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UBERIZAÇÃO E JUVENTUDE PERIFÉRICA: Desigualdades, autogerenciamento e novas formas de controle do trabalho

Uberization and Youth: Inequalities, Self-Management and New Forms of Labor Control

RESUMO

A uberização é definida como novo tipo de controle e gerenciamento do trabalho associado a um processo de informalização, que leva à consolidação do trabalhador sob demanda. A partir do trabalho de bikeboys e motoboys, discute-se a participação de jovens negros nesse tipo de trabalho, à luz do gerenciamento algorítmico e do controle centralizado de modos de vida periféricos. Analisam-se as condições de trabalho dos entregadores e sua organização política durante a pandemia de Covid-19.

PALAVRAS-CHAVE:
uberização; empreendedorismo; juventude; bikeboys e motoboys; pandemia

ABSTRACT

Uberization is understood as a new type of labor control. Associated with a process of informalization, it leads to the constitution of a just-in-time worker. Based on investigation of app delivery workers we analyze: the participation of young and black workers; algorithmic management and the centralized control of typical global South ways of life. Working conditions and political resistance during the Covid-19 pandemic are also discussed.

KEYWORDS:
Uberization; Entrepreneurship; Youth; App delivery workers; Covid-19 pandemic

Nos últimos anos, o cenário de cidades brasileiras passou a contar com a figura dos entregadores ciclistas por aplicativo, mais conhecidos como bikeboys. Desempenhando uma atividade que já nasce tipicamente juvenil, negra e periférica (Aliança Bike, 2019Aliança Bike. Pesquisa de perfil dos entregadores ciclistas de aplicativo. São Paulo: Aliança Bike, 2019.), esses trabalhadores conferem materialidade e visibilidade às especificidades e aos elementos centrais da uberização, aqui compreendida como um novo tipo de gerenciamento, controle e organização do trabalho (Abílio, 2017______. “Uberização: subsunção real da viração”. passapalavra/Blog da Boitempo, fev. 2017. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2017/02/22/uberizacao-do-trabalho-subsuncao-real-da-viracao>. Acesso em: 10/11/2020.
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; 2020a______. “Uberização: A era do trabalhador just-in-time?”. Revista de Estudos Avançados, v. 34, n. 98, 2020a, pp. 111-26. ).

Em linhas gerais, a uberização é o processo em que o trabalhador informal se vê despojado de direitos, garantias e proteções associados ao trabalho e arca com riscos e custos de sua atividade. O trabalhador uberizado está disponível para o trabalho, mas só é utilizado de acordo com a demanda, consolidando-se então na condição de trabalhador just-in-time (Oliveira, 2000Oliveira, Francisco de. “Passagem na neblina”. In: Stedile, João Pedro; Genoino, José (orgs.) Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.; De Stefano, 2016De Stefano, Valerio. “The Rise of the ‘Just-in-Time Workforce’: On-Demand Work, Crowdwork and Labour Protection in the “Gig-Economy”. Conditions of Work and Employment Series, n. 71, Genebra: OIT, 2016.; Abílio, 2017______. “Uberização: subsunção real da viração”. passapalavra/Blog da Boitempo, fev. 2017. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2017/02/22/uberizacao-do-trabalho-subsuncao-real-da-viracao>. Acesso em: 10/11/2020.
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; 2020a______. “Uberização: A era do trabalhador just-in-time?”. Revista de Estudos Avançados, v. 34, n. 98, 2020a, pp. 111-26. ). Nesta, ele não conta com garantias nem determinações estáveis no que se refere a remuneração por duração da jornada de trabalho. Também é transferida para ele parte do gerenciamento do trabalho. Distante da figura do empreendedorismo ou da autonomia, trata-se de um autogerenciamento subordinado (Abílio, 2019______. “Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado”. Revista Psicoperspectivas: Individuo y Sociedad, 2019, v. 18, n. 3, pp.1-11.).

A uberização segue na esteira de décadas de forjamento da possibilidade técnico-política de dispersão do trabalho e centralização do controle (Harvey, 1992Harvey, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1992.; Bernardo, 2004Bernardo, João. Democracia totalitária: teoria e prática da empresa soberana. São Paulo: Cortez, 2004.), que resultou, entre outros elementos, de reconfigurações no papel do Estado na relação entre capital e trabalho, da liberalização de fluxos financeiros e de investimento, da concentração de renda e de processos de oligopolização, que correm associados a inovações tecnológicas e reestruturações produtivas. Esse movimento de dispersão-centralização passa a contar com o gerenciamento algorítmico do trabalho (Rosenblat; Stark, 2016______; Stark, Luke. “Algorithmic Labor and Information Asymmetries: A Case Study of Uber’s Drivers”. International Journal of Communication, v. 10, 2016, pp. 3.758-84. ; Möhlmann; Zalmanson, 2017Möhlmann, Mareike; Zalmanson, Lior. “Hands on the Wheel: Navigating Algorithmic Management and Uber Drivers’ Autonomy”. International Conference on Information Systems (Icis 2017), Seul, 2017.; Abílio, 2020b______ et al. “Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19”. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, v. 3, 2020, pp. 1-21.; Wood et al., 2019Wood, Alex J. et al. “Good Gig, Bad Gig: Autonomy and Algorithmic Control in the Global Gig Economy”. Work, Employment and Society, v. 33, n. 1, 2019, pp. 56-75.), que possibilita o mapeamento e a administração da atividade cotidiana da multidão dispersa de centenas de milhares de trabalhadores disponíveis e engajados.

A uberização, como novo tipo de controle, se exerce por meio de novos processos de informalização1 1 A noção de processo de informalização dialoga com a definição do processo de informalidade trazida por Maria Cristina Cacciamali, referindo-se “à análise de um processo de mudanças estruturais em andamento na sociedade e na economia que incide na redefinição das relações de produção, das formas de inserção dos trabalhadores na produção, dos processos de trabalho e de instituições” (Cacciamali, 2000, p. 153). que não se restringem à formação dos gigantescos exércitos de trabalhadores informais - subordinados então a algumas poucas empresas que conseguem oligopolizar seus setores de atuação. O controle e o gerenciamento do trabalho também se relacionam a um processo de informalização cuja compreensão ultrapassa o referencial do par trabalho formal/informal: a identidade profissional se desloca do trabalhador para o trabalhador amador (Dujarier, 2009Dujarier, Marie-Anne. Le Travail du consommateur. Paris: La Découverte, 2009.; Abílio, 2014Abílio, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, 2014.), e há uma crescente perda de formas estáveis, reguladas ou contratualizadas das regras de definição da remuneração, da distribuição do trabalho, da duração da jornada e do que é ou não tempo de trabalho.

Propondo-se a construção de categorias de análise desde a periferia, a partir da investigação do trabalho de bikeboys e motoboys, é apresentada aqui a tese de que modos de vida tipicamente periféricos estão sendo administrados de forma centralizada e racionalizada sob esse novo tipo de organização e gerenciamento do trabalho. Esses modos de vida se fazem em um trânsito permanente e instável entre trabalho formal e informal, empreendimentos familiares, trabalhos que não são reconhecidos como trabalho, combinação de diferentes modos de geração de renda, que agora estariam sendo subordinados a instâncias centralizadas por meio do par informalização/gerenciamento algorítmico do trabalho, na condição de trabalhador uberizado. Em outras palavras, esse viver periférico envolve o gerenciamento de si que se tece na ausência de redes de proteção social e que passa a ser apropriado e controlado de novas maneiras. Discute-se, então, como elementos associados ao modo de vida periférico parecem estar se generalizando por meio das relações de trabalho.

As condições de trabalho dos entregadores também possibilitam reconhecer na uberização processos de degradação do trabalho, que envolvem rebaixamento do valor da força de trabalho, extensão do tempo de trabalho, intensificação, transferência de riscos e custos para o trabalhador, além de uma perda/deslocamento de sua identidade profissional. A partir de dados secundários sobre os bikeboys, aponta-se que essa degradação do trabalho não se realiza de forma homogênea, mas se produz e reproduz nas diferentes interseções de desigualdades estruturantes da sociedade brasileira. Por meio da comparação entre entregadores celetistas e uberizados, evidencia-se que, quanto mais socialmente desprotegida e mais mal remunerada, mais juvenil e negra é a ocupação de entregador.

Também é discutida neste artigo a “juvenilização” da profissão dos entregadores. Trata-se não só da ampliação da participação dos jovens, mas de como esta tem relação íntima com o rebaixamento do valor da força de trabalho e a perda de uma identidade profissional e estável, característica desse novo tipo de informalização.

Por fim, são analisadas a condição de trabalho dos entregadores e suas formas de resistência durante a pandemia de Covid-19, em 2020, período em que ficaram evidentes não só a precariedade do entregador uberizado, como também sua centralidade nas esferas da distribuição e da circulação, assim como na reprodução social de outros trabalhadores. Em plena pandemia, os entregadores organizaram sua primeira paralisação nacional como trabalhadores uberizados, por eles intitulada #Brequedosapps.

A análise é baseada em: 1) acompanhamento das condições de trabalho e das trajetórias de vida de bikeboys e motoboys na cidade de São Paulo, em pesquisa que vem sendo realizada nos últimos oito anos (Abílio, 2015______. Segurando com as dez: o proletário tupiniquim e o desenvolvimento brasileiro. Relatório Final de Pesquisa. São Paulo, Fapesp, 2015 (mimeo). ; 2019______. “Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado”. Revista Psicoperspectivas: Individuo y Sociedad, 2019, v. 18, n. 3, pp.1-11.; 2020a______. “Uberização: A era do trabalhador just-in-time?”. Revista de Estudos Avançados, v. 34, n. 98, 2020a, pp. 111-26. ), por meio de entrevistas baseadas no método de estudos de trajetórias de vida (Revel, 1998Revel, Jacques. Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.) e aplicação de questionários semiabertos; 2) pesquisa quantitativa nacional realizada por meio de questionários fechados aplicados on-line no mês de abril de 2020 junto a 270 entregadores por aplicativo (Abílio et al., 2020______ et al. “Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19”. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, v. 3, 2020, pp. 1-21.); 3) dados secundários sobre o perfil socioeconômico e as condições de trabalho de entregadores ciclistas na cidade de São Paulo (Aliança Bike, 2019Aliança Bike. Pesquisa de perfil dos entregadores ciclistas de aplicativo. São Paulo: Aliança Bike, 2019.; Aliança Bike; Labmob, 2020______; Labmob. Relatório técnico: Ciclologística Brasil. São Paulo: Aliança Bike/Labmob/ Instituto Clima e Sociedade, 2020.).

1. TRABALHADOR “JUST-IN-TIME” E GERENCIAMENTO ALGORÍTMICO DO TRABALHO

A uberização não se inicia com a empresa Uber, tampouco se restringe às plataformas digitais ou ao trabalho digital. Entretanto, o fenômeno mundial ocasionado pela atuação dessa empresa confere visibilidade aos elementos centrais da uberização. Por sua vez, as plataformas digitais catalisam essa nova forma de organização do trabalho, no que podemos compreender como plataformização do trabalho (Grohmann, 2020Grohmann, Rafael. “Plataformização do trabalho: entre a datificação, a financeirização e a racionalidade neoliberal”. Revista Eptic, v. 22, n. 1, jan.-abr. 2020, pp. 106-22.). Na perspectiva aqui apresentada, a uberização envolve centralmente as definições de trabalhador just-in-time, gerenciamento algorítmico e autogerenciamento subordinado.

A condição do trabalhador uberizado é a de um trabalhador sob demanda, também denominado trabalhador just-in-time2 2 O termo just-in-time nomeia um modo de organização da produção que, por operar de acordo com a demanda, elimina uma série de riscos e custos para a empresa, especialmente os relacionados aos estoques. A transposição para a categoria do trabalhador just-in-time foi feita por Francisco de Oliveira (2000), ao analisar a perda de distinções entre o que é tempo de trabalho e o que não é, até mesmo entre o que é ou não trabalho, na figura de um trabalhador que, por meio das tecnologias da informação, encontra-se permanentemente disponível para o trabalho, sendo utilizado quando necessário. (Oliveira, 2000Oliveira, Francisco de. “Passagem na neblina”. In: Stedile, João Pedro; Genoino, José (orgs.) Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.; Abílio, 2014Abílio, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, 2014.; 2017______. “Uberização: subsunção real da viração”. passapalavra/Blog da Boitempo, fev. 2017. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2017/02/22/uberizacao-do-trabalho-subsuncao-real-da-viracao>. Acesso em: 10/11/2020.
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; 2020a______. “Uberização: A era do trabalhador just-in-time?”. Revista de Estudos Avançados, v. 34, n. 98, 2020a, pp. 111-26. ; De Stefano, 2016De Stefano, Valerio. “The Rise of the ‘Just-in-Time Workforce’: On-Demand Work, Crowdwork and Labour Protection in the “Gig-Economy”. Conditions of Work and Employment Series, n. 71, Genebra: OIT, 2016.). Remunerado estritamente pelo tempo em que efetivamente produz, ele arca com os poros de sua jornada de trabalho - que já nem é preestabelecida -, sendo utilizado e gerenciado de acordo com a demanda. Está disponível para o trabalho, mas é utilizado de forma inconstante e variável. (Há uma foto que muito circulou, de dois jovens bikeboys dormindo com a cabeça dentro da bag na qual transportam os alimentos, em uma praça do centro de São Paulo, à espera da próxima entrega. A imagem, feita pelo fotógrafo Tiago Queiroz para o jornal O Estado de S. Paulo, sintetiza a condição do trabalhador just-in-time.)3 3 A imagem está disponível em: < https://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,a-foto-que-virou-simbolo-da-precarizacao-de-uma-profissao,70003437995,0.htm>. Acesso em: 10/11/2020.

Nessa condição, ainda que o trabalhador esteja à disposição da empresa, parte de sua jornada não é reconhecida como tempo de trabalho. Por essa perspectiva, a informalização refere-se à ausência de determinações ou regulações sobre a jornada de trabalho e o valor da força de trabalho, reduzindo o trabalhador a força de trabalho disponível, utilizada quando necessário e remunerada apenas no tempo efetivo de produção. A definição de just-in-time refere-se, então, ao uso flexível da força de trabalho, à ausência de proteções contra o rebaixamento do valor da força de trabalho, à ampliação do tempo de trabalho não pago, assim como à transferência de riscos e custos para o trabalhador. Nessa condição, ele segue subordinado, mas se torna solitariamente responsável pela gestão e garantia de sua própria reprodução social.

O Estado pode firmar-se como um promotor da uberização. No Brasil, a Lei n. 13.467, mais conhecida como reforma trabalhista, instituiu a condição do trabalhador just-in-time no interior do trabalho formal, transformando os pilares deste com, entre outros elementos, a criação do contrato de trabalho intermitente. Nele, o trabalhador é um empregado formalizado que, entretanto, é recrutado ao trabalho de acordo com as determinações do empregador e já não conta com qualquer garantia sobre sua remuneração - que agora pode legalmente ser inferior a um salário mínimo - nem sobre a extensão e a distribuição da jornada de trabalho (Krein et al., 2018Krein, José Dari; Santos, Anselmo Luis dos; Gimenez, Denis Maracci (orgs.). Dimensões críticas da reforma trabalhista no Brasil. Campinas: Curt Nimuendajú/MPT/ Cesit, 2018.).

As empresas-aplicativo detêm os meios técnico-políticos para o uso racionalizado e eficiente, no tempo e no espaço, de centenas de milhares de trabalhadores just-in-time. Apresentando-se como mediadoras tecnológicas entre oferta e procura, as empresas encarnam elas próprias uma espécie de mão invisível do mercado: determinam o valor do trabalho e sua variação, definem e gerenciam a distribuição do trabalho, regulam a oferta de trabalhadores, criam mecanismos de avaliação e controle da produtividade que operam constantemente, mas são difíceis de mapear e definir. As regras por elas estabelecidas não são claras nem pré-acordadas. Pesquisas empíricas sobre trabalhadores uberizados vêm demonstrando a busca permanente do trabalhador por decifrar as regras de seu próprio trabalho, que cambiam a toda hora (Rosenblat; Stark, 2016______; Stark, Luke. “Algorithmic Labor and Information Asymmetries: A Case Study of Uber’s Drivers”. International Journal of Communication, v. 10, 2016, pp. 3.758-84. ; Rosenblat, 2018Rosenblat, Alex. Uberland: How Algorithms are Rewriting the Rules of Work. Oakland: University of California Press, 2018. ; Möhlmann; Zalmanson, 2017Möhlmann, Mareike; Zalmanson, Lior. “Hands on the Wheel: Navigating Algorithmic Management and Uber Drivers’ Autonomy”. International Conference on Information Systems (Icis 2017), Seul, 2017.). No caso dos entregadores, não há contrato de trabalho, mas adesão a um contrato de prestação de serviços mediados pelas empresas-aplicativo.4 4 As empresas que organizam o trabalho por meio de plataformas digitais têm recebido diferentes denominações. Utiliza-se aqui o termo “empresa-aplicativo” para expressar que, apesar de ser uma empresa, esta aparece para o consumidor — e por vezes até mesmo para o trabalhador — como um aplicativo digital. Não há clareza sobre os critérios que operam na definição e na variação cotidiana do valor da hora de trabalho. As regras da distribuição do trabalho também são obscuras. Ainda, trabalhadores não são demitidos, visto que nem são formalmente contratados, mas podem ser sumariamente desligados.

O gerenciamento algorítmico do trabalho (Rosenblat; Stark, 2016______; Stark, Luke. “Algorithmic Labor and Information Asymmetries: A Case Study of Uber’s Drivers”. International Journal of Communication, v. 10, 2016, pp. 3.758-84. ; Möhlmann; Zalmanson, 2017Möhlmann, Mareike; Zalmanson, Lior. “Hands on the Wheel: Navigating Algorithmic Management and Uber Drivers’ Autonomy”. International Conference on Information Systems (Icis 2017), Seul, 2017.; Abílio, 2020b______ et al. “Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19”. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, v. 3, 2020, pp. 1-21.; Wood et al., 2019Wood, Alex J. et al. “Good Gig, Bad Gig: Autonomy and Algorithmic Control in the Global Gig Economy”. Work, Employment and Society, v. 33, n. 1, 2019, pp. 56-75.) refere-se a essa possibilidade técnico-política de, de forma obscura e extremamente flexível, mapear e transformar em dados administráveis a atividade da multidão de trabalhadores, de consumidores e das empresas. O controle perde formas rígidas, sendo exercidos mecanismos de regulação da produtividade do trabalho, como os desafios e as bonificações, que materializam a ausência de regulações sobre o valor da hora de trabalho, o tempo de trabalho, a distribuição e também a saúde e a segurança do trabalhador. Práticas como a do “preço dinâmico”, usada pela empresa Uber, e bonificações durante a noite, nos fins de semana ou em períodos de chuva, como fazem as empresas de delivery, são exemplos de mecanismos informalizados de controle que transformam em dados a atividade da multidão e ao mesmo tempo a gerenciam. Esse gerenciamento é feito de forma automatizada, por meios técnicos que processam e administram uma ampla gama de variáveis - sendo que a própria definição de quais seriam essas variáveis é obscura.

Ao se apresentarem como mediadoras tecnológicas entre oferta e procura, as empresas assentam-se em uma suposta aleatoriedade ou neutralidade da técnica, mas o fato é que a programação algorítmica é humanamente definida e atende a determinados interesses, que se instauram em relações assimétricas (Gillespie, 2014Gillespie, Tarleton. “The Relevance of Algorithms”. In: ______; Boczkowski, Pablo J.; Foot, Kirsten A. (orgs.). Media Technologies: Essays on Communication, Materiality and Society. Cambridge (MA): MIT Press, 2014.). Como explica Mauro - entrevistado em 2018, com 39 anos de idade e 15 na profissão de motoboy -, quando chove, o trabalho se torna mais arriscado, e então as empresas oferecem as bonificações: “[] se o tempo estiver chuvoso, igual hoje de manhã, eles mandam mensagem às 9 horas: das 10h até as 13h, fazendo oito pedidos delivery, você ganha mais r$ 50. Se você não fizer, você não ganha o bônus”. A empresa oferece um desafio que, para o trabalhador, significa realizar um trabalho em condições mais arriscadas, em troca de maior remuneração. Entretanto, não se trata apenas de riscos e variação na remuneração. Há um elemento que ainda precisa ser mais bem pesquisado e conhecido: por mais que o trabalhador se engaje, é a própria empresa que determina quem conseguirá cumprir a meta. Como resume o entrevistado: “Eu, você e outro motoboy estamos trabalhando lá, são oito pedidos para conseguir o bônus. Eu e você fizemos sete, o outro motoboy fez quatro. Para quem eles vão jogar as próximas entregas? Para o outro motoboy”. Como Mauro e outros trabalhadores evidenciam (Möhlmann; Zalmanson, 2017Möhlmann, Mareike; Zalmanson, Lior. “Hands on the Wheel: Navigating Algorithmic Management and Uber Drivers’ Autonomy”. International Conference on Information Systems (Icis 2017), Seul, 2017.), o que aparece como aleatoriedade da técnica também pode ser compreendido como um controle despótico que opera de modo informalizado, não localizável, mas racionalizado, que regula a produtividade do trabalhador, transfere-lhe riscos e custos sem nem mesmo garantir sua remuneração.

Ao estabelecer a definição de capitalismo de vigilância, Shoshana Zuboff (2018Zuboff, Shoshana. “Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação”. In: Bruno, Fernanda et al. (orgs.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo , 2018.) mira na combinação entre vigilância, perda da privacidade e controle, que atualmente operam de forma imbricada sobre os cidadãos, transformando diversos elementos da vida cotidiana em dados processados e administrados por corporações. Estes são utilizados de forma obscura e não acordada com o cidadão. Estaria em ação um controle com formas dificilmente discerníveis, estabelecido sobre diversas esferas da vida, influenciando/gerindo valores, modos de vida, comportamentos eleitorais, padrões de consumo, compondo até mesmo novas formas de governo. O gerenciamento algorítmico do trabalho hoje integra esse campo obscuro da extração e do uso de dados, no qual o trabalhador está subordinado, mas as regras do trabalho já não são contratualmente estabelecidas nem minimamente formalizadas.

2. DO EMPREENDEDOR DE SI AO AUTOGERENTE SUBORDINADO PERIFÉRICO

O trabalhador uberizado é recorrentemente representado como um “chefe de si mesmo”,5 5 “Dirija com a Uber. Seja seu chefe, dirija seu carro. Trabalhe nos horários que quiser” é um dos posts da página da empresa no Facebook, disponível em <www.facebook.com/uber/posts/1241771189196497/>. Acesso em 10/11/2020. um trabalhador autônomo ou um empreendedor. Nessa tipificação do trabalhador residem elementos centrais que envolvem as formas contemporâneas de gestão e controle do trabalho, as quais se realizam por uma perda de mediações publicamente estabelecidas sobre o trabalho, transferência de parte do gerenciamento para o próprio trabalhador e incorporação de seus saberes e competências na gestão.

O autogerenciamento do trabalhador pode ser relacionado às perspectivas sobre a formação de um sujeito neoliberal que se engaja e se administra como um empresário de si em um mundo atravessado pelas lógicas da concorrência em diversas esferas da vida (Dardot; Laval, 2016Dardot, Pierre; Laval, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo , 2016.). Como argumentam Tommasi e Corrochano (2020Tommasi, Livia de; Corrochano, Maria Carla. “Do qualificar ao empreender: políticas de trabalho para jovens no Brasil”. Estudos Avançados, v. 34, n. 99, 2020, pp. 354-71. ), o empreendedorismo tem lugar central na análise das transformações contemporâneas do trabalho, seja como expressão desse engajamento de si demandado ao trabalhador - por dentro e fora da categoria emprego -, seja como transferência da questão social do desemprego para os indivíduos, tornados responsáveis pela criação de meios que garantam sua própria reprodução social. Nesse sentido, o termo expressa uma perda da centralidade da categoria emprego (Guimarães, 2002Guimarães, Nadya Araujo. “Por uma sociologia do desemprego”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, n. 50, 2002, pp. 104-21.) em detrimento de outras formas de inserção social, geração de ocupação e renda; há um deslocamento dos referenciais orientados pela constituição de uma tela de proteção social para aqueles da responsabilização dos indivíduos pela gestão de sua própria sobrevivência. Esse duplo aspecto do empreendedorismo é incorporado em políticas públicas, permeia as formas contemporâneas de gestão, embasa a produção discursiva de empresas e até mesmo decisões judiciais sobre a definição e o reconhecimento da subordinação do trabalho.

O trabalho de motoboys e bikeboys uberizados confere visibilidade a esse duplo sentido do empreendedorismo e, mais especificamente, a sua conformação periférica. Esses trabalhadores assumem os riscos e custos de sua atividade, sem garantias sobre remuneração, tempo de trabalho, saúde e segurança. Têm trajetórias ocupacionais formadas pelo trânsito entre empregos de alta rotatividade, empreendimentos familiares e trabalho informal, entre outras atividades que podem nem mesmo ser reconhecidas como trabalho; seu modo de vida se fundamenta no engajamento de si sempre voltado para a garantia da sobrevivência própria e de sua família, traçando continuamente estratégias de sobrevivência em meio a oportunidades, acessos, injustiças e desigualdades que compõem suas trajetórias ocupacionais.

Nesse sentindo, olhando para elementos centrais da uberização, propõe-se o deslocamento da definição de empreendedorismo para a de autogerenciamento subordinado (Abílio, 2019______. “Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado”. Revista Psicoperspectivas: Individuo y Sociedad, 2019, v. 18, n. 3, pp.1-11.). Ao trabalhador são transferidas as decisões sobre duração e distribuição da jornada, propriedade e modos de uso dos instrumentos de trabalho. Entretanto, esse gerenciamento de si está subordinado às formas de controle e determinações das empresas. As estratégias de sobrevivência do trabalhador são incorporadas à gestão e incluem a busca permanente pela melhor remuneração e os arranjos cotidianos pela segurança, pela melhor avaliação - que garante melhor acesso ao trabalho -, pela busca das bonificações. Estratégias que se tecem individual e coletivamente no cotidiano, e hoje se transformam em dados mapeados e gerenciados de forma centralizada e racionalizada por algumas poucas empresas.

Prospectar modos de vida que passam a ser administrados por meio do gerenciamento algorítmico também é enfrentar o difícil exercício de definição de categorias de análise sobre o mundo do trabalho a partir de perspectivas da periferia. Trata-se de analisar modos de vida distantes de uma divisão estável entre trabalho formal e informal, constituídos por um trânsito recorrente entre emprego, bico, empreendimento familiar, inserção em programas sociais, atividades lícitas e ilícitas (Telles, 2006Telles, Vera da Silva. “Mutações do trabalho e experiência urbana”. Tempo Social, v. 18, n. 1, 2006, pp. 173-95.; Feltran, 2014Feltran, Gabriel. “Valor dos pobres: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo”. Cadernos CRH, 2014, v. 27, n. 72, pp. 495-512.). Combinam-se diferentes ocupações e atividades que podem nem mesmo ser categorizadas como trabalho, mas se realizam como tais (Abílio, 2014Abílio, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, 2014.). Os arranjos cotidianos e as sociabilidades se tecem por fora do mercado de trabalho, não se realizam por meio de trocas monetárias, mas integram o mundo do trabalho e os tecidos da reprodução social periférica (Guimarães; Vieira, 2020______; Vieira, Priscila Pereira Faria. “As ‘ajudas’: o cuidado que não diz seu nome”.Revista Estudos Avançados, v. 34, n. 98, 2020, pp. 7-24. ). Nos anos 1970, Francisco de Oliveira levou o que denominou “talento organizatório de milhares de pseudo-pequenos proprietários” (2003, p. 68) para o centro da análise do subdesenvolvimento. Este era entendido não como exceção, atraso ou margem, mas como forma específica do desenvolvimento capitalista e da acumulação. Parte de sua especificidade residia na transferência para os trabalhadores de custos e gerenciamento de sua própria reprodução social. Essa transferência se materializava no trabalho informal, nos pequenos empreendimentos que também compunham informalmente - mas não marginalmente - o desenvolvimento da infraestrutura urbana, do processo de industrialização e da estruturação do mercado de trabalho.

A tese aqui apresentada refere-se ao gerenciamento centralizado e racionalizado de elementos que historicamente constituem modos de vida periféricos. Estratégias cotidianas de sobrevivência como as dos motoboys e bikeboys passam a ser produzidas e incorporadas como elementos da gestão algorítmica do trabalho, a qual reproduz e produz esses modos de vida sob novas formas, promovendo o espraiamento, a atualização e a permanência de elementos estruturais da periferia. Pode-se dar um passo além, pensando-se em termos de um espraiamento desses elementos pelas relações de trabalho, que ocorrerá com diferentes especificidades, de acordo com as desigualdades que as permeiem. Nesse sentido, elementos que hoje fundamentam a definição de flexibilização do trabalho também podem ser compreendidos como uma espécie de generalização de elementos historicamente associados aos modos de vida periféricos. A polivalência precária, observada em trajetórias ocupacionais costuradas pela ausência de uma identidade profissional estável ou bem definida, o engajamento permanente de si e a gestão da própria sobrevivência sem suporte de redes de proteção socialmente instituídas passam a ser fatores amplamente reconhecidos nas formas contemporâneas de gestão do trabalho e de formação subjetiva dos trabalhadores. Tais fatores ganham visibilidade justamente por não estarem mais restritos aos trabalhadores e trabalhadoras periféricos.

3. JUVENIL COMO SINÔNIMO DE MAIS PRECÁRIO

Nas metrópoles, a profissão de entregador ciclista já existia de forma dispersa, mas se expande e se firma como uma ocupação ao ser oferecida como oportunidade de trabalho de modo centralizado pelas empresas-aplicativo de entregas. Bikeboys desempenham a mesma atividade que motoboys, só que de forma ainda mais precária e arriscada. Apresenta-se então a tese de que a participação significativa de jovens negros nesse trabalho está relacionada com essa precarização.

Um elemento central para esse argumento é o deslocamento do meio/instrumento de trabalho, da moto para a bicicleta. A bicicleta é um instrumento de baixo custo de aquisição e manutenção - que pode ser ainda mais reduzido ou diluído quando ela é diariamente alugada por meio do serviço de bicicletas compartilhadas. O trabalho do bikeboy demanda essencialmente força e resistência físicas durante a realização das entregas e nas longas horas de espera do trabalhador just-in-time. Envolve outras competências que também vão impactar na produtividade e na remuneração, como habilidade para se deslocar nas vias urbanas que não foram concebidas para bicicletas, estratégias contra roubos e conhecimento sobre a cidade que possibilitem a intensificação do próprio trabalho.

Pesquisa quantitativa realizada pela Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike) com 270 entregadores ciclistas por aplicativo na cidade de São Paulo confirma que os bikeboys uberizados são hoje predominantemente negros (71%) e jovens (75% dos entrevistados tinham até 27 anos). Em média, esses trabalhadores recebem r$ 936 por mês, sendo que 54% dos entrevistados afirmaram trabalhar entre nove e doze horas diárias e 57%, de segunda a domingo (Aliança Bike, 2019Aliança Bike. Pesquisa de perfil dos entregadores ciclistas de aplicativo. São Paulo: Aliança Bike, 2019.).

Jovens desempregados, jovens em empregos de alta rotatividade, baixa remuneração e informais passam então a acessar um novo meio de geração de ocupação e renda, para o qual é necessário simplesmente aderir, ter um cadastro aprovado, fazer um investimento econômico mínimo e criar estratégias próprias de manutenção na atividade.

Esse é o caso de Carlos, entrevistado em agosto de 2020. Jovem de 18 anos, branco, era bikeboy havia seis meses. Morador do bairro Cidade Tiradentes, na periferia de São Paulo, aderiu à atividade após meses de busca por um emprego. Seu sonho era ser jogador de futebol, já treinou em alguns clubes, mas não conseguiu se profissionalizar. Seu projeto atual é cursar educação física. Antes de se tornar bikeboy, buscou por alguns meses, sem sucesso, um emprego com carteira assinada e jornada definida que lhe possibilitasse financiar a faculdade e estudar à noite.

Carlos já trabalhou com a mãe na revenda de perfumes, foi auxiliar na construção civil, entre outras atividades breves e esporádicas. Com a família da noiva, aprendeu a fazer salgados, e passou a vendê-los em dias de jogo no estádio do Itaquerão. Conseguiu arrecadar r$ 300, que decidiu investir no conserto da bicicleta que seu pai ganhara havia mais de doze anos. Cadastrou-se como bikeboy em diferentes aplicativos, hoje se dedica a apenas um. Inicialmente trabalhava no Tatuapé, na Zona Leste de São Paulo. Em decorrência da pandemia, a oferta de corridas estava baixa. Após um mês, resolveu tentar trabalhar nas proximidades da avenida Paulista. Um amigo indicou-o para trabalhar na região como operador logístico, categoria mais conhecida como ol, criada pela empresa iFood. Nessa categoria, o entregador tem turnos fixos de trabalho e região preestabelecida, apesar de não contar com nenhuma garantia sobre sua remuneração. Além de ter seu trabalho controlado pela empresa-aplicativo, há também um gerente que supervisiona as jornadas e a produtividade dos trabalhadores. No dia da entrevista, Carlos pôde conversar longamente porque havia sido bloqueado por seu supervisor por dois dias, devido a uma reclamação infundada sobre um pedido que ele não teria entregado.

A existência da categoria ol provê mais caminhos para se pensar em uma relação despótica de trabalho, que alcança a possibilidade de definir uma jornada fixa sem a contrapartida da garantia mínima de remuneração.6 6 A condição do OL remete à do entregador do filme Você não estava aqui (no original, Sorry We Missed You, 2019), dirigido por Ken Loach. Ao mesmo tempo que não dispõe de garantias sobre sua remuneração ou seu tempo de trabalho, o personagem arca com uma série de riscos e custos e tem seu tempo de trabalho ferozmente controlado pela figura do gerente e do gerenciamento algorítmico. O que torna o ol atrativo para o trabalhador é o fato - constatado informalmente, mas não pré-acordado - de ele receber maior número de entregas que o trabalhador que não tem jornada ou local de trabalho definidos, a categoria “Nuvem”, que, como define Carlos, “uma hora está aqui, outra hora ela passa ali, porque o aplicativo vai te jogando da avenida Paulista para a República, depois para a Santa Efigênia…”.

Carlos sai de casa às oito horas da manhã, vai de ônibus até o bicicletário onde deixa sua bicicleta e pedala até a avenida Paulista. Nesse percurso de ida e volta, gasta em média cinco horas do dia. Trabalha até cerca de oito horas da noite. A duração da jornada do trabalhador uberizado é definida não pelas horas de trabalho, mas por uma meta, que ele estipula, de quanto precisa ganhar por dia de trabalho (Rosenblat, 2018Rosenblat, Alex. Uberland: How Algorithms are Rewriting the Rules of Work. Oakland: University of California Press, 2018. ; Rosenblat; Stark, 2016______; Stark, Luke. “Algorithmic Labor and Information Asymmetries: A Case Study of Uber’s Drivers”. International Journal of Communication, v. 10, 2016, pp. 3.758-84. ; Castro, 2019Castro, Viviane Vidigal de. As ilusões da uberização: um estudo à luz da experiência de motoristas Uber. Dissertação (mestrado em sociologia) - IFCH, Unicamp, Campinas, 2019. ; Moda, 2020Moda, Felipe Bruner. Trabalho por aplicativo e uberização: as condições de trabalho dos motoristas da Uber.Dissertação (mestrado em ciências sociais) - EFLCH-Unifesp, Guarulhos, 2020.). Carlos diz não saber mais “o que é passar o final de semana com a família”. Tem para si a meta de obter r$ 100 por dia da semana e r$ 150 por dia nos fins de semana. Afirma que “r$ 150 você só faz no final de semana, que tem mais bonificação”. As empresas-aplicativo estimulam o trabalho por longas jornadas e com baixa remuneração, por enquanto sem limites legais estabelecidos. Uma delas, por exemplo, criou uma bonificação de r$ 190 para os bikeboys que permanecessem doze horas ininterruptas conectados ao aplicativo e não recusassem nenhuma corrida que lhes fosse ofertada (Machado, 2019Machado, Leandro. “Dormir na rua e pedalar 12 horas por dia: a rotina dos entregadores de aplicativos”. BBC News Brasil, 22/5/2019. Disponível em: <Disponível em: www.bbc.com/portuguese/brasil-48304340 >. Acesso em: 10/11/2020.
www.bbc.com/portuguese/brasil-48304340...
). O entrevistado diz ganhar em média r$ 2 mil por mês e que já conseguiu receber até r$ 3 mil, “vai muito das promoções, mas tem que pedalar que nem camelo doido”. Quando não há pedidos, costuma ficar em praças da região com seu irmão, que também se tornou bikeboy.

Para os bikeboys, trabalhar como motoboy pode ser experienciado como um sinal de progressão na profissão (Machado, 2019Machado, Leandro. “Dormir na rua e pedalar 12 horas por dia: a rotina dos entregadores de aplicativos”. BBC News Brasil, 22/5/2019. Disponível em: <Disponível em: www.bbc.com/portuguese/brasil-48304340 >. Acesso em: 10/11/2020.
www.bbc.com/portuguese/brasil-48304340...
). Carlos mira na possibilidade de se tornar motoboy, “seria um cargo acima”. Informalmente, vai se constituindo a carreira do entregador uberizado, e sua porta de entrada é a atividade de bikeboy, tipicamente juvenil. O trabalho se apresenta como alternativa de geração de ocupação e renda em que não há um processo de seleção formalizado nem se requer formalmente experiência prévia, bastando ter a bicicleta, ser maior de idade, aderir e ter um cadastro aprovado. Longe de ser um bico, o trabalho do bikeboy é exercido em jornadas extensas e extenuantes, compondo a condição de um jovem temporário-permanente que traça suas estratégias de sobrevivência de modo subordinado.

4. ENTREGADOR UBERIZADO OU “BIKE COURIER” CONTRATADO?

Ao mesmo tempo que materializa a precariedade do trabalho, a bicicleta pode ser tomada como símbolo e instrumento na promoção do desenvolvimento sustentável. O trabalho do entregador ciclista encerra diferentes produções discursivas, dentre elas a de que o coletivo de entregadores de bicicleta é responsável por evitar a emissão de toneladas de co2. Outra ressalta vantagens econômicas, pela “maior capilaridade em sua inserção no tecido urbano […] permitindo que muitas entregas cheguem mais rápido e a custos mais baixos” (Aliança Bike; Labmob, 2020______; Labmob. Relatório técnico: Ciclologística Brasil. São Paulo: Aliança Bike/Labmob/ Instituto Clima e Sociedade, 2020., p. 8).

A aterrissagem do discurso na realidade da mobilidade urbana das cidades brasileiras enfrenta a ausência de condições que garantam a saúde e a segurança dos ciclistas. Como evidencia a pesquisa realizada em São Paulo com 67 entregadores ciclistas - que não eram uberizados, mas contratados por uma empresa de entregas -, 60% já estiveram envolvidos em colisão ou atropelamento, sendo que 45% precisaram de atendimento hospitalar (Aliança Bike; Labmob, 2020______; Labmob. Relatório técnico: Ciclologística Brasil. São Paulo: Aliança Bike/Labmob/ Instituto Clima e Sociedade, 2020.). Segundo o Sistema de Informações Gerenciais de Acidentes de Trânsito de São Paulo (Infosiga), o número de ciclistas mortos no município cresceu 63,3% em 2019, totalizando 36 óbitos; uma das hipóteses relaciona esse dado com o aumento do número de bikeboys (Resk; Carvalho, 2020Resk, Felipe; Carvalho, Marco Antônio. “Mortes de ciclistas sobem 64% em SP”. Estadão Conteúdo, 22 jan. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,mortes-de-ciclistas-sobem-64-em-um-ano-na-cidade-de-sao-paulo,70003167826 >. Acesso em: 10/11/2020.
https://sao-paulo.estadao.com.br/noticia...
).

A expansão das entregas por bicicletas encontra hoje duas limitações legais, que estão em disputa por novas regulamentações. Tanto a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) quanto a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) não reconhecem a bicicleta como meio de transporte de cargas (Aliança Bike; Labmob, 2020______; Labmob. Relatório técnico: Ciclologística Brasil. São Paulo: Aliança Bike/Labmob/ Instituto Clima e Sociedade, 2020.). As possíveis alterações na regulação podem promover mudanças na profissão e no próprio instrumento de trabalho, com a fabricação e ampliação do mercado das chamadas bicicletas cargueiras, assim como das bicicletas elétricas.

Além das empresas-aplicativo do setor de entregas, também existem empresas terceirizadas de delivery que contratam bikeboys, as chamadas bike couriers. O relatório técnico “Ciclologística no Brasil” investigou o perfil e as condições de trabalho de uma dessas empresas, a paulistana Carbono Zero Courier. O relatório técnico é fruto de uma parceria da Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike) com o Laboratório de Mobilidade Sustentável da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Labmob). Realizando uma análise comparativa entre esse relatório e o apresentado pela Aliança Bike sobre os entregadores por aplicativo na cidade de São Paulo (Aliança Bike, 2019Aliança Bike. Pesquisa de perfil dos entregadores ciclistas de aplicativo. São Paulo: Aliança Bike, 2019.), pode-se perceber diferenças significativas entre entregadores por aplicativo e os que são celetistas ou prestam serviços para uma única empresa terceirizada de entregas na cidade de São Paulo.

A pesquisa com entregadores por aplicativo foi realizada em 2019, com aplicação de questionário fechado e uma amostra de 270 trabalhadores. Já a pesquisa com trabalhadores da Carbono Zero Courier, também feita com aplicação de questionário fechado, teve 67 respondentes, num universo de 160 entregadores que trabalham para a empresa - 40 deles celetistas e 120 autônomos. Entre os respondentes, 42% eram celetistas e 56%, autônomos (Aliança Bike; Labmob, 2020______; Labmob. Relatório técnico: Ciclologística Brasil. São Paulo: Aliança Bike/Labmob/ Instituto Clima e Sociedade, 2020.).

Na pesquisa realizada somente com entregadores por aplicativo, a maioria trabalha sete dias por semana (57%); em seguida, vem o grupo dos que trabalham por seis dias (24%). O relatório apresenta apenas a média dos rendimentos por faixa de horas trabalhadas. Um dado importante é que nenhum entrevistado declarou ganhar acima de r$ 1.500. O relatório conclui que o entregador ciclista de aplicativo típico “trabalha todos os dias da semana, de 9 a 10 horas por dia, com ganho médio mensal de r$ 992,00” (Aliança Bike, 2019Aliança Bike. Pesquisa de perfil dos entregadores ciclistas de aplicativo. São Paulo: Aliança Bike, 2019., p. 6).

TABELA 1
Entregadores ciclistas por aplicativo: distribuição por horas trabalhadas e rendimento mensal
TABELA 2
Entregadores terceirizados: distribuição por faixa de rendimento mensal

Já na pesquisa com os entregadores terceirizados celetistas e autônomos da empresa Carbono Zero Courier, 38% declararam ter rendimento mensal acima de r$ 1.500; os que recebem até r$ 1.000 são 22%.

A distribuição por tempo de trabalho também apresenta diferenças significativas: enquanto 60,2% dos entregadores ciclistas por aplicativo trabalhavam nove horas ou mais, apenas 16% dos que trabalhavam para a empresa Carbono Courier tinham essa jornada.

Apesar de se tratar de diferentes amostras, universos e períodos de pesquisa, a análise comparativa dos dados permite aventar com segurança uma diferença importante de remuneração e tempo de trabalho entre trabalhadores terceirizados contratados e trabalhadores uberizados. Ela também possibilita afirmar que, em condições mais precárias, a mesma atividade se apresenta mais juvenil e negra. Há uma diferença expressiva na distribuição por cor e idade, além da situação ocupacional anterior ao trabalho atual. Entre os 67 trabalhadores terceirizados contratados, há um equilíbrio entre brancos (51%) e negros (49%), ao passo que a grande maioria dos 270 entregadores por aplicativo é negra (71%). Entre os contratados terceirizados, 35% tinham até 27 anos, enquanto entre os uberizados a maioria é jovem (75%). No que se refere à situação ocupacional anterior, 21% dos entregadores da empresa terceirizada estavam anteriormente desempregados, índice que entre os uberizados chega a 60%.

GRÁFICO 1
Entregadores ciclistas por aplicativo e contratados: comparativo por cor, idade e situação ocupacional anterior

Dessa forma, a comparação entre uma mesma ocupação em sua forma uberizada e em sua forma terceirizada por contrato mostra-se profícua para a compreensão de como desigualdades se intersecionam e se materializam em diferentes condições de trabalho dentro de uma mesma ocupação. Materializam-se nos diferentes modelos de bicicleta utilizados (que definem a ergonomia e impactam na produtividade do trabalho), na variação da duração da jornada, no acesso ou não ao emprego registrado, nas garantias e proteções providas ou não pelas empresas, na variação da remuneração, além das condições cotidianas de trabalho que envolvem a saúde e a segurança do trabalhador. O que fica explícito é que o acesso dos jovens negros se amplia quando as condições de uma mesma ocupação são ainda mais precarizadas e mal remuneradas.

5. A CONDIÇÃO DO TRABALHADOR “JUST-IN-TIME” NA PANDEMIA

No contexto da pandemia no Brasil, o trabalho dos entregadores uberizados inscreve-se na divisão que hoje materializa as desigualdades da sociedade brasileira, entre os que podem isolar-se e os que têm de circular. O trabalho de entregas aparece como um serviço essencial, garantindo a distribuição de alimentos, refeições e bens de consumo. Os trabalhadores ganham visibilidade social, a despeito do papel que já desempenham há décadas nas esferas da circulação e distribuição, inclusive na distribuição de documentos e realização de serviços que integram circuitos do mercado financeiro e imobiliário (Abílio, 2015______. Segurando com as dez: o proletário tupiniquim e o desenvolvimento brasileiro. Relatório Final de Pesquisa. São Paulo, Fapesp, 2015 (mimeo). ). As tensões, os conflitos e as desigualdades que envolvem o trabalho do motoboy se exercem cotidianamente, em diferentes espaços. Afrânio, entrevistado em 2012, então com 51 anos, completava 32 na profissão. Descrevia o tráfego urbano como o espaço de trabalho e simultaneamente de conflito, nas desigualdades que se materializam entre o carro e a moto, entre quem pode pedir a pizza e quem faz a entrega: “O mesmo cara que reclama do chute no retrovisor é o que me xinga quando a pizza chega fria”. Ressaltava ainda a indiferença social ante os altos riscos da profissão: “O cara esquece a chave em casa e lá vou eu buscar na chuva… ‘Pô, cê demorou, hein, soubesse, eu mesmo tinha ido buscar…’ Amigo, sua chave não vale mais do que a minha vida”.

No período da pandemia, fica evidente não só a importância desses trabalhadores uberizados, como também as condições que tecem sua vida. As empresas-aplicativo do setor de entregas veem a demanda crescer exponencialmente: segundo pesquisa da empresa de gestão de finanças pessoais Mobilis, a partir da análise de dados de mais de 160 mil usuários, os gastos com os quatro principais aplicativos de entrega de comida tiveram um crescimento de 103% no primeiro semestre de 2020 (Nascimento, 2020Nascimento, Talita. “Gastos com aplicativos de entrega de comida crescem 103% no 1º semestre”. Estadão Conteúdo, 16/7/2020. Disponível em: <Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/07/16/mobilis-gastos-com-aplicativos-de-delivery-crescem-103-de-janeiro-a-junho.htm >. Acesso em: 10/11/2020.
https://economia.uol.com.br/noticias/est...
).

Já os entregadores viram seu rendimento despencar, ainda que tenham mantido longas jornadas de trabalho, como verificou pesquisa conduzida pelo Grupo de Trabalho Digital (Abílio et al., 2020______ et al. “Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19”. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, v. 3, 2020, pp. 1-21.), no âmbito da Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista (Remir). Aplicou-se um questionário on-line com 270 respondentes de todo o país que já eram entregadores por aplicativo - de moto ou bicicleta - antes da pandemia. Verificou-se que, antes dela, 17,8% auferiam até aproximadamente um salário mínimo por mês (até r$ 260 por semana); durante a pandemia, são 34,4%. Para até cerca de dois salários mínimos (entre r$ 261 e r$ 520), eram 47,4% dos entregadores, passando para 71,9%.

Os jovens de até 29 anos compuseram 37% da amostra (101 entregadores). Analisando a evolução de sua remuneração, vê-se um movimento bastante semelhante ao do total dos trabalhadores entrevistados: antes da pandemia, 16% tinham rendimento de até um salário mínimo/mês; na pandemia, essa faixa mais que dobra de tamanho (34%). Antes da pandemia, 45% dos entregadores jovens ganhavam até dois salários mínimos; durante a pandemia, são 71%. Na faixa dos que ganham entre três e quatro salários mínimos, há uma redução de 18% para 6%.

Uma das hipóteses prováveis é que, no contexto de crise sanitária e econômica, tenha havido uma ampliação significativa de pedidos de cadastramento por trabalhadores desempregados e/ou provenientes de outras ocupações, que veem na entrega por aplicativo uma possibilidade de geração de renda. A regulação do tamanho do exército de trabalhadores e de sua variação está nas mãos das empresas. Provavelmente houve ampliação do contingente de trabalhadores, diluição da distribuição do trabalho e retirada de bonificações (49% dos entrevistados disseram que a bonificação diminuiu durante a pandemia).

GRÁFICO 2
Jovens entregadores por aplicativo: distribuição por faixa de renda semanal antes e durante a pandemia

O que fica evidente é a condição do trabalhador uberizado, que está sujeito a mudanças sumárias no valor de sua hora e na distribuição do trabalho, que também se traduzem em longas jornadas e aumento dos riscos e custos. Ao mesmo tempo que ganham visibilidade e centralidade como serviço essencial para o isolamento, os entregadores enfrentam a piora de suas condições de trabalho. Em contrapartida, também se organizam politicamente como multidão de uberizados.

6. BRECANDO OS “APPS”

No dia 1º de julho de 2020, os entregadores por aplicativo realizaram sua primeira paralisação nacional. Apropriaram-se da condição de multidão, organizando-se horizontalmente, por meio das redes sociais, em um movimento cuja construção aparece de forma dispersa, não podendo ser localizada na figura de uma única organização, liderança, sindicato ou partido. Demandaram aumento no valor da hora de trabalho, fim dos desligamentos injustificados e fornecimento de equipamentos de proteção e segurança durante a pandemia. Além de ocuparem vias das cidades, bloquearam saídas de centros de distribuição e de locais com alta demanda por entregas. Por meio das redes sociais, estimularam os consumidores a não fazer pedidos e a desinstalar ou avaliar mal os aplicativos de entrega.

No dia 25 de julho, fizeram mais uma paralisação. Os desdobramentos do movimento ainda não estão claros. Um dos resultados é o protocolamento de dezenas de projetos de lei voltados para os entregadores ou para o trabalho por aplicativo em perspectiva mais ampla.7 7 Dentre eles, o PL n. 3.728/2020, de autoria da deputada Tabata Amaral, que propõe a legalização de uma nova figura jurídica, o “Regime de trabalho sob demanda”, em que o trabalhador é reconhecido como autônomo, não há vínculo de emprego e o tempo de trabalho é igualado ao “tempo efetivo de produção”. Sindicatos e associações também passaram a vocalizar demandas, em um campo conflituoso que envolve diferentes perspectivas sobre representatividade, organização coletiva e regulações do trabalho. O movimento passa ao largo de uma oposição ou um apoio ao atual governo, centrando o conflito na relação direta com as empresas. O que fica evidente são os desafios enfrentados pelas formas tradicionais de organização coletiva diante de novos modos de resistência que se constroem na relação com os modos contemporâneos de gestão e controle do trabalho. Também ficam claros as disputas e os dilemas em torno de regulações do trabalho que enfrentem o processo de informalização e especificidades da uberização - como o gerenciamento algorítmico, sobretudo em um cenário como o atual, profundamente desfavorável para a proteção e os direitos dos trabalhadores.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A uberização foi apresentada como um novo tipo de controle, gerenciamento e organização do trabalho. Retirando-se o enfoque excessivo nas inovações tecnológicas, ela se embasou em transformações em curso há mais de quatro décadas e que estão envoltas pelo processo de informalização do trabalho. No cerne da uberização está a redução do trabalhador a um trabalhador just-in-time, uma tendência que hoje permeia o mundo do trabalho de alto a baixo.

O contexto da pandemia evidenciou a condição de trabalhadores just-in-time, trazendo também uma visibilidade social aos entregadores. O #Brequedosapps consolida novas formas de resistência que se fazem na relação com esse tipo de gerenciamento e organização do trabalho.

Assim como a categoria juventude, a uberização tem de ser compreendida nos aspectos gerais que a definem e no reconhecimento das desigualdades que nela se intersecionam e que confluem em diferentes assimetrias, trajetórias, acessos e oportunidades. Diferentes condições de trabalho e de remuneração se estabelecem por dentro da categoria bikeboy: quando essa ocupação - já precária, de baixa qualificação e rendimento - se informaliza e se precariza, a participação dos jovens negros cresce significativamente.

A discussão é permeada pelo desafio analítico da construção de categorias a partir da periferia. Precariedade, flexibilização, informalização são termos complicados quando tratamos de um mercado de trabalho historicamente assentado na profunda desigualdade social, na informalidade, na predominância de trabalhos de baixas remuneração e qualificação. Apresentou-se a tese de que a uberização é também uma nova forma de subordinação e gestão centralizada de modos de vida tipicamente periféricos, ao mesmo tempo que elementos constitutivos desses modos de vida parecem estar se generalizando pelas relações de trabalho sob as figuras do trabalhador just-in-time e do autogerenciamento subordinado.

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  • 1
    A noção de processo de informalização dialoga com a definição do processo de informalidade trazida por Maria Cristina Cacciamali, referindo-se “à análise de um processo de mudanças estruturais em andamento na sociedade e na economia que incide na redefinição das relações de produção, das formas de inserção dos trabalhadores na produção, dos processos de trabalho e de instituições” (Cacciamali, 2000Cacciamali, Maria Cristina. “Globalização e processo de informalidade”. Economia e Sociedade, Campinas, n. 14, 2000, pp. 153-74. , p. 153).
  • 2
    O termo just-in-time nomeia um modo de organização da produção que, por operar de acordo com a demanda, elimina uma série de riscos e custos para a empresa, especialmente os relacionados aos estoques. A transposição para a categoria do trabalhador just-in-time foi feita por Francisco de Oliveira (2000Oliveira, Francisco de. “Passagem na neblina”. In: Stedile, João Pedro; Genoino, José (orgs.) Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.), ao analisar a perda de distinções entre o que é tempo de trabalho e o que não é, até mesmo entre o que é ou não trabalho, na figura de um trabalhador que, por meio das tecnologias da informação, encontra-se permanentemente disponível para o trabalho, sendo utilizado quando necessário.
  • 3
  • 4
    As empresas que organizam o trabalho por meio de plataformas digitais têm recebido diferentes denominações. Utiliza-se aqui o termo “empresa-aplicativo” para expressar que, apesar de ser uma empresa, esta aparece para o consumidor — e por vezes até mesmo para o trabalhador — como um aplicativo digital.
  • 5
    “Dirija com a Uber. Seja seu chefe, dirija seu carro. Trabalhe nos horários que quiser” é um dos posts da página da empresa no Facebook, disponível em <www.facebook.com/uber/posts/1241771189196497/>. Acesso em 10/11/2020.
  • 6
    A condição do OL remete à do entregador do filme Você não estava aqui (no original, Sorry We Missed You, 2019), dirigido por Ken Loach. Ao mesmo tempo que não dispõe de garantias sobre sua remuneração ou seu tempo de trabalho, o personagem arca com uma série de riscos e custos e tem seu tempo de trabalho ferozmente controlado pela figura do gerente e do gerenciamento algorítmico.
  • 7
    Dentre eles, o PL n. 3.728/2020, de autoria da deputada Tabata Amaral, que propõe a legalização de uma nova figura jurídica, o “Regime de trabalho sob demanda”, em que o trabalhador é reconhecido como autônomo, não há vínculo de emprego e o tempo de trabalho é igualado ao “tempo efetivo de produção”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2020
  • Aceito
    07 Out 2020
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