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OCUPAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO: Uma proposta prefigurativa sob a urbanização capitalista neoliberal

The Occupation of Public Space: A Prefigurative Proposal under the Neoliberal Capitalist Urbanization

RESUMO

O artigo trata da ocupação do espaço público como proposta prefigurativa do comum em oposição ao neoliberalismo urbano. Articula as teorias urbana e política, baseando-se no ciclo global de protestos posterior à crise de 2008. Divide-se em três seções: i) relações entre urbano, capitalismo e práticas sociopolíticas; ii) fragmentações urbana, política e social; iii) ocupação dos espaços públicos, prefiguração e construção do comum.

PALAVRAS-CHAVE:
espaço público; urbanização capitalista; prefiguração; ocupação; protestos

ABSTRACT

This paper argues for the occupation of public space as a prefigurative proposal of the commons opposed to urban neoliberalism. It articulates urban and political theories, based on the global cycle of protests after the 2008 crisis. The sections are: i) relations between the urban, capitalism and sociopolitical practices; ii) urban, political, and social fragmentations; iii) occupation of public space, prefiguration, and construction of the common.

KEYWORDS:
public space; capitalist urbanization; prefiguration; occupation; protests

INTRODUÇÃO1 1 Agradeço aos(às) pareceristas anônimos(as) pelas sugestões de revisão para aprimoramento do artigo. Agradeço também aos professores João Tonucci Filho e Felipe Magalhães pela oportunidade de desenvolver parte dos argumentos deste artigo em suas disciplinas de pós-graduação na Universidade Federal de Minas Gerais. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (Código de Financiamento 001) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), dentro do projeto “A democracia deliberativa em face da crise da democracia: contribuições, dilemas e trilhas”, n. 423218/2018-2.

A ocupação de espaços públicos foi a gramática do ciclo global de protestos posterior à crise econômica de 2008. Praça Tahrir, Parque Zuccotti, Praça do Sol e Parque Taksim Gezi, por exemplo, ganharam notoriedade internacional pelas ocupações levadas adiante nos protestos que ocorreram no Egito, nos Estados Unidos, na Espanha e na Turquia, respectivamente. No centro de Bangkok, o baixio do trem elevado foi tomado por manifestantes e musicistas do campo democrático tailandês (Tausig, 2014Tausig, Benjamin. “Neoliberalism’s Moral Overtones: Music, Money, and Morality at Thailand’s Red Shirt Protests”. Culture, Theory and Critique, v. 55, n. 2, 2014, pp. 257-71.). No Brasil, as manifestações de Junho de 2013 usaram essa forma de ação em diversas cidades, como o Ocupa Cabral, no Rio de Janeiro, e as Assembleias Populares Horizontais, no baixio do viaduto Santa Tereza, em Belo Horizonte (Domingues, 2019Domingues, Letícia Birchal. Junho de 2013: atores, práticas e gramáticas nos protestos em Belo Horizonte. Dissertação (mestrado em ciência política). Belo Horizonte: PPGCP/Universidade Federal de Minas Gerais, 2019.; Veloso, 2017Veloso, André Henrique de Brito. O ônibus, a cidade e a luta: a trajetória capitalista do transporte urbano e as mobilizações populares na produção do espaço. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2017.; Berquó, 2016Berquó, Paula Bruzzi. A ocupação e a produção de espaços biopotentes em Belo Horizonte: entre rastros e emergências. Dissertação (mestrado em arquitetura). Belo Horizonte: NPGAU/Universidade Federal de Minas Gerais, 2016.; Mendonça; Ercan, 2015Mendonça, Ricardo F.; Ercan, Selen A. “Deliberation and Protest: Strange Bedfellows? Revealing the Deliberative Potential of 2013 Protests in Turkey and Brazil”. Policy Studies, 2015, v. 36, n. 3, pp. 267-82.).

Tais protestos estão relacionados a críticas ao neoliberalismo e às políticas de austeridade, bem como a demandas de maior democratização do sistema político e provimento de serviços públicos (Domingues, 2021Domingues, Letícia Birchal. “Crise da democracia, neoliberalismo e protestos: enquadramentos de desigualdade econômica e serviços públicos de qualidade em Occupy Wall Street e em Junho de 2013”. In: Avritzer, Leonardo; Carvalho, Priscila Delgado de (orgs.). Crises na democracia: legitimidade, participação e inclusão. Belo Horizonte: Arraes, 2021, pp. 29-56.; Braga, 2017Braga, Ruy. A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo: Boitempo, 2017.; Dean, 2016Dean, Jodi. Crowds and Party. Londres: Verso, 2016.; Della Porta, 2015Della Porta, Donatella. Social Movements in Times of Austerity: Bringing Capitalism Back into Protest Analysis. Cambridge: Polity, 2015.). Considerando que as cidades são produzidas sob a lógica capitalista e isso molda o espaço urbano, inclusive em suas desigualdades de distribuição de recursos e infraestruturas (Harvey, 1978Harvey, David. The Urban Process under Capitalism: A Framework for Analysis. International Journal of Urban and Regional Research, v. 2, n. 1-3, 1978.; 1989; Lefebvre, 2016Lefebvre, Henri. Espaço e política. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2016 [1972] . [1972]; 1999 [1970]), argumento neste artigo que a ocupação do espaço público detém a crítica da cidade capitalista e o vislumbre prefigurativo de outros espaços e relações que podem vir a ser constituídos. É importante compreender como a dimensão do urbano se relaciona com tais demandas, tendo em vista a centralidade que o próprio estar nas ruas, praças e espaços públicos teve para o desenrolar das manifestações (Domingues, 2019Domingues, Letícia Birchal. Junho de 2013: atores, práticas e gramáticas nos protestos em Belo Horizonte. Dissertação (mestrado em ciência política). Belo Horizonte: PPGCP/Universidade Federal de Minas Gerais, 2019.; Mendonça, 2017Mendonça, Ricardo F. “Singularidade e identidade nas manifestações de 2013”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 66, 2017, pp. 130-59.).

O capitalismo é uma força hegemônica na produção das cidades (Harvey, 1989Harvey, David. “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, v. 71, n. 1, 1989, pp. 3-17., p. 5), as quais devem ser entendidas como espaços de disputa de projetos políticos, econômicos e sociais nos protestos em questão. Mais do que simples inovação tática, a escolha de espaços simbólicos a serem ocupados articula visões contestatórias sobre a desigualdade no modo como o capitalismo produz as cidades. No caso, como parte de um fluxo gradativamente mais globalizado de capitais, manifestado em formas cada vez mais extensivas e fragmentadas da urbanização (Brenner, 2018Brenner, Neil. Espaços da urbanização: o urbano a partir da teoria crítica. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2018.; Soja, 2013Soja, Edward. “Para além de Postmetropolis”. Revista UFMG, v. 20, n. 1, 2013, pp. 136-67.; Monte-Mór, 2006Monte-Mór, Roberto l. de m. “O que é o urbano no mundo contemporâneo”. Revista Paranaense de Desenvolvimento, n. 111, 2006, pp. 9-18.; Harvey, 1989Harvey, David. “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, v. 71, n. 1, 1989, pp. 3-17.) e sob a égide da racionalidade neoliberal (Magalhães, 2015Magalhães, Felipe Nunes Coelho. “A dimensão simbólica na cidade neoliberal: notas sobre a construção de subjetividades na produção social do espaço do neoliberalismo”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 17, n. 1, 2015, pp. 11-22.; Brown, 2019Brown, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.; 2015; 2006; Dardot; Laval, 2016Dardot, Pierre; Laval, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo , 2016.).

Assim, o espaço urbano é o local privilegiado dos fluxos do capitalismo em contexto neoliberal (Brenner, 2018Brenner, Neil. Espaços da urbanização: o urbano a partir da teoria crítica. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2018.; Harvey, 1989Harvey, David. “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, v. 71, n. 1, 1989, pp. 3-17.), mas também é local de realização de práticas sociopolíticas permeadas pela crítica à produção capitalista (Monte-Mór, 2006Monte-Mór, Roberto l. de m. “O que é o urbano no mundo contemporâneo”. Revista Paranaense de Desenvolvimento, n. 111, 2006, pp. 9-18.; Tonucci Filho; Cruz, 2019Tonucci Filho, João Bosco Moura; Cruz, Mariana de Moura. “O comum urbano em debate: dos comuns na cidade à cidade como comum?”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais , 2019, v. 21, n. 3, pp. 487-504.; Magalhães, 2015Magalhães, Felipe Nunes Coelho. “A dimensão simbólica na cidade neoliberal: notas sobre a construção de subjetividades na produção social do espaço do neoliberalismo”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 17, n. 1, 2015, pp. 11-22.; Lefebvre, 2016Lefebvre, Henri. Espaço e política. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2016 [1972] . [1972]; 1999 [1970]). No caso do ciclo de protestos em análise neste artigo, argumento que a ocupação de espaços públicos foi a gramática mobilizada pelos manifestantes, na qual o princípio da prefiguração, por ação direta e experimentação do comum urbano, colocou-se como parte central das reivindicações (Tonucci Filho, 2020Tonucci Filho, João Bosco Moura . “Do direito à cidade ao comum urbano: contribuições para uma abordagem lefebvriana”. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 1, 2020, pp. 370-404.; Tonucci Filho; Cruz, 2019Tonucci Filho, João Bosco Moura; Cruz, Mariana de Moura. “O comum urbano em debate: dos comuns na cidade à cidade como comum?”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais , 2019, v. 21, n. 3, pp. 487-504.; Mendonça, 2017Mendonça, Ricardo F. “Singularidade e identidade nas manifestações de 2013”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 66, 2017, pp. 130-59.; Gordon, 2017Gordon, Uri. “Prefigurative Politics between Ethical Practice and Absent Promise”. Political Studies, v. 66, n. 2, 2017, pp. 1-17.; Gibson, 2013Gibson, Morgan Rodgers. “The Anarchism of the Occupy Movement”. Australian Journal of Political Science, v. 48, n. 3, 2013, pp. 335-48.).

O artigo coloca em diálogo a teoria urbana e a teoria política para compreender a dimensão da produção capitalista do espaço urbano e a proposição de alternativas nos protestos globais após a crise econômica de 2008, especialmente tendo a ocupação do espaço público como princípio estruturante desses protestos. Também mobiliza literatura secundária a respeito de tal ciclo global de protestos como base empírica para realizar as interpretações teóricas. Serão abordados elementos das mobilizações no Brasil, no Egito, nos Estados Unidos, na Tailândia, na Turquia2 2 Esses casos foram trabalhados em mais detalhe em Ricardo Mendonça e Letícia Domingues (2022), o que não será feito aqui para evitar repetições. e na Espanha. Mesmo tendo ocorrido em contextos políticos distintos, todos esses casos compartilham a experiência da ocupação do espaço público como estruturadora da ação coletiva.

Além da introdução e da conclusão, o artigo possui três seções, nas quais desenvolvo os seguintes elementos: i) as relações entre urbano, capitalismo e práticas sociopolíticas; ii) as fragmentações urbana, política e social; iii) a ocupação dos espaços públicos, prefiguração e construção do comum.

RELAÇÕES ENTRE URBANO, CAPITALISMO E PRÁTICAS SOCIOPOLÍTICAS

A produção do espaço urbano está relacionada com o desenvolvimento do capitalismo em suas diferentes fases, com disputas de interesses e contradições da própria lógica capitalista (Harvey, 1989Harvey, David. “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, v. 71, n. 1, 1989, pp. 3-17.; 1978Harvey, David. The Urban Process under Capitalism: A Framework for Analysis. International Journal of Urban and Regional Research, v. 2, n. 1-3, 1978.; Lefebvre, 2016Lefebvre, Henri. Espaço e política. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2016 [1972] . [1972]; 1999 [1970]). É mais por essa razão, do que apesar dela, que reivindicações sobre o urbano podem emergir. Assim, é necessário compreender o processo em sua complexidade, inclusive as formas como é produzida a cidade e são reproduzidas as relações sociais e as instituições que se formam a partir dela. Desse modo, a “mudança da sociedade concreta não há de ser apenas uma mudança das relações sociais, mas também uma mudança do espaço social” (Souza, 2010Souza, Marcelo Lopes de. “Com o Estado, apesar do Estado, contra o Estado: os movimentos urbanos e suas práticas espaciais, entre a luta institucional e a ação direta”. Cidades, v. 7, n. 11, 2010, pp. 14-47., p. 22).

Adoto a perspectiva de que o urbano tanto expressa as relações sociais quanto reage diretamente nelas. É o que se vê a partir do conceito de práticas espaciais, que tem sido usado pelo campo da teoria urbana a partir de Henri Lefebvre e que corresponde à manifestação, mais ou menos intensa, em um território de elementos da prática social (Souza, 2010Souza, Marcelo Lopes de. “Com o Estado, apesar do Estado, contra o Estado: os movimentos urbanos e suas práticas espaciais, entre a luta institucional e a ação direta”. Cidades, v. 7, n. 11, 2010, pp. 14-47.). Para Marcelo Souza (2010Souza, Marcelo Lopes de. “Com o Estado, apesar do Estado, contra o Estado: os movimentos urbanos e suas práticas espaciais, entre a luta institucional e a ação direta”. Cidades, v. 7, n. 11, 2010, pp. 14-47.), as práticas espaciais são aquelas densamente impregnadas da dimensão espacial.

Assim, as práticas sociopolíticas - conceito que usarei aqui por ser mais amplo que práticas espaciais - devem ser analisadas de forma integrada à produção do espaço, e compreendidas como a extensão da práxis própria do espaço urbano para o espaço social como um todo (Monte-Mór, 2006Monte-Mór, Roberto l. de m. “O que é o urbano no mundo contemporâneo”. Revista Paranaense de Desenvolvimento, n. 111, 2006, pp. 9-18., p. 14). Com isso, a dimensão prática da contestação anticapitalista por meio da ocupação do espaço público e a experimentação do comum são tanto resultado da conformação espacial própria da cidade empreendedora (Harvey, 1989Harvey, David. “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, v. 71, n. 1, 1989, pp. 3-17.) quanto criação contestadora de suas desigualdades, não só nos aspectos físicos, mas também da vida cotidiana na cidade (Tonucci Filho, 2020Tonucci Filho, João Bosco Moura . “Do direito à cidade ao comum urbano: contribuições para uma abordagem lefebvriana”. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 1, 2020, pp. 370-404.).

O surgimento da indústria fabril e suas relações produtivas3 3 Cf. Friedrich Engels (2010 [1844]) para uma interpretação desse processo na Inglaterra a partir da observação da vida da classe trabalhadora nas cidades industriais. é considerado o marco da urbanização como entendida hoje (Monte-Mór, 2006Monte-Mór, Roberto l. de m. “O que é o urbano no mundo contemporâneo”. Revista Paranaense de Desenvolvimento, n. 111, 2006, pp. 9-18., p. 12). É esse processo que Henri Lefebvre (1999Lefebvre, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999[1970] . [1970]) sistematiza em um eixo temporal e espacial que vai da ausência de urbanização à culminação de seu processo. A subordinação completa do agrário ao urbano ocorre com o processo de crescimento da cidade industrial que leva ao que ele denomina implosão-explosão:

a enorme concentração (de pessoas, de atividades, de riquezas, de coisas e de objetos, de instrumentos, de meios e de pensamento) na realidade urbana, e a imensa explosão, a projeção de fragmentos múltiplos e disjuntos (periferias, subúrbios, residências secundárias, satélites etc.). (Lefebvre, 1999Lefebvre, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999[1970] . [1970], p. 24)

A realidade urbana se impõe de forma cada vez mais ampliada e condiciona o processo espacial-temporal até a formação da tendencial da sociedade urbana, na qual ocorreria a extensão completa do tecido urbano sobre o território (Lefebvre, 1999Lefebvre, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999[1970] . [1970]).

Tal proliferação do tecido urbano já ocorreu na forma da urbanização extensiva, a qual “estendeu e integrou também a práxis sociopolítica e espacial própria do espaço urbano-industrial […] ao espaço social como um todo” (Monte-Mór, 2006Monte-Mór, Roberto l. de m. “O que é o urbano no mundo contemporâneo”. Revista Paranaense de Desenvolvimento, n. 111, 2006, pp. 9-18., p. 14). Assim, o urbano não diz respeito apenas a uma forma de aglomeração, mas a espaços nos quais a produção capitalista, a reprodução da vida e as organizações políticas estatais se efetivam. É nele que emergem as contradições próprias desse sistema, devendo-se considerar as dimensões sociopolíticas e culturais como constitutivas de sua caracterização (Monte-Mór, 2006Monte-Mór, Roberto l. de m. “O que é o urbano no mundo contemporâneo”. Revista Paranaense de Desenvolvimento, n. 111, 2006, pp. 9-18.).

De forma semelhante, Neil Brenner afirma:

o urbano é, então, uma “abstração concreta”, na qual as relações socioespaciais contraditórias do capitalismo (mercantilização, circulação e acumulação de capital e formas conexas de regulação/impugnação política) são territorializadas (incorporadas em contextos concretos e, por fim, fragmentadas) e ao mesmo tempo se generalizam (estendidas ao longo de cada lugar, território e escala e, então, universalizadas). (Brenner, 2018Brenner, Neil. Espaços da urbanização: o urbano a partir da teoria crítica. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2018., p. 277)

É nessas relações entre urbano, capitalismo e práticas sociopolíticas que faz sentido compreender o papel da urbanização nas mudanças sociais dentro do sistema capitalista - e nas formas de contestação contra suas desigualdades. A urbanização produz artefatos e configurações espaciais que condicionam, ao menos fisicamente, as ações sociais. Ela também cria instituições específicas, como leis, sistemas administrativos e políticos, que condicionam os diversos atores sociais. Por fim, a experiência e as interpretações simbólicas dos habitantes também surgem da relação com o urbano (Harvey, 1989Harvey, David. “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, v. 71, n. 1, 1989, pp. 3-17.).

Objetos construídos, ações sociais, arranjos institucionais e experiência cotidiana são elementos inter-relacionados que condicionam e são condicionados no processo de produção do urbano e de reprodução da vida. O comum, socialmente produzido na e pela cidade, é apropriado de forma desigual por aqueles que nela vivem (Tonucci Filho, 2020Tonucci Filho, João Bosco Moura . “Do direito à cidade ao comum urbano: contribuições para uma abordagem lefebvriana”. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 1, 2020, pp. 370-404.; Tonucci Filho; Cruz, 2019Tonucci Filho, João Bosco Moura; Cruz, Mariana de Moura. “O comum urbano em debate: dos comuns na cidade à cidade como comum?”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais , 2019, v. 21, n. 3, pp. 487-504.). Portanto, é pertinente compreender como essa produção capitalista do espaço, já em fase de urbanização extensiva, se relaciona com o neoliberalismo e é inserida nas disputas políticas contemporâneas.

FRAGMENTAÇÕES URBANA, POLÍTICA E SOCIAL

Considerando que o urbano carrega consigo um modelo de produção do espaço e de reprodução das relações sociais, utilizo a ideia de fragmentação como elemento articulador da configuração específica do tecido urbano e da prática sociopolítica que se dá sob a racionalidade neoliberal (Brown, 2019Brown, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.; Dardot; Laval, 2016Dardot, Pierre; Laval, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo , 2016.). Trata-se de uma chave de interpretação pela qual o esfacelamento das instituições políticas e sociais sob o neoliberalismo encontra correspondências na própria forma de construir as cidades, cada vez mais competitiva, destrutiva e geradora de desigualdades (Tonucci Filho, 2020Tonucci Filho, João Bosco Moura . “Do direito à cidade ao comum urbano: contribuições para uma abordagem lefebvriana”. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 1, 2020, pp. 370-404.; Lefebvre, 2016Lefebvre, Henri. Espaço e política. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2016 [1972] . [1972]; Soja, 2013Soja, Edward. “Para além de Postmetropolis”. Revista UFMG, v. 20, n. 1, 2013, pp. 136-67.; Peck; Theodore; Brenner, 2009Peck, Jamie; Theodore, Nik; Brenner, Neil. “Neoliberal Urbanism: Models, Moments, Mutations”. sais Review of International Affairs, v. 29, n. 1, 2009.; Brenner; Theodore, 2002Brenner, Neil; Theodore, Nik. “Cities and the Geographies of ‘Actually Existing Neoliberalism’”. Antipode, v. 34, n. 3, 2002, pp. 349-79.; Harvey, 1989Harvey, David. “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, v. 71, n. 1, 1989, pp. 3-17.; Harvey, 1978Harvey, David. The Urban Process under Capitalism: A Framework for Analysis. International Journal of Urban and Regional Research, v. 2, n. 1-3, 1978.). Assim, ao colocar a teoria urbana em diálogo com a teoria política, é possível encontrar correspondências entre processos de fragmentação sob o neoliberalismo, o urbano e a perda de algumas de suas dimensões coletivas, como seus espaços públicos.

Na fase contemporânea do capitalismo, qual seja, o neoliberalismo, ocorre um processo de destruição criativa, marcado por uma relação dialética entre a destruição parcial de arranjos institucionais e compromissos políticos por meio de reformas e de criação tendencial de novas infraestruturas orientadas para o mercado, para o crescimento econômico, para a mercantilização e para o domínio do capital (Peck; Theodore; Brenner, 2009Peck, Jamie; Theodore, Nik; Brenner, Neil. “Neoliberal Urbanism: Models, Moments, Mutations”. sais Review of International Affairs, v. 29, n. 1, 2009.; Brenner; Theodore, 2002Brenner, Neil; Theodore, Nik. “Cities and the Geographies of ‘Actually Existing Neoliberalism’”. Antipode, v. 34, n. 3, 2002, pp. 349-79.).

A destruição e a reconstrução também se tornaram elementos de interferência no espaço urbano que levaram a fragmentações de sua infraestrutura e experiência. Considerando a produção capitalista do espaço urbano, David Harvey (1978Harvey, David. The Urban Process under Capitalism: A Framework for Analysis. International Journal of Urban and Regional Research, v. 2, n. 1-3, 1978.) aponta que o investimento no espaço construído é um mecanismo importante para evitar crises relacionadas às tendências de superacumulação e de desvalorização do capital. Contudo, dada a obsolescência demasiado lenta do espaço urbano, há uma pressão por abrir espaço para novos investimentos e, com isso, efetivar o giro do capital (Harvey, 1978Harvey, David. The Urban Process under Capitalism: A Framework for Analysis. International Journal of Urban and Regional Research, v. 2, n. 1-3, 1978.; Lefebvre, 2016Lefebvre, Henri. Espaço e política. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2016 [1972] . [1972]). Isso pode resultar em “construções e destruições inúteis. […] A mobilização do espaço torna-se frenética e leva à autodestruição de espaços produzidos” (Lefebvre, 2016Lefebvre, Henri. Espaço e política. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2016 [1972] . [1972], p. 109).

Neil Brenner (2018Brenner, Neil. Espaços da urbanização: o urbano a partir da teoria crítica. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2018.) amplia a perspectiva da destruição relacionada à produção do espaço por meio da produção das paisagens operacionais. Estas são “compostas por infraestruturas sociais e técnicas enredadas umas nas outras em escala planetária, buscando atender às principais operações industriais, logísticas e metabólicas que apoiam e sustentam a vida urbana” (Brenner, 2018Brenner, Neil. Espaços da urbanização: o urbano a partir da teoria crítica. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2018., p. 240). A extração de recursos, que ocorre fora dos principais centros urbanos, torna-se parte do processo de sua produção. Isso significa pensar a “destruição criativa” para além da infraestrutura da cidade, adicionando elementos como as mudanças climáticas e outras formas de poluição e intoxicação da Terra (Brenner, 2018Brenner, Neil. Espaços da urbanização: o urbano a partir da teoria crítica. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2018., p. 245).

Em um modelo neoliberal empreendedor de cidade (Harvey, 1989Harvey, David. “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, v. 71, n. 1, 1989, pp. 3-17.), a destruição continua sendo mecanismo central do giro do capital urbano. Mas ela ganha uma faceta nova, na qual a competição entre as cidades é mecanismo para garantir investimentos pelos governos locais. Trabalhando um imaginário urbano atraente, os investimentos ocorrem em áreas como turismo, produção e consumo de espetáculos e eventos, sendo altamente especulativos, com rápida rotação de capital e intensa mobilidade geográfica (Harvey, 1989Harvey, David. “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, v. 71, n. 1, 1989, pp. 3-17., p. 13). A velocidade dessa competição acaba implicando obsolescência mais rápida dos investimentos e imitações de projetos entre cidades, gerando mais incertezas e vulnerabilidades nelas (Harvey, 1989Harvey, David. “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, v. 71, n. 1, 1989, pp. 3-17., p. 11).

A governança se torna mais localizada e, com o objetivo de atrair esse capital móvel, ocorre uma absorção dos riscos de investimentos pelo setor público, com mecanismos como provisão de infraestrutura urbana, realização de parcerias público-privadas e flexibilização das regulações trabalhistas e ambientais (Harvey, 1989Harvey, David. “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, v. 71, n. 1, 1989, pp. 3-17., pp. 11-2; Soja, 2013Soja, Edward. “Para além de Postmetropolis”. Revista UFMG, v. 20, n. 1, 2013, pp. 136-67., p. 156). Vê-se, novamente, as inter-relações entre as formas urbanas e as políticas e, consequentemente, um empobrecimento urbano mais amplo. Isso atinge também a mão de obra que produz a cidade empreendedora, resultando em contratações informais (Harvey, 1989Harvey, David. “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, v. 71, n. 1, 1989, pp. 3-17., p. 12).

As experimentações de políticas neoliberais urbanas acabam por “mobilizar o espaço da cidade como uma arena tanto para o crescimento econômico orientado pelo mercado e para as práticas de consumo das elites quanto para garantir a ordem e o controle das populações marginalizadas” (Peck; Theodore; Brenner, 2009Peck, Jamie; Theodore, Nik; Brenner, Neil. “Neoliberal Urbanism: Models, Moments, Mutations”. sais Review of International Affairs, v. 29, n. 1, 2009., p. 58).4 4 Os textos em inglês foram livremente traduzidos pela autora deste artigo. Sob a lógica do “crescer primeiro e dividir depois” (Peck; Tickell, 2002Peck, Jamie; Tickell, Adam. “Neoliberalizing Space”. Antipode , v. 34, n. 3, 2002.), a dinâmica do neoliberalismo tem “gerado profundas falhas de mercado, novas formas de polarização social e de intensificação do desenvolvimento espacial desigual e crises de modos de governança estabelecidos” (Peck; Theodore; Brenner, 2009Peck, Jamie; Theodore, Nik; Brenner, Neil. “Neoliberal Urbanism: Models, Moments, Mutations”. sais Review of International Affairs, v. 29, n. 1, 2009., p. 51).

Essa cidade empreendedora tem um formato mais fragmentado e disperso (Harvey, 1989Harvey, David. “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, v. 71, n. 1, 1989, pp. 3-17., p. 6). Edward Soja (2013Soja, Edward. “Para além de Postmetropolis”. Revista UFMG, v. 20, n. 1, 2013, pp. 136-67.) identifica a formação de uma urbanização regional que produz cidades regionais policêntricas, que vão além de um modelo metropolitano convencional, baseado no dualismo urbano-suburbano. O processo é de um espraiamento do urbano: as fronteiras ficam mais difíceis de serem reconhecidas e ganha-se uma multiplicidade de centros. Ao mesmo tempo, ocorrem reconfigurações dos enclaves sociais, com “o aumento da polarização cultural, política, econômica e social. A concentração da riqueza naquele um por centro mais rico da população e o crescimento simultâneo de populações vivendo no limiar ou abaixo do nível de pobreza alcançaram níveis incomparáveis” (Soja, 2013Soja, Edward. “Para além de Postmetropolis”. Revista UFMG, v. 20, n. 1, 2013, pp. 136-67., p. 156).

A ampliação do tecido urbano, com uma forma estendida de urbanização regional, leva a novos desafios de governança (Brenner, 2018Brenner, Neil. Espaços da urbanização: o urbano a partir da teoria crítica. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2018.; Soja, 2013Soja, Edward. “Para além de Postmetropolis”. Revista UFMG, v. 20, n. 1, 2013, pp. 136-67.). De um lado, viu-se uma maior força nos governos locais, promovendo a competição interurbana (Harvey, 1989Harvey, David. “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, v. 71, n. 1, 1989, pp. 3-17.); de outro, houve um processo de articulação supranacional para lidar com os fluxos da globalização (Soja, 2013Soja, Edward. “Para além de Postmetropolis”. Revista UFMG, v. 20, n. 1, 2013, pp. 136-67., p. 158). A escala nacional fica fragilizada pelo próprio modelo econômico e político da expansão neoliberal e a escala regional ainda não conseguiu se efetivar nas estruturas administrativas. Há uma inversão de simetria na relação entre Estado e mercado, pela qual “os mercados definem a agenda e os constrangimentos (fiscais) das políticas públicas, mas as políticas públicas pouco podem fazer para constranger o reino e as dinâmicas do mercado sempre em expansão” (Offe, 2013Offe, Claus. “Participatory Inequality in the Austerity State: A Supply-Side Approach”. In: Schäfer, Armin; Streeck, Wolfgang (orgs.). Politics in the Age of Austerity. Cambridge: Polity , 2013, pp. 196-218., pp. 212-3).

Esses processos de expansão, fragmentação e destruição relacionados à urbanização capitalista são bem sintetizados da seguinte forma: “assim como o capital que, deixado sem regulação, destrói suas bases - o trabalho e a terra (incluindo o ambiente construído) -, a urbanização, sob o capital, destrói a cidade como um comum social, político e habitável” (Tonucci Filho; Cruz, 2019Tonucci Filho, João Bosco Moura; Cruz, Mariana de Moura. “O comum urbano em debate: dos comuns na cidade à cidade como comum?”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais , 2019, v. 21, n. 3, pp. 487-504., p. 500). É possível dizer que o cercamento do comum por meio da propriedade privada tem implicações na fragmentação, homogeneização e hierarquização do espaço urbano, levando a consequências como o isolamento, a segregação e a alienação no próprio espaço urbano (Tonucci Filho, 2020Tonucci Filho, João Bosco Moura . “Do direito à cidade ao comum urbano: contribuições para uma abordagem lefebvriana”. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 1, 2020, pp. 370-404., p. 377).

Se a extensão do tecido urbano leva consigo uma prática sociopolítica (Monte-Mór, 2006Monte-Mór, Roberto l. de m. “O que é o urbano no mundo contemporâneo”. Revista Paranaense de Desenvolvimento, n. 111, 2006, pp. 9-18.), “na metrópole contemporânea, a subjetivação e a construção de significados sobre seu próprio conteúdo simbólico perpassam o neoliberalismo em sentidos diversos e são fundamentais na sua reprodução” (Magalhães, 2015Magalhães, Felipe Nunes Coelho. “A dimensão simbólica na cidade neoliberal: notas sobre a construção de subjetividades na produção social do espaço do neoliberalismo”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 17, n. 1, 2015, pp. 11-22., p. 15). Com isso, a racionalidade neoliberal se torna elemento-chave para a compreensão do fenômeno da fragmentação também para o âmbito social e político (Brown, 2019Brown, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.).

A compreensão do neoliberalismo como racionalidade tem o pensamento foucaultiano como referência e vem sendo desenvolvida por autores como Wendy Brown (2006Brown, Wendy. “The American Nightmare, Neoliberalism, Neoconservatism and De-democratization”. Political Theory, v. 34, n. 6, 2006, pp. 690-714.; 2015Brown, Wendy. Undoing the Demos. Nova York: Zone, 2015.; 2019Brown, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.), Pierre Dardot e Christian Laval (2016Dardot, Pierre; Laval, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo , 2016.). “Uma racionalidade política governa o dizível, o inteligível e os critérios de verdade nesses domínios” (Brown, 2006Brown, Wendy. “The American Nightmare, Neoliberalism, Neoconservatism and De-democratization”. Political Theory, v. 34, n. 6, 2006, pp. 690-714., p. 693). No caso do neoliberalismo, “o princípio universal da concorrência” (Dardot; Laval, 2016Dardot, Pierre; Laval, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo , 2016., p. 17) passa a reger essas diversas dimensões e refaz o ser humano, “tanto [como] um membro da firma quanto [como] uma firma nele mesmo” (Brown, 2015Brown, Wendy. Undoing the Demos. Nova York: Zone, 2015., p. 34).

A fragmentação também aparece aqui, uma vez que o social e o político, segundo Wendy Brown (2019Brown, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.), são corroídos pelos avanços neoliberais. O social entra em decomposição por uma defesa do mercado, que é contrário a quaisquer iniciativas de regulação e redistribuição sociais, consideradas nocivas a uma noção atomizada de liberdade (Brown, 2019Brown, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., pp. 38-9). Por sua vez, o político é desidratado pelo neoliberalismo, a democracia é reduzida a seus aspectos mínimos (como as eleições) e a lógica do mercado é substituída por propostas de controle político e redistribuição (Brown, 2019Brown, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., p. 71). Esses processos significam uma perda da capacidade de se pensar os cidadãos de forma coletiva, inclusive em seus aspectos de desigualdades históricas, que precisam de instrumentos políticos democráticos para serem superadas (Brown, 2019Brown, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., p. 38).

A autora, apesar de não ter uma abordagem específica da teoria urbana, vê o espaço como local onde é possível vislumbrar futuros utópicos ou distópicos:

Ordenamentos humanos do espaço e os significados atribuídos a esses ordenamentos moldam nossas conceituações de quem e do que somos, especialmente na vida com os outros. […] Mas eles também apresentam designações do espaço público e privado, de espaço de gênero, de espaço racializado e muito mais. […] Nós não apenas vivemos em territórios marcados, mas também desenvolvemos imaginários políticos do comum (ou da falta dele) a partir da semiótica espacial. (Brown, 2019Brown, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., p. 69; tradução minha)

Assim, mesmo sendo parte de processos de produção capitalistas destrutivos, o espaço (urbano) surge como local onde é possível recompor as dimensões políticas e sociais atacadas pelo neoliberalismo. Local contestado e de contestação, é onde novas práticas sociopolíticas podem surgir e novas formas de produção podem ser testadas. É o que se entende que estava em jogo nas ocupações de espaços públicos no ciclo global de protestos dos anos 2010, conforme será abordado a seguir.

OCUPAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS, PREFIGURAÇÃO E CONSTRUÇÃO DO COMUM

A ocupação dos espaços públicos esteve presente em uma série de protestos ao redor do mundo após a crise econômica de 2008.5 5 Vale destacar, agradecendo a sugestão de um (a) dos (das) pareceristas, que a ocupação do espaço público foi relevante também em protestos como o Maio de 1968 — do qual participou Henri Lefebvre e que contribuiu para o seu pensamento (Stefaniak, 2018) — e os protestos alterglobais da virada do século XX para o XXI (Ludd, 2002). Seja em democracias consolidadas, seja em países autoritários ou com expectativa de democratização, manifestantes questionaram a ordem político-econômica existente a partir da reinvenção de práticas e relações no próprio espaço urbano. Considero, então, que a ocupação do espaço público é uma gramática desse ciclo global de protestos, gramática sendo entendida aqui como o princípio estruturante da ação coletiva: ela guia e dá coerência às diferentes práticas existentes em determinado protesto (Domingues, 2019Domingues, Letícia Birchal. Junho de 2013: atores, práticas e gramáticas nos protestos em Belo Horizonte. Dissertação (mestrado em ciência política). Belo Horizonte: PPGCP/Universidade Federal de Minas Gerais, 2019.). No caso da ocupação do espaço público, ela articula elementos de reinvenção do território, da política e da subjetividade a partir de uma perspectiva de prefiguração que traz consigo a proposta de criação do comum urbano.

A retomada do espaço público pode ser pensada não só como local de vislumbre do futuro emancipatório que se quer construir (Brown, 2019Brown, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.), mas também como a prática, no tempo presente, desse mesmo futuro. É isso que propõe o princípio da prefiguração, levantado no ciclo global de protestos em análise (Gordon, 2017Gordon, Uri. “Prefigurative Politics between Ethical Practice and Absent Promise”. Political Studies, v. 66, n. 2, 2017, pp. 1-17.; Gibson, 2013Gibson, Morgan Rodgers. “The Anarchism of the Occupy Movement”. Australian Journal of Political Science, v. 48, n. 3, 2013, pp. 335-48.; Graeber, 2002Graeber, David. “The New Anarchists”. New Left Review, v. 13, jan.-fev. 2002.). Tal prefiguração tem características políticas, sociais e espaciais que retiram o espaço urbano da esfera do Estado e do mercado, e pode ser interpretada à luz da ideia do comum urbano, até mesmo por ir contra a fragmentação urbana e sociopolítica abordada anteriormente (Tonucci, 2020Tonucci Filho, João Bosco Moura . “Do direito à cidade ao comum urbano: contribuições para uma abordagem lefebvriana”. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 1, 2020, pp. 370-404.; Tonucci Filho; Cruz, 2019Tonucci Filho, João Bosco Moura; Cruz, Mariana de Moura. “O comum urbano em debate: dos comuns na cidade à cidade como comum?”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais , 2019, v. 21, n. 3, pp. 487-504.).

Assim, partindo de Pierre Dardot e Christian Laval, João Tonucci Filho e Mariana Moura (2019Tonucci Filho, João Bosco Moura; Cruz, Mariana de Moura. “O comum urbano em debate: dos comuns na cidade à cidade como comum?”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais , 2019, v. 21, n. 3, pp. 487-504.) compreendem o comum como bandeira que contesta o domínio da razão neoliberal sobre todas as esferas da vida e da natureza e conceituam:

o comum refere-se a bens, espaços e recursos que são coletivamente usados e geridos por uma dada comunidade por meio de práticas de fazer-comum, isto é, um conjunto de práticas e relações de compartilhamento e reciprocidade, para além do âmbito do Estado e do mercado e das formas de propriedade públicas e privadas. (Tonucci Filho; Moura, 2019Tonucci Filho, João Bosco Moura; Cruz, Mariana de Moura. “O comum urbano em debate: dos comuns na cidade à cidade como comum?”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais , 2019, v. 21, n. 3, pp. 487-504., p. 488)

Ainda que com especificidades locais, a década seguinte à crise econômica de 2008 viu uma série de manifestações multitudinárias irromperem e questionarem os efeitos negativos do neoliberalismo, bem como a incapacidade da democracia representativa liberal de combatê-los (Mendonça; Domingues, 2022Mendonça, Ricardo F.; Domingues, Letícia Birchal. “Protestos contemporâneos e a crise da democracia”. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 37, 2022, pp. 1-36.; Domingues, 2021Domingues, Letícia Birchal. “Crise da democracia, neoliberalismo e protestos: enquadramentos de desigualdade econômica e serviços públicos de qualidade em Occupy Wall Street e em Junho de 2013”. In: Avritzer, Leonardo; Carvalho, Priscila Delgado de (orgs.). Crises na democracia: legitimidade, participação e inclusão. Belo Horizonte: Arraes, 2021, pp. 29-56.; Braga, 2017Braga, Ruy. A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo: Boitempo, 2017.; Dean, 2016Dean, Jodi. Crowds and Party. Londres: Verso, 2016.; Della Porta, 2015Della Porta, Donatella. Social Movements in Times of Austerity: Bringing Capitalism Back into Protest Analysis. Cambridge: Polity, 2015.). Em países como o Brasil e a Turquia, o próprio espaço público e o direito à cidade eram bandeiras das manifestações. Os protestos de junho de 2013 no Brasil vinham de uma série de contestações contra os megaeventos que seriam realizados no país, como a Copa do Mundo de 2014, que trouxe sérios impactos urbanos e sociais (Berquó, 2016Berquó, Paula Bruzzi. A ocupação e a produção de espaços biopotentes em Belo Horizonte: entre rastros e emergências. Dissertação (mestrado em arquitetura). Belo Horizonte: NPGAU/Universidade Federal de Minas Gerais, 2016.; Jennings et al., 2014Jennings, Andrew et al. Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas? São Paulo: Boitempo /Carta Maior, 2014.; Ancop, s.d.Ancop. Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa: megaeventos e violações de direitos humanos no Brasil. [s.n.t.] Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/PRq4y5 >. Acesso em: 16/8/2022.
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). O estopim dos protestos também dizia respeito a uma demanda urbana: a oposição ao aumento de vinte centavos no preço da tarifa de ônibus em São Paulo (Veloso, 2017Veloso, André Henrique de Brito. O ônibus, a cidade e a luta: a trajetória capitalista do transporte urbano e as mobilizações populares na produção do espaço. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2017.; Judensnaider, 2013Judensnaider, Elena et al. (orgs.). Vinte centavos: a luta contra o aumento. São Paulo: Veneta, 2013.; Maricato et al., 2013Maricato, Ermínia et al. Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo /Carta Maior, 2013.). Na Turquia, a população mobilizou-se contra o projeto do governo Erdogan de construir um shopping center e um complexo residencial no Parque Taksim Gezi, em Istambul. A Praça Taksim foi ocupada no dia 29 de maio de 2013 e iniciou-se uma série de mobilizações (Mendonça et al., 2019Mendonça, Ricardo F. et al. “Protests as ‘Events’: The Symbolic Struggles in 2013 Demonstrations in Turkey and Brazil”. Revista de Sociologia e Política, v. 27, n. 69, 2019.; Tansel, 2018Tansel, Cemal Burak. “Authoritarian Neoliberalism and Democratic Backsliding in Turkey: Beyond the Narratives of Progress”. South European Society and Politics, v. 23, n. 2, 2018, pp. 197-217.; Bilgiç, 2018Bilgiç, Ali. “Reclaiming the National Will: Resilience of Turkish Authoritarian Neoliberalism after Gezi”. South European Society and Politics, v. 23, n. 2, 2018.; Esen; Gumuscu, 2016Esen, Berk; Gumuscu, Sebnem. “Rising Competitive Authoritarianism in Turkey”. Third World Quarterly, v. 37, n. 9, 2016, pp. 1.581-606.; Türkmen, 2017Türkmen, Buket. “Del Parque Gezi a la transformación del paisaje político de Turquía”. In: Bringel, Breno; Pleyers, Geoffrey (orgs.). Protesta e indignación global: los movimientos sociales en el nuevo orden mundial. Buenos Aires/Rio de Janeiro: Clacso/Faperj, 2017.; Mendonça; Ercan, 2015Mendonça, Ricardo F.; Ercan, Selen A. “Deliberation and Protest: Strange Bedfellows? Revealing the Deliberative Potential of 2013 Protests in Turkey and Brazil”. Policy Studies, 2015, v. 36, n. 3, pp. 267-82.).

Em outros países, ainda que o direito à cidade não fosse especificamente levantado como bandeira, a crítica ao neoliberalismo e ao desmantelamento de serviços sociais e a demanda por mais democracia confluíram em direção às praças, transformadas em espaço de resistência política. Foi o que ocorreu com as manifestações na Praça Tahrir, no Cairo, cujos slogans eram “pão, liberdade e justiça social” e “o povo quer a queda do regime” (Abaza, 2017Abaza, Mona. “Egipto: reflexiones dispersas sobre un momento contrarrevolucionário”. In: Bringel, Breno; Pleyers, Geoffrey (orgs.). Protesta e indignación global: los movimientos sociales en el nuevo orden mundial. Buenos Aires/Rio de Janeiro: Clacso/Faperj, 2017, pp. 105-12.; Bamyeh; Hanafi, 2015Bamyeh, Mohammed; Hanafi, Sari. “Introduction to the Special Issue on Arab Uprisings”. International Sociology, v. 30, n. 4, 2015, pp. 343-7.; Freirichs, 2015Freirichs, Sabine. “Egypt’s Neoliberal Reforms and the Moral Economy of Bread: Sadat, Mubarak, Morsi”. Review of Radical Political Economics, v. 48, n. 4, 2015, pp. 1-23.; Al-Anani, 2015Al-Anani, Khalil. “Upended Path: The Rise and Fall of Egypt’s Muslim Brotherhood”. Middle East Journal, v. 69, n. 4, 2015.; Prince, 2014Prince, Mona. Revolution Is My Name: An Egyptian Woman’s Diary from Eighteen Days in Tahrir. Cairo: The American University Press in Cairo Press, 2014.; Babo, 2013Babo, Isabel. “As manifestações na Tunísia e no Egito em 2010-2011. A semântica dos acontecimentos nos media e o papel das redes digitais”. Análise Social, v. 209, XLVIII (4º), 2013, pp. 792-809.; Hanafi, 2012Hanafi, Sari. “The Arab Revolutions: The Emergence of a New Political Subjectivity”. Contemporary Arab Affairs, v. 5, n. 2, 2012, pp. 198-213.; Teti; Gervasio, 2012Teti, Andrea; Gervasio, Gennaro. “After Mubarak, before Transition: The Challenges for Egypt’s Democratic Opposition”. Interface, v. 4, n. 1, 2012, pp. 102-12.). E também no Parque Zuccotti, em Nova York, quando o movimento Occupy Wall Street denunciou as medidas de resgate da crise econômica que acirravam as desigualdades do país e cunhou o famoso “We are the 99%” [“Nós somos os 99%”] (DiMaggio, 2020DiMaggio, Anthony. Rebellion in America: Citizen Uprisings, the News Media, and the Politics of Plutocracy. Nova York: Routledge, 2020.; Gibson, 2013Gibson, Morgan Rodgers. “The Anarchism of the Occupy Movement”. Australian Journal of Political Science, v. 48, n. 3, 2013, pp. 335-48.; Chomsky, 2012Chomsky, Noam. Occupy. Londres: Penguin, 2012.). E na Espanha, a partir da Praça do Sol, as demandas por democracia participativa levantadas pelos manifestantes do 15M se espalharam por todo o país (Nistal, 2012Nistal, Tomás Alberich. “Antecedents, Achievements and Challenges of the Spanish 15M Movement”. In: Tejerina, Benjamín; Perugorría, Ignacia (orgs.). From Social to Political: New Forms of Mobilization and Democratization. 2012, Bilbao. Anais… Bilbao: Universidad del País Vasco/Euskal Herriko Unibertsitatea, 2012, pp. 78-92.).

Em todos esses casos, os protestos se alastraram para além dos primeiros pontos de ocupação, ganhando ruas e redes em movimentos volumosos, rápidos e contagiantes, e estimulando novas ocupações de espaços públicos em territórios diversos. Uma vez ocupados, era a hora de reinventá-los. Era necessário definir coletivamente uma organização espacial, com intervenções estéticas e lúdicas, montagem de barracas e divisão de funções: onde preparar comida, dormir, festejar, realizar assembleias etc.6 6 Para compreender a vivência em tais ocupações, cf., entre outros, Mona Prince (2014), que faz um rico relato da ocupação da Praça Tahrir, no Cairo. A própria manutenção do grupo no espaço público era uma questão que demandava não só coesão entre manifestantes diversos, que travavam conhecimento no ato político mesmo e precisavam resistir à repressão estatal.

Os elementos lúdicos e festivos interrompem e transformam o cotidiano das ruas e praças. “Essa experiência de estar na rua, de fazer história, ressignifica o público e adquire diferentes formatos. O corpo na rua acaba por reinventá-la, apontando para possibilidades alternativas de existência social” (Mendonça, 2017Mendonça, Ricardo F. “Singularidade e identidade nas manifestações de 2013”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 66, 2017, pp. 130-59., p. 148). Cores correspondem a grupos e demandas: na Tailândia, as camisas vermelhas representavam os camponeses, de classe baixa, de esquerda e a favor da democracia, e as amarelas, os monarquistas, da coalizão entre as elites aristocráticas e a classe média urbana (Forsyth, 2010Forsyth, Tim. “Thailand’s Red Shirt Protests: Popular Movement or Dangerous Street Theatre?”. Social Movement Studies, v. 9, n. 4, 2010, pp. 461-7., p. 465; Tausig, 2014Tausig, Benjamin. “Neoliberalism’s Moral Overtones: Music, Money, and Morality at Thailand’s Red Shirt Protests”. Culture, Theory and Critique, v. 55, n. 2, 2014, pp. 257-71.; Sombatpoonsiri, 2017Sombatpoonsiri, Janjira. “The Policing of Anti-government Protests: Thailand’s 2013-2014 Demonstrations and a Crisis of Police Legitimacy”. Journal of Asian Security and International Affairs, v. 4, n. 1, 2017, pp. 95-122., p. 102). As performances musicais também tiveram um papel central nos protestos contra o governo autoritário em Bangkok (Tausig, 2014Tausig, Benjamin. “Neoliberalism’s Moral Overtones: Music, Money, and Morality at Thailand’s Red Shirt Protests”. Culture, Theory and Critique, v. 55, n. 2, 2014, pp. 257-71.). O uso de máscaras e capuzes, seguindo a estética e tática black bloc, espalhou-se em diversos países. Ao cobrir o rosto, os manifestantes criam um tipo de identidade coletiva a partir do anonimato, o qual “transcende a publicidade ou a privacidade, transformando sentimentos privados em demandas políticas e transmitindo-as à esfera pública, facilitando, assim, a ausência como presença” (Asenbaum, 2018Asenbaum, Hans. “Anonymity and Democracy: Absence as Presence in the Public Sphere”. American Political Science Association, v. 112, n. 3, 2018, pp. 1-14., pp. 19-20).

As práticas políticas e sociais também precisavam ser trabalhadas nesse espaço ocupado. “Em meio a processos de territorialização, relações sociais (re)articulam-se, vinculadas a uma tentativa de resistir às forças e aos efeitos desagregadores do capitalismo (semi)periférico, em particular no momento do parcial ‘desmonte’ dos Estados nacionais” (Souza, 2015Souza, Marcelo Lopes de. Dos espaços de controle aos territórios dissidentes: escritos de divulgação científica e análise política. Rio de Janeiro: Consequência, 2015., p. 120). As assembleias foram usadas nesses diversos locais para deliberar sobre seus próprios rumos e organização. Buscavam ser uma forma diferente de fazer política, com uma construção coletiva de deliberação por meio da maior participação possível de indivíduos e da definição de procedimentos para alcançar consensos na pluralidade, ainda que fossem espaços de conflito (Domingues, 2018Domingues, Letícia Birchal. “‘Deliberação, conflito e movimentos sociais’: um estudo de caso das práticas de organização e tomada de decisão do Tarifa Zero BH”. Agenda Política, v. 6, 2018, pp. 130-57.; Dean, 2016Dean, Jodi. Crowds and Party. Londres: Verso, 2016.; Della Porta, 2015Della Porta, Donatella. Social Movements in Times of Austerity: Bringing Capitalism Back into Protest Analysis. Cambridge: Polity, 2015.; Mendonça; Ercan, 2015Mendonça, Ricardo F.; Ercan, Selen A. “Deliberation and Protest: Strange Bedfellows? Revealing the Deliberative Potential of 2013 Protests in Turkey and Brazil”. Policy Studies, 2015, v. 36, n. 3, pp. 267-82.; Chomsky, 2012Chomsky, Noam. Occupy. Londres: Penguin, 2012.; Harvey, 2012Harvey, David et al. Occupy. São Paulo: Boitempo/Carta Maior, 2012.).

Ao trazer de forma contestatória a ocupação do espaço público como busca da constituição do comum, território, política e subjetividade colocam-se em diálogo para tentar construir, no presente, aquilo que se quer alcançar no futuro, conforme dita o princípio da prefiguração.

Uri Gordon define política prefigurativa como “o ethos de unidade entre meios e fins, distintiva de movimentos sociais contemporâneos” (Gordon, 2017Gordon, Uri. “Prefigurative Politics between Ethical Practice and Absent Promise”. Political Studies, v. 66, n. 2, 2017, pp. 1-17., p. 2). A proposta é haver coerência na ação, entre conteúdo e forma revolucionários, orientando desde o presente o caminho de transformação que se deve seguir. Ela carrega uma ideia de “path dependence” [dependência da trajetória] (Gordon, 2017Gordon, Uri. “Prefigurative Politics between Ethical Practice and Absent Promise”. Political Studies, v. 66, n. 2, 2017, pp. 1-17.), na qual a construção coletiva do presente condiciona os caminhos possíveis para o futuro. Dessa forma, a máxima coerência entre meios e fins seria hoje o caminho mais propício para um futuro revolucionário.

Contudo, Uri Gordon (2017Gordon, Uri. “Prefigurative Politics between Ethical Practice and Absent Promise”. Political Studies, v. 66, n. 2, 2017, pp. 1-17., pp. 11-2) chama a atenção para o fato de que o princípio é adotado de forma bastante presentista, de modo que o projeto de futuro não está ainda bem definido, embora possua elementos de horizontalidade, desmercantilização e democracia direta. David Graeber (2002Graeber, David. “The New Anarchists”. New Left Review, v. 13, jan.-fev. 2002., p. 72) assume esse aspecto de provisoriedade e abertura no princípio da prefiguração, colocando-o em uma dimensão de trabalho árduo e em andamento.

A dimensão processual do princípio prefigurativo é compatível com a proposta de experimentação do comum urbano na ocupação do espaço público. Ainda que de forma temporária e parcial, a reinvenção do convívio, da gestão, do uso e da produção no espaço ocupado é orientada pela busca da desmercantilização desse espaço e da desconstrução de hierarquias das relações sociais, condicionando os caminhos a serem seguidos por aqueles que buscam transformações via ação coletiva.

Abordando o caso do Occupy Wall Street, Morgan Gibson conclui:

Os acampamentos, efetivamente, tornaram-se alternativas políticas prefigurativas ao status quo, nos quais os participantes engajaram-se em tentativas genuínas de construir instituições de uma sociedade libertada dentro da casca da antiga. […] O Occupy tem a esperança de desenvolver novas estruturas com o objetivo de criar espaços públicos que sejam o mais abertos, participativos e democráticos possível. (Gibson, 2013Gibson, Morgan Rodgers. “The Anarchism of the Occupy Movement”. Australian Journal of Political Science, v. 48, n. 3, 2013, pp. 335-48., p. 345; tradução minha)

A ressignificação do espaço público coloca em questão os limites dos canais oficiais de participação, passando à construção de formas de ação direta. Considerando a prefiguração como um princípio, é possível afirmar que a ação direta é um de seus componentes. “Por meio da ação direta, um grupo ou indivíduo usa seu próprio poder para prevenir uma injustiça ou prover um bem, ao invés de apelar para um agente externo” (Gordon, 2017Gordon, Uri. “Prefigurative Politics between Ethical Practice and Absent Promise”. Political Studies, v. 66, n. 2, 2017, pp. 1-17., p. 9). A ideia de ação direta compõe o campo político libertário, partindo da proposta de aproximação entre meios e fins, bem como da rejeição a mediações por estruturas desiguais, como Estados e mercado. Na ação direta “meios e fins se tornam, efetivamente, indistinguíveis; uma forma de se engajar ativamente no mundo para trazer mudanças, na qual a forma da ação - ou, ao menos, a organização da ação - é ela mesma um modelo para a mudança que se quer trazer” (Graeber, 2009Graeber, David. Direct action: an ethnography. Edimburgo: AK, 2009., p. 210).

Diferentemente da ideia corriqueira que vincula a ação direta a atos de violência, essa proposta busca a ação política a partir do não reconhecimento de estruturas perpetuadoras de desigualdades e opressão (Graeber, 2009Graeber, David. Direct action: an ethnography. Edimburgo: AK, 2009.). Nesse sentido, “a forma fragmentada e caótica de resistir às relações de poder globais pode ser vista como um ataque, em última instância, às próprias relações capitalistas de produção” (Freire Filho; Cabral, 2008Freire Filho, João; Cabral, Ana Julia Cury de Brito. “Contra-hegemonia e resistência juvenil: movimentos mundiais de contestação da ordem neoliberal”. In: Coutinho, Eduardo Granja (org.). Comunicação e contra-hegemonia: processos culturais e comunicacionais de contestação, pressão e resistência. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008., p. 180).

O urbano se torna o local de resistência e experimentação de inversão das estruturas de poder e segregação que nele se perpetuam:

Não se trata somente de protestar contra aquilo que dificulta ou impede as apropriações genuinamente públicas e imaginativas das ruas e construções metropolitanas - a intenção é torná-las um palco temporário para ensaios abertos de outros modelos de expressão, convivência e participação, fora dos parâmetros capitalistas vigentes. (Freire Filho; Cabral, 2008Freire Filho, João; Cabral, Ana Julia Cury de Brito. “Contra-hegemonia e resistência juvenil: movimentos mundiais de contestação da ordem neoliberal”. In: Coutinho, Eduardo Granja (org.). Comunicação e contra-hegemonia: processos culturais e comunicacionais de contestação, pressão e resistência. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008., p. 182)

A busca da desmercantilização das cidades - e até mesmo da vida sob a égide do neoliberalismo - ocorre de forma prática, por meio das ocupações de espaços públicos e das novas práticas sociopolíticas lá experimentadas. Porém, a ocupação de espaços públicos não reforça a ideia do Estado contra o mercado, mas propõe a constituição do comum: ela “evoca um porvir não capitalista para além da antinomia moderna Estado versus mercado, propriedade pública versus propriedade privada, indo na direção de um campo de práticas e alternativas mais autônomas e coletivas de produção e reprodução social” (Tonucci Filho; Cruz, 2019Tonucci Filho, João Bosco Moura; Cruz, Mariana de Moura. “O comum urbano em debate: dos comuns na cidade à cidade como comum?”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais , 2019, v. 21, n. 3, pp. 487-504., p. 488). Nesse sentido, “as reivindicações aos comuns na cidade passam a ser formuladas em contraposição aos processos de despossessão, gentrificação e remoções que colocam em risco certos recursos urbanos” (Tonucci Filho; Cruz, 2019Tonucci Filho, João Bosco Moura; Cruz, Mariana de Moura. “O comum urbano em debate: dos comuns na cidade à cidade como comum?”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais , 2019, v. 21, n. 3, pp. 487-504., pp. 494-5).

Tonucci Filho aponta, a partir do pensamento de Lefebvre, que a autogestão se torna elemento importante para a reconstrução do espaço social: “somente a possessão e gestão coletiva do espaço por parte direta dos ‘interessados’, mesmo com seus interesses múltiplos e mesmo contraditórios, poderiam superar as dissociações e fragmentações do espaço” (Tonucci Filho, 2020Tonucci Filho, João Bosco Moura . “Do direito à cidade ao comum urbano: contribuições para uma abordagem lefebvriana”. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 1, 2020, pp. 370-404., p. 399). Com isso, a forma tipicamente urbana do encontro das diferenças poderia se efetivar pela lógica do compartilhamento do comum (Tonucci Filho, 2020Tonucci Filho, João Bosco Moura . “Do direito à cidade ao comum urbano: contribuições para uma abordagem lefebvriana”. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 1, 2020, pp. 370-404.), no qual se vislumbra um futuro em que a lógica da mercadoria e da fragmentação não domine o espaço urbano e social.

A ocupação do espaço público experimentada nos protestos citados aqui tem traços dessa autogestão espacial. A busca de mecanismos horizontalizados de decisão política e sociabilidade e a ressignificação do espaço público para, ainda que pontualmente, tirá-lo da esfera da produção capitalista e experimentar o comum antecipam no presente aquilo que se quer alcançar. Ainda que existam limites, a capacidade criativa de tais espaços traz aberturas e trabalha imaginários de futuros, além de tentar reconstituir os elementos do social e do político, tão atacados pelo neoliberalismo.

Ainda assim, é relevante a preocupação sobre a capacidade de sustentar as experiências de horizontalidade, autogestão e compartilhamento para além de espaços homogêneos ou experiências efêmeras. Em tempos de expansão da racionalidade neoliberal e crise democrática, Erik Wright propõe uma combinação de estratégias anticapitalistas que crie “relações econômicas mais democráticas, mais igualitárias e mais participativas […] nos espaços e nas fissuras que esse sistema complexo deixa desguarnecidos” (Wright, 2019Wright, Erik Olin. Como ser anticapitalista no século XXI? São Paulo: Boitempo , 2019., p. 86), e pelas quais seja possível, eventualmente, transbordar iniciativas pontuais e destronar o papel dominante do capitalismo no sistema.

As praças e os espaços ocupados no ciclo de protestos em análise foram, de fato, desocupados, porém existem elementos que transbordaram de tais experiências de prefiguração do comum. Sob o aspecto mais estritamente urbano, a pauta do direito à cidade, que já era relevante no Brasil, ampliou-se com o fortalecimento de ocupações por moradia e coletivos que reivindincam o direito à mobilidade urbana (Bittencourt, 2016Bittencourt, Rafael Reis. Cidadania autoconstruída: o ciclo de lutas sociais das ocupações urbanas na RMBH (2006-2015). Dissertação (mestrado em arquitetura e urbanismo). Belo Horizonte: NPGAU/Universidade Federal de Minas Gerais, 2016.; Veloso, 2017Veloso, André Henrique de Brito. O ônibus, a cidade e a luta: a trajetória capitalista do transporte urbano e as mobilizações populares na produção do espaço. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2017.). Sob o aspecto político e organizacional, Tomás Nistal (2012Nistal, Tomás Alberich. “Antecedents, Achievements and Challenges of the Spanish 15M Movement”. In: Tejerina, Benjamín; Perugorría, Ignacia (orgs.). From Social to Political: New Forms of Mobilization and Democratization. 2012, Bilbao. Anais… Bilbao: Universidad del País Vasco/Euskal Herriko Unibertsitatea, 2012, pp. 78-92., p. 90) aponta como consequência do 15m espanhol uma maior democratização interna dos partidos políticos e sindicatos, que também pode ser encontrada em outros países, como no Brasil, com a proposta dos mandatos coletivos. A queda do presidente Hosni Mubarak e a realização das primeiras eleições democráticas no Egito em 2012 mostram as possibilidades democratizantes das manifestações (Al-Anani, 2015Al-Anani, Khalil. “Upended Path: The Rise and Fall of Egypt’s Muslim Brotherhood”. Middle East Journal, v. 69, n. 4, 2015.), mesmo que depois o país tenha voltado a viver sob um regime autoritário.7 7 Buscamos interpretar, em Mendonça e Domingues (2022), as ambivalências dos protestos em questão e os sinais de erosão democrática. Breno Bringel e Geoffrey Pleyers (2015Bringel, Breno; Pleyers, Geoffrey. “Junho de 2013… dois anos depois. Polarização, impactos e reconfiguração do ativismo no Brasil”. Nueva Sociedad, nov. 2015. Disponível em: < Disponível em: https://nuso.org/articulo/junho-de-2013-dois-anos-depois/ >. Acesso em: 7/11/2022.
https://nuso.org/articulo/junho-de-2013-...
) destacam uma abertura societária posterior a Junho de 2013, marcada por uma reelaboração de elementos da vivência social, da qualidade de vida nas grandes cidades e das violências sobre determinados grupos, como mulheres, jovens, negros e pobres.

Com isso, em vez de pensar que o capitalismo e a cidade capitalista são realidades absolutas e intransponíveis, os protestos e as experiências de ocupação do espaço público apontam para a existência de “enclaves” de experiência do comum ou propostas de organização alternativas de caráter não mercadológico e não hierárquico - podendo transbordar em práticas e transformações para além do momento da ocupação em si.

CONCLUSÃO

O presente artigo buscou compreender como a ocupação de espaços públicos surge como proposta prefigurativa que mobiliza o ideário do comum, em oposição às formas neoliberais e fragmentárias do urbano, da política e do social que temos hoje.

Para tanto, utilizou a teoria urbana para mostrar como o urbano, o capitalismo e as práticas sociopolíticas estão inter-relacionados. Viu-se que o espaço urbano tanto expressa quanto condiciona as relações de produção capitalistas e as práxis social e política que ocorrem nele. À medida que se expande, o urbano leva consigo instituições políticas, práticas, artefatos e formações subjetivas, com suas contradições e desigualdades próprias (Souza, 2010Souza, Marcelo Lopes de. “Com o Estado, apesar do Estado, contra o Estado: os movimentos urbanos e suas práticas espaciais, entre a luta institucional e a ação direta”. Cidades, v. 7, n. 11, 2010, pp. 14-47.; Monte-Mór, 2006Monte-Mór, Roberto l. de m. “O que é o urbano no mundo contemporâneo”. Revista Paranaense de Desenvolvimento, n. 111, 2006, pp. 9-18.; Lefebvre, 1999Lefebvre, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999[1970] . [1970]; 2016 [1972]; Harvey, 1978Harvey, David. The Urban Process under Capitalism: A Framework for Analysis. International Journal of Urban and Regional Research, v. 2, n. 1-3, 1978.; 1989Harvey, David. “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, v. 71, n. 1, 1989, pp. 3-17.).

Na fase neoliberal do capitalismo, houve um aprofundamento da dimensão destrutiva da produção do urbano, que tem afinidade com a própria erosão do social e do político resultante dos avanços neoliberais (Brown, 2019Brown, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.). É dessa afinidade que tratou a segunda seção do trabalho, buscando compreender a destruição do espaço construído como mecanismo de garantia do giro do capital urbano (Lefebvre, 2016Lefebvre, Henri. Espaço e política. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2016 [1972] . [1972]; Harvey, 1978Harvey, David. The Urban Process under Capitalism: A Framework for Analysis. International Journal of Urban and Regional Research, v. 2, n. 1-3, 1978.; Peck; Theodore; Brenner, 2009Peck, Jamie; Theodore, Nik; Brenner, Neil. “Neoliberal Urbanism: Models, Moments, Mutations”. sais Review of International Affairs, v. 29, n. 1, 2009.; Brenner; Theodore, 2002Brenner, Neil; Theodore, Nik. “Cities and the Geographies of ‘Actually Existing Neoliberalism’”. Antipode, v. 34, n. 3, 2002, pp. 349-79.), a produção de paisagens operacionais para a produção do urbano (Brenner, 2018Brenner, Neil. Espaços da urbanização: o urbano a partir da teoria crítica. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2018.), a cidade empreendedora e a competição interurbana como características do urbano sob o neoliberalismo (Harvey, 1989Harvey, David. “From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism”. Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, v. 71, n. 1, 1989, pp. 3-17.) e a expansão policêntrica da pós-metrópole (Soja, 2013Soja, Edward. “Para além de Postmetropolis”. Revista UFMG, v. 20, n. 1, 2013, pp. 136-67.). O espaço urbano fragmentado e desigual, porém, mostra-se como local onde o imaginário e a disputa do futuro tentam reestabelecer comunalidades como o social, o político e o próprio espaço autogerido.

É com essa percepção que a terceira seção desse artigo interpreta as ocupações do espaço público no ciclo global de protestos dos anos 2010. Trazendo características da contestação prefigurativa (Gordon, 2017Gordon, Uri. “Prefigurative Politics between Ethical Practice and Absent Promise”. Political Studies, v. 66, n. 2, 2017, pp. 1-17.; Gibson, 2013Gibson, Morgan Rodgers. “The Anarchism of the Occupy Movement”. Australian Journal of Political Science, v. 48, n. 3, 2013, pp. 335-48.; Graeber, 2002Graeber, David. “The New Anarchists”. New Left Review, v. 13, jan.-fev. 2002.), tais ocupações buscaram vivenciar no presente dimensões do futuro que se quer construir segundo a noção do comum (Tonucci Filho, 2020Tonucci Filho, João Bosco Moura . “Do direito à cidade ao comum urbano: contribuições para uma abordagem lefebvriana”. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 1, 2020, pp. 370-404.; Tonucci Filho; Cruz, 2019Tonucci Filho, João Bosco Moura; Cruz, Mariana de Moura. “O comum urbano em debate: dos comuns na cidade à cidade como comum?”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais , 2019, v. 21, n. 3, pp. 487-504.). Articulando aspectos da subjetividade, da política e do espaço, as ocupações buscaram construir, ainda que de forma temporária, o comum, tirando o território e a política das esferas da mercadoria e da representação liberal.

Ainda que temporárias, tais contestações e sua disrupção criativa colocam em evidência a necessidade de se discutirem futuros anticapitalistas. A prefiguração no espaço urbano permite o surgimento não só do futuro positivo que se quer construir, mas também das contradições das propostas. Lidar com tais contradições deve ser parte do processo. O desafio, no encerramento da década dos protestos, é conseguir fazer com que as experiências sejam duradouras e as propostas articuladoras locais e globais se sustentem como alternativas à produção capitalista e suas desigualdades manifestadas nas cidades.

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  • Tausig, Benjamin. “Neoliberalism’s Moral Overtones: Music, Money, and Morality at Thailand’s Red Shirt Protests”. Culture, Theory and Critique, v. 55, n. 2, 2014, pp. 257-71.
  • Teti, Andrea; Gervasio, Gennaro. “After Mubarak, before Transition: The Challenges for Egypt’s Democratic Opposition”. Interface, v. 4, n. 1, 2012, pp. 102-12.
  • Tonucci Filho, João Bosco Moura . “Do direito à cidade ao comum urbano: contribuições para uma abordagem lefebvriana”. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 1, 2020, pp. 370-404.
  • Tonucci Filho, João Bosco Moura; Cruz, Mariana de Moura. “O comum urbano em debate: dos comuns na cidade à cidade como comum?”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais , 2019, v. 21, n. 3, pp. 487-504.
  • Türkmen, Buket. “Del Parque Gezi a la transformación del paisaje político de Turquía”. In: Bringel, Breno; Pleyers, Geoffrey (orgs.). Protesta e indignación global: los movimientos sociales en el nuevo orden mundial. Buenos Aires/Rio de Janeiro: Clacso/Faperj, 2017.
  • Veloso, André Henrique de Brito. O ônibus, a cidade e a luta: a trajetória capitalista do transporte urbano e as mobilizações populares na produção do espaço. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2017.
  • Wright, Erik Olin. Como ser anticapitalista no século XXI? São Paulo: Boitempo , 2019.
  • 1
    Agradeço aos(às) pareceristas anônimos(as) pelas sugestões de revisão para aprimoramento do artigo. Agradeço também aos professores João Tonucci Filho e Felipe Magalhães pela oportunidade de desenvolver parte dos argumentos deste artigo em suas disciplinas de pós-graduação na Universidade Federal de Minas Gerais. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (Código de Financiamento 001) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), dentro do projeto “A democracia deliberativa em face da crise da democracia: contribuições, dilemas e trilhas”, n. 423218/2018-2.
  • 2
    Esses casos foram trabalhados em mais detalhe em Ricardo Mendonça e Letícia Domingues (2022Mendonça, Ricardo F.; Domingues, Letícia Birchal. “Protestos contemporâneos e a crise da democracia”. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 37, 2022, pp. 1-36.), o que não será feito aqui para evitar repetições.
  • 3
    Cf. Friedrich Engels (2010 [1844]Engels, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo , 2010 [1844] .) para uma interpretação desse processo na Inglaterra a partir da observação da vida da classe trabalhadora nas cidades industriais.
  • 4
    Os textos em inglês foram livremente traduzidos pela autora deste artigo.
  • 5
    Vale destacar, agradecendo a sugestão de um (a) dos (das) pareceristas, que a ocupação do espaço público foi relevante também em protestos como o Maio de 1968 — do qual participou Henri Lefebvre e que contribuiu para o seu pensamento (Stefaniak, 2018Stefaniak, João Luiz. “Maio de 1968 e Junho de 2013: uma leitura à luz da obra de Henri Lefebvre”. Uniletras, v. 40, n. 1, 2018, pp. 68-79.) — e os protestos alterglobais da virada do século XX para o XXI (Ludd, 2002Ludd, Ned (org.). Urgência das ruas: Black Bloc, Reclaim the Streets e os Dias de Ação Global. São Paulo: Conrad do Brasil, 2002. (Coleção Baderna).).
  • 6
    Para compreender a vivência em tais ocupações, cf., entre outros, Mona Prince (2014Prince, Mona. Revolution Is My Name: An Egyptian Woman’s Diary from Eighteen Days in Tahrir. Cairo: The American University Press in Cairo Press, 2014.), que faz um rico relato da ocupação da Praça Tahrir, no Cairo.
  • 7
    Buscamos interpretar, em Mendonça e Domingues (2022Mendonça, Ricardo F.; Domingues, Letícia Birchal. “Protestos contemporâneos e a crise da democracia”. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 37, 2022, pp. 1-36.), as ambivalências dos protestos em questão e os sinais de erosão democrática.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2022
  • Aceito
    31 Out 2022
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