean Maugüé, contemporâneo de Sartre e discípulo de Alain? Bento Prado Júnior acrescenta à ascendência de Maugüé o vinco histórico desse transplante, numa formulação que, para ser explicitada, exigiria outro trabalho: “fato, ao que me parece, é que esse vaivém entre teoria e crítica, entre a França e o Brasil, é mais um sintoma de uma feliz confluência motivada, em última instância, pelas duas grandes tragédias de nosso século: as duas grandes guerras. Logo após a primeira, a melhor parte da filosofia francesa descobria o ‘concreto’ - Sartre, o ‘coleguinha’ de Maugüé (‘mon camarade, Sartre’, dizia ele para seus alunos brasileiros, referindo-se a um autor então perfeitamente desconhecido no Brasil), dizia de si mesmo que era um fruto provinciano da violência desencadeada pela Primeira Guerra e pela revolução bolchevique. Nada mais concreto que uma guerra para despertar a atenção à realidade forte do acontecimento e limitar a fé na dominação puramente teórica do mundo. Era bem, portanto, esse novo estilo de filosofia, engendrado nas décadas de 1920 e 1930 na França, que criava raízes na geração dos jovens críticos da revista Clima, permitindo-lhes inaugurar entre nós ‘a crítica moderna de teatro e de cinema, retomando em bom nível os estudos anteriores de música, literatura e artes plásticas’. É o que podemos verificar, lendo o programa de uma revista que foi criada logo depois da guerra, na França, depois da revista Clima. Falo da revista Les Temps Modernes e de sua apresentação por Sartre, onde reencontramos os demonstrativos sublinhados em itálico a que nos familiarizamos neste texto” (Prado Jr., 1999).
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Para o esquema que se segue, apoio-me em Hélène Baty-Delalande (2006).
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“A propósito dos acontecimentos políticos e sociais que sucedem, nossa revista também tomará posição em cada caso. Não o fará politicamente, isto é, não servirá nenhum partido; mas esforçar-se-á para desentranhar a concepção do homem na qual se inspirarão as teses em pauta e dará sua opinião em conformidade com a concepção que sustenta. Se pudermos manter o que prometemos, se pudermos partilhar nossos pontos de vista com alguns leitores, não sentiremos um orgulho exagerado; simplesmente nos felicitaremos por ter reencontrado uma boa consciência profissional e pelo fato de a literatura ter novamente se tornado, ao menos para nós, o que jamais deveria ter deixado de ser: uma função social” (Sartre, 2012, pp. 213-4).
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“Assim, no que me diz respeito, sou franco: odeio a guerra, mas não levantei o mindinho - de 1920 a 1939 - para evitá-la; atualmente, estou pagando esta imprevidência, deixando de queixar-me, recusando o rancor ou o desespero e suportando o que eu não soube ou quis evitar. Mas, a propósito de Bost, sou culpado. E quando cometi o erro? Aí o paradoxo: não agora quando a guerra acontece, nem certamente nesses últimos anos, quando já era inevitável. Mas, antes, quando ela parecia um sonho ruim...” (Sartre, 1995, p. 135).
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Nesse primeiro tempo tentei sintetizar o sentido que o termo engagement adquire na primeira parte do capítulo de O ser e o nada sobre a liberdade (“A condição primeira da ação é a liberdade”). O termo reincide em diversas passagens (cf. Sartre, 2009, pp. 494, 499, 507, 509, 510). Uma síntese se encontra nas pp. 523-4: “Mas se a consciência existe a partir do dado, isso não significa, de modo algum, que o dado a condiciona: ela é pura e simples negação do dado, existe como desengajamento de certo dado existente e como engajamento rumo a certo fim ainda não existente. [...] A liberdade do para-si é sempre engajada; não se trata aqui de uma liberdade que seria poder indeterminado e que preexistiria em relação a sua escolha. Apreendemo-nos tão somente como escolha em vias de se fazer. Mas a liberdade é simplesmente o fato de que essa escolha é sempre incondicionada”.
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Para esse segundo tempo, ver como engagement é empregado na segunda parte do mesmo capítulo (“Liberdade e facticidade: a situação”). Por exemplo: “As resistências que a liberdade desvela no existente, longe de serem um perigo para a liberdade, nada mais fazem senão permitir-lhe surgir como liberdade. Só pode haver para-si livre como engajado num mundo resistente. Fora desse engajamento as noções de liberdade, determinismo, necessidade perdem até mesmo o seu sentido” (Sartre, 2009, p. 528).
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Os termos entre aspas estão no ensaio inaugural de Paul-Louis Landsberg, “Réflexions sur l’engagement personnel”, que saiu na revista Esprit em novembro de 1937 (Landsberg, 1998, pp. 118-23). Do mesmo autor, ver também “Introdução a uma crítica do mito” (Landsberg, 1968), publicado na mesma revista em janeiro de 1938, no qual aparecem algumas formulações programáticas que ressoam na “Apresentação” de Les Temps Modernes. Por exemplo: “A meu ver, o que todos nós hoje buscamos ansiosamente, na revista Esprit, é um meio de agir efetivamente sobre a realidade política, econômica e social de nosso país e de nosso tempo” (Landsberg, 1968, p. 65).
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“Enquanto se combate, o homem de letras escreve; um dia orgulha-se, sente-se clérigo e guardião dos valores ideais, no dia seguinte tem vergonha, acha que a literatura é muito parecida com uma maneira especial de afetação” (Sartre, 2012, p. 208).
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Essa objeção reaparece praticamente ipsis litteris em Theodor Adorno (1984, p. 290).
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“Pensei contra mim mesmo recusando Deus, a posteridade e a glória imortal em Que é a literatura?, querendo me fazer consumir in loco. Pois finalmente agir na vida cotidiana implicava evidentemente atrair meu melhor modo de ação, a literatura, para esta mesma vida cotidiana. Ela se tornava também fenomenal. Seu essencial estava no momento” (Sartre, 2010b, p. 1.239, grifos meus).
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Sartre não refere explicitamente, mas basta bater um texto com o outro para perceber que toda a descrição da prosa no capítulo 1 de Que é a literatura? (“Que é escrever?”) é baseada no livro de Gustave Lanson, L’Art de la prose (1909). Até mesmo a citação de Valéry - “A prosa é antes de tudo uma atitude de espírito: há prosa quando, para falar com Valéry, nosso olhar atravessa a palavra como o sol ao vidro” (Sartre, 2008, p. 26) - é a mesma que Lanson mobiliza para caracterizar a “atitude de espírito” da prosa. Na entrada desse estudo, por meio da comparação de duas passagens, uma de Perrault (Cendrillon) e outra de Flaubert (Madame Bovary), Lanson mostra como a prosa foi paulatinamente poetizada durante o século XIX, o que redundou em seu fechamento num mundo à parte. Há uma interiorização mimética das coisas na prosa, que torna a “escrita” cada vez mais opaca e, portanto, passível de ser vista como uma “arte” (em contraposição à escrita iluminista, que segundo Lanson não é “artística”, mas “intelectual”: não é “bela”, é “boa”). Ora, na saída da guerra, e empenhado em encontrar a linguagem do engagement, o movimento proposto por Sartre vai no sentido contrário dessa linha de estetização da prosa, com a qual sempre manteve uma relação tensa (recorde-se a paródia sistemática da écriture d’artiste em cada frase de Les Mots): ele lhe fixa a definição antiartística e retém inclusive seu ideal de estilo.
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“Estamos na linguagem como em nosso corpo; nós a sentimos espontaneamente e ultrapassando-a em direção a outros fins, como sentimos nossas mãos e nossos pés; percebemos a linguagem quando é o outro que a emprega, assim como percebemos os membros alheios. Há a palavra vivida, e a palavra reencontrada” (Sartre, 2008, p. 26). O paralelo do corpo e do signo está em O ser e o nada: “A consciência do corpo é comparável à consciência do signo. O signo, aliás, está do lado do corpo, é uma das estruturas essenciais do corpo. Ora, a consciência do signo existe, caso contrário não poderíamos compreender a significação. Mas o signo é o ultrapassado rumo à significação, o que é negligenciado em proveito do sentido, o que jamais é tomado por si mesmo, esse para além do qual o olhar se dirige perpetuamente” (Sartre, 2009, pp. 369-70).
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“Se pensarmos que se faz uso da violência nas torturas unicamente para obter uma palavra (um número de telefone ou um endereço ou um nome), compreenderemos como a atividade de nomeação tem importância e como nomear uma coisa é transformá-la. Como transformá-la? Em primeiro lugar, num universo de saber humano, de consciência e de cultura, é fazer passar um objeto do imediato ao estado mediatizado” (Sartre, 2011, p. 17).
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Em janeiro de 1898, a campanha pela revisão do processo que condenou o capitão Dreyfus ao exílio perpétuo na ilha do Diabo por crime de alta traição sacode a França. As provas que escoraram a condenação mostram-se insustentáveis, mas o tribunal não volta atrás, o que deixa ver o preconceito na base da sentença. A primeira página do jornal L’Aurore traz uma “Carta ao Presidente da República” assinada por Émile Zola. O escritor não se contenta em denun ciar, em abstrato, atos ignominiosos. Aponta um por um, nomeando-os, os responsáveis pela farsa judicial: Eu acuso...! Conforme o testemunho de Péguy, “o choque causado foi tão extraordinário que Paris quase capitulou”. Um funcionário da diplomacia que acompanhava o caso de perto registrou uma conversa mundana que dá parte dos efeitos desse choque. Professores, escritores e funcionários de Estado, partidários e detratores de Zola, dreyfusards e antidreyfusards, digladiam-se. A certa altura Ferdinand Brunetière toma a palavra: “A carta Eu acuso é um monumento de tolice, de presunção e de incongruência. A intromissão de um romancista em um problema de justiça militar não me parece mais impertinente e bizarra do que seria a intervenção de um capitão de polícia em uma questão de sintaxe e prosódia. E essa petição [pela revisão do processo] que se fez circular entre os intelectuais. Só o fato de que recentemente se tenha criado essa palavra intelectuais para designar, como uma espécie de casta nobilitária, as pessoas que vivem nos laboratórios e nas bibliotecas, só esse fato já denuncia um dos mais ridículos defeitos de nossa época, refiro-me à pretensão de alçar os escritores, os cientistas, os professores, os filólogos, à posição de super-homens” (Paléologue, 1955, p. 90). Mais de sessenta anos depois, o reproche ainda ressoava. É o que Sartre dá a entender na abertura de Em defesa dos intelectuais: ao elencar uma série de alegações contra os malfeitos do intelectual, ele observa que a maioria delas se baseia na constatação de que o intelectual é alguém que se mete no que não lhe diz respeito (Sartre, 1990, p. 221). O que indica que o requisitório de Brunetière encontrou sucedâneos. Por exemplo, em O ópio dos intelectuais Raymond Aron nota com pesar a audiência excessiva que têm os escritores franceses: em um “século de técnica”, diz Aron, só na França esses homens sem profissão ainda são levados a sério; beneficiando-se dessa posição elevada, embora desprovidos de competência específica, imiscuem-se em todos os assuntos, a começar pela política, domínio em que, além de tolos, são nefastos, afinal são incapazes de propor qualquer “reforma precisa” (Aron, 2004, pp. 223 ss.). Obviamente, na linha de tiro de Aron estava Sartre, que em resposta procurará mostrar que, se o intelectual é alguém que se mete no que não lhe diz respeito, ele o faz menos por veleidade do que por dever, ou melhor, por uma necessidade interna a seu ser social “dilacerado”. Isso posto, vale a pena notar como na “Apresentação” a cláusula restritiva de Brunetière aparece invertida. Assim, a figura do escritor engajado que àquela altura Sartre tratava de projetar e encarnar entronca numa longa história de intromissões, que não dão parte de “irresponsabilidade”, como a crítica de Brunetière dava a entender (desde o prefácio de O discípulo, de Paul Bourget, pesa sobre o intelectual a pecha de “irresponsável”), mas justamente de “responsabilidade”: “Considero Flaubert e Goncourt responsáveis pela repressão que se seguiu à Comuna porque não escreveram uma linha para impedi-la. Dirão que não era da conta deles. Mas o processo de Calas era da conta de Voltaire? A condenação de Dreyfus era da conta de Zola? A administração do Congo era da conta de Gide? Cada um desses autores, numa circunstância particular de sua vida, mediu sua responsabilidade de escritor. A ocupação nos ensinou a nossa” (Sartre, 2012, pp. 210-1).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Out 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
08 Maio 2024 -
Aceito
29 Abr 2025
