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PERIFERIAS E SUBJETIVIDADES POLÍTICAS NA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

Peripheries and Political Subjectivities in a Psychoanalytic Perspective

RESUMO

Com a psicanálise, mostramos diferentes planos que articulam subjetividade e política na periferia. Partimos de pesquisa e caso que apresentam superposições e impasses. Uma vez que o sujeito de direitos não corresponde ao homem concreto e o corpo não corresponde à imagem de eu ou ao desejo inconsciente, defendemos a necessidade de operar com todos esses planos. Assim, a noção de subjetividade política permite pensar o em-comum sem redução a codificações dominantes hierarquizadas e alienantes.

PALAVRAS-CHAVE:
subjetividade; periferia; juventude; psicanálise; política

ABSTRACT

By applying psychoanalysis to the case study, this article brings together the concepts of subjectivity and politics in the periphery and their interactions at multiple levels. As the rights-bearing subject does not correspond to the concrete human being, and the body does not correspond to images of the self or to unconscious desire, it is argued that it is necessary to operate on all these multiple planes simultaneously. Thus, the notion of political subjectivity allows us to think about communality without reducing it to dominant, hierarchical, and alienating codifications.

KEYWORDS:
subjectivity; periphery; youth; psychoanalysis; politics

INTRODUÇÃO

Partindo da constatação do paradoxo contido nos direitos humanos fundamentais (Žižek, 2008Žižek, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.; Lacan, 1966-7Lacan, Jacques. Le Séminaire, livre XIV: logique du fantasme. 1966-7. Disponível em: <Disponível em: http://staferla.free.fr/S14/S14%20LOGIQUE.pdf >. Acesso em: 20/05/2017.
http://staferla.free.fr/S14/S14%20LOGIQU...
; Freud, 1976b_______. “Por que a guerra? (Einstein e Freud)”. In: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos, v. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1976b [1933], pp. 241-63.), discutiremos como a subjetividade se articula na composição política da presença dos corpos jovens na periferia. Os direitos humanos fazem valer uma forma de regulação abstrata que desconsidera as condições materiais e simbólicas dos sujeitos por eles protegidos. Ao serem universalizados e destituídos de carga étnica, racial, econômica, social e de gênero, os direitos se tornam transcendências que, na rotina dos corpos, hierarquias e instituições, naturalizam processos de desigualdade social. A título de exemplo, o Brasil é o país com a terceira maior população carcerária do mundo, sendo dois terços homens negros e pardos. O Brasil mata seus jovens negros de periferia trinta vezes mais do que os países europeus, inclusive em guerra. Nas periferias, discursos sobre a implementação de direitos humanos universais convivem com práticas iníquas, excludentes e desiguais de aplicação da justiça.

Esse paradoxo da disjunção reaparece com nova roupagem ao tomarmos pela psicanálise a não coincidência do sujeito consigo mesmo, dado que o inconsciente é destituído de qualidades. Além disso, a imagem do sujeito não corresponde ao seu eu nem se reduz à representação de seu corpo. As diferentes representações do sujeito escapam, inclusive, a sua experiência inconsciente de satisfação, sendo matriciadas pela forma que ganham na linguagem (Guerra, 2017Guerra, Andréa Máris Campos. “A política do gozo na interface entre direito e psicanálise”. In: ; Penna, Paula Dias Moreira; Otoni, Marina Soares. Direito e psicanálise III: a criminologia em questão. Belo Horizonte: Scriptum, 2017, pp. 51-65.).

A essa multiplicidade de maneiras de presentificação de um corpo no mundo corresponde uma multiplicidade de modos regulatórios no laço social. Direitos humanos universais, leis jurídicas nacionais, lei do crime e lei superegoica - que rege inconscientemente os atos compulsivos e repetitivos do sujeito - convivem no mesmo plano em que sujeito e corpo social estabelecem suas tensionadas formas de convivência. A relação que se firma entre esses códigos não é exatamente hierárquica. Com igual força, eles disputam o campo político, comunitário e subjetivo, e se mesclam, ganhando maior ou menor intensidade, conforme a perspectiva que se tome para ler o complexo sistema que, então, se cria (Feltran, 2011Feltran, Gabriel de Santis. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 2011.; Guerra; Bispo; Souza, 2016_______; Bispo, Fabio Santos; Souza, Marcelo Fonseca Gomes de. “Violência, lei e norma: ilhas de simbólico no vasto oceano do real”. In: Moreira, Jacqueline de Oliveira; Kyrillos Neto, Fuad; Rosário, Angela Bucciano do (orgs.). Violência(s): diálogos com a psicanálise. Curitiba: CRV, 2016, pp. 79-98.).

Nesse complexo sistema de representações sem equivalência e de regulações sem medida comum, haveria algo de específico da experiência de subjetivação na periferia, que implicaria uma substância ou um qualificativo pertinente às subjetividades periféricas? Como pensar politicamente esses processos?

Partiremos preliminarmente de situações de confronto nas periferias urbanas para pensar a cidade hoje. E, em seguida, tomaremos em análise diálogos de pesquisa e o caso de um jovem atendido no Programa de Extensão Universitária Já É, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a fim de elucidar a complexa trama que periferia e cidade compõem na defesa e garantia de direitos, com foco nos efeitos subjetivo-políticos que daí decorrem. Finalmente discutiremos a composição de uma leitura que articula subjetividade e política na periferia por meio da psicanálise, fora do enquadre binário das clássicas dicotomias dentro e fora, objetivo e subjetivo, sujeito e objeto.

Compusemos uma chave que compreende subjetividade e cidadania em relação de continuidade, de tal maneira que, interferindo em um plano, entendemos que se afeta o outro. O inconsciente, assim, não se encontra excluído da cena política, mas articulado a ela pelo seu avesso ou em uma espécie de intimidade que guarda certa estranheza, certa disjunção. Essa chave permitirá, na última seção deste artigo, problematizar a ideia de sujeitos concretos na periferia com marcas sociais, econômicas, de raça e de gênero que não aparecem sob a suposta universalidade da figura do cidadão. Ao contrário, submergem no discurso protetivo, quando, na prática, são violados em seus direitos básicos, encarnando como corpo político, experiências íntimas inconscientes. Essas disjunções ensinam que a complexidade do vivido no em-comum é impossível de ser codificada e universalizada, exigindo enquadres múltiplos e simultâneos para ser operada.

Tais impasses foram verificados inicialmente em pesquisa realizada em 2010 que buscava compreender a incidência da figura paterna entre jovens em conflito com a lei nas periferias urbanas. Eles foram extraídos de conversações psicanalíticas realizadas no Morro do Papagaio, situado entre bairros nobres da zona sul de Belo Horizonte. Foram seis meses de convivência com cerca de trinta adolescentes e jovens adultos, de 14 a 29 anos, de duas bocas de fumo rivais, que forneceram a primeira parte dos dados apresentados. Na segunda parte, tomamos o caso clínico de um jovem da zona norte do mesmo município, atendido pelo Programa de Extensão Universitária Já É, da UFMG. O Já É trabalha psicanaliticamente com indivíduos, coletivos e instituições, valendo-se de metodologias variadas e em multiplanos, com vistas à superação de modos segregatórios de viver no espaço urbano (Guerra; Bemfica, 2020_______; Bemfica, Aline Guimarães. Psicanálise implicada e adolescência: modos de intervenção e testemunhos clínicos. Curitiba: CRV, 2020.).

O encontro com esses jovens nos levou a identificar diferentes contradições entre o discurso dos direitos humanos fundamentais e a violência cotidiana a que estão submetidos e que se mantém invisibilizada no cotidiano da cidade. E, em outro nível, evidenciou a relação inconsciente com repetições citadinas e relacionais através das quais os adolescentes atualizam experiências originárias de desamparo, sem se darem conta da dimensão inconsciente e política de seus atos e de suas vivências.

Assim, neste artigo, pretendemos trazer à luz esses impasses e invisibilidades, evidenciando que a experiência subjetiva e inconsciente se entrelaça com a vivência política, constituindo um espectro que torna difícil a intervenção pública junto aos códigos da periferia e, especialmente, junto às singularidades periféricas, sem considerá-las em sua multiplicidade. Num espectro complexo de sobreposições, tentaremos demonstrar que a objetividade da lei desmaterializa direitos e que o acesso à cidade é atravessado por obstáculos concretos, mas também inconscientes e simbólicos, constituindo um campo de vida comum disjunto e desigual que transforma em um constante desafio o viver junto entre periferia e cidade.

A PERIFERIA E A ANTICIDADE

Os três fragmentos reproduzidos a seguir, escritos a partir de três inscrições diferentes sobre a estética e a geografia das favelas, nos fazem ver o impossível de equivaler na vivência urbana. Pesquisador (estrangeiro no morro), adolescente em conflito com a lei (estrangeiro na cidade) e moradora da favela (estrangeira no crime) mostram a disjunção na experiência subjetiva e política do “em-comum”.

Trecho 1:

2008. Temia por nós quatro, pesquisadoras subindo o morro. Meu estado de ânimo era o da precaução e o do medo. Todo movimento, lento e muito pensado. Subíamos por ruas abertas pela prefeitura e, pouco a pouco, adentrávamos por becos, nos quais visitávamos, sem aviso, casas inteiras cujas portas se abriam para nossa passagem por entre suas vidas. Suspeitava dos homens nas soleiras dos bares, das mulheres nas soleiras das portas e até das crianças, descalças, a brincar. Não conseguia ver riqueza nem vida naquele lugar. Levava comigo os anos de reportagens televisivas, de notícias locais e de asfalto com imagens pouco acolhedoras sobre aquele território. Meu tempo e meu mundo eram ali absolutamente estrangeiros.

2011. Semana passada, enquanto descia pela [rua] Principal, fazia mentalmente a lista de compras e de tarefas para aquele dia. Cumprimentava aqueles que me cumprimentavam e sorria para aqueles que estranhavam minha presença ali. Passei pelo carro do Gepar [Grupo Especializado de Policiamento em Áreas de Risco], por dois caminhões de construção e por dois micro-ônibus, além de inúmeros carros. Ouvi funk, forró e pagode no percurso. Vi muito lixo acumulado e me indaguei o porquê de não cuidarem disso. Apreciava a estética tão singular daquela arquitetura urbana, que me lembrava as bricolagens que a arte contemporânea tem produzido. Gambiarra e bricolagem se aproximavam naquelas soluções. Tudo em vir-a-ser, poucos elementos definitivos. Improvisação e construção, ensaio e erro. Um saber-fazer muito autoral por toda parte! Há um tratamento ímpar da carência nesse ambiente. E há muita vida ocupando essa paisagem. E eu, ainda como estrangeira, agora já faço parte dela. Melhor dizendo, já sou por ela habitada. (Depoimentos pessoais, 2008, 2011)

Trecho 2:

1.

A: Aqui é tipo um labirinto. F: Quem entra é difícil sair. Só quem sabe o caminho mesmo. Ent.: O que determina o limite dos lugares? B: A gente mesmo, você sabe até onde você vai. Você sabe até onde é seu limite. Às vezes, você passa, vai até onde você não pode, vai até no canal… C: O seu subconsciente fala: “Volta!”.

2.

A: Os cara pula no barraco aí sem pestanejar. Mandado de busca e apreensão, já ouviu falar? Pula em barraco de trabalhador aí, não interessa se o filho faz alguma coisa, não. O pai, a mãe, os irmão tão ali, é povo de família. Chega de madrugada, invade a casa, coloca no chão, bate, faz o que quiser e não acha nada. Se achou, leva. Se achar, leva, e a ligação é qual? Vocês vivem no crime. Nada a ver. De repente, o dinheiro é do pai, da mãe… vai falar alguma coisa. Tá de madrugada, touca preta… Você vai falar, você toma um tiro no meio da cara. Quem matou? Foi vagabundo. O que foi? Acerto de conta [a polícia relata].

3.

M: Aqui [periferia] a vida é louca, pra fora [cidade] é mais. Cê acha que às vezes fala as coisas e que a pessoa vai te entender, ela não vai entender, não. (Relato de conversação em boca de fumo, 2011)

Trecho 3:

Sabia por qual beco deveria subir e em quais ruas não deveria passar. Também estava acostumada a ficar atenta aos movimentos e aos sons do lugar. Para quem não conhece, o aglomerado pode ser um labirinto, pois suas ruas e becos se parecem uns com os outros. Não para mim, acostumada a andar por todos os lados. Sabia dos caminhos e atalhos como ninguém. Conhecia o pessoal do movimento [crime]. Melhor, eles sabiam quem eu era e conheciam o projeto do qual participava. Para eles, era cada um na sua. Era melhor assim. […]

À noite, as casas ficam muito mais bonitas com todas aquelas luzes, que me remetem a outros lugares. Não sei como podem ter tanto medo e achar o morro tão feio. Adoro o tom amarelado, meio envelhecido do lugar. A favela não é o mundo, mas as ruas, os becos, as lâmpadas amarelas e o silêncio da noite são o infinito. São poesia concreta, de tijolos à vista, de entendimento difícil, apreciada por poucos. Aqueles barracos são como pensamentos, aparentemente sem lógica, mas marcados por uma coerência particular. (M. C., moradora do Morro do Papagaio, 2009)

No morro, as contradições superam a lógica binária asfalto-favela e criam arranjos híbridos, soluções continuístas - como a luminosidade da cor no dégradé do sol sobre as casas. Ocupar um lugar na cidade implica fazer parte de sua história e de seu destino - cada um com as possibilidades infinitas e os limites segregatórios. O estrangeiro, já desde a Grécia Antiga, participa com direitos restritos e, portanto, com ocupação e circulação reduzidas. Isso não mudou, nem em relação à lei da cidade nem em relação às suas diferentes formas de ocupação. O que muda é o esquadrinhamento do espaço urbano, transformando a cidade em um outro país inabitável, conforme o condicionamento a que ele se submete, compondo franjas imateriais porque simbólicas.

A topologia do estrangeiro diz respeito a “algo que se situa na fronteira do subjetivo singular com o social” (Koltai, 2000Koltai, Caterina. Política e psicanálise: o estrangeiro. São Paulo: Escuta, 2000., p. 21). Individual e singular de um lado, político de outro, porém, não de maneira simétrica ou correspondente. A fronteira como projeção topológica sobre uma realidade simbólica, política e social representa o ponto de ruptura com uma lei e, na origem, é sempre nomeada pelo vizinho. Assim, a palavra alemã Grenze teria vindo dos vizinhos eslavos. A palavra francesa frontière, do latim frons, era utilizada pelos romanos para indicar a fronteira espanhola. E até mesmo o border inglês teria vindo da bordure francesa. “A fronteira é, assim, sempre nomeada na língua do outro” (idem, ibidem) - evidência da dificuldade estrutural de integração da diferença.

Nas cidades hoje (Toniolo, 2015Toniolo, Lisley Braun. Encontros entre violência e cidade a partir do olhar de um adolescente. Dissertação (mestrado em promoção da saúde). Belo Horizonte: PPGPS/Universidade Federal de Minas Gerais, 2015.), periferia, degradação, pobreza e ausência de serviços públicos não formam mais o antigo cinturão, e sim arquipélagos, constituindo-se como uma espécie de condição móvel - não mais se assentam sobre o mito do centro histórico em oposição aos subúrbios abandonados. Tais arquipélagos dão corpo à “anticidade” (Boeri, 2010Boeri, Stefano. “Atlas eclécticos”. In: Walker, Enrique (org.). Lo ordinario. Barcelona: GG, 2010., p. 14), na qual milhares de cidadãos de todas as faixas etárias encontram-se excluídos da economia, da vida cultural, das instituições, da assistência pública. Não há uma sintaxe clara para ler a anticidade. “A gramática da nova cidade está composta por inumeráveis pequenos enunciados elementares mais do que por proposições articuladas e distinguíveis em gêneros” (Boeri, 2010Boeri, Stefano. “Atlas eclécticos”. In: Walker, Enrique (org.). Lo ordinario. Barcelona: GG, 2010., p. 195, tradução nossa).

Podemos, assim, pensar com Boeri o território a partir dos dois signos da anticidade, a saber, frustração e uniformização. A frustração, antiga companheira daqueles que pouco ou nada têm, dos que habitam as diversas formas de miséria urbana e assim encaixam-se em uma “antissociedade” marcada pela ilegalidade e à margem do que seria uma sociedade urbana legal. Pessoas que, ao olharem nos olhos da mobilidade social, estão advertidas de terem diante de si uma miragem. A homogeneização, por sua vez, diz respeito ao silenciamento das diferenças, o que resulta no empobrecimento das trocas e formas de vida. Porém, o autor nos alerta de que a anticidade não é Outra cidade em relação àquela que habitamos e conhecemos. Tampouco se trata do adoecimento da cidade levando à sua destruição, mas sim de um rio que recolhe em suas águas a energia vital do cotidiano e a direciona rumo à fragmentação e à dissolução. A distribuição espacial dos arquipélagos responde a essa dança na qual uma série de construções solitárias é disposta sem nenhuma lógica evidente (Toniolo, 2015Toniolo, Lisley Braun. Encontros entre violência e cidade a partir do olhar de um adolescente. Dissertação (mestrado em promoção da saúde). Belo Horizonte: PPGPS/Universidade Federal de Minas Gerais, 2015.).

Indo além, o que Boeri nos transmite é que talvez não se trate mais de uma questão de sintática, que a estrutura não pode dar conta sozinha do fenômeno urbano. Testemunhamos e vivenciamos uma fragmentação crescente do território, cujas mudanças muitas vezes restam irrepresentáveis, invisíveis, sendo “familiares e ao mesmo tempo perturbadoras” (idem, p. 200, tradução nossa). Seus efeitos políticos aparecem na forma como o valor da vida se escreve no texto da cidade com suas fragmentações periféricas.

Veremos a seguir como a ocupação do espaço periférico condiciona de diferentes maneiras inacessibilidades de circulação e desigual relação de poder, o que acaba por ser tomado, na experiência íntima do jovem da periferia, como atualização de experiências pessoais e inconscientes com seus afetos primários e familiares. Dessa maneira, a fragmentação da cidade serve ao uso inconsciente de cada um de seus ocupantes, podendo favorecer ou dificultar caminhos de proteção social.

Pensar a periferia, assim, não implica mais partir de um centro. O arquipélago urbano compõe uma zona indistinta na política dos corpos, muito evidente em seus litorais. Como em uma fórmula pronta, sabemos onde é permitido ou não circular, onde somos parte ou estrangeiros, onde temos direitos resguardados ou podemos ser violados, sem direito a defesa. O binário asfalto-favela oculta essa realidade multiversa, na qual, em contraponto, o direito fundamental de ir e vir é interditado para qualquer um e para todos os seus lados.

Não há, pois, equivalência, uniformidade ou universalidade da lei nessas zonas fronteiriças a resguardar uma vida compartilhada. Na mesma urbe, conforme o espaço que habitamos e as ruas pelas quais circulamos, os direitos variam sem paridade entre cidadãos e “estrangeiros” sem direitos. Como formalizar essa experiência da periferia? Como compreender a subjetividade aí constituída? Três vozes diferentes articularam, nos depoimentos citados anteriormente, três experiências de (não) pertencimento. Partindo da experiência do território - mesmo que saibamos que o quadro é mais complexo e multifacetado -, buscaremos compreender o campo dos direitos e das subjetividades ali dispostos com base em vivências periféricas.

COMO VIVEMOS JUNTOS DENTRO (E FORA) DO CAMPO NÃO TODO DA PERIFERIA?

Vejamos nos diálogos da pesquisa citada como, na periferia, suas zonas se relacionam a partir de um campo de suspensão de direitos para, em seguida, compreendermos como cada corpo toma, ali, seu lugar, a partir de um caso.

B: Aqui na quebrada, depois que você passou do centro pra lá, a gente já não é mais ninguém. Nós tem que ser o que nós somos aqui.

C: Tem quer ser você mesmo pra onde que você vai.

Ent.: E aí?

B: E aí?

C: Humildade, né?

F: Só humildade. Chegar lá fora e fingir de bobo. Uma vez fui para o exterior [referência à ida ao centro da cidade onde mora] e quando eu vou tomar uma cerveja na praça [central da cidade], eu não falo que sou do morro, não. Eu falo que sou de outra cidade, outra conversa nada a ver. O que eu sofri eu não posso mostrar do lado de fora, porque lá a chapa pode ser mais quente do que aqui. (Relato de conversação, 2011)

As regras, as leis e os discursos que normatizam a vida nas periferias criam uma ordem complexa, disjunta da normatividade que rege a sociedade civil, compondo uma multiplicidade de formas de existir (Feltran, 2011Feltran, Gabriel de Santis. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 2011.). Estruturalmente falando, a lei “verdadeira” e a lei “de quem mora” na periferia, como nos ensinou um jovem (Guerra; Bispo; Souza, 2016_______; Bispo, Fabio Santos; Souza, Marcelo Fonseca Gomes de. “Violência, lei e norma: ilhas de simbólico no vasto oceano do real”. In: Moreira, Jacqueline de Oliveira; Kyrillos Neto, Fuad; Rosário, Angela Bucciano do (orgs.). Violência(s): diálogos com a psicanálise. Curitiba: CRV, 2016, pp. 79-98.), parecem compor uma resposta imponderável à lógica urbana, inventada com as próprias ferramentas estruturais do sistema econômico da linguagem, ao mesmo tempo que prescindem de um universal predicador.

Giorgio Agamben (2002Agamben, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.) cita vários exemplos de vidas que ocupam um lugar proscrito como aquele atinente às periferias, sendo seus sujeitos passíveis de eliminação, sem que suas vidas sejam tomadas como assassinadas. Seu protótipo é o judeu no campo de concentração, figura da qual é retirada a cidadania (Arendt, 2012Arendt, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.). Por não ter uma pátria que garanta seus direitos, ele se torna aquele sobre o qual todo e qualquer ato passa a ser permitido. O que leva um sujeito ao lugar de Homo sacer é o poder soberano jurídico, a depender de como a lei o posiciona, nas múltiplas variações de sua ilusória aplicação universalizante. A lógica que compõe essa figura de transição do direito religioso para o direito romano condensada na figura do Homo sacer é a da descartabilidade em nossos dias, em face de um sistema econômico que torna descartáveis os corpos de populações inteiras.

Na periferia, vemos os jovens - por nós aproximados do lugar jurídico do Homo sacer - saírem de uma posição paradoxal de exclusão incluída na política, numa tentativa de resposta à indiferença com que são inscritos na morte. A maioria circula pouco fora dos territórios em que reside em suas comunidades. Por vezes ocupam uma rua, uma praça, alguns becos. Mesmo quando têm acesso fácil e direto à cidade, sentem-se nela como que estrangeiros, com direitos reduzidos no “exterior”.

Como não destacar aí uma forma de vida política marcada pela dimensão do estrangeiro, que não divide os mesmos direitos com o cidadão comum? Ao entrar na “guerra”, os jovens passam a circular com certo reconhecimento no pequeno território sob o comando de seu grupo - uma espécie ilusória de participação na pólis. Com o uso da arma e da violência, eles ganham o status de pequenos líderes locais, ordenando sua convivência na região, mesmo que sob o domínio da ameaça e do medo. Seu discurso é revelador:

C: Onde poderia ter quadra pra vocês aqui?

M: Tem um espaço que eles demoliram ali agora. Ali dá pra fazer uma quadra.

A: Por que vocês não correm atrás disso?

M: Porque nóis não tem o contato.

A: Como não têm o contato, se vocês moram aqui?

M: A gente podia fazer um rap aí…

A: Mas por que não fazem essas coisas? Por que morre na ideia?

M: Não tem gente pra levar os negócios pra frente.

G: Se tivesse uma quadra aqui pra nóis, era bom demais!

A: Se tivesse quadra aqui, qual a diferença que ia fazer?

K: A gente jogá bola todo dia aqui na rua.

G: Faz a diferença. Sabe o que nóis pode fazer? Começar a matar pra reivindicar uma quadra aqui. Entrar nessas quadras aí e matar uns dois, três de cada quadra da favela aí, ô! É ou não é? De forma deles fazer uma pra nóis aqui também, uê! Se eles não fazem de boa, tem que começar a matar nessas quadras aí pra eles fazerem alguma coisa aqui pra gente, pra eles fazer uma quadra pra nóis. Enquanto eles não fazer uma aqui na rua x, nóis não vamu pará de matá não. Agora o líder comunitário da favela aqui é nóis. O próprio líder comunitário precisa de nóis. Precisa pedir nóis, tá ligado? […]

A: E por quê?

G: Por que é nóis que controla lá, uê, não é não? (Relato de conversação, 2011)

Assim, na guerra do tráfico como sistema de vida, podemos levantar a hipótese de que os jovens buscam sair do lugar de exclusão por meio de uma inscrição política, uma inscrição na pólis, afinal, não são idiotas - termo depreciativo para designar aqueles que se apartavam da vida pública na Grécia Antiga. O ato de inscrição política - entendido como ato simbólico originário, exclusão que cria um dentro que inclui; ato que não conta, por inaugurar a série; mito que organiza - faria o corte acontecer, retiraria o Homo sacer, ou os jovens, do limbo e produziria sua inscrição na esfera da vida pública compartilhada da cidade (Guerra, 2011, p. 249).

A partir de material recolhido em conversações com jovens de periferia, verificamos que suas saídas se mostram sempre ligadas às inscrições singulares por meio das quais cada um se filia ao dispositivo ordenador da periferia, que é oferecido pelo tráfico. Essa codificação, ao lado do regulamento jurídico tradicional, relaciona-se ao modo particular de cada sujeito fazer-se representar e de haver-se com a dimensão de impossível inerente a toda forma de regulação, identificação e representação, como veremos no caso a seguir apresentado.

A SUBJETIVIDADE PERIFÉRICA NA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA DE UM CASO

Felipe, jovem que cumpre medida socioeducativa, sendo, portanto, autor de ato infracional, é escutado semanalmente em atendimento psicanalítico por uma voluntária do Programa de Extensão Universitária Já É, da UFMG. Tomando o plano singular de sua disjunção identitária, que impede a captura completa de um corpo por um discurso ou por uma prática excludente, testemunhemos a experiência dele.

Felipe insiste em ser o “correto”, o “grande criminoso”, aquele que delata qualquer irregularidade. Mostra-se fiel mais às suas exigências internas que às demandas externas do código do crime. Em psicanálise, chamamos essa exigência interna de lei superegoica (Freud, 1976aFreud, Sigmund. “O eu e o isso”. In: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos, v. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1976a [1923], pp. 23-90.). Nós a entendemos como o mandamento inconsciente que regula o modo de satisfação de cada pessoa, sendo a lei à qual se encontra submetida em sua dimensão mais íntima e inegociável, já que escapa à sua racionalidade e à sua vontade. Dessa maneira, o jovem se torna, paradoxalmente, na lei do tráfico, um “X9”, ameaçado porque delator - ainda que, para si mesmo e para a cidade, se apresente como um “criminoso ético”.

Sua posição coloca em evidência e, ao mesmo tempo, em xeque diferentes planos legislativos que convivem entre si na composição dos regimes de regulação da vida pública: a lei supranacional dos direitos humanos, a lei penal e socioeducativa nacional, a lei do crime na periferia e, finalmente, a lei superegoica, íntima e inconsciente. Elas não vão, como poderia parecer, da mais ampla e universal à mais íntima e intransmissível, como se se reduzissem a planos hierárquicos ou planos que operam do mais exterior ao mais interior, do mais complexo ao mais simples. Com igual força e ao mesmo tempo, tensionam o campo político, comunitário e subjetivo, e se mesclam numa topologia continuísta entre dentro e fora, sendo mais ou menos intensas conforme a perspectiva do interlocutor que lê esse complexo sistema. Se é um juiz de direito, um policial, um telespectador, um morador da comunidade, outro jovem rival, ou da mesma “boca”, enfim, para cada um, essa trama regulatória terá uma perspectiva diferente e será justificada - mesmo que não legitimada por consenso.

No caso do jovem Felipe, ali onde a grade jurídica incide, regulando direitos e obrigações durante o cumprimento de sua medida socioeducativa, ele responde seriamente a exigências internas tirânicas de seu supereu, que não lhe permitem errar. Responde, pois, a outra determinação normativa que escapa ao sistema judiciário: ao ser fiel a sua injunção superegoica de ser um “criminoso ético”, responde ao sistema socioeducativo, mas é absolutamente infiel aos companheiros, agressivo com os professores e transgressor do pacto social. Como entender sua inscrição nesses diferentes sistemas normativos? Seus modos de convivência não pacíficos com as lógicas subjacentes a cada um desses códigos?

A SUBJETIVIDADE POLÍTICA NA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

Trazemos um olhar da psicanálise em suplementaridade ao da sociologia para ler essa experiência complexa. A inserção desse jovem entre os diferentes códigos, de maneira a colocar-se permanentemente sob risco, para obedecer ao que chama de “seus princípios”, parece ser uma estratégia subjetiva que atualiza, de maneira invertida, uma experiência traumática de abandono (Lacan, 1998_______. O seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998 [1964].), recolhida pela psicanalista que o recebe clinicamente no Programa Já É. Abandonado muito precocemente, ele não encontra esteio no tecido afetivo e discursivo do outro. Atualiza, assim, o trauma do abandono materno, saindo da cena afetiva por meio de seus atos transgressores, fazendo-se ser recusado, abandonado novamente, agora pelo corpo social.

É como se ele tentasse tratar seu mal-estar, porém reproduzindo-o na busca de uma solução subjetiva, familiar, comunitária, social, econômica ou política que não acontece. A delicadeza dessa situação radica no fato de que Felipe é adolescente, negro, morador de periferia e autor de ato codificado como infracional. Nesse sentido, a singularidade de sua experiência mais íntima com sua lei interna e com sua representação de abandonado encontra no texto da cidade um corpo matável (Agamben, 2002Agamben, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.), eliminável e nem sequer passível de luto (Butler, 2015Butler, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.). Mas ele próprio não se vê fragmentado nesses sistemas codificadores, antes se apresenta fixado em um destino de abandono que determina sua conduta.

A maneira como ele ocupa a periferia e se localiza na cidade atualiza então sua relação íntima e inconsciente de abandono, tomando o Outro urbano como agente de seu fracasso. Daí nasce sua missão ética. Porém, ao contrário do que procura resolver, com seus atos ele é, literalmente, afastado do convívio com os seus, recebendo uma medida socioeducativa de privação de liberdade, configurando o grande contingente de população supérflua ao capitalismo, excluída da cobertura de direitos e dificilmente inscrita como pertencente ao espaço urbano. Habitantes da anticidade encarnam a figura morta de um direito proscrito e não incluído na universalidade do Humano (Fanon, 2008Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.).

Após a intervenção clínica de sua analista sobre esse ponto que condensava sua fixação a um único modo de ser, o abandonado, um efeito subjetivo-político se produz. A cena originária do abandono materno perde sua consistência imaginária de fixação da perspectiva a partir da qual ele se representava e sua motivação inconsciente, então, é desamarrada. O desarranjo, do lado do sujeito, aparece e pode ser tratado, no plano político da cidade, no entre leis e regras que ele habita. Ele passa a se perguntar pelos códigos aos quais deve ou não deve fidelidade, aos quais pode ou não responder.

Assim, quando Felipe nos diz que pensa em matar um colega do centro em que cumpre medida socioeducativa - já que só vai ficar mais uns dias “preso”, “é coisa pequena”, “coisa grande é viver”, “é normal viver assim, ficá uns tempo preso, outros na rua, é assim mesmo, normal” -, tentamos, sobre essa indiferença, essa desimplicação revelada em sua fala, escutar e produzir outros efeitos discursivos que reverberassem em sua posição política. Matar um colega na véspera de ser desligado da medida e ganhar a liberdade seria repetir sua posição de abandono. Abrir uma nova condição subjetiva de pertencimento seria uma alternativa real.

“Faz parte do negócio, Felipe? Só existe essa possibilidade de se proteger da morte… matar?”, a analista pergunta. “Não faria diferença estar preso ou solto?” O incrível é sua resposta em associação inconsciente, reveladora de sua posição originária alienante: “Quando estou preso, minha mãe me olha e cuida de mim”. Aqui deparamos com a multidimensionalidade das subjetividades periféricas, respeitadas em sua complexidade. A psicanálise aqui, de maneira suplementar e disjunta das demais disciplinas que se ocupam das periferias, revela um lado desse objeto prismático, constituindo uma das vias possíveis para compor sua abordagem.

Diante das grandes decisões políticas, das diretrizes nacionais, das ações estratégicas sobre os alvos que ameaçam a vida pública, o sujeito resta em sua solidão manifesta e mais íntima. Sem nos ocuparmos dessa solidão, todo o esforço de defesa de seus direitos fundamentais morreria junto com Felipe, vítima do genocídio juvenil consentido que o Brasil produz. E a pergunta psicanalítica seguinte seria esta: para além do horizonte do desejo materno, o que se pode desejar? Para além dessa regulação íntima, como compor presença no laço social, quando no território não é preciso muito esforço de Felipe para ser novamente abandonado, seja pelas políticas públicas, seja pela polícia, seja ainda pelo Estado… O que se pode realizar e pelo que o jovem pode se responsabilizar? Qual é a maior amplitude na margem de escolhas que o sujeito, o Estado e a sociedade civil podem atingir nas periferias?

A SUBJETIVIDADE PERIFÉRICA NO “ENTRE”

Fazer do mosaico de representações e de códigos um vetor de orientação para compreender os processos de subjetivação na periferia exige conectar a experiência íntima, inconsciente, à vivência política, material e discursiva. Felipe não é um jovem branco, de classe média, com uma família e uma casa para resguardá-lo. Viver na periferia implica conviver com diferentes sistemas e códigos de pertencimento e de conduta comunitários, públicos, familiares e pessoais. Alguns são lícitos, outros ilícitos, alguns legitimados, outros não. A convivência com a multiplicidade de formas de viver que habitam entre o “morro” e o “asfalto” conduz a uma série de especificidades que acarretam estéticas plurais, gramáticas próprias e políticas sectárias diferenciadas. Problematizar a existência de uma subjetividade periférica envolve, portanto, articular o estrutural, o institucional e o individual de maneira a extrair suas condições concretas e simbólicas de possibilidade.

No caso de Felipe, vemos, como num quadro de Escher, a reprodução de uma posição inconsciente resvalar, atualizada, para vivências com o coletivo de jovens da boca de fumo, com os colegas da socioeducação, com sua proscrição política na cidade. E, num nível mais amplo, vemos seu fantasma inconsciente ser encarnado num corpo destinado à morte ou ao encarceramento. Ele se encontra alienado em uma fantasia de abandono que inflete em sua construção política de pertencimento e, ao mesmo tempo, é por ela confirmada pelos agentes da ordem urbana.

Ao tratar das subjetividades periféricas, portanto, estamos falando de um múltiplo trabalho com os direitos fundamentais e a alienação que, seja no plano político-material, público, das ideologias, seja no plano inconsciente, subjetivo, exige um trabalho de ocupação do em si a partir do Outro. Freud nos ensinou que o homem é impelido por algo que lhe é estrangeiro, não integrado a si mesmo. É no seu próprio interior, em seu aparelho psíquico, que o homem vive com inquietação o sofrimento que lhe é estrangeiro (Koltai, 2000Koltai, Caterina. Política e psicanálise: o estrangeiro. São Paulo: Escuta, 2000., p. 27).

O Outro, em psicanálise, não equivale diretamente à ordem social compartilhada, assim como a alienação subjetiva e inconsciente não equivale ipsis litteris à alienação ideológica. O Outro pode ser tomado como a extração constitutiva que o sujeito faz daquilo que o afeta, instituindo esse elemento como alteridade interna, tela a partir da qual se projeta no mundo e através da qual estabelece o que é o mundo. Daí a alienação subjetiva implicar, entre o conjunto do ser e o conjunto do Outro, o não senso como interseção, como aquilo que não faz sentido, mas que, por isso mesmo, promove as conexões necessárias para compor a articulação entre o ser e o Outro (Lacan, 1998_______. O seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998 [1964].).

A alienação político-ideológica, de outra ordem, é uma espécie de substituição da alienação constitutiva por uma alienação constituída, partilhada e, por isso, mais suportável (Žižek, 2014_______. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014.). Assim, não se trata apenas de questionar o que é ideológico, oculto num determinado discurso, mas também de compreender como o sujeito aí se perde para não se haver com sua alienação fundamental, e também como ele é capturado, intimamente, no cotidiano das regulações, hierarquias e discursos hegemônicos. Nesse sentido, o sujeito é um efeito-ativo, mesmo que isso pareça ilógico. Ele é, em ato, afetado permanentemente pelo Outro. Por isso, não pode ser reduzido a um comportamento. Ao mesmo tempo, é autor, no sentido da autoria de sua inscrição no mundo.

Portanto, pensar de maneira binária a existência de fato, materialista, e a existência lógica, subjetiva, como pares de opostos para projetarmos e realizarmos nossas intervenções é, no mínimo, uma abordagem simplista, pois comporta ao menos uma dupla torção assimétrica. O corte, sobre um fundo de linguagem que afeta o corpo, implica a produção de uma ruptura nesses processos de identificação alienantes no plano político. Por isso mesmo, a noção de direito humano escapa ao que está em jogo nesses processos de subjetivação psíquica e de objetivação da realidade. Há um ponto de perda, sem qualidades, que reconfigura os planos de leitura e análise, produzindo uma realização transformadora que permite ao sujeito criar uma espécie de ponto de onde possa se mirar e se guiar. Daí que tomar a subjetividade periférica nesse entre implica articular seus múltiplos conjuntos e planos na reflexão e na intervenção com vistas à transformação subjetiva e social.

PARADOXOS DA SUBJETIVIDADE PERIFÉRICA

Ao discutir o paradoxo advindo da ilusão da universalidade dos direitos, Slavoj Žižek (2008Žižek, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.) recupera exatamente essa outra impossibilidade identitária, a de o sujeito corresponder a uma representação como elemento político, que resulta do fato de explicar como o homem é feito pela cidadania, e não a cidadania pelo homem. O paradoxo apontado reside no fato de que o homem é privado dos direitos humanos exatamente quando, na realidade social, é reduzido a um ser humano geral, sem nacionalidade, cidadania, raça, gênero, profissão.

Aqui podemos recuperar os três fragmentos iniciais do texto, cujos enunciados, se não identificados raça, gênero e classe de seus enunciadores - ou mesmo numa brincadeira, se trocados seus autores -, perdem o valor político. Testemunhas de diferentes modos de violência, tal qual Felipe com seu código superegoico, usufruem, todos, de um suposto direito universal. Na cena pública e no cotidiano da periferia, entretanto, são subjetividades marcadas por códigos simbólicos que, nos aspectos social e jurídico, são radicalmente distintos.

Em outros termos, é exatamente quando, de fato, somos os portadores ideais dos “direitos humanos universais” que perdemos aquilo que nos concerne como sujeitos políticos, já que esses direitos pertenceriam ao sujeito independentemente de sua profissão, gênero, cidadania, religião, identidade étnica ou outra. O curioso é que, quando se perde a condição de cidadania em suas condições materiais concretas, ganham-se, idealmente, os direitos humanos fundamentais, tornando-se, assim, sujeito despersonalizado e desmaterializado de direitos.

Longe de serem pré-políticos, os “direitos humanos universais” designam o espaço preciso da politização propriamente dita: o que representam é o direito à universalidade como tal, o direito do agente político de afirmar sua não coincidência radical consigo mesmo (em sua identidade particular), isto é, de postular-se, exatamente na medida em que é o “supranumerário”, a “parte de parte nenhuma”, aquele sem lugar adequado no edifício social, como agente da universalidade do Social como tal. (idem, p. 445)

Isso nos levaria a ações humanitárias, e não políticas, ações ideais e regulatórias, e não singulares, contextuais e emancipatórias. Eis o ponto em que Lacan (1966-7Lacan, Jacques. Le Séminaire, livre XIV: logique du fantasme. 1966-7. Disponível em: <Disponível em: http://staferla.free.fr/S14/S14%20LOGIQUE.pdf >. Acesso em: 20/05/2017.
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), 35 anos depois de Freud - incluídas nesse intervalo a Segunda Guerra Mundial (1939-45), a criação da Organização das Nações Unidas (1945) e a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) -, resgata a função dos droits de l’homme. A única vez que Lacan trata do tema dos direitos humanos em sua obra é na aula de 22 de fevereiro de 1967, de seu seminário sobre a Logique du fantasme (idem).

Ele parte da alienação como eliminação ordinária do Outro, campo fechado e unificado, ou “rechaço fora do limiar” (Lacan, 1966-7Lacan, Jacques. Le Séminaire, livre XIV: logique du fantasme. 1966-7. Disponível em: <Disponível em: http://staferla.free.fr/S14/S14%20LOGIQUE.pdf >. Acesso em: 20/05/2017.
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, p. 207) - entendido o limiar como aquele que determina o corte no qual consiste a essência da linguagem. Em outros termos, com base no pressuposto de que não há discurso que se faça universal, a operação de alienação assinala exatamente aquilo que escapa à apropriação ou aos ideais universalizantes, à predicação, em última instância. Enquanto a soma dos particulares não totaliza o universal, resta sempre o singular a-normativo. E, na medida em que a linguagem é solidária da verdade, esta se revela a partir do Outro, tomado como um conjunto não fechado de sentido (idem, p. 208).

Assim, Felipe se apresenta como sujeito que se experimenta “ético” na ilicitude; sujeito que busca se integrar socialmente, fazendo-se abandonar; experimentando-se parte de um jogo público ao ser tomado, exatamente em sentido contrário, como eliminável do tabuleiro - o que assinala a não coincidência radical do sujeito consigo mesmo, como indicava Žižek (2008Žižek, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.) em referência ao sujeito político e sua identidade particular. Lacan (1966-7Lacan, Jacques. Le Séminaire, livre XIV: logique du fantasme. 1966-7. Disponível em: <Disponível em: http://staferla.free.fr/S14/S14%20LOGIQUE.pdf >. Acesso em: 20/05/2017.
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) retoma o paradoxo do sujeito político quanto a esse ponto. Ao se experimentar como sujeito não coincidente consigo mesmo, experimenta-se como não identitário. Entretanto, é exatamente como sujeito de direitos, nomeados universais, que ele se faz corpo de pertencimento do conjunto de homens com direitos iguais.

Como regular esse modo singular de ocupação do corpo - chamado gozo em psicanálise - em nome de um bem comum, se ele é o que escapa à nomeação identitária e ao conjunto dos bens partilháveis, sendo apenas singularmente experimentado?

Isso não se impõe imediatamente, mas duvida-se disso e instaura-se em torno desse gozo, que é exatamente desde então meu único bem, essa grade protetora de uma lei dita universal e que se chama “les droits de l’homme” [os direitos do homem]. Ninguém poderia me impedir de dispor ao meu grado de meu corpo… O resultado, no limite, nós estamos chegando lá a passos lentos, nós outros psicanalistas: é que o gozo esgotou-se para todo mundo! (idem, p. 208, tradução nossa)

Assim como Žižek (2008Žižek, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.) assinala que não somos equivalentes à forma como operamos no jogo político, Lacan (1966-7Lacan, Jacques. Le Séminaire, livre XIV: logique du fantasme. 1966-7. Disponível em: <Disponível em: http://staferla.free.fr/S14/S14%20LOGIQUE.pdf >. Acesso em: 20/05/2017.
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) também nos lembra de que não gozamos como somos (ou supomos ser). Nos dois casos, entre o eu e a vida política ou entre o eu e a vida pulsional, não há equivalência, coerência, medida comum. O que dificulta em muito nosso trabalho cotidiano e revela uma dimensão da subjetividade periférica que ganhará contornos específicos - apesar de sua estrutura de linguagem comum. Os jovens da periferia não são (ou não se reduzem a) o que fazem, apesar de acabarmos por predicá-los e localizá-los pelo texto da lei, pela imagem da mídia ou pelo tecido discursivo do senso comum, identificando-os reduzidamente a seus atos, a seu território, a sua indumentária ou a sua posição social.

Esse desencontro demarca o in-comum e a dificuldade de vivermos juntos, que Felipe vivencia na singularidade (tão universal na periferia) de sua experiência de mundo. Mas também abre a condição de possibilidade de construção de modos diferentes de mundanizar - dar contorno e forma no mundo - a experiência subjetiva e política de corpo. Isso porque é exatamente na repetição que a verdade comparece para cada sujeito - e também para o corpo social - como enigma, fugindo à apreensão universal dos direitos humanos e da razão, fundando-se, antes, enquanto sua exceção personificada. Assim, o mesmo ponto que poderia bloquear o reconhecimento da diferença pode ser operado como ponto de abertura, portanto, a novas formas de subjetivação, de representação e de socialização, nas quais as diferenças no espaço urbano podem compor tecidos compartilhados.

APONTAMENTOS FINAIS

Temos, portanto, questões fundamentais para pensar o sujeito e necessárias para operar a Coisa Pública - ponto em que o universal abstrato da lei se realiza na singularidade de uma existência por ela regulada, ao lado de tantas outras codificações não reconhecidas por um discurso que se crê dominante. O que é sombra e o que é realidade nessa composição deixam margem a dúvidas e nos ensinam que esse não é o melhor plano de perspectiva para pensar a vida como ela de fato é. Felipe segue sua lei superegoica, obedece fielmente à lei do crime, responde socioeducativamente à lei jurídica e ainda tem seus direitos humanos fundamentais violados e, muito eventualmente, resguardados.

Quando a previsão legal, processual, se realiza, isso não é sem consequências para o regime multiverso de convivência desses diferentes códigos de regulação. Como numa espécie de caleidoscópio, a imagem formada entre os corpos e suas variadas formas de representação e regulação se modifica e altera as normativas em seu interior. É necessário haver maior flexibilidade para interpretarmos o ponto de onde ler a história do mundo, do país, da cidade e do sujeito.

De todo modo, sem tocar o sujeito, as normatizações permaneceriam vazias de efetividade, sem efeitos. No entanto, sem intervir na estrutura e nas instituições que o regulam, o sujeito permaneceria como opacidade, desconhecimento. É sobre essa torção que, acreditamos, pode ser dado um passo no sentido de alargar as coordenadas de leitura e intervenção sobre essa intricada constelação que condiciona a um vocabulário fraco e reduzido do não reconhecimento das diferentes formas de vida e regulação das periferias. Ato que realmente alteraria a composição dessas coordenadas.

Se esse terreno não se apresenta sem paradoxos, nós fazemos nossas apostas e lançamos, com cálculo e não aleatoriamente, nossos dados, esperando que consigamos fazer uma subjetividade política efetivar-se ao lado de uma subjetividade periférica. Uma forma de resistência à apreensão do ser pelo totalitarismo das leis, uma espécie de “melhor não” ceder a isso, mas escolher e responder pela posição que ocupamos no mundo, suportando as diferenças, de cuja conflitualidade emergem novas possibilidades de composições societárias, políticas e subjetivas.

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  • _______. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2020
  • Aceito
    05 Abr 2020
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