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Conflitos e representações culturais

Conflitos e representações culturais1 [1 ] Este artigo foi publicado inicialmente em espanhol na revista Punto de Vista, n.84, em abril de 2006.Trata-se do primeiro texto de uma série sobre as transformações por que passou a Argentina desde 1910, data do primeiro centenário da revolução que derrubou o vice-rei espanhol. A série de artigos deve completar-se em 2010.

Beatriz Sarlo

Crítica literária e editora da revista Punto de Vista

RESUMO

Este artigo faz uma análise panorâmica dos últimos cem anos na Argentina sob a ótica da batalha travada entre os intelectuais e seu público, da imposição e transformação da língua no país, das modificações no conceito de "povo" e também dos impasses relacionados a sua representação cultural e política.

Palavra-chave: Argentina; intelectuais; público; povo

SUMMARY

This article overviews the last century in Argentina. The battle between intellectuals and their public, the imposition and transformation of language, the modifications in the concept of "people" and the dilemmas related to its cultural and political representation are the main guidelines analyzed by the author.

Keywords: Argentina; intellectuals; public; people

Os cem anos se dividem em segmentos desiguais. A Argentina foi contemporânea de sua época:a ampliação da república em 1916; as primeiras vanguardas nos anos vinte e a modernização cultural das décadas seguintes; o protagonismo militar desde 1930; o peronismo, populismo plebiscitário e carismático,primeiro em sua dimensão social e política, mais tarde rumo à violência e ao terrorismo e finalmente, após a restauração neoliberal, sua reconversão num nacionalismo populista de nova era; a arte política dos anos sessenta, em paralelo às transformações nos costumes, à radicalização das camadas médias e à violência revolucionária; a ditadura militar de 1976, culpada de crimes que superaram qualquer outro crime, e a aventura soberba e ignorante da invasão das Ilhas Malvinas, cujos mortos tornaram possível a recuperação da democracia. Tratarei de seguir um fio cultural que cruza esses fatos do passado.

Entre os dois centenários, a modernidade argentina girou duas vezes em torno de algumas linhas, das quais escolho a prolongada batalha dos públicos, a imposição e transformação da língua, as modificações no conceito de povo e também em sua representação cultural e política. Considerá-las fundamentais não responde a uma vontade de síntese, porque conflitos de todo tipo mostram que esses processos não têm desdobramentos comparáveis, salvo aos olhos de um historicista fanático capaz de encontrar no presente um reflexo do ocorrido no passado. Não é meu caso: o que está em disputa pode parecer análogo, mas não é. Os assuntos enfrentados tampouco são os mesmos. Os fatos não se repetiram nem como tragédia, nem como farsa. E se algo caracteriza com precisão esses cem anos é que o país mudou de forma radical. Por isso, jogar o jogo das comparações históricas demonstra erudição e engenho, mas também a crença de que vivemos num teatro de fantasmas recorrentes. Longe da repetição com variações e simetrias, em cem anos se passou do país de senhores ao país de massas e isso basta para atentar mais às transformações que às recorrências.

1.DISSOLVE-SE A IDÉIA DE QUE OS PROCESSOS CULTURAIS PODEM SER CONTROLADOS PELAS ELITES. Em 1910, os nacionalistas do primeiro centenário acreditaram que suas palavras influíam de modo decisivo sobre uma realidade que já não se ajustava a suas expectativas nem a seus desejos. Ainda pensavam que a intervenção dos letrados (ancoravam-se em políticas de Estado como a educação) podia competir com tendências da sociedade que já se insinuavam como independentes e indomáveis. Ainda ignoravam que os protagonistas do mercado cultural emergente não modificariam apenas as massas como, em primeiro lugar, a eles mesmos. A alguns, como Leopoldo Lugones, isso era tão pouco tolerável como compreensível. Outros, como Manuel Gálvez, descobriam um meio onde se tornavam independentes das elites sociais, porque encontravam no mercado novos leitores, e do debate vanguardista, que os considerava escritores medíocres ou esteticamente reacionários.

É preciso pensar os cem anos como sucessivas rupturas na relação entre intelectuais e públicos; portanto, como redefinição da função intelectual em sua dimensão imaginária (que devem fazer os intelectuais, os escritores, os artistas) e em suas condições materiais (qual sua origem, de que vivem, onde escrevem, a quem se subordinam, a quem temem, a quem desafiam). Do dandismo ao profissionalismo, do jornalismo político ao jornalismo de massas, das refinadas edições francesas de livros argentinos às edições de bolso mal impressas dos anos trinta; da desconfiança em relação às forças do mercado à adaptação funcional e, finalmente, aos penosos episódios de rendição com todas as bandeiras.

Entender o que se passava com os intelectuais foi difícil para eles mesmos no início dos cem anos; hoje pode explicá-lo um estudante universitário, porque essas mudanças se firmaram. As ideologias das últimas décadas contribuíram tanto para sustentá-las como, de algum modo, para explicá-las. De uma idéia simples: Não existem jornais sem intelectuais-políticos e intelectuais-jornalistas que os escrevam, passou-se a um reconhecimento de fato: Não existem intelectuais sem jornais que os publiquem.

A idéia de que os processos culturais podem ser governados pelas elites entrou em crise quando essas elites tiveram de dividir com outros, recém-chegados, um espaço que respondia às tendências do mercado cultural, ainda que este ainda não predominasse por completo. O surgimento de um jornal como Crítica e, poucos anos mais tarde, El Mundo, não apenas revelou um público como deu aos intelectuais a oportunidade de uma relação com leitores desconhecidos. A idéia mesma de que fossem desconhecidos era uma novidade, porque indicava que, desde os anos vinte, os intelectuais e seu público já não pertenciam invariavelmente ao mesmo setor social; o que havia sucedido à literatura gauchesca e ao folhetim crioulista no século XIX, repetia-se em escala inédita. Os letrados tradicionais tiveram a primeira prova de subordinação a forças que não controlavam por completo.

A inquietação dos intelectuais surge num espaço cujas regras já não eram ditadas apenas pelas elites republicanas, mas também discutidas e alteradas por pessoas que, a princípio, não tinham necessidade de subordinar-se a elas, porque se moviam na esfera do público onde ia se impondo o mercado. A inquietação dos intelectuais provém de sua nova e ambígua autonomia. Independentes da política e do Estado, seus laços materiais e a dependência da esfera pública se fazem mais fortes. Ao encontrar seu teatro, os intelectuais também encontram objetos de aborrecimento, crítica e adulação.

2.OS INTELECTUAIS PARTICIPARAM DA GUERRA DOS PÚBLICOS E DA GUERRA DA LÍNGUA. Na primeira se joga seu poder simbólico. Na segunda, a prova de sua influência cultural. O destino dessas lutas não esteve definido desde o começo. Pelo contrário, os intelectuais pensaram que sua influência seria mantida, mesmo que as condições em que a haviam exercido fossem outras. Também acreditaram que a batalha da língua não se encaminhava rumo a um desenlace inevitável, entre outras razões porque se enfrentaram, antes de mais nada, representações sociais que, até 1930, não pareciam irreversivelmente condenadas.

A noção de "estrangeiro" foi uma chave para entender as primeiras três décadas do século XX. Mais que descrever uma origem imigratória, adotada como política nacional desde o XIX, ela designou a "chusma" (para usar a expressão de Lugones) que ainda não havia sido construída como povo, nem aceitado modelar-se segundo a matriz que lhe propunha a escola, ou (mais verossimilmente) não havia tido tempo para exercitar-se nessa normalização ideal. Sentir que a língua estava ameaçada implicou também descobrir que ali se escondia um perigo para "a raça" e a cultura.

É óbvio que se experimenta uma ameaça à língua quando, por razões sociais, urbanas, políticas, as vozes dos imigrantes e seus filhos começam a ser ouvidas. A ameaça é de contaminação, porque replica, no simbólico, a contaminação de origens nacionais e sociais: existe "bom estrangeiro" e "mau estrangeiro", que dependem exclusivamente da procedência e condição social. Para a elite, existe um estrangeiro cosmopolita e fonte de civilização e um estrangeiro cuja cultura de origem não se adapta ao padrão de cosmopolitismo e cujo lugar na república é o da mão-de-obra.

Fortalece-se então a crença fundacional de que a nação deve ser imposta em todas as frentes. Os juízos sobre a contaminação da língua, a mistura "nociva" e a perda de originalidade (no sentido em que, desbaratada uma herança, se perde uma origem), provêm de um imaginário de perigo que acreditou encontrar salvação na defesa das verdadeiras qualidades que caracterizariam os argentinos. Desde o momento em que se começou a escutar na esfera pública (e não simplesmente na doméstica ou do trabalho) àqueles que não falavam como as elites, se experimenta uma perda.

Nas primeiras décadas do século XX, a língua é parte de um mito nacionalista que tem duas caras: a dos nacionalistas do primeiro centenário e a dos vanguardistas dos vinte (que se pode reconhecer ainda nas paródias do Adán Buenosayres). Nesse momento, ademais, a língua nacional deve proteger-se não apenas das "más línguas" da imigração, como também da norma que vem da Espanha e que os escritores, especialmente Borges, recusam. Trata-se de um conflito com várias nuances: os nacionalistas do primeiro centenário não são antiespanhóis; os vanguardistas dos vinte, ao contrário, sim. Mas ambos os grupos impugnam o "italiano", o "cocoliche", e sua derivação suburbana no "malevo".

A questão da língua estrangeira se encerra nos quarenta como conflito agudo, quando justamente outros estrangeiros se fazem visíveis: não mais o imigrante europeu, mas o migrante crioulo. A preocupação se desloca então da cultura à política, e se fixa ali com o primeiro peronismo. Fez parte, desde então, das diversas representações do popular, às quais me referirei adiante. A grande mudança consiste em que a língua deixa de ser um corpo vivo e em disputa para converter-se em causa a ser defendida não mais frente à imigração européia, mas frente às forças do mercado e dos meios audiovisuais. Finalmente, nas últimas décadas se escuta o lamento sobre o desaparecimento da "rica" língua da primeira metade do século XX (aquela que antes se acreditava em perigo), na qual se pensa como língua póstuma, como um patrimônio cujo empobrecimento é, salvo um milagre, inelutável e cuja defesa é um ato moral.

3. À LÍNGUA SE PROPÕE UMA NORMA E UMA INSTITUIÇÃO:A ESCOLA, onde as ameaças de dialetização negativa chocaram-se contra uma matriz a um só tempo integradora e disciplinar. Na escola não se aprende apenas a escrever. Aprende-se também a pronunciar, isto é, a dominar uma oralidade legítima, não a que os mestres deveriam supostamente ensinar, mas a que efetivamente ensinaram. Por isso, a escala de línguas "anormais" não é perceptível apenas para as elites de origem hispano-crioulas. Todo mundo sente e pratica sua diferença. Em uma água-forte, Roberto Arlt (portador ele mesmo de um nome que qualifica de impronunciável) descreve a língua gutural, primitiva, animalesca, dos imigrantes sírio-libaneses, que precisam do corpo e dos gestos para expressar-se. Quando a alfabetização se universaliza nas cidades, a oralidade segue estigmatizando a diferença social.

Na primeira metade desses cem anos, a escola venceu a luta, e aquela eficácia é hoje irrepetível, porque se reconhece que nenhuma batalha cultural pode ser vencida somente no contexto das instituições educacionais. Desse modo, a língua da primeira metade do século XX torna-se um modelo em relação ao qual se verifica um retrocesso; uma língua na defensiva, assediada e finalmente vencida pelos meios de comunicação, pela preguiça, por indigência imaginativa ou descuido. Do castelhano italianizado ao "tevenhol", a defesa da língua, que já não pode entregar-se à escola e ao normalismo, se converte numa bandeira elegíaca, e já não são os escritores que apresentam o conflito. À diferença das vanguardas da década de vinte, a questão de uma língua argentina não preocupa aos escritores, para os quais as clivagens lingüísticas são uma matéria polifônica da escrita. Preocupa, ao contrário, às "vozes da opinião pública", publicitários, jornalistas, alguns intelectuais que se oferecem como paladinos de uma causa.

A convicção de que a língua foi melhor no passado difere das posições tomadas no debate anterior sobre como deve ser a língua nacional. Os perigos vêm de lugares distintos. Na primeira metade dos cem anos, os estrangeiros eram o agente deformador. Na segunda metade, e sobretudo nas últimas décadas, os meios de comunicação são responsabilizados pelo empobrecimento. Ainda que a escola seja vista como parte da solução, acredita-se, ao mesmo tempo, que não está em condições de fazer frente a essa responsabilidade. Em seu estado atual de decrepitude, a escola perde quando se têm em conta as possibilidades de que dispunha cem anos atrás. A batalha da língua é midiática.

Desde fins do século XIX, a escola produziu o público dos meios de comunicação escritos que, até os anos quarenta, foram hegemônicos em relação ao rádio e ao cinema. Foi essa instituição estatal, pública, gratuita e universal (para homens e mulheres: primeiro caso na América Latina) que ofereceu à indústria cultural os leitores capazes de dominar habilidades que não se adquirem sem treinamento contínuo e intenso. Em um círculo virtuoso que não voltou a repetir-se, a indústria cultural não competia com a escola, mas estabilizava as capacidades adquiridas ali. Ainda que alguns intelectuais depreciassem o que os meios escritos ofereciam (condenaram, por exemplo, as novelas de folhetim, os magazines ou os jornais populares), muitos trabalharam precisamente nesses espaços onde se formaram escritores de novo tipo. A indústria cultural necessitava da cultura letrada. Não era um barco navegando solitário, prepotente e auto-abastecido.

4. A GRANDE QUEBRA SÃO AS PRIMEIRAS EMISSÕES DE RÁDIO, NO FIM DOS ANOS TRINTA. Mas nesse momento ninguém se deu conta, e a imaginação futurista rendeu o tributo do novo meio à cultura dos cultos, como se as transmissões inaugurais realizadas do Teatro Coliseo fossem um gesto de resistência ante o potencial massificador do meio. Dez anos depois, o rádio já havia estabelecido uma cultura própria original, com suas estrelas e gêneros. Vinte anos depois, a primeira televisão repetiu fugazmente o mesmo gesto do rádio. Trinta anos depois, havia alcançado uma cultura autônoma.

Com o auge da televisão, pela primeira vez nestes cem anos, uma dimensão cultural é julgada e julga a si mesma independentemente da cultura escrita. À diferença do público dos meios impressos de massa, a televisão cria seu público sem necessitar de outras instituições. Aprende-se a ser público de televisão assistindo à televisão, e isso garante a orgulhosa, insolente autonomia do meio em relação a outras formas discursivas, em especial às formas cultas. A televisão não só é mais poderosa porque o capitalismo é mais forte que o Estado, e o mercado, mais forte que os outros participantes da esfera pública. Mas também porque é autônoma na dimensão simbólica. Ela apresenta um mundo retoricamente mais persuasivo, narrativamente mais interessante, socialmente mais inclusivo. Seu caráter "assombroso" tem a ver com tudo isso: completa todos os espaços, desaloja, unifica, homogeneíza e se estende. Nunca houve algo tão depreciado e tão vitorioso.

Com o estabelecimento de um público totalmente audiovisual, termina a batalha por públicos destes cem anos. No meio tempo, uma particularidade: o desaparecimento de formas culturais populares independentes dos meios de comunicação. Tudo que diz respeito ao mundo antes chamado popular tem conexão visível com a dimensão audiovisual. Não há um segredo do "popular" que não tenham conhecido Olmedo, Amadori, Romay ou Tinelli.

Depois da unificação do território nacional, da incorporação forçada das etnias, despojadas e convertidas em resíduo, da incúria assassina que muitas vezes provocou sua liquidação física, a sobrevivência dos mundos pretéritos, campesinos ou indígenas é rara exceção. A mistura audiovisual captou as dinâmicas populares, lhes deu forma e as devolveu a seu público, a quem persuadiu de que ali estava, completa, sua própria representação: desde as caricaturas de reality-show (de que se ocupam especialistas em comunicação incapazes de perceber que cada formato dura tão pouco quanto qualquer outra moda e crêem, contudo, sempre encontrar uma chave) até os melodramas da televisão-realidade e suas estrelas espontâneas e fugazes exibidas como peças de uma ménagerie. Televisão é fácil de aprender. Em conseqüência, seu público percebe que poucas habilidades culturais bastam para capacitá-lo a trabalhar com e em frente à câmera. O espaço televisivo converte-se em espaço expressivo e, portanto, abre às pessoas a possibilidade de representar e sentir-se imaginariamente reconhecidas. Por outro lado, a televisão inclui todas as inovações morais, cumprindo um papel secularizador e relativista.

É, também, um instrumento da internacionalização cultural, ainda que convenha cautela com relação aos lugares-comuns sobre globalização, visto que os gostos massificados em música popular e os ídolos audiovisuais são majoritariamente argentinos, o que, evidentemente, não melhora ninguém. Mas indica os pontos de ancoragem territorial das representações culturais.

Como detalhe interessante desse desenlace, nos últimos vinte anos a cultura dos escritores e dos artistas é pela primeira vez uma cultura audiovisual nos anos de infância. Não importa quantas histórias de iniciação possam contar a respeito do livro, foi a televisão o meio em que cresceram os escritores e os artistas das últimas décadas. Formaram-se, primeiro ou principalmente, como público da televisão. Sua memória cultural é midiática, cinematográfica e esportiva, tão ou mais fortemente que letrada ou museográfica. A mudança é fundamental quando se tem em conta que não afeta apenas escritores e artistas, mas a todos os que nasceram desde meados dos anos sessenta. Com algumas raras exceções: Sergio Chejfec, por exemplo, cuja literatura solitária é independente dos discursos midiáticos.

As elites sociais e econômicas, naturalmente, compartilham esse solo simbólico. Tornaram-se culturalmente plebéias. Os últimos trinta anos são os da mistura que o jornalismo de revista ilustrada e suplemento de domingo obedientemente transformou em imagem. A poucos ocorreria resistir a uma foto ao lado de Maradona: a equalização cultural e lingüística é um dado num país que, em sentido perfeitamente inverso, suportou, no mesmo período, um processo sangrento de diferenciação econômica. Pensar que a oligarquia argentina tenha a cultura de Victoria Ocampo é um equívoco que estende sobre essa classe a excepcionalidade daquela intelectual. Mas pensar que a nova burguesia, enquanto amealhou fortuna, realizou acumulação cultural equivalente à de suas riquezas implica conferir um refinamento que lhe é estranho. O catálogo da arquitetura dos country-clubs exemplifica a vulgaridade esteticamente reacionária que as novas grandes fortunas alimentam.

5. COMOSE REPRESENA UMA NAÇÃO NO DISCURSO? A batalha da língua do primeiro terço do século teve um interesse absorvente porque envolveu as vanguardas, que se ocuparam do problema da representação discursiva "do argentino". Em primeiro lugar, Borges e Güiraldes tomaram direções diferentes: Borges, com o crioulismo estético, a invenção de uma zona literária, os subúrbios, aos quais atribui uma forma da língua e uma entonação; Güiraldes, com a estetização do crioulismo, uma maneira de dispor e escrever os conteúdos da literatura, atento às inovações menos radicais e à figuração de uma última idade de ouro pampeana.

Nos anos vinte e trinta, a representação realista e naturalista é submetida a uma crítica radical. Nas margens entre a cidade e o campo, Borges radica uma mitologia do passado argentino que transborda sobre o presente. Intervém no conflito ideológico sobre os temas e a língua da arte e, ao fazê-lo, define exclusões: nem o imigrante e sua mistura cultural, nem a tentação costumbrista. A cor local atingiu seu fim em Carriego; o estrangeiro não deverá ser um fator exterior, mas um sistema de relações internas com a cultura européia, que Borges rearma por completo.

Arlt percorre o caminho inverso: mistura línguas e saberes do mundo popular, suas superstições e crenças; representa a cidade que é e a que será pouco depois; trabalha na paisagem instável de uma cultura a um só tempo moderna e insegura. Entre Borges e Arlt se estabelecem os termos de um enfrentamento sobre o que deve ser a literatura na Argentina. Durante décadas, pelo menos até os anos cinqüenta, um exclui o outro.

A grande mudança se dá quando os escritores deixam de considerá-los mutuamente excludentes. Então, depois de cinqüenta anos, a inclusão de Borges e Arlt no mesmo sistema indica uma inflexão estética: o que estava social e artisticamente separado nos anos vinte, aparece integrado em um panteão literário comum. A resistência suscitada por Borges na cultura de esquerda passa a fazer parte do passado. Igualmente, a idéia de Arlt como "mau escritor" é criticada e abandonada por completo. Borges e Arlt são clássicos, figura bifronte do século XX para os escritores posteriores aos anos sessenta.

O que houve foi um duplo reconhecimento que parecia impossível: por um lado, Borges é a peça central que permite ler simultaneamente o argentino em relação com as literaturas ocidentais, precisamente porque sua preocupação foi o caráter representativo da língua literária num país de traços nacionais em formação. Borges deixa de ser julgado cosmopolita e sua máquina literária é uma revelação da Argentina. Em relação a Arlt, se desvanece a condescendência que reconhecia a potência narrativa, mas considerava-a limitada por suas capacidades de narrador. O que se acreditava um limite revela-se a força de uma invenção colocada não fora das inovações da vanguarda, mas como peça central do que a modernidade da indústria cultural e do jornalismo trouxeram à ficção.

Hoje a literatura argentina se inscreve em uma pluralidade social e regional, midiática, de mercado e experimental. Desde Puig, lido à luz de Bakhtin, o problema da representação permanece anulado pela resposta de que a arte representa as linguagens e seus mecanismos: os gêneros, os discursos, os dialetos sociais. O debate da representação foi cancelado: tudo é literariamente representável, de todo discurso se pode escrever uma mimese. Da representação já se disse que é impossível ou mesmo ilimitada, assim como a produção social de discursos. Juan José Saer, em caminho de originalidade extrema, experimentou frente à representação o pessimismo do que não é mais possível e a tensão estética do que ainda se tenta por caminhos que a representação clássica não havia conhecido.

Nos cem anos se percorreu um itinerário que vai da crítica ao realismo até a defesa estética dos diversos hiper-realismos. Dissolveram-se as grandes categorias que se discutiram até meio século atrás, ausentaram-se os grandes sujeitos coletivos (nação, classes, etc.) e passou-se a prescindir de pactos imaginários ou práticos entre artistas e sociedade. Hoje os acordos de público são geridos não pela estética ou ideologia, mas pelo mercado, que a muitos oferece, além dos leitores, um estilo e um tipo de ficção. Salvo exceções que chamam atenção por uma persistência que tem tanto de solidez moral quanto de arcaísmo, o último grande episódio da arte política foi contemporâneo à radicalização dos sessenta e setenta.

6.QUE É O POVO E QUEM O REPRESENTA? Durante cem anos, a questão a resolver foi sua representação política não simplesmente como fato institucional, mas também como fato de discurso e cultura. Foram exploradas e experimentadas desde formas mais ou menos republicanas (a ampliação da cidadania pela extensão do voto primeiro a todos os homens, e logo às mulheres) até modalidades plebiscitárias características do que, desde os anos trinta, se denominou democracia de massas para opô-la à democracia dos cidadãos.

A modernidade argentina foi primeiro, até 1930, democrático-republicana, e o povo foi o que as elites modernizadoras e pouco mais tarde o radicalismo definiram como corpo eleitoral de cidadãos, cuja representação universal masculina foi alcançada, na lei escrita, logo após o primeiro centenário. Desde 1940, o povo se redefiniu nos termos de uma oposição cultural e ideológica (povo versus oligarquia) cuja representação foi populista e plebiscitária e teve o peronismo como espelho. Nos anos sessenta e setenta, o nacionalismo antiimperialista surgido da radicalização de cristãos e peronistas definiu o povo como sujeito e objeto da luta política e da violência guerrilheira. A militância formou-se junto ao povo, em lugar do povo, lutou com o povo e para o povo. Hoje, finalmente, a categoria aparece sob a modalidade populista midiatizada e perdeu especificidade política. A "gente" ou a "sociedade" não é o povo; os "pobres" o são. De todo modo, a legitimidade democrática restaurada em 1983 necessita de um sujeito-povo, ainda que seus conteúdos ideológicos e políticos sejam mínimos.

A violência dos golpes militares quebrou esse arco várias vezes e pôde conduzi-lo a uma crise definitiva. Apesar disso, e contra toda previsão plausível, os cem anos têm, em seu começo e final, os dois períodos mais extensos de governos constitucionais. Isso posto, a questão da representação os atravessou de ponta a ponta, primeiro potenciada pela imposição do exílio e logo contraditoriamente não-resolvida pelo voto, porque o ganhador nem sempre foi considerado representante da maioria política ideal e as intervenções militares converteram essa deficiência em justificativa.

O enigma da representação do povo intrigou aos intelectuais particularmente. Grandes correntes da história como o revisionismo, além de uma reivindicação ideológica das tendências que acabaram derrotadas no século XIX, construíram uma aliança (não sem antecedentes europeus) entre povo e nação. Talvez fosse melhor dizer nação irredenta e povo submetido. Seu vocabulário alterou valores e significações: pátria, caudilho, "montonera",2 [2 ] As “montoneras” eram milícias irregulares que atuavam durante as guerras civis do século XIX (N.T.). gaúcho, litoral e províncias, cidade-porto, centralismo e federalismo, colônia, barbárie, inverteram ou transformaram seus sentidos. A batalha revisionista começou nos anos trinta, e, nos cinqüenta, já havia dito tudo que tinha para dizer. Contudo, sua verdadeira impregnação como ideologia de massas culmina muito depois por dois caminhos: é a história espontânea da radicalização dos sessenta e setenta; é a forma espontânea da divulgação histórica midiática da última década, uma narração simples e monocausal perfeitamente afim com a digestão midiática das questões públicas.

De fato, entre os revisionistas de trinta e quarenta e os discursos difundidos pela indústria audiovisual há uma curva descendente. Mas acompanhada por uma expansão muito forte nos novos públicos de massas. O ponto médio dessa curva, entre os anos sessenta e setenta, marca provavelmente o momento de maior intensidade política dos usos da história (basta ler a interpretação com que os "Montoneros" acharam oportuno acompanhar o assassinato de Aramburu3 [3 ] “Montoneros” foi o nome adotado em 1970 pelo grupo guerrilheiro peronista mais conhecido, responsável pelo seqüestro e assassinato do expresidente Pedro Eugenio Aramburu. ) e também o de maior centralidade da idéia de povo como noção cultural e pivô de consignas e programas.

Em síntese, o processo tem o peronismo como pedra angular e recorre a três vias: eleitoral, no começo dos cem anos; social, nas décadas marcadas pelo primeiro governo de Perón; revolucionária, na tradução radicalizada do peronismo nos sessenta e setenta.

Esses cem anos não deram lugar a uma representação da esquerda, que encarou sucessivas aventuras frustradas: aliou-se à radicalização, que gerou a estratégia violenta dos setenta; ou manteve incólume, pela via reformista, uma marginalidade arcaizante que estava anunciada como destino no começo do século XX. Não existe hoje identidade política de esquerda capaz de superar setores sociais muito restritos.

As palavras da política, a definição dos significados e a designação dos lugares simbólicos do campo político foram operações onde o peronismo demonstrou uma mobilidade e potência semântica inigualadas, tomando de empréstimo temas da esquerda, da direita, do fascismo, do nacionalismo revolucionário, do nacionalismo tradicional, do social-cristianismo, etc, etc. Das ditaduras militares não restaram rastros no vocabulário político. Isso indica seu profundo fracasso de doutrinamento, o que tampouco era previsível quando o golpe de 1976 ameaçou tomar conta da Argentina por muito tempo.

A persistência do problema da representação do político em um léxico provavelmente continuará fundamental nos próximos anos. A crise dos partidos é uma crise de linguagem, e toda crise de linguagem é uma crise da capacidade representativa. A televisão tomou o lugar dessa representação. Se a representação política está cheia de fissuras, a representação televisiva parece plena. Frente ao tempo prolongado das instituições políticas, a televisão trabalha com as potencialidades e promessas do tempo real. Oferece uma solução imaginária a conflitos que se resolvem, se podem resolver, no curso tedioso, formalista e freqüentemente incompreensível dos prazos institucionais. À irresponsabilidade, incompetência ou corrupção da política, a televisão opõe sua magia da completa imediatez e mostra aqueles que, nas últimas duas décadas, optam pela presença direta na cena pública como forma de luta, mas também, e fundamentalmente, como conseqüência da desconfiança em relação a toda mediação política.

7. A ARGENTINA NESTES CEM ANOS ATRAVESSOU DUAS MODERNIDADES. A primeira, baseada na expansão eleitoral, na indústria jornalística e editorial, na assimilação do imigrante e repressão de suas culturas e línguas de origem, na "normalização" dos crioulos, índios e mestiços, na urbanização. A segunda, sustentada pela extensão dos direitos sociais, pela redefinição da democracia, intervenções militares e desenvolvimento da indústria cultural.

Depois do golpe de estado de 1976 e da transição democrática, entramos num terceiro capítulo: hegemonia audiovisual, debilidade da representação política e institucional, dois traços também atribuídos à pós-modernidade no Ocidente. Nesses cem anos, o país que prometia integração crescente se desintegrou e exacerbou cortes sociais que contradizem todas as previsões da primeira metade do século, quando os traços em cuja estabilidade se confiava eram pleno emprego, alfabetização, ascensão social, universalização de direitos.

O centenário encontra a Argentina muito longe de dois destinos imaginários: ser como a Europa (mesmo nos anos oitenta se sonhou com um Pacto da Moncloa para a transição democrática), fazer a Revolução (sobretudo depois que Cuba demonstrou que seu caminho passa pela América). Um desses destinos caducou em todo o planeta; o outro demonstrou que os limites materiais são mais fortes que os programas e os desejos.

Recebido para publicação em 06 de maio de 2006.

  • [1
    ] Este artigo foi publicado inicialmente em espanhol na revista Punto de Vista, n.84, em abril de 2006.Trata-se do primeiro texto de uma série sobre as transformações por que passou a Argentina desde 1910, data do primeiro centenário da revolução que derrubou o vice-rei espanhol. A série de artigos deve completar-se em 2010.
  • [2
    ] As “montoneras” eram milícias irregulares que atuavam durante as guerras civis do século XIX (N.T.).
  • [3
    ] “Montoneros” foi o nome adotado em 1970 pelo grupo guerrilheiro peronista mais conhecido, responsável pelo seqüestro e assassinato do expresidente Pedro Eugenio Aramburu.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Set 2006
    • Data do Fascículo
      Jul 2006
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