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Saer, um original

Saer, um original* [* ] Originalmente publicado em La Nación,19/06/2005.

Beatriz Sarlo

Crítica literária argentina e dirige Punto de Vista, revista de cultura e política editada em Buenos Aires

RESUMO

Este breve ensaio traça um panorama da obra do escritor argentino Juan José Saer, morto em junho de 2005. A autora procura definir as particularidades do projeto literário de Saer, e sustenta que a compreensão de sua produção depende da capacidade de transcender os limites da América Latina e inseri-lo no contexto da literatura ocidental.

Palavras-chave: Juan José Saer; literatura argentina; forma literária.

SUMMARY

This short essay sketches a panoramic view over the work of the Argentine writer Juan José Saer, who died in June 2005. The author tries to define his literary project and states that the comprehension of his work depends on the possibilities of seeing it beyond the limits of Latin America and in comparison to occidental literature as a hole.

Keywords: Juan José Saer; Argentine literature; literary form.

"Para mim a literatura latino-americana é apenas uma categoria histórica, ou sequer histórica, talvez uma categoria geográfica [...], mas não é uma categoria estética. Para mim não há nacionalidades de romancistas; para mim há escritores e ponto", dizia Saer numa entrevista coletiva realizada na USP em 19971 [1 ] Trata-se da entrevista publicada neste mesmo número. . A insistência com que lhe reconhecem um lugar dentro da literatura argentina impede ver o lugar que ele ocupa na literatura ocidental — na companhia de Thomas Bernhard e de W.G. Sebald, por exemplo. Saer, que desprezava o mercado e recebeu o reconhecimento tardio como uma espécie de presente inesperado, irritava-se quando o julgavam somente em relação àqueles que escreviam na região do Prata ou na América Latina. Na estante internacional de livros latino-americanos, Saer com certeza não ocupou as primeiras filas nem para o público nem para a crítica; ademais, não foi muito estudado nos Estados Unidos, essa meca da consagração acadêmica, precisamente porque ninguém o considerava adequada e corretamente latino-americano.

Seus anos de êxito na Argentina e a relativa circulação que teve fora do país — embora haja traduções de seus livros em quase todas as línguas européias — foram precedidos por duas décadas de quase completa obscuridade. Saer escreveu boa parte de sua obra para um grupo de amigos. Somente em meados dos anos 1980, quando ele já havia publicado mais de dez livros — entre os quais está talvez seu melhor romance, Glosa, de 1985 —, a imprensa despertou e dedicou a Saer uma atenção que antes ele só havia recebido em textos de circulação restrita ao campo intelectual e crítico. Isso também na Argentina, onde a ditadura militar considerou inimigos os escritores opositores e a imprensa se ajustou a essa norma.

Dessa forma, a história de Saer em seu país foi repleta de obstáculos. As primeiras edições argentinas de seus livros saíram, nos anos 1980, pelo Centro Editor de América Latina, uma casa editorial que arriscou muito desde 1976. Eram livros baratos, vendidos em bancas de jornal, daqueles que se desfolham quando são abertos. Em 1983, O enteado [São Paulo: Iluminuras, 2002] foi publicado pela Folios, pequena editora fundada por um exilado ao regressar à Argentina. Antes, em 1980, Ninguém nada nunca [São Paulo: Companhia das Letras, 1997] aparecera no México, e não deve ter alcançado uma centena de leitores argentinos. Vale a pena pensar nessas idas e voltas, já que hoje provavelmente ficarão à sombra na homenagem ao grande escritor que acaba de morrer. E no entanto uma parte dessa homenagem consiste em não esquecer que Saer não foi Saer para quase ninguém quando já era Saer para os poucos que o liam. A fama literária tem essas inconsistências, esse imediatismo volátil.

UMA POÉTICA

Em 1974 Saer publicou o romance El limonero real e em 1976 o livro de contos La mayor. Sua poética estava consolidada. Mais que experimentar em diferentes direções, já havia encontrado uma forma de narração original. Em El limonero real, a partir de um início hoje clássico — "Amanhece e já está com os olhos abertos" — a frase se expande e se ramifica para gerar toda a narrativa. Trata-se de um 31 de dezembro num rancho pobre das ilhas do rio Paraná na província de Santa Fé, um congraçamento de fim de ano em que se cozinham pescados de dia e se assa um cordeiro à noite. No transcorrer do dia se entrelaçam as histórias de Layo, sua mulher, seu filho morto, seus irmãos e cunhados, suas filhas, pescadores e camponeses cujas vidas precárias são captadas com a deslumbrante precisão de um esmalte aplicado sobre uma superfície que flui, mas que Saer congela em grandes blocos sólidos.

O romance é uma proeza construtiva, mas não exibe sua intrincada trama como um exercício formal, e sim como uma rede que une diferentes tempos: o passado distante, quando Layo chegou à ilha e plantou o limoeiro, o passado mais recente, ocupado pela recordação do filho morto, e o amplo presente do 31 de dezembro, invadido pelos impactos desses tempos anteriores. Misteriosamente, é uma escritura de rigor implacável e que transmite uma vibração de experiência e sentimento. Sem qualquer laivo pitoresco, traz a ressonância de um mundo camponês e de uma língua regional com uma entonação que parece alheia à forma complexa e no entanto nela se desdobra. Saer descobriu um modo de representar sua terra natal em Santa Fé sem regionalismo exterior, sem a condescendência ou a nostalgia do escritor urbano; ali estão o Paraná e seus pescadores, figurados numa escritura perfeita.

Representar o mundo, no entanto, sempre é uma tarefa incerta. Saer pensa que se se capta o suceder a ficção pode se aproximar da representação. O conto "Sombras sobre un vidrio esmerilado", que integra o volume Unidad de lugar, de 1966, mostra uma consciência derivando por vários cursos de tempo. Adelina Flores recorda o corpo de um homem inclinado sobre sua irmã numa praia, espionado, entre repugnância e desejo, e rememora uma conversa literária. O "agora" está ocupado por essas recordações e pela percepção imprecisa do corpo desse mesmo homem nu visto através de um vidro. Esse suceder é Adelina Flores enquanto constrói, linha por linha, um poema.

Dez anos mais tarde, em "A medio borrar", um conto de La mayor, Saer explorou até o limite as possibilidades de dividir e reconstruir o tempo. Como um homem sobe uma escada? Pode-se captar esse movimento decompondo-o em cada um dos pontos do espaço percorrido? Em nenhuma narrativa posterior Saer viria a repetir o que fez nesse conto, pois nele toca o limite da investigação formal do tempo, do espaço, da ação e da consciência. A partir de La mayor o tempo se decompõe em pequenas ações e mínimos deslocamentos no espaço, mas nunca do modo desesperado como transcorre em "A medio borrar".

POLÍTICA. ROMANCE, HISTÓRIA

A década de 1970 se encerra com um romance magnífico, Ninguém nada nunca, que traça um arco até Glosa. Como este último, é um romance político — para quem não busque na representação da política uma espécie de história de eventos sucedidos, como se fosse uma extensão enfeitada do jornalismo. Em Ninguém nada nunca umas páginas obscuras narram, de maneira discernível mas não realista, a chegada de um automóvel na noite, o ruído de suas portas ao se abrir e fechar. Apenas isso, porque o leitor já pôde imaginar tudo e também porque o livro já mencionara os enigmáticos (e alegóricos) abates de cavalos que se sucedem na costa do rio Paraná. Em Glosa, de 1985, a violência política enseja uma morte escolhida mediante a posse de um talismã: a cápsula de veneno que alguns guerrilheiros mantinham consigo para se matar ante a iminência de cair nas mãos da repressão. Quem se suicida é Angel Leto, o protagonista de Cicatrices, o áspero romance de formação que Saer publicou em 1968 e que escreveu antes de completar 30 anos.

Saer escreve três romances cujo cenário é o passado: O enteado [São Paulo: Iluminuras, 2002], A ocasião [São Paulo: Companhia da Letras, 2005 (1988)] e Las nubes [1997]. Nenhum deles corresponde àquilo que se convencionou chamar de "romance histórico": o primeiro é uma fábula filosófica; o segundo, um romance sobre a incerteza da paternidade; o terceiro, um relato desopilante sobre o transporte de um grupo de loucos através da planície desde Santa Fé até Buenos Aires. Tendo lido intensamente os textos dos cronistas, viajantes e escritores do século XIX argentino, Saer os trabalha numa mescla que em Las nubes se completa com a idéia — típica do século XVIII — de um regime benévolo para curar a loucura. Sob esse modelo de cura racional e moral que sabe que "loucura e razão são indissociáveis", os loucos da caravana deambulam com suas manias num pampa metafísico. A história é isto: parcialidades, ângulos não iluminados, extravagâncias. Saer é pessimista.

UMA SOCIEDADE DE PERSONAGENS

A noite de Ninguém nada nunca, quando o carro dos seqüestradores chega à costa do Paraná, retorna em Glosa e também em A pesquisa [São Paulo: Companhia das Letras, 1999], de 1994. É evidente para todos os leitores de Saer que suas narrativas formam um ciclo, caracterizado por uma paisagem, um grupo de personagens, episódios que se esboçam num texto e muito depois (como diria Barthes) "prendem-se" em outro.

Por trás da trama de seus romances, escritos ao longo de quase cinco décadas, o reverso mostra fios que desaparecem da superfície para reaparecer anos mais tarde, linhas que se acreditava esquecidas mas são recuperadas, personagens que se deslocam de um canto da cena para o centro ou retornam como figuras secundárias ou mencionadas por outros. Todos os personagens se conhecem, e a trama oculta do reverso, que os mantém unidos, se revela por fragmentos no tapete que se vai estendendo e que jamais saberemos até onde terá se estendido. A idéia de uma sociedade de personagens, Saer a compartilha com a literatura do século XIX e com Proust, mas também com os autores de romances policiais, alguns dos quais — Raymond Chandler, por exemplo — admirava.

Desde cedo Saer resolve não abandonar sua primeira invenção, mas, ao contrário, manter-se nela, como se fosse um leque que sempre se abre pela metade e mostra um fragmento diferente do mesmo desenho (a imagem, tão exata, tomo-a de Walter Benjamin, a quem Saer lia com respeito). Por isso, quando falamos de Saer falamos de seus personagens, com os quais nós, seus leitores, estabelecemos uma relação de intimidade, que a crítica literária da última metade de século deu por descartada. No entanto, isso se dá numa literatura que se afasta de toda idéia ingênua de realismo.

A OBSERVAÇÃO DA REALIDADE

Saer não elude o problema da realidade. Se se dissesse que seus romances são filosóficos, haveria que esclarecer que o são mais à maneira de Robert Musil do que de Thomas Mann. Problemas filosóficos e estéticos e questões sobre a possibilidade da representação da realidade, antes que delineados ou transmitidos nos diálogos, aparecem como performance da narrativa. Na verdade, os personagens dialogam sobre essas questões de modo irrisório ou paródico. O exemplo mais evidente está em Glosa, quando os personagens discutem em meio a um churrasco se é possível que um cavalo tropece, haja vista que os animais são instinto e não consciência. Saer não comunica suas idéias sobre o tempo, a subjetividade e a memória: dá-lhes uma forma narrativa. Seus diálogos, assim como os de Musil, transcorrem entre a consideração séria do irrelevante e a perspectiva irônica sobre o que se intui verdadeiramente sério. O problema do tempo e do real, Saer o mostra em estado de ficção.

O mundo observado em meio à putrefação da matéria e da morte é imagem poética, como em A pesquisa, ou somente se torna tolerável a partir de uma perspectiva sarcástica, como em Lo imborrable [1992]. Saer concebeu isso desde muito jovem. Mas não mencionei aqui Juan L. Ortiz. E vale lembrá-lo não só porque Saer teve com ele a única relação discipular de sua vida, mas também porque sua literatura está fortemente marcada pela poesia: Dante, Li Po, Góngora. Desde sempre amigo de Hugo Gola, Saer escreveu a partir da poesia. Mais que isso, leu a ficção como se fosse poesia e compôs seus romances como se também o fossem, com a precisão de registro do poético e com atenção ao ritmo da frase. Algumas passagens de Ninguém nada nunca ou de O enteado pedem leitura em voz alta.

No volume El arte de narrar [1977], que reúne os poemas de Saer, leio: "Nado num rio incerto que dizem que me leva da recordação à voz". A partir de agora, por um caminho inverso, essa sua voz nos levará à sua recordação.

Recebido para publicação em 12 de setembro de 2005.

tradução do espanhol de Alexandre Morales

  • [*
    ] Originalmente publicado em La Nación,19/06/2005.
  • [1
    ] Trata-se da entrevista publicada neste mesmo número.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Nov 2005
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